Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2556/18.2T8FNC-B.L1-1
Relator: RENATA LINHARES DE CASTRO
Descritores: INSOLVÊNCIA CULPOSA
REQUISITOS
PRESUNÇÃO DE CULPA E DE NEXO CAUSAL
VENDA DE IMÓVEL PARA LIQUIDAR HIPOTECA
VENDA DE VEÍCULO AUTOMÓVEL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/04/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I. Em face do disposto no n.º 1 do artigo 186.º do CIRE[1], são requisitos cumulativos da insolvência culposa: a) o facto inerente à actuação, por acção ou omissão, do devedor ou dos seus administradores (tanto de direito, como de facto), nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência; b) a culpa qualificada (dolo ou culpa grave); e c) o nexo causal entre aquela actuação e a criação ou o agravamento da situação de insolvência.
II. Não obstante, verificando-se alguma das situações descritas nas diversas alíneas do n.º 2 do mesmo artigo, fica imediatamente estabelecido o juízo normativo de culpa, sem necessidade de demonstração do nexo causal entre a actuação ali elencada e a situação de insolvência ou o seu agravamento.
III. Por força do n.º 4 do artigo 186.º, as previsões constantes do seu n.º 2, são aplicáveis às pessoas singulares, com as necessárias alterações.
IV. Estando demonstrado que a devedora (pessoa singular declarada insolvente por sentença de 15/05/2018) procedeu à venda da fracção autónoma da qual era proprietária pelo preço de 65.500€ (em 30/11/2017) – a qual havia sido adquirida pelo preço de 71.000€ (em Setembro de 2008) e, à data da venda, tinha um valor patrimonial de 55.036,57€ -, tendo com o produto de tal venda liquidado o empréstimo bancário a que estava obrigada (liquidando, a esse título, o montante de 61.056,62€), dessa forma permitindo o cancelamento da hipoteca voluntária que sobre o bem incidia, não se mostra preenchida a previsão do artigo 186.º, n.º 2, al. d), porquanto sempre estaríamos perante um titular de crédito garantido que, em sede de insolvência, obteria preferência pelo produto da venda do imóvel, para além de não ter sido apurado que a venda tenha ocorrido por montante inferior ao valor real ou comercial.
V. Porém, tendo a devedora, em 07/03/2017, transmitido a titularidade do veículo automóvel do qual era proprietária para o nome da sua ex-sogra (a qual, para além de não estar demonstrado que fosse credora, nunca gozaria de qualquer preferência de pagamento sobre o produto desse bem), sem que para tanto tenha sido pago qualquer preço, impõe-se concluir pela verificação da situação prevista na mesma alínea d) do n.º 2 do artigo 186.º, nessa medida sendo de qualificar a insolvência como culposa.
VI. A tal qualificação não obsta o facto de a transmissão da propriedade do veículo ter ocorrido em Março de 2017 e a devedora apenas ter entrado em incumprimento das suas obrigações em Agosto do mesmo ano, porquanto, com a disposição do referido bem, fica imediatamente estabelecido o juízo normativo de culpa da devedora pelo agravamento da situação de insolvência.
VII. Estando em causa uma insolvência qualificada como culposa por força do disposto no n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, impõe-se extrair dessa qualificação todos os efeitos, designadamente os efeitos pessoais que decorrem para a pessoa afectada.
VIII. Na fixação do período de inibição a que aludem as als. b) e c) do n.º 2 do artigo 189.º do CIRE, deverá o tribunal atender à gravidade da conduta da pessoa afectada e à sua relevância para a verificação da situação da insolvência ou para o agravamento da mesma.
IX. A fixação da indemnização a que alude a al. e) do n.º 2 do mesmo artigo 189.º, deverá ser efectuada de forma casuística, atendendo, não apenas ao valor global do passivo (que não obteve satisfação através do activo da massa insolvente), mas também ao grau de culpa e de ilicitude da conduta da pessoa afectada, dessa forma se observando o princípio da proporcionalidade.
X. Nessa medida, não obstante os créditos reclamados e reconhecidos ascendam ao montante global de 83.679,93€, atendendo a que o referido veículo, à data da transmissão da sua titularidade, tinha um valor venal de 8.000€, sendo através do produto da sua venda que seria possível dar parcial pagamento aos credores, julga-se proporcionalmente ajustada a fixação da indemnização aos mesmos no correspondente a mesmo montante, por ser o correspondente ao valor do dano causado pela conduta da devedora.
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[1] Diploma a que nos estaremos a referir sempre que for citado um artigo sem referência ao respectivo diploma de origem.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa.

I - RELATÓRIO
Por sentença de 15/05/2018, já transitada em julgado, foi AP declarada insolvente.

Pelos credores CA e marido MC, nos termos previstos pelo artigo 188.º do CIRE, foi requerida a qualificação da insolvência como culposa.
Fundamentaram o seu requerimento nos seguintes moldes: a devedora apresentou-se à insolvência sem qualquer activo e apresentando um passivo de 21.201,84€, dos quais 19.994,84€ corresponde ao crédito dos aqui requerentes. Para além do rendimento que aufere como enfermeira (no valor de 1.372,84€, não obstante ter sido inicialmente indicado um valor inferior) refere pagar 400€ a título de renda de casa, sendo que o arrendamento é referente a imóvel pertencente ao seu ex-marido (alegadamente desempregado), do qual nunca se separou e que com ela reside (sendo que, para além de não ter sido junto qualquer recibo de renda, este último paga uma prestação bancária de apenas 350,57€).
Mais referiram que, não obstante a devedora ter subscrito empréstimos da sociedade T…, Lda (entretanto insolvente), da qual era sócia gerente, e dos quais os aqui credores foram avalistas (resultando o seu crédito do incumprimento de tais contratos de mútuo), a mesma admite ter recebido dessa sociedade material desportivo por conta de suprimentos efectuados (que vendeu através da internet).
Nos dois anos anteriores à data do presente processo de insolvência, a devedora: a) vendeu o apartamento de que era proprietária por um valor inferior ao seu valor comercial e real (sendo que, a prestação bancária que pagava ao banco era inferior à que refere agora pagar a título de renda); b) omitiu o fim dado ao recheio da sua habitação; c) vendeu à ex-sogra (a qual se enquadra na al. b) do n.º 1 do artigo 49.º) o veículo de que também era proprietária e que continua na sua posse. Tais vendas foram simuladas ou ruinosas, tendo visado apenas impedir o ressarcimento dos credores.
 
Em 11/07/2018, foi proferido despacho a declarar aberto o incidente de qualificação.

Pelo Administrador de Insolvência (AI) foi apresentado o competente parecer, propondo a qualificação da insolvência como culposa, nos termos previstos pelo artigo 186.º, n.º 2, als. b) e d).
Delimitando o hiato temporal a considerar como sendo o decorrido entre 09/05/2015 e 09/05/2018, refere ter ficado demonstrado que, “em Março de 2017 e em Novembro de 2017, a insolvente alienou um bem móvel sujeito a registo e um bem imóvel que integravam o seu património, respectivamente, o primeiro deles um automóvel que foi vendido à mãe do ex-marido, embora se trate do actual companheiro da devedora, em casa de quem, aliás, a mesma vive em comunhão de leito e mesa.
E, em face da factualidade que considera ter ficado apurada[1], defende:
“(…) - os Factos 3 e 4 não podem deixar de ser inseridos na previsão da alínea b), uma vez que tal arrendamento – o qual, aliás, se duvida que corresponda à realidade, pois além de não se terem localizado nos autos quaisquer comprovativos do pagamento das alegadas rendas, a experiência do homem médio ensina que é invulgar que a companheira pague renda ao companheiro pelo imóvel onde habitam em economia comum … - caso exista, causa agravamento artificial da situação patrimonial da devedora, na medida em que aumentou as despesas fixas que esta teria de suportar durante o período de cessão e pode ter induzido o Tribunal em erro, o qual, ao fixar o rendimento indisponível da insolvente em €1.100,00 mensais, terá contabilizado tal encargo de €400,00; // - os Factos 5, 6, 7 e 8 incluem-se na alínea d), do artigo em causa, que enuncia como causa de insolvência culposa o facto da devedora ter disposto dos seus bens em proveito pessoal ou de terceiros, já que foi exactamente isso que sucedeu ao ter desviado um automóvel para a esfera jurídica duma pessoa especialmente relacionada com a insolvente, a mãe do companheiro, a que acresce a venda do apartamento, em Novembro de 2017, por preço que excedeu em menos de 20% o valor patrimonial tributário do mesmo, sendo certo que tais negócios de compra e venda foram celebrados em 2017, pelo que, assim, também fica observado o último requisito exigido pelo artigo 186º, nº 1, do C.I.R.E.; // Assim, é forçoso concluir que (i) tais negócios foram efectuados com a intenção de esvaziar a garantia dos credores constituída pelo património da insolvente perante a iminência daqueles poderem fazer valer os direitos que lhes assistem e (ii) foram praticados, dolosamente, dentro do período de três anos estabelecido pela lei. // Daí resulta que a factualidade aduzida se inclui em duas das alíneas do artigo 186º, nº 2, do C.I.R.E., razão pela qual não pode ser afastada a culpa nesta insolvência, existindo, igualmente, nexo de causalidade entre a conduta da insolvente e a criação ou agravamento da situação de insolvência.”

Pelo Ministério Público foi junto parecer pelo qual defendeu a qualificação da insolvência como culposa, nos termos previstos pelo artigo 186.º, n.ºs 1 e 2, als. a) e b), e com as consequências decorrentes do artigo 189.º.
Elencou como factualidade a seguinte: “1 - A devedora AP apresentou-se à insolvência em 10/05/2018 a qual foi declarada por sentença proferida em 15/05/2018. // 2 - A AC de credores foi realizada no dia 20/06/2018 tendo sido aprovado a liquidação condicional sendo que o administrador substituto no requerimento de fls 122, propôs o encerramento do processo “com fundamento em insuficiência da massa insolvente” //3 – No relatório a que se refere o art.º 155º do CIRE junto a fls 39, mostram-se identificados os credores. // Caixa Económica Montepio Geral… €63.685,09 // CA e marido MC €19.994,84 // 4 - A insolvente foi casada com RL, (…), o qual é filho de LG, (…) // 5 – Apesar de divorciada, a insolvente continuou a residir com o ex-marido com o qual participou em várias sociedades e de cuja participação resultaram dívidas. // 6 – Decidida a apresentar-se à insolvência, face à pressão que vinha sofrendo dos credores, a devedora começou por se desfazer dos bens registados em seu nome, o que fez do seguinte modo: // 7 – Sendo proprietária da viatura  XXX, em 07/03/2017 colocou a viatura em nome da mãe do ex-marido, LG, (..) // 8 – Sendo proprietária da fracção autónoma AH (…) a qual havia adquirido em 2008 por €71.000,00 (…), vendeu-a em 30/11/2017 por €65.000,00 a MG, (…) 9 – A insolvente mesmo depois do divórcio, continuou a residir com o ex-marido na rua XXX no Caniço, em prédio de que ele era o proprietário, (…) // 10 – Porém, para fazer constar despesas e reduzir os seus rendimentos mensais no requerimento de apresentação à insolvência, forjou com ele um contrato de arrendamento para o local onde ambos residiam e sempre residiram com os filhos, tendo-lhe aposto a data de 15/7/6016 e renda pelo valor mensal de €400,000,00, (…) // 11 – Tal contrato é forjado dadas as condições em que vivia o casal mas também porque como decorre de fls 13 a 14 vº, os contratos de prestação de serviços para tal local, estão celebrados em nome do ex-conjuge.”
E, concluiu: “Os factos supra descritos indiciam fortemente que o estado de insolvência em que a devedora caiu, foi voluntariamente causado por ela que de todo o património se desfez para evitar que o mesmo fosse liquidado em benefício dos credores, resultado que obteve posto nenhuns bens lhe terem sido apreendidos.”

Notificada, veio a insolvente deduzir oposição, tendo pugnando pela qualificação da insolvência como fortuita.
Alegou, para tanto: “(…) 7.º // Os credores CA e MC insistem, nas suas alegações (…), numa alegada estratégia preparada pelo casal para que as dívidas fossem todas imputadas à insolvente, e o (suposto) património do casal ficasse «salvaguardado» na esfera do seu companheiro. // 8.º // Ora, tal tese, não só é falsa, como foi já comprovadamente resolvida e esclarecida na sentença proferida nos autos de embargos da insolvência que correram termos sob o apenso n.º 2556/18.2T8FNC-A, entretanto já transitada em julgado. // (…) 12.º // É igualmente invocado pelos credores CA e MC e sufragado nos respetivos pareceres, que a insolvente desfez-se do património que tinha, pouco tempo antes de se apresentar à insolvência, com o intuito de defraudar os seus credores. // 13.º // Na realidade e conforme também já resulta comprovado na sentença proferida no apenso de embargos de insolvência n.º 2556/18.2T8FNC-A, a insolvente foi forçada a alienar os únicos bens que tinha (um imóvel e uma viatura automóvel) uma vez que, por um lado, já não tinha capacidade financeira para suportar o pagamento da prestação mensal decorrente do respetivo crédito a habitação. // 14.º // E em relação à viatura automóvel, vendeu-a à avó paterna (LG) dos seus filhos como forma de lhe pagar os diversos empréstimos de baixo montante que esta lhe concedeu, inclusive, para comprar a sobredita viatura. // 15.º // Acresce ainda que, a respetiva viatura tinha à data da sua alienação um valor comercial de cerca de 1.000,00€ (mil euros), valor este inexpressivo perante o cenário geral de endividamento que a insolvente apresentava. // 16.º // Refira-se, também, que o imóvel em questão foi alienado por um montante muito aproximado da dívida bancária que a insolvente tinha junto da entidade bancária/credora hipotecária. // 17.º // Dito isto, torna-se evidente que com os atos praticados, a insolvente limitou-se a pagar as suas dívidas, à custa do parco património que à data ainda detinha, reduzindo, dessa forma, o montante do seu endividamento. // 18.º // Agiu, pois, com boa fé e na medida do que lhe era legalmente exigível, perante a situação financeira difícil em que se encontrava e com respeito pelos seus credores. // 19.º // O seu atual companheiro esteve, como está presentemente, numa situação de desemprego. // 20.º // A insolvente continua a viver no imóvel pertencente ao seu companheiro, cuja propriedade é também pertença da sua ex-mulher, e do qual resulta uma prestação mensal bancária a cargo exclusivo do seu companheiro. // (…) 25.º // Não houve quaisquer vendas simuladas, uma vez que estão todas legalmente tituladas e cujo produto dessas vendas foram inteiramente destinados ao pagamento de dívidas dos credores da insolvente. (…)”. Mais referiu estar em situação de baixa médica motivada por doença do foro oncológico.

Os referidos credores vieram responder à oposição, reiterando que a insolvência deve ser qualificada como culposa, defendendo agora estarem preenchidas as previsões das als. a), b), d) e f) do n.º 2 do artigo 186.º.
No essencial, referem o que já anteriormente tinham alegado, apenas acrescentando que a insolvente e o seu companheiro foram novamente pais em 27/07/2018 e que a primeira transferiu para uma empresa do segundo património da sociedade T…, Lda. Juntaram, ainda, o contrato de constituição desta última sociedade, do qual resulta que o capital social foi subscrito pela devedora e pelo recorrente/credor MC.

Teve lugar a realização de audiência prévia, no âmbito da qual foi fixado o objecto do litígio e elaborados os temas da prova (Ref.ª/Citius 49346114).
Após a realização do julgamento, por sentença proferida em 11/04/2022, o tribunal a quo decidiu:
“Termos em que, o Tribunal decide qualificar a insolvência de AP como fortuita, nos termos do artigo 189.º, n.º 1, do CIRE.
Custas pela massa insolvente”

Inconformada com tal decisão, dela interpuseram RECURSO os credores CA e MC, tendo formulando as CONCLUSÕES que agora se transcrevem:
I – AP foi declara insolvente por sentença proferida em 15 de Maio de 2018;
II – Por despacho datado de 11 de Julho de 2018, o Tribunal “a quo” declarou aberto o incidente de qualificação da insolvência;
III – Após audiência de julgamento, no âmbito do incidente de qualificação da insolvência, o Tribunal “a quo” qualificou a insolvência de AP como fortuita, nos termos do artigo 189º nº. 1 do CIRE.
IV – Sentença da qual os Apelantes recorrem, entendendo que face aos elementos de prova – testemunhal e documental - constante dos autos deverá ser alterada a matéria de facto provada e não provada.
V – O artigo 186 nº. 1 do CIRE consagrou um dever geral de abstenção da prática de actos que ciem ou agravem uma situação de insolvência, cuja violação será merecedora de uma resposta sancionatória e preventiva, desde que verificados os pressupostos gerais enumerados no mesmo artigo: facto (activo ou omissivo) praticado pelo devedor nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência; culpa (dolo ou culpa grave): criação ou agravamento da situação de insolvência; nexo de causalidade entre o facto praticado e a criação ou agravamento da situação de insolvência;
VI – O artigo 186º nº. 2 do CIRE enumerou diversas condutas da experiência comum, que criam ou agravam, culposamente, uma situação de insolvência, presumindo, iniludivelmente, a verificação dos pressupostos gerais da insolvência culposa;
VII – entre essas presunções inilidíveis encontra-se a disposição de um bem que não seja acompanhada do recebimento do respectivo valor, beneficiando um terceiro e diminuindo o património de um devedor, em prejuízo dos seus credores (artigo 186 nº. 2 al. d)), como é o caso da venda simulada ou da venda de um bem abaixo do seu valor real;
VIII – Dentro dos 3 anos anteriores à sua insolvência, a insolvente transferiu a titularidade do seu veículo automóvel, com a matrícula XXX para LG, mãe do seu companheiro (pessoa especialmente relacionada com a insolvente) e vendeu o sua fracção habitacional identificada pelas letras AH – do Caniço, por um valor inferior ao de aquisição e inferior ao valor que foi revendido em Dezembro de 2021;
IX – simulou a existência de um contrato de arrendamento com fins habitacionais, com o seu ex-companheiro para permitir aumentar as suas despesas no âmbito do processo de insolvência;
X – Apresentou-se à insolvência omitindo a realidade do seu agregado familiar, nomeadamente que RL era o seu companheiro (ex-marido, divórcio que ocorreu apenas por questões patrimoniais, conforme foi admitido pelos próprios intervenientes), sabendo e tendo consciência que chamaria a atenção do Tribunal “a quo” o senhorio do alegado contrato de arrendamento ser afinal o seu companheiro;
XI – A insolvente só veio a alterar o seu agregado familiar, na sequência da intervenção dos Apelantes no processo de insolvência;
XII – O Tribunal “a quo” fez uma interpretação incorrecta da matéria de facto provada e não provada, mais concretamente quanto à matéria provada nos pontos 32, 35, 36, 37, 37-A e 38;
XIII - O Tribunal “a quo” fundou a sua convicção na prova produzida em audiência de julgamento e nos documentos juntos aos autos (principais e apensos), dando especial relevância às declarações de parte da insolvente – AP e às declarações das testemunhas, RL e LG, respectivamente, companheiro e mãe deste, para prova dos factos provados constantes dos números 32, 35, 36, 37, 37-A e 38 sem que estas declarações fossem corroboradas por quaisquer outros documentos ou elementos de prova.
XIV - Havendo da parte destes, insolvente e testemunhas RL e LG, um interesse directo no desfecho dos presentes autos, pela relação e envolvimento dos referidos intervenientes nas operações verificadas.
Senão vejamos:
c) - A insolvente enquanto parte;
d) O companheiro, enquanto “suposto” senhorio da fracção objecto de um contrato de arrendamento simulado;
c) - A mãe do companheiro (ex-sogra), enquanto titular do registo de propriedade do veículo identificado no artigo 12 dos factos provados, veículo que sempre esteve na posse da insolvente.
XV - Entendendo os apelantes, salvo o devido respeito pelo Tribunal “a quo”, que as declarações da insolvente e das identificadas testemunhas não são, em nada, isentas, demonstrando apenas o comportamento ilícito e de má-fé da insolvente;
XVI– Deverá ser alterada a redacção dos pontos 32 e 36, de acordo com os fundamentos invocados no corpo das presentes alegações, para o seguinte:
“32. RL e AP, assinaram um documento designado por “contrato de arrendamento para fins habitacionais”, datado de 15 de Julho de 2016, mas assinado em data não concretamente apurada, mas após 30 de Novembro de 2017, mediante o qual o primeiro, na qualidade de senhorio, declarou dar de arrendamento à segunda, na qualidade de arrendatária, a fracção autónoma sita no XXX Caniço, Santa Cruz, pela renda mensal de 400,00€ (cfr. fls 11 a 13 dos autos principais).
“36 - LG emprestou à T…, Lda, no dia 29 de Janeiro de 2016, a quantia de 1.500,00€ e no dia 16 de Agosto de 2016, a quantia de 1.871,45€, para pagamento de IVA desta sociedade, no decurso do ano 2016, entregando o dinheiro à AP e ao filho, RL”, factos que resulta do depoimento das testemunhas LG e RL, bem como dos documentos juntos aos autos.
XVII – E aditados aos factos provados os seguintes factos, com relevância para apreciação da situação em apreço:
a) - AP pagava ao Banco Santander Totta, uma prestação mensal de 125,94€ relativamente ao empréstimo à habitação da fracção autónoma designada pelas letras “AH” e descrita na Conservatória do Registo Predial sob o nº. 2722 – Caniço, adquirida em Setembro de 2008, conforme resulta do documento de fls 76 verso, que serviu para fundamentar o ponto 21 dos factos provados;
b) – A escritura de compra e venda identificada no ponto 18 foi celebrada apenas com o intuito de evitar que o património da insolvente fosse objecto de qualquer acto de cobrança coerciva por parte de terceiros credores, tendo ocorrido cerca de 1 mês após o encerramento do processo de insolvência da T…Lda (ponto 16 dos factos provados).
c) – a transferência da titularidade do veículo identificado no ponto 12. tinha apenas como intuito evitar que o património da insolvente fosse objecto de qualquer acto de cobrança coerciva por parte de terceiros credores, não havendo intenção de venda; (com os fundamentos referidos quanto ao ponto 37 e 37-A)
d) - No extracto bancário da conta da insolvente junto através de requerimento apresentado em 19/07/2018 nos autos principais, é possível verificar os seguintes movimentos a crédito:
- 50,00€ transferência de Sr.ª ES – 19/06/2018;
- 2.179,60€ transferência de Serviço Saúde RAM EPE – 20/06/2018;
- 1.168,75€ depósito múltiplo – 02/07
e) – o divórcio de AP e RL, ocorreu por questões patrimoniais, o que resulta do depoimento da testemunha RL na passagem aos minutos 16:30 a 17:40.
f) – LG figura como fiadora do imóvel identificado no artigo 28 dos factos provados, conforme decorre da prova documental junta aos autos (cfr. escritura junta com as alegações dos Apelantes, datado de 10 de Julho de 2018)
g) – RL e LC, têm uma filha em comum, com 16 anos, não pagando aquela qualquer prestação de alimentos, uma vez que assume os créditos bancários identificados em 30 e 31 dos factos provados, conforme resulta do depoimento de RL, face ao acima alegado quanto ao ponto 35 dos factos provados.
XVIII - Com a alteração da matéria de facto acima referida (factos provados e não provados), entendem os Apelantes que a decisão a proferir conduzirá necessariamente à qualificação da insolvência como culposa.
XIX - Deverão passar para não provados os factos constantes dos pontos 35, 37, 37-A e 38, pelos motivos e fundamentos constantes acima nas presentes alegações;
XX - O Tribunal “a quo”, salvo o devido respeito, fez uma interpretação e aplicação incorreta do direito neste caso concreto.
XXI - Na situação em apreço, a norma crucial para qualificação da insolvência da devedora, pessoa singular é a al. d) do nº. 2 do artigo 186º do CIRE, aplicável adaptadamente, por força do nº. 4, que contém presunção inilidível de insolvência culposa, nos caos em que o devedor, nos três anos anteriores ao início do processo, tiver disposto dos seus bens em proveito pessoal ou de terceiros.
XXII - Actuações e omissões conscientes e deliberadas da insolvente, com o único intuito de “enganar” o julgador e os seus credores, devendo a insolvente sofrer as consequências previstas no artigo 189º do CIRE.
XXIII - A este propósito, é esclarecedor o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no âmbito do Processo nº. 733/14.4TJPRT-C.P1.S1, em 05/09/2017, em que é Relator Fonseca Ramos, que pode ser consultado em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf, que se transcreve parcialmente:
(…) III - A iminência da situação de insolvência pode levar os devedores a escamotearem o seu património, impondo, por isso, a lei a estes certas actuações destinadas a salvaguardar a posição dos credores.
IV - Para efeitos da qualificação de insolvência, importa atender aos actos e omissões dos devedores – os quais radicam sempre em actuações conscientes e deliberadas –, irrelevando o resultado final desses comportamentos para os credores.
V - Dado que o direito não acolhe comportamentos antiéticos e contrários à boa fé (de que é exemplo a simulação) e que a conduta dos devedores deve ser olhada à vista das normas infringidas e dos valores por ela tutelados, não é aceitável que a caracterização da insolvência como fortuita ou culposa fique dependente do resultado que advenha dos actos em causa para os credores. Se assim não fosse, considerar-se-ia da mesma forma o devedor que, honradamente, assumiu ser de expor o seu património em benefício dos credores e o devedor que, não o fazendo, acabou por distratar os negócios lesivos dos interesses destes.
VI - Assim, devem sofrer as consequências previstas no art.º 189.º do CIRE, os devedores que, no período fatal a que alude o n.º 1 do art.º 186.º do CIRE, doaram ao seu filho dois imóveis e que, mais tarde, vieram a distratar esse contrato, vindo depois a prometer vender um dos imóveis a terceiro – o que, todavia, não impediu a apreensão para a massa insolvente –, tendo sempre actuado com o propósito de evitar a cobrança coerciva por parte dos credores.” Jurisprudência que deverá ser atendida.
XXIV - Na situação em apreço, o Tribunal “a quo” reconheceu que o contrato de arrendamento junto aos autos não era válido (era simulado), que o casal sempre viveu em união de facto e divorciou-se por questões patrimoniais, que transferiu para a mãe do companheiro o carro que era propriedade da insolvente e não retira quaisquer consequências para a insolvente!
XXV – “Olhar a actuação dos devedores sob o prisma do resultado final, mesmo que, por força da sua censurável actuação, não seja nefasto: ponderar o acto em si mesmo, deixando de apreciar e valorar a actuação dos insolventes, relevando apenas o resultado, levaria a considerar, que, não tendo havido prejuízo final para os credores, a insolvência deveria ser considerada fortuita, não querida; se os credores, porventura, tiveres sido prejudicados a insolvência deveria considerar-se culposa. Cremos que este critério é inaceitável.”, (Vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no âmbito do Processo nº. 733/14.4TJPRT-C.P1.S1, em 05/09/2017, em que é Relator Fonseca Ramos, que pode ser consultado em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf)
XXVI - O Tribunal “a quo” entendeu que mesmo que a insolvente mantivesse o seu património, os credores, ora Apelantes nunca seriam pagos, não subsumindo, por esta via a conduta da insolvente ao disposto no artigo 186º nº. 2 alínea d) do CIRE, interpretação, que salvo o devido respeito, não pode ser acolhida.
XXVII - Mesmo que a conduta da insolvente não preenchesse uma das presunções inilidíveis do artigo 186º nº. 2 do CIRE, sem conceder, o que só por mera hipótese académica se admite, preencheria sempre os pressupostos gerais de qualificação da insolvência como culposa.
XXVIII – A actuação da insolvente merece reprovação do direito, sendo que na ponderação de que o Direito não acolhe comportamentos antiéticos e lesivos da boa fé e citando o supra identificado Acórdão do STJ “o que interessa é olhar a que a sua actuação à luz das normas infringidas e dos valores que tutelam, sob pena de, casos como o que versamos, ficarem colocados no mesmo patamar de avaliação: o devedor que não alienou património, não fez doações a próximos e, honradamente, assumiu que deveria expor o seu património em benefício dos seus credores, e aquele que, fazendo ao invés, acabou por distratar ou revogar negócios lesivos, seriam considerados da mesma maneira.”
XXIX - A sentença violou por erro de interpretação o disposto nos artigos 220º e segs do Código Civil, artigos 49º nº. 1 al. b), 186º e 189º todos do CIRE.
Pelo que, deverá ser dado provimento ao presente recurso e em consequência revogada a sentença recorrida e, em substituição, declarada culposa a insolvência de AP, com as consequências decorrentes do artigo 189º do CIRE.”

O Ministério Público apresentou RESPOSTA, pela qual emitiu parecer de total conformidade às apresentadas alegações de recurso apresentadas pelos credores.

A insolvente não apresentou contra-alegações.

O recurso foi correctamente admitido. 

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Colhidos os vistos, cumpre decidir.

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II – DO OBJECTO DO RECURSO
O objecto do recurso é definido pelas conclusões no mesmo formuladas, ressalvadas as questões que forem de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, sem prejuízo de o tribunal ad quem não estar limitado pela iniciativa das partes - artigos 5.º, n.º 3, 608.º, n.º 2, ex vi artigo 663.º, n.º 2, 635.º, n.ºs 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do CPC. Contudo, não está este tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelo recorrente, desde que prejudicados pela solução dada ao litígio.
Assim, as questões a decidir são as seguintes:
1. Reapreciação/alteração da matéria de facto;
2. Apreciação da qualificação da insolvência – se a mesma é fortuita (como decidido pela 1.ª instância) ou deverá antes ser qualificada como culposa, por verificação da previsão da al. d) do n.º 2 do artigo 186.º CIRE, sendo que, neste caso, impõe-se, ainda, aferir da medida das consequências legais previstas pelo artigo 189.º, n.º 2.

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III – FUNDAMENTAÇÃO
Fundamentação de facto
Na sentença recorrida consideraram-se provados os seguintes factos:
 1. Por petição inicial datada de 09 de Maio de 2018, AP requereu que fosse declarado o seu estado de insolvência (cfr. prova documental de fls. 2 a 15 – autos principais);
2. Por sentença datada de 15 de Maio de 2018 e proferida no âmbito do processo n.º 2556/18.2T8FNC, foi declarado o estado de insolvência de AP (cfr. prova documental de fls. 23 a 25);
3. Por despacho datado de 13 de Setembro de 2020, o processo referido em 2. foi encerrado por insuficiência da massa insolvente para satisfação das custas do processo e das restantes dívidas da massa insolvente (cfr. artigo 232.º do CIRE) (cfr. prova documental constante dos autos principais).
4. No âmbito do apenso “C” – “Reclamação de Créditos – (CIRE)” foram reconhecidos os seguintes créditos (cfr. prova documental de fl. 2);
a) CAIXA ECONÓMICA MONTEPIO GERAL – um CRÉDITO COMUM, no valor de 63.683,77€, e um CRÉDITO SUBORDINADO, no valor de 2,16€;
b) MC e CA – um crédito no valor de 19.994,84€;
5. O crédito da CAIXA ECONÓMICA MONTEPIO GERAL decorre do incumprimento de três contratos bancários (cfr. prova documental de fls. 101 a 124):
a) Cartão de crédito n.º 325.03.100297-6, encontrando-se em dívida a quantia de 8,84€, acrescida de juros vencidos desde 17 de Maio de 2016, no valor global de 11,09€;
b) Contrato de abertura de crédito em conta corrente – crédito integrado flexível n.º 325-37.000035-9, em sede do qual a insolvente intervém na qualidade de segunda contraente, incumprido desde 30 de Julho de 2017, encontrando-se em dívida o valor de 2.493,64€;
c) Contrato de empréstimo datado de 08 de Abril de 2016, em sede do qual a insolvente assume a posição de mutuária, incumprido desde o dia 08 de Agosto de 2017, encontrando-se em dívida o valor global de 25.092,90€;
d) Contrato de mútuo e fiança Montepio outras finalidades – particulares – n.º 325-27.000027-4, em sede do qual a insolvente assume a qualidade de fiadora e principal pagadora, incumprido desde o dia 24 de Abril de 2018, encontrando-se em dívida o valor global de 36.087,46€;
6. O crédito de MC e CA decorre de um contrato bancário celebrado com a CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS, S.A. em sede do qual, juntamente com a insolvente, assumiram a qualidade de fiadores da sociedade T…Lda, (cfr. prova documental de fls. 49 a 61 – autos principais);
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7. Do assento de nascimento n.º 605397/2010 decorre que AP casou catolicamente com RL, em 30 de Outubro de 2010 (cfr. prova documental de fls. 6 verso e 7 – autos principais);
8. Do assento de nascimento n.º 605397/2010 decorre que o casamento da insolvente foi dissolvido por divórcio declarado por decisão de 02 de Setembro de 2011 (cfr. prova documental de fls. 6 verso a 7);
9. AP padece de cancro da mama diagnosticado no fim de Novembro de 2018 (cfr. prova documental de fl. 45 verso);
***
10. Da DECLARAÇÃO DE RENDIMENTOS – IRS MODELO 3, referente ao ano de 2017, decorre que AP obteve rendimentos brutos no valor de 21.047,47€ (cfr. prova documental de fl. 63 – apenso “A”);
10.-A Em Setembro de 2019, AP auferiu uma remuneração base no valor de 1.201,48€ (cfr. prova documental de fl. 9 – autos principais);
11. Da certidão datada de 24 de Julho de 2018 decorre que RL auferiu no ano de 2017 rendimentos, no valor global de 4.389,88€, razão pela qual, relativamente ao ano de 2017, o contribuinte encontrava-se dispensado de apresentação de declaração de rendimentos Modelo 3 de IRS (cfr. certidão de fl. 73 – apenso “A”);
***
12. Do teor da certidão de registo automóvel referente ao veículo automóvel de matrícula XXX, de marca KIA, modelo Ceed, ano 2010, consta que, no dia 07 de Março de 2017, AP transferiu a titularidade da referida viatura para LG (cfr. prova documental de fl. 23);
13. O veículo automóvel de matrícula XXX foi avaliado em 08 de Março de 2021, no valor de 4.000,00€ (cfr. prova documental de fl. 77 verso);
13.-A Uma viatura automóvel com as características referidas em 12. sofre uma desvalorização anual que se situa nos 1.000,00€ (facto aditado ao abrigo do disposto no artigo 5.º, n.º 2, alínea b) do Código de Processo Civil);
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14. Por sentença datada de 17 de Março de 2017 e transitada em julgado, foi declarado o estado de insolvência da sociedade T…Lda, no âmbito do processo n.º 1215/17.8T8FNC que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca da Madeira – Juízo de Comércio do Funchal – Juiz 1 (cfr. prova documental de fls. 96 a 98 verso);
15. Na sentença de declaração de insolvência da sociedade T…Lda foram apenas indicadas as seguintes informações: (i) a data e hora da respectiva prolação; (ii) a insolvente e a sede; (iii) a residência fixada à administradora da insolvente; e (iv) a nomeação do administrador da insolvência e do seu domicílio profissional (cfr. prova documental de fls. 96 a 98 verso);
16. A sentença que declarou a insolvência da sociedade T…Lda transitou em julgado, e por não ter sido requerido complemento de sentença, o Tribunal, por despacho datado de 03 de Outubro de 2017, declarou o encerramento do processo de insolvência (cfr. prova documental de fls. 99 e verso);
17. AP era gerente da sociedade T…, Lda (cfr. prova documental de fls. 96 a 98 verso);
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18. Por título de compra e venda datado de 30 de Novembro de 2017, AP, declarou vender, e MG declarou comprar, pelo preço de 65.500,00€, a fracção autónoma designada pelas letras “AH” e descrita na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o n.º 2.722-Caniço (cfr. prova documental de fls. 23 verso a 26);
19. Do teor do título de compra e venda datado de 30 de Novembro de 2017 decorre que a fracção autónoma designada pelas letras “AH” se encontra inscrita na matriz sob o artigo …-AH, tendo um valor patrimonial no valor de 55.036,57€ (cfr. prova documental de fls. 24);
20. Do teor do título de compra e venda datado de 30 de Novembro de 2017 decorre que sobre a fracção autónoma designada pelas letras “AH” e descrita na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o n.º 2.722-Caniço incidia o registo de hipoteca voluntária a favor do BANIF – BANCO INTERNACIONAL DO FUNCHAL, S.A., pela apresentação 29 de 01/10/2008, com averbamento de transmissão de crédito a favor do BANCO SANTANDER TOTTA, S.A., pela apresentação 45 de 11/09/2017 (cfr. prova documental de fl. 24);
21. Com referência a 29 de Novembro de 2017, AP tinha uma dívida não vencida para com o BANCO SANTANDER TOTTA, S.A., no valor global de 61.182,56€, cujo cumprimento se encontrava garantido através da hipoteca voluntária mencionada em 20. (cfr. prova documental de fl. 76 verso);
22. O preço declarado no título de compra e venda datado de 30 de Novembro de 2017, no montante de 65.500,00€, foi depositado no dia 20 de Novembro de 2017, na conta bancária n.º 0008 00268754020 da titularidade de AP (cfr. prova documental de fl. 77);
23. No dia 08 de Dezembro de 2017, AP transferiu para o BANCO SANTANDER TOTTA, S.A. a quantia de 61.056,62€ por conta do valor referido em 21. (cfr. prova documental de fl. 77);
24. A hipoteca voluntária referida em 20. foi cancelada no dia 30 de Novembro de 2017, conforme AVERB. AP. 3230 de 2017/11/30 – CANCELAMENTO (cfr. certidão de registo predial);
25. AP adquiriu a fracção autónoma designada pelas letras “AH” e descrita na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o n.º 2.722-Caniço em Setembro de 2008, pelo preço de 71.000,00€ (cfr. prova documental de fl. 68 – apenso “A”);
26. A fracção autónoma designada pelas letras “AH” e descrita na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o n.º 2.722-Caniço foi revendia, em 28 de Dezembro de 2021, pelo preço de 95.000,00€ (cfr. prova documental de fls. 140 a 143);
27. Do teor da escritura pública de compra e venda datada de 28 de Dezembro de 2021 decorre que a fracção autónoma designada pelas letras “AH” e inscrita na matriz sob o artigo …-AH, tinha, à data, um valor patrimonial no valor de 55.865,21€ (cfr. prova documental de fls. 140 verso a 143 verso);
28. Do teor da certidão de registo predial referente à fracção autónoma designada pela letra “A” e descrita na Conservatória do Registo Predial de Santa Cruz sob o n.º 1630/19941117-A decorre que RL e LC adquiriram a mesma (fracção) no estado de solteiros, conforme AP. 10 de 2005/02/21 – Aquisição (cfr. fls. 73 e verso);
29. A fracção autónoma referida em 28. encontra-se onerada por duas hipotecas voluntárias constituídas a favor da CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS, S.A. para assegurarem, de forma respectiva, os montantes máximos de 154.811,80€ e 42.221,40€, conforme Ap. 11 de 2005/02/21 e AP. 12 de 2005/02/21 (cfr. prova documental de fls. 73 e verso);
30. A hipoteca voluntária registrada através da AP. 11 de 2005/02/21 garante o cumprimento do contrato de empréstimo n.º 0336013843885, em sede do qual RL, com data reportada a 11 de Dezembro de 2020, se encontrava obrigado a pagar uma prestação mensal no valor de 338,41€ (cfr. prova documental de fl. 70 e verso);
31. A hipoteca voluntária registrada através da AP. 12 de 2005/02/21 garante o cumprimento do contrato de empréstimo n.º 0336013844685, em sede do qual RL, com data reportada a 11 de Dezembro de 2020, se encontrava obrigado a pagar uma prestação mensal no valor de 120,70€ (cfr. prova documental de fl. 71 e verso);
32. No dia 15 de Julho de 2016, RL, na qualidade de Senhorio, e AP, na qualidade de arrendatária, celebraram um acordo designado por “contrato de arrendamento para fins habitacionais”, mediante o qual o primeiro, na qualidade de Senhorio, declarou dar em arrendamento à segunda, na qualidade de arrendatária, a fracção autónoma sita XXX, Caniço, Santa Cruz, pela renda mensal de 400,00€ (cfr. fls. 11 a 13 – autos principais);
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33. Desde o seu divórcio, AP e RL partilham a mesma habitação, assumem em conjunto as responsabilidades inerentes à vida familiar, e contribuem ambos para os encargos do seu agregado familiar composto, à data do seu pedido de insolvência, pelos próprios e pelo seu filho LOURENÇO, nascido a 29 de Dezembro de 2011 [cfr. artigo 1.º - requerimento datado de 21 de Dezembro de 2020 (aperfeiçoamento)];
33.-A AP e RL fixaram a residência da família na fracção autónoma referida em 28. (cfr. facto aditado ao abrigo do disposto no artigo 5.º, n.º 2, alínea b) do Código de Processo Civil);
34. LG é mãe de RL;
35. Por RL auferir rendimentos irregulares e LC não participar no pagamento dos empréstimos referidos em 30. e 31., AP suporta com o seu salário as prestações mensais referidas em 30. e 31. (cfr. facto aditado ao abrigo do disposto no artigo 5.º, n.º 2, alínea b) do Código de Processo Civil).
36. Para além de outros empréstimos de valor não concretamente apurados concedidos desde 2014, LG emprestou a AP, no dia 29 de Janeiro de 2016, a quantia de 1.500,00€, e no dia 16 de Agosto de 2016, a quantia de 1.871,45€, de modo a que esta pudesse pagar o IVA devido pela sociedade T…Lda., no decurso do ano de 2016 [cfr. artigo 3.º - requerimento datado de 21 de Dezembro de 2020 (aperfeiçoamento)];
37. AP transferiu a titularidade do veículo automóvel de matrícula XXX para LG com vista a compensar aquela pelos empréstimos concedidos [cfr. artigo 2.º - requerimento datado de 21 de Dezembro de 2020 (aperfeiçoamento)];
37.-A LG permite que o veículo automóvel de matrícula XXX seja usado por AP e RL, entre outros fins, para transportar os filhos à escola (cfr. facto aditado ao abrigo do disposto no artigo 5.º, n.º 2, alínea b) do Código de Processo Civil);
38. RL e AP celebraram o “contrato de arrendamento para fins habitacionais” referido em 32., para lhe atribuir o direito ao gozo do referido imóvel, por esta última suportar com o seu salário os empréstimos bancários referidos em 30. e 31. (cfr. facto aditado ao abrigo do disposto no artigo 5.º, n.º 2, alínea b) do Código de Processo Civil).
39. AP não paga a renda prevista no contrato de arrendamento para fins habitacionais” referido em 32. (cfr. facto aditado ao abrigo do disposto no artigo 5.º, n.º 2, alínea b) do Código de Processo Civil).

3.1.2 FACTOS NÃO PROVADOS
A) A insolvente vendeu o imóvel referido em 18., por o valor do seu salário não ser suficiente para suportar, simultaneamente, o pagamento da prestação mensal decorrente do seu crédito a habitação contraído junto do BANCO SANTANDER TOTTA, S.A. e das prestações mensais referidas em 30. e 31. (cfr. artigo 13.º da Op.).

Em sede motivação, pode ler-se na sentença:
“(…) 4. O Tribunal formou a sua convicção relativamente ao FACTO 35., que foi aditado ao abrigo do disposto no artigo 5.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Civil, com base nas declarações credíveis de RL e de AP.
5. AP declarou em sede de julgamento que vendeu o imóvel referido em 18. por o seu salário não ser suficiente para suportar, em simultâneo, o pagamento da prestação mensal decorrente do seu crédito à habitação contraído junto do BANCO SANTANDER TOTTA, S.A. e das prestações mensais referidas em 30. e 31..
Estas afirmações são plausíveis atento o valor global dos rendimentos do seu agregado familiar, conforme decorre dos FACTOS 10., 10.-A e 11., que evidenciam que o mesmo (agregado) subsiste quase na exclusividade com base nos rendimentos da insolvente.
Porém, considerando que a venda do imóvel ocorreu cerca de um mês após o encerramento do processo de insolvência da sociedade T…Lda, por insuficiência da massa insolvente (cfr. FACO 16.), é entendimento do Tribunal ser altamente provável que o motivo atrás enunciado não foi aquele que deu origem à decisão de venda do referido imóvel.
Vejamos.
Em primeiro lugar, cabe salientar que do FACTO 35. decorre que a insolvente, desde sempre, participou no pagamento dos empréstimos bancários referidos em 30. e 31., e nem por isso entrou em incumprimento relativamente ao seu empréstimo bancário contraído junto do BANCO SANTANDER TOTTA, S.A..
Contudo, com o vencimento do crédito referido em 5., alínea c), supra, em Agosto de 2017, a insolvente passou a estar insolvente.
Assim sendo, e considerando que a insolvente não podia deixar de ter conhecimento da probabilidade séria de os seus credores virem a instaurar em médio/curto prazo acções judiciais contra si com vista a lograr a cobrança dos seus créditos, é entendimento do Tribunal que a venda do referido imóvel foi concretizada pela insolvente com o intuito de liquidar uma das suas potenciais dívidas – o seu crédito à habitação contraído junto do BANCO SANTANDER TOTTA, S.A. (cfr. FACTOS 18., 19., 20., 21., 22., 23., 24.), que acabaria por se vencer, ou por incumprimento, ou por o bem dado em garantia ter sido alvo de penhora ou outro tipo de apreensão judicial.
Termos em que, o Tribunal decide julgar o FACTO A), como não provado.
6. LG declarou, de forma convincente, pelo modo peremptório e espontâneo com que prestou a suas declarações, e sem deixar transparecer que estivesse motivada por um intuito torpe em beneficiar ou prejudicar alguma das partes, que a partir do ano de 2014 começou a ajudar o agregado familiar do seu filho, emprestando dinheiro.
Salientou que ao longo dos anos emprestou à família várias quantias em dinheiro, tendo inclusivamente emprestado dinheiro de modo a que a sua nora pudesse pagar o IVA da sociedade T…Lda. Para o efeito, fez duas transferências bancárias: (i) uma, no dia 29 de Janeiro de 2016, no valor de 1.500,00€; e (ii) outra, no dia 16 de Agosto de 2016, no valor de 1.871,45€.
Termos em que, o Tribunal decide julgar como provado que “para além de outros empréstimos de valor não concretamente apurado, concedidos desde 2014, LG emprestou a AP, no dia 29 de Janeiro de 2016, a quantia de 1.500,00€, e no dia 16 de Agosto de 2016, a quantia de 1.871,45€, de modo a que esta pudesse pagar o IVA devido pela sociedade T…, Lda., no decurso do ano de 2016” (cfr. FACTO 36.).
7. O Tribunal formou a sua convicção relativamente aos FACTOS 37. e 37.-A (que foi aditado ao abrigo do disposto no artigo 5.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Civil), com base nas declarações convincentes de LG.
8. O Tribunal formou a sua convicção relativamente aos FACTOS 38. e 39., que foram aditados ao abrigo do disposto no artigo 5.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Civil, com base nas declarações credíveis de AP.”

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Da reapreciação/alteração da matéria de facto
Considerando que os apelantes deram cumprimento às exigências previstas pelo artigo 640.º, n.º 1, do CPC, nada obsta à apreciação da requerida impugnação da matéria de facto.[2]
Acresce que que, de acordo com o disposto no artigo 662.º, n.º 1, do mesmo código, “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Daqui resulta expressamente a admissibilidade de, através do recurso, ser alterada a decisão da matéria de facto, considerando provados factos que o tribunal a quo considerou não provados, ou procedendo inversamente, a partir da reapreciação dos meios de prova ou quando os elementos constantes do processo impuserem decisão diversa.
Vejamos, pois, se assiste razão aos apelantes na invocada impugnação.
Através da mesma, pretende-se: a) a alteração da redacção dos factos 32 e 36, b) a eliminação dos factos 35, 37, 37-A e 38 do elenco da factualidade provada (devendo ser considerados não provados), e c) o aditamento de novos sete factos à factualidade provada.
(…)
Nesta conformidade, julga-se parcialmente procedente a impugnação da matéria de facto, nessa medida se decidindo:
1. Alterar a redacção do facto provado n.º 32 para a seguinte:
“RL e AP, em data não concretamente apurada, mas não anterior a Novembro de 2017, subscreveram o acordo denominado “contrato de arrendamento para fins habitacionais”, datado de 16 de Julho de 2016, pelo qual declararam que o primeiro, na qualidade de senhorio, dava de arrendamento à segunda, na qualidade de arrendatária, a fracção autónoma sita XXX Caniço, Santa Cruz, pela renda mensal de 400,00€ (cfr. fls. 11 a 13 – autos principais)”
2. Alterar a redacção do facto provado n.º 36 para a seguinte:
“LG emprestou à T…Lda, por intermédio da sua sócia gerente AP, a quantia de 1.500,00€ no dia 29 de Janeiro de 2016 e a quantia de 1.871,45€ no dia 16 de Agosto de 2016 (para pagamento de IVA devido pela mesma sociedade no decurso do ano de 2016)”.
3. Alterar a redacção do facto provado n.º 37-A para a seguinte:
Não obstante o estatuído no facto n.º 12, LG nada pagou a título de contraprestação pelo veículo automóvel de matrícula XXX, o qual sempre foi conduzido, como continua a ser, por AP.”
4. Eliminar da matéria de facto provado os pontos 35 e 38;
5. Considerar não provado o facto constante do ponto n.º 37;
6. Aditar dois novos factos, com a seguinte numeração e redacção:
“40. AP pagava ao Banco Santander Totta, uma prestação mensal de 125,94€ relativamente ao empréstimo à habitação da fracção autónoma designada pelas letras “AH” e descrita na Conservatória do Registo Predial sob o nº. 2722 – Caniço, adquirida em Setembro de 2008 (cfr. documento de fls 76 verso).”
“41. LG figura como fiadora do imóvel identificado no artigo 28 dos factos provados (cfr. escritura pública de 28/03/2005, junta aos autos em 18/06/2018)”

Decidida que se encontra a impugnação da matéria de facto, passemos a conhecer da questão suscitada em termos de Direito.

IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Da qualificação da insolvência.
Na sentença recorrida qualificou-se a insolvência como fortuita, nos termos do disposto no artigo 189.º, n.º 1.
Os recorrentes insurgem-se contra tal decisão, defendendo que a insolvência deverá antes ser qualificada como culposa, também assim o defendendo o Ministério Público.
O incidente de qualificação (previsto e regulado nos artigos 185.º e ss) visa averiguar quais os motivos que determinaram a situação de insolvência e se os mesmos foram puramente fortuitos ou se, pelo contrário, traduzem alguma actuação gravemente negligente ou fraudulenta do devedor.
Prescreve o n.º 1 do artigo 186.º que “A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
São, pois, requisitos cumulativos da insolvência culposa: a) o facto inerente à actuação, por acção ou omissão, do devedor ou dos seus administradores (tanto de direito, como de facto), nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência; b) a culpa qualificada (dolo ou culpa grave); e c) o nexo causal entre aquela actuação e a criação ou o agravamento da situação de insolvência.
O conceito constante deste n.º 1 é depois complementado nos dois números seguintes por um conjunto de situações em que a insolvência se considera sempre culposa - n.º 2 -, ou nas quais se presume a existência de culpa grave – n.º 3.
No caso, defendem os recorrentes que se mostra preenchida a circunstância descrita na al. d) do n.º 2, segundo a qual se considera “sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham: (…) d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;”. O disposto neste n.º 2 (assim como no n.º 3) é aplicável, “com as necessárias adaptações, à atuação de pessoa singular insolvente e seus administradores, onde a isso não se opuser a diversidade das situações.” (n.º 4).
As previsões elencadas nas diversas alíneas do citado n.º 2 correspondem, na verdade, a condutas que integram uma presunção iuris et de iure, da existência de insolvência culposa. [3] Trata-se de um elenco taxativo de presunções inilidíveis de insolvência culposa, de culpa e de nexo de causalidade – cfr. artigo 350.º, n.º 2, in fine, do Código Civil.[4] Nessa medida, tratando-se de presunções inilidíveis, e como refere Maria do Rosário Epifânio, “quando se preencha algum dos factos elencados no n.º 2 do art.º 186º, a única forma de escapar à qualificação da insolvência como culposa será a prova, pela pessoa afetada, de que não praticou o ato”.[5]
O Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 570/2008, publicado no D.R., 2.ª Série, N.º 9, de 14/1/09, ter considerado ser “… duvidoso que na previsão do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE se instituam verdadeiras presunções … o que o legislador faz corresponder à prova da ocorrência de determinados factos não é a ilação de que um outro facto (fenómeno ou acontecimento da realidade empírico - sensível) ocorreu, mas a valoração normativa da conduta que esses factos integram. Neste sentido, mais do que perante presunções inilidíveis, estaríamos perante a enunciação legal de situações típicas de insolvência culposa”. Não obstante, quer se trate de presunção inilidível de culpa ou de factos-índice, perante a prova de determinados comportamentos sempre se terá de concluir que a insolvência é culposa (sem necessidade de demonstração do nexo causal entre as condutas constantes das diversas alíneas do n.º 2 e a situação de insolvência ou o seu agravamento).
Cumpre, pois, aferir se o comportamento da aqui devedora é subsumível à al. d) do citado n.º 2 (sendo que, no recurso intentado, não foi invocada qualquer outra alínea do n.º 2 ou do n.º 3 do artigo 186.º).
O período temporal relevante para efeitos do n.º 1 do artigo 186.º é o decorrido entre 09/05/2015 e 15/05/2018 (o que não vem questionado).
Os recorrentes justificam essencialmente a sua posição em duas actuações da devedora (ambas ocorridas nos três anos que antecederam o início do processo de insolvência), a saber:
- a venda da sua fracção habitacional por valor inferior ao da aquisição e ao valor pelo qual veio a ser depois revendido, e
- a transferência da titularidade do seu veículo automóvel para a ex sogra;
Igualmente justificam tal posição no facto de a devedora ter:
- simulado a existência de um contrato de arrendamento habitacional, com pagamento de uma renda mensal de 400€, contrato esse que teria sido celebrado com o companheiro (ex-marido) por forma a aumentar as despesas apresentadas no âmbito do processo de insolvência, e
- apresentação à insolvência com omissão de o seu agregado familiar integrar o ex-marido/actual companheiro.
Desde já se dirá que estas duas últimas circunstâncias, não obstante serem censuráveis, não se mostram relevantes para efeitos de qualificação da insolvência, sendo que apenas assumiriam pertinência para efeitos de apreciação do incidente de exoneração do passivo restante (o qual foi peticionado pela devedora).
Analisemos, então, as demais actuações.

Da venda da sua fracção habitacional:
Na sentença recorrida escreveu-se:
3.-C AP era gerente da sociedade T…, Lda (cfr. FACTO 17.). //Por força da declaração do estado de insolvência da sociedade T…, Lda venceram-se as obrigações decorrentes dos contratos referidos em 5., alíneas b), c) e d) e 6. supra (cfr. artigo 91.º, n.º 1, do CIRE), em sede dos quais a insolvente assumiu, respectivamente, a qualidade de mutuária, fiadora e principal pagadora. // Não tendo os credores MC e CA alegado na sua reclamação de créditos – junta no passado dia 19 de Junho de 2018 aos autos principais (cfr. fls. 49 a 61 – autos principais) – a data de vencimento dos seus créditos, apenas é possível concluir, com segurança, que a insolvente tinha em Novembro de 2017 as seguintes dívidas vencidas e não pagas: // (i) Dívida decorrente do cartão de crédito n.º 325.03.100297-6, no valor de 8,84€, acrescida de juros vencidos desde 17 de Maio de 2016, no valor global de 11,09€ (cfr. FACTO 5., alínea a)); // (ii) Dívida decorrente do contrato de abertura de crédito em conta corrente – crédito integrado flexível n.º 325-37.000035-9, incumprida desde 30 de Julho de 2017, encontrando-se em dívida o valor de 2.493,64€ (cfr. FACTO 5., alínea b)); e // (iii) Dívida decorrente do contrato de empréstimo datado de 08 de Abril de 2016, incumprida desde o dia 08 de Agosto de 2017, encontrando-se em dívida o valor global de 25.092,90€.
Para além das dívidas que antecedem, AP assumiu ainda a qualidade de fiadora da sociedade T…, Lda. no âmbito dos contratos mencionados em 5., alínea d) e 6., supra, pelo que a insolvente também não podia deixar de ter conhecimento sobre o facto de que, em breve, também estas obrigações se iriam vencer.
Neste contexto, encontrando-se insolvente pelo menos desde Agosto de 2017, AP decidiu vender, em Novembro de 2017, a sua fracção autónoma, que à data tinha um valor patrimonial no montante de 55.036,57€ (cfr. FACTO 19.), pelo preço de 65.500,00€ (cfr. FACTO 18.).
Com base no preço pago pela compradora da fracção autónoma (FACTO 22.), AP logrou liquidar integralmente o empréstimo bancário contraído junto do BANCO SANTANDER TOTTA, S.A., cujo cumprimento se encontrava garantido através de uma hipoteca voluntária constituída sobre o referido imóvel (cfr. FACTOS 18., 20., 21., 22., 23. e 24.).
Considerando que AP optou por liquidar uma divida não vencida, no valor global de 61.500,00€, com natureza garantida, em detrimento das suas dívidas já vencidas de natureza comum, numa altura em que já se encontrava impossibilitada de cumprir com as suas obrigações vencidas, cabe ora aferir se AP, com tal conduta, deu efectivamente preferência ao BANCO SANTANDER TOTTA, S.A. em prejuízo dos restantes credores.
Para o efeito, cabe apurar, em primeiro lugar, se a insolvente procedeu à venda do referido imóvel por um preço sensivelmente inferior ao seu valor comercial, conforme veio a ser sufragado pelos credores CA e MC. // Vejamos. //No âmbito dos presentes autos, as partes lograram fazer prova dos seguintes factos: // (i) O imóvel em apreço foi adquirido pela insolvente, em Setembro de 2008, pelo preço de 71.000,00€ (cfr. FACTO 25.); // (ii) O imóvel foi revendido pela insolvente, em Novembro de 2017, pelo preço de 65.500,00€ (cfr. FACTO 18.); // (iii) Em Novembro de 2017, a referida fracção autónoma tinha um valor patrimonial no valor de 55.036,57€ (cfr. FACTO 19.); //(iv) O imóvel foi novamente revendido, em Dezembro de 2021, pelo preço de 95.000,00€ (cfr. FACTO 26.); e //(v) Em Dezembro de 2021, a referida fracção autónoma tinha um valor patrimonial no valor de 55.865,21€ (cfr. FACTO 27.).
Perante os factos que antecedem, verifica-se que a insolvente procedeu à revenda do imóvel por um preço inferior ao da sua aquisição.
No entanto, embora a referida fracção autónoma tenha sido adquirida em Setembro de 2008 pelo preço de 71.000,00€ (cfr. FACTO 28.) e revendida em Novembro de 2017 pelo preço de 65.500,00€ (cfr. FACTO 18.), é entendimento do Tribunal que tal desvalorização verificada no preço, no montante de 5.500,00€, não quer significar necessariamente – como defendem os Requerentes CA e MC – que o imóvel em apreço foi vendido por um valor inferior ao seu valor comercial.
Efectivamente, desconhecendo-se o estado de conservação do imóvel em Novembro de 2017 (cfr. FACTO 18.), a desvalorização do preço de venda verificada em 2017, no valor de 5.500,00€, quando comparado com o preço de aquisição do imóvel em Setembro de 2008 (cfr. FACTO 25.), tanto poderá ter sido causada pela má conservação do imóvel ou pela tentativa de liquidação apressada do mesmo (imóvel).
Também o facto de o imóvel ter sido revendido quatro anos depois, pelo preço de 95.000,00€ (cfr. FACTO 26.), nada acrescenta às conclusões que antecedem, por o aumento do preço poder ser consequência de múltiplos factores, tais como: (i) obras de recuperação e/ou de melhoramento executadas pela nova proprietária do imóvel, MG; e/ou (ii) da subida generalizada dos preços dos imóveis verificada na RAM durante o ano de 2021 (a saber: os preços das habitações na RAM subiram 13,6% em 2021, sendo que em Dezembro de 2021, a sua aquisição implicava um custo médio de 1.917,00€ por m2 (..).
Assim sendo, e tendo em conta que a FAZENDA NACIONAL, após a venda do imóvel em Novembro de 2017, procedeu à actualização do seu valor patrimonial de 55.036,57€ (cfr. FACTO 19.) para 55.865,21€ (cfr. FACTO 27.), é de concluir – na ausência de outros indícios mediante os quais seria possível aferir o valor comercial do imóvel em Novembro de 2017 – que o valor do preço estipulado no contrato de compra e venda referido em 18. e pago (cfr. FACTO 22.), por ser superior ao valor patrimonial tributário do imóvel em 10.463,41€ (a saber: 65.500,00€ - 55.036,57), não pode ser classificado como sendo ruinoso nem sensivelmente inferior aos preços correntes praticados em situações análogas.
Em suma: atenta a inexistência de inícios susceptíveis de fazerem prova de que o preço de venda estipulado no contrato de compra e venda referido em 18. foi sensivelmente abaixo do valor comercial da fracção autónoma, resta concluir que o preço de venda, no montante de 65.500,00€ foi adequado, atento o valor tributário do imóvel que, à data, era de 55.036,57€, tendo este sido actualizado para 55.865,21€, após a venda efectuada.
Perante as conclusões que antecedem, cabe ora ponderar se a conduta de AP, ao usar o produto da venda do imóvel para liquidar os créditos não vencidos do BANCO SANTANDER TOTTA, S.A., numa altura em que já se encontrava insolvente, consubstanciou materialmente uma conduta subsumível ao disposto no artigo 186.º, n.º 2, alínea d), do CIRE.
Vejamos.
Conforme é sabido, a declaração de insolvência determina o vencimento de todas as obrigações do insolvente não subordinadas a uma condição suspensiva (cfr. artigo 91.º, n.º 1, do CIRE).
Assim sendo, caso a R. AP se tivesse apresentado à insolvência em Novembro de 2017, seriam credores da insolvência:
(i) O BANCO SANTANDER TOTTA, S.A., titular de um crédito garantido, no valor de pelo menos 61.182,56€ (cfr. FACTO 21.);
(ii) A CAIXA ECONÓMICA MONTEPIO GERAL, titular de um crédito comum, no valor aproximado de 63.683,77€, e de um crédito subordinado no valor aproximado de 2,16€ (cfr. FACTO 4., alínea a)); e
(iii) CA e MC, titulares de um crédito comum, no valor de 19.994,84€ (cfr. FACTO 4., alínea b)).
Tendo em conta que o único activo relevante da insolvente consistia na fracção autónoma designada pelas letras “AH” e descrita na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o n.º 2.722-Caniço (cfr. FACTO 18.), é altamente provável que o mesmo seria vendido, em sede de processo de insolvência, mediante venda em leilão electrónico (cfr. artigo 164.º, n.º 1, do CIRE).
Assim sendo, e tendo em conta que dos autos não decorrem quaisquer indícios que apontam no sentido de que o valor de mercado do referido imóvel, em Novembro de 2017, era muito diverso do seu “valor tributário”, no montante de 55.036,57€ (cfr. FACTO 19.), o valor de base a anunciar para a venda seria igual a 85% do valor base do imóvel, ou seja, 46.781,08€ (cfr. artigos 812.º, n.º 3, alínea b), 837.º, n.º 2, 817.º, n.º 3 e 816.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 17.º, n.º 1, do CIRE).
Existiria, por conseguinte, uma expectativa legítima por parte dos credores da insolvência de que o imóvel seria vendido pelo menos pela quantia de 46.781,08€, mas já não que o preço final a obter seria superior ao preço obtido pela insolvente, em Novembro de 2017 (a saber: 65.500,00€).
Ao atrás referido acresce a circunstância de antes de serem pagos os créditos sobre a insolvência são pagas as dívidas desta (cfr. artigo 172.º, n.º 1, do CIRE).
Entre as dívidas da massa insolvente contam-se, entre outras, (i) as custas do processo de insolvência, (ii) as remunerações do administrador da insolvência [a saber: (a) o valor correspondente à remuneração fixa (2.000,00€, acrescido de IVA à taxa legal aplicável de 22%, no valor global de 2.440,00€); (b) a provisão para despesas (a saber: 500,00€); (c) uma remuneração variável em função do resultado da recuperação do devedor ou da liquidação da massa insolvente, cujo valor é o fixado nas tabelas constantes da portaria referida no número anterior], (iii) as despesas deste e as dívidas emergentes dos actos de administração, liquidação e partilha da massa insolvente e as dívidas resultantes da actuação do administrador da insolvência no exercício das suas funções (cfr. artigo 51.º, n.º 1, alíneas a) a d), do CIRE).
Desde modo, e considerando que neste cenário a fracção autónoma referida em 18. seria liquidada em sede de processo de insolvência, é entendimento do Tribunal que massa insolvente geraria pelo menos dívidas no valor global de 5.000,00€ (taxa de justiça, registos, remuneração fixa, provisão para despesas, remuneração variável, IMI, condomínio, entre outras despesas de administração).
Assim sendo, caso a massa insolvente lograsse vender o imóvel, em Novembro de 2017, pelo preço de 65.500,00€ – o que corresponderia a um lucro no valo de 18.718,92€, face ao seu valor de base – o valor obtido seria apenas suficiente para pagar as dívidas previsíveis da massa, que se estimam no valor mínimo de 5.000,00€, bem como parte dos créditos do BANCO SANTANDER TOTTA, S.A. que, por força de ser credor hipotecário (cfr. FACTO 20.), sempre seriam graduados em primeiro lugar sobre o produto da venda da referia fracção autónoma (cfr. FACTO 18.), nada restando para o pagamento dos créditos comuns e subordinados da insolvente.
É, por conseguinte, entendimento do Tribunal que a insolvente, ao satisfazer os créditos do BANCO SANTANDER TOTTA, S.A. em Novembro de 2017, apenas formalmente deu preferência àquele credor em detrimento dos seus restantes credores, pois o mesmo, em caso de venda do referido imóvel em sede de processo de insolvência, sempre seria pago em primeiro lugar sobre o produto da fracção autónoma em apreço, nada restando, atento o valor do imóvel, para pagar aos seus credores comuns.
Verifica-se, assim, que a conduta da insolvente não é subsumível ao disposto no artigo 186.º, n.º 2, alínea d), do CIRE.”
Não vislumbramos razões para censurar a argumentação da Mma. Juíza a quo, sendo que a alterações que resultam do conhecimento da impugnação da matéria de facto não são de molde a por em causa o decidido.
Para além de o preço pago não ser susceptível de levar à conclusão de se estar perante um negócio desfavorável para a insolvente (desde logo em face do respectivo valor patrimonial), como bem refere a 1.ª instância, caso a devedora se tivesse apresentado à insolvência em Novembro de 2017 (mês no qual foi vendido o imóvel), uma vez declarada a mesma, todas as obrigações se venceriam, nomeadamente a que a mesma assumiu perante Banco Santander Totta.
E esta instituição bancária, enquanto titular de um crédito garantido, sempre gozaria de preferência no pagamento do mesmo pelo produto da venda do imóvel – artigo 174.º.[6]
No caso, após a alienação, a devedora liquidou integralmente o empréstimo bancário, com o consequente cancelamento da hipoteca voluntária que sobre a fracção incidia. Acresce que não se poderá afirmar, com um mínimo de segurança, que, caso o imóvel tivesse sido vendida (ou adjudicada ao referido credor) no âmbito do incidente de liquidação, o resultado alcançado fosse mais vantajoso.
Nessa medida, não obstante o pagamento ao Banco Santander Totta poder constituir um pagamento preferencial com relação aos demais credores (os quais, em abstracto, poder-se-iam considerar prejudicados por nada terem recebido do produto da venda do imóvel), na realidade, não poderá ser considerado como constituindo um benefício ilegítimo desse credor (instituição bancária).
No caso, não se considera ter existido qualquer intenção de favorecimento ou prejuízo de credores. A venda do imóvel e o pagamento ao Banco Santander Totta não provocou, nem agravou a insolvência da devedora.
Em face da factualidade apurada, resulta que esta última alienou o bem com vista a saldar a obrigação que tinha para com aquela instituição bancária, a qual sempre teria um tratamento preferencial no âmbito do processo (tanto assim é que não resulta dos autos que o AI tenha tentado resolver esse negócio em benefício da massa insolvente). Não ocorreu, pois, uma disposição de bens em proveito pessoal, sendo que o fim a que se destinou tal venda se mostra devidamente justificada e comprovada.[7]
Entende-se, pois, não ser tal alienação enquadrável na previsão da al. d) do n.º 2 do artigo 186.º, sendo que, acrescentar-se-á, se mostram irrelevantes as ocorrências jurídico-processuais que possam ter ocorrido após o período a que alude o n.º 1 do mesmo artigo (como é o caso de o imóvel ter vindo a ser vendido mais tarde por 95.000€, tanto mais que, como se refere na sentença, se desconhece o concreto estado em que o mesmo se encontrava).

Da transferência da titularidade do veículo automóvel para a ex sogra:
Pode ler-se na sentença:
“(…) Para além de outros empréstimos de valor não concretamente apurados concedidos desde o ano de 2014, LG emprestou à insolvente, no dia 29 de Janeiro de 2016, a quantia de 1.500,00€, e no dia 16 de Agosto de 2016, a quantia de 1.871,45€, de modo a que esta pudesse pagar o IVA devido pela sociedade T…Lda, no decurso do ano de 2016 (cfr. FACTO 36.). // Com vista a compensar a sua sogra dos empréstimos concedidos, AP transferiu, no dia 07 de Março de 2017, a titularidade do veículo automóvel de matrícula XXX para LG, que à data da sua transmissão tinha um valor venal de cerca de 8.000,00€ (cfr. FACTOS 12., 13., 13.-A e 37.). // À data da referida dação em cumprimento (cfr. artigo 837.º do Código Civil), as únicas dívidas conhecidas da insolvente que estavam de facto vencidas eram as dívidas mencionadas em 36. (valor conhecido: 3.371,45€) e a dívida referida em 5., b) supra (11,09€). // Efectivamente, apenas a partir de Agosto de 2017 surgem indícios que apontam no sentido de que AP passou a estar, de facto, impossibilitada de cumprir com as suas obrigações vencidas (cfr. FACTO 5., c)).  // Assim sendo, e considerando, por um lado, o valor dos rendimentos auferidos pela insolvente em 2017 (cfr. FACTOS 10. e 11.) e, por outro lado, o montante global das dívidas vencidas e conhecidas à data da referida dação em cumprimento (cfr. FACTO 36. e 5., b)), é entendimento do Tribunal não ser possível concluir que AP, em Março de 2017, já se encontrava numa situação de insolvência ou numa situação de insolvência iminente. // Resta, por conseguinte, concluir que a transmissão do veículo automóvel de matrícula XXX para a esfera jurídica de LG (cfr. FACTO 12.) com vista a compensá-la pelos vários empréstimos concedidos desde 2014 (cfr. FACTO 37.), não consubstanciou, à data, um acto mediante o qual a insolvente tivesse dado preferência a um dos seus credores em detrimento dos restantes e, consequentemente, causando ou agravando a sua situação de insolvência. // Por outras palavras, a matéria em apreço não é subsumível ao disposto no artigo 186.º, n.º 2, alíneas a) e d), do CIRE.”
Daqui resulta que a Mma. Juíza a quo afastou a qualificação da insolvência como culposa por entender que: a) à data do negócio, a devedora não estava, de facto, impossibilitada de cumprir com as suas obrigações vencidas (que refere serem, apenas, de 3.371,45€ e de 11,09€), não podendo assim considerar-se que a mesma estivesse em situação de insolvência ou de insolvência iminente; e b) por entender que o veículo foi transmitido para LG como forma de a compensar pelos empréstimos que a mesma tinha efectuado à devedora, nessa medida não tendo sido dada preferência àquela em detrimento dos restantes credores, assim como não tendo tal acto agravado a situação de insolvência.
Nesta parte, não se poderá acompanhar a argumentação plasmada na sentença recorrida, como se passará a demonstrar.
O objectivo visado pela al. d) do seu n.º 2 é o de evitar que o património do devedor seja utilizado em proveito pessoal ou de terceiros, quando o mesmo deverá antes ser canalizado para a satisfação dos credores.
No caso, se é certo que as obrigações que, em Março de 2017, se encontravam vencidas não eram de montante muito elevado, sendo que a devedora tinha uma situação profissional estável (cfr. facto n.º 10), sempre se terá de ter em consideração que a mesma tinha sido sócia gerente da sociedade “T…Lda”, sociedade esta que foi declarada insolvente por sentença proferida em 17/03/2017, a qual transitou em julgado no dia 16 de Outubro do mesmo ano (factos n.º 14, 16 e 17).  
E, tendo sido o processo de insolvência da aqui devedora encerrado por insuficiência da massa insolvente (facto n.º 3), no mesmo foram reconhecidos créditos no montante global de 83.679,93€[8], sendo que, a quase globalidade desses créditos, está relacionado com a actividade da sociedade “T…Lda”.
Como se refere na sentença recorrida, “Por força da declaração do estado de insolvência da sociedade T…Lda. venceram-se as obrigações decorrentes dos contratos referidos em 5., alíneas b), c) e d) e 6. supra (…), em sede dos quais a insolvente assumiu, respectivamente, a qualidade de mutuária, fiadora e principal pagadora.”, mais acrescentando que, por ter assumido a qualidade de fiadora desta sociedade, “no âmbito dos contratos mencionados em 5., alínea d) e 6., supra, (…) a insolvente também não podia deixar de ter conhecimento sobre o facto de que, em breve, também estas obrigações se iriam vencer.”
Sucede que, ao contrário do entendimento sufragado pelo tribunal a quo, o facto de a devedora apenas ter entrado em incumprimento em momento posterior àquele no qual transferiu a propriedade do seu veículo, não permite, por si só, concluir no sentido de não poder a insolvência ser qualificada como culposa.
Para efeitos de tal qualificação, como já anteriormente referido, relevam comportamentos que o devedor tenha adoptado nos três anos que antecederam o início do processo e que possam ter criado ou agravado a situação de insolvência em que se encontra, sendo sempre culposa essa actuação se a mesma for enquadrável em alguma das alíneas do n.º 2 do artigo 186.º.
Reportando ao caso em análise, em face da factualidade provada (e que resultou do conhecimento da impugnação que da mesma foi apresentada), podemos ter por certo que:
-  a devedora era proprietária de um veículo automóvel que, em 2017, tinha um valor venal de cerca de 8.000€,
- em Março desse ano, a propriedade desse veículo foi transmitida para LG, sem que a mesma tenha pago qualquer contrapartida/preço;
- o veículo continuou sempre na posse da devedora;
- LG é mãe de RL (ex-marido e actual companheiro da devedora, sendo que, não obstante o divórcio, o casal sempre permaneceu a viver junto);
- em 2016, LG havia emprestado à sociedade “T…Lda”, por intermédio da sua sócia gerente (a aqui devedora), um montante global de 3.371,45€;
- com a declaração de insolvência da sociedade “T…Lda” venceram-se as obrigações decorrentes dos contratos referidos nos factos provados n.º 5, als. b), c) e d) e n.º 6, em sede dos quais a devedora assumiu, respectivamente, a qualidade de mutuária, fiadora e principal pagadora, facto que era necessariamente do seu conhecimento.
Do acabado de expor resulta que, não obstante, em Março de 2017, a devedora não estivesse em incumprimento com relação a tais créditos, o certo é que nunca a mesma podia ignorar que os mesmos se iriam vencer, e que aquela seria chamada a por eles responder – tanto mais que foi a própria sociedade que se apresentou à insolvência, como resulta da certidão da respectiva sentença junta aos autos em 08/02/2022.
Mesmo que assim não fosse, é inquestionável que, nos três anos anteriores ao início do seu processo de insolvência, a devedora se “desfez” do único bem que estava livre de encargos (já que sobre a fracção autónoma incidia uma hipoteca).
E fê-lo através da transmissão da titularidade do veículo para a mãe do seu ex-marido (com quem nunca deixou de viver em união de facto), sem que esta última tivesse entregue qualquer valor pecuniário.
Mais grave, fê-lo, supostamente, para liquidar uma dívida que ascendia a menos de metade do valor desse bem e que se reportava, não à devedora, mas sim a terceiro – a sociedade “T…, Lda” (a tal conclusão não obstando o facto de a devedora ser sócia gerente desta última, seja porque também o era o aqui credor MC, seja porque a insolvente AP não se pode confundir com a sócia gerente AP, a qual apenas representa a sociedade em causa).
Ou seja, nem sequer se pode afirmar que LG fosse credora para efeitos do presente processo (sendo que, mesmo que o fosse, estaríamos perante um acto de favorecimento de um credor comum, o qual sempre seria pessoa especialmente relacionada com o devedor, nos termos previstos pelo artigo 49.º).
Ao subtrair tal veículo ao património que iria responder pelos créditos que vieram a ser reclamados e reconhecidos, a devedora privou-os de serem ressarcidos (mesmo que parcialmente) pelo produto na venda do mesmo (sendo que o processo foi, inclusive, encerrado por insuficiência da massa insolvente).
E, considerando as circunstâncias em que assim procedeu, impõe-se concluir que mais não visou a devedora do que impedir que a satisfação desses créditos precisamente através do produto de tal venda.
Na prática, a devedora agiu por forma a que o veículo, averbado em seu nome, passasse a ficar no nome de terceiro, de forma a que deixasse de estar formalmente na sua esfera patrimonial e, dessa forma, a salvo de qualquer apreensão - “libertou-se” do veículo antes que os credores exercessem os seus direitos (agindo sobre tal bem), sendo que apenas o fez aparentemente, porquanto o mesmo nunca deixou de estar na sua posse – como a própria e o companheiro reconheceram em julgamento - e a transferência da sua titularidade ocorreu para alguém da sua inteira confiança (a mãe do seu companheiro).[9]
Mostra-se, pois, preenchida a al. d) do n.º 2 do artigo 186.º, aplicável por força do n.º 4 do mesmo artigo, como defendem os recorrentes, e tanto basta para que se conclua, de modo inilidível, pela natureza culposa da presente insolvência (sem necessidade de demonstração do nexo causal entre tal actuação e a situação de insolvência, que veio a ser declarada).
Para além da presunção resultante da citada alínea, no caso, dúvidas inexistem de a conduta da devedora sempre ter, pelo menos, agravado a insolvência.[10] [11]
Refira-se, ainda, que esta al. d) nem sequer faz qualquer referência à importância económica dos bens de que se dispôs (não exige que os mesmos tenham de ter um valor patrimonial significativo). Seja como for, nunca o valor aqui em causa – à data, o veículo tinha um valor de cerca de 8.000€ - poderá ser considerado insignificante.

Termos em que terá a sentença de ser revogada, a qual se substituiu por outra na qual se qualifica a insolvência de AP como culposa, nos termos previstos pelo artigo 186.º, n.º 1 e n.º 2, al. d).

Uma vez qualificada como culposa a insolvência, incumbe dar cumprimento ao disposto no artigo 189.º n.º 2.
Prescreve este número (na redacção conferida pela Lei n.º 9/2022, de 11/01[12]) que “Na sentença que qualifique a insolvência como culposa, o juiz deve: a) Identificar as pessoas (…) afetadas pela qualificação, fixando, sendo o caso, o respetivo grau de culpa; b) Decretar a inibição das pessoas afetadas para administrarem patrimónios de terceiros, por um período de 2 a 10 anos; c) Declarar essas pessoas inibidas para o exercício do comércio durante um período de 2 a 10 anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa; d) Determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelas pessoas afectadas pela qualificação e a sua condenação na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos; e) Condenar as pessoas afetadas a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos, considerando as forças dos respetivos patrimónios, sendo tal responsabilidade solidária entre todos os afetados.”, mais acrescentando o seu n.º 4 que, “Ao aplicar o disposto na alínea e) do n.º 2, o juiz deve fixar o valor das indemnizações devidas ou, caso tal não seja possível em virtude de o tribunal não dispor dos elementos necessários para calcular o montante dos prejuízos sofridos, os critérios a utilizar para a sua quantificação, a efetuar em liquidação de sentença.”
No que concerne à previsão da al. a) deste n.º 2, a pessoa afectada é necessariamente a aqui devedora/insolvente.
Já a inibição a que alude a al. b), nas palavras de Maria do Rosário Epifânio[13], “apresenta uma dupla faceta preventiva e sancionatória: por um lado, destina-se a proteger terceiros que poderiam ver os seus patrimónios prejudicados pela atuação de pessoa que não oferece a confiança necessária; por outro lado, tem um caráter repressivo, pois não se aplica às hipóteses de culpa leve.
Para que tenha lugar, pressupõe uma actuação ilícita e culposa da devedora (a qual, no caso, resulta, desde logo, da conduta integrante na al. d) do n.º 2 do artigo 186.º e da presunção daí decorrente) e deverá ser fixada em face do grau de tal ilicitude e culpa - na medida em que a actuação contribuiu para a criação ou agravamento da situação de insolvência.
Já no que concerne à inibição prevista na al. c), citando novamente a ilustre Professora[14], dever-se-á, uma vez mais, “ter em conta a gravidade do comportamento e o seu contributo para a situação de insolvência ou o seu agravamento – a gravidade do comportamento poderá ser aferida em função do preenchimento do n.º 2 ou do n.º 3”, esclarecendo-se que “deve entender-se a proibição de exercício do comércio, seja este realizado de forma direta ou indireta (por interposta pessoa: v.g., o exercício do comércio por intermédio de familiares do inibido), seja este realizado em nome próprio ou em nome alheio.”
Reportando tais considerações ao caso concreto, tendo em consideração que apenas foi apurada uma conduta subsumível ao disposto no n.º 2 do artigo 186.º, que tal conduta contribuiu, não para a situação de insolvência, mas sim para o seu agravamento, e em face das demais circunstâncias apuradas com relação à actuação em causa, julgamos ser de fixar a inibição a que aludem as als. b) e c), pelo mínimo legal, ou seja, em dois anos.
Quanto à medida prevista na al. d) do n.º 2 do artigo 189.º mostra-se irrelevante efectuar qualquer ponderação, bastando-se a mesma com a sua declaração, sendo que, no caso, nada consta quanto à existência dos créditos a que alude tal alínea.
Por fim, cumpre apreciar da obrigação de indemnizar prevista na al. e).
Com esta medida visa-se dissuadir o agente da prática de condutas dolosas ou gravemente culposas que sejam susceptíveis de criar ou agravar a situação de insolvência nas circunstâncias previstas no artigo 186.º, assumindo uma componente reparadora e sancionatória.
No caso, para além de se ter provado factualidade integrante da circunstância prevista na al. d) do n.º 2 do artigo 186.º, estando verificados os requisitos do seu n.º 1, também nada se apurou no sentido de a devedora - no decurso do período relevante a que alude este último número -, ter encetado qualquer esforço tendente a evitar a insolvência ou o seu agravamento. Pelo contrário, com a sua actuação culposa, a mesma contribuiu para o agravamento da sua situação insolvencial, impedindo o ressarcimento dos respectivos credores pelo produto da venda do veículo de que era proprietária.
À data da prolação da decisão recorrida vigorava já a redacção introduzida pela Lei n.º 9/2022, de 11/01 (a sentença data de 11/04/2022, tendo sido nesse dia que a lei entrou em vigor), segundo a qual deverá a indemnização ser fixada “até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos, considerando as forças dos respectivos patrimónios.
Da actual redacção resulta expressamente que o montante indemnizatório pode ficar aquém do correspondente aos créditos não satisfeitos, pelo que julgamos ser de ponderar, para o efeito, o valor dos danos causados pelo comportamento da pessoa afectada pela qualificação (e já não a globalidade dos créditos que ficaram por satisfazer, os quais traduzirão apenas o limite máximo da obrigação de indemnizar).[15]
Como se defendeu no acórdão da Relação do Porto de 29/09/2022[16], “Pese embora a aparente rigidez da norma da al. e) do art.º 189º, tem sido entendido na jurisprudência e na doutrina, designadamente na sequência do acórdão do Tribunal Constitucional nº 280/2015 (DR 115/2015, Série-II) dever fazer-se uma interpretação que salvaguarde precisamente o princípio da proporcionalidade. Conjugando o teor das al.s a) e) do n.º 2 e o n.º 4 do art.º 189º, deve considerar-se acolhido no texto legal o entendimento de que na fixação do montante indemnizatório deve ser ponderada a culpa do afetado, que deverá responder na medida em que o prejuízo possa/deva ser atribuído ao ato ou atos determinantes dessa culpa. Extrai-se daquele acórdão do TC: «Esses efeitos jurídicos são cumulativos e automáticos, como claramente decorre do proémio do n.º 2 do artigo 189.º, pelo que, uma vez proferida tal decisão, não pode o juiz deixar de aplicar todas essas medidas. Não obstante, a determinação do período de tempo de cumprimento das medidas inibitórias previstas nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 189.º do CIRE (inibição para a administração de patrimónios alheios, exercício de comércio e ocupação de cargo de titular de órgão nas pessoas colectivas aí identificadas) e, naturalmente, a própria fixação do montante da indemnização prevista na alínea e) do n.º 2 do mesmo preceito legal, deverá ser feita em função do grau de ilicitude e culpa manifestado nos factos determinantes dessa qualificação legal». Este entendimento não passou despercebido ao legislador que, pela Lei nº 9/2022, de 11 de janeiro, alterou aquela norma da al. e) (…)”
Também ao nível da doutrina, a questão era já debatida.[17]
No caso em recurso, foi o processo de insolvência encerrado por insuficiência da massa insolvente, sendo que nenhum bem foi apreendido[18].
Os créditos reclamados e reconhecidos pelo AI ascendem ao montante global de 83.679,93€, créditos esses que não foram ressarcidos (nem sequer parcialmente).
À data em que a titularidade da propriedade do veículo foi transmitida para LG, o mesmo tinha um valor venal de 8.000€, sendo que, com tal acto (voluntário, ilícito e culposo) da devedora, a mesma causou aos credores um dano/prejuízo correspondente a tal montante (uma vez que, pelo produto da venda deste bem, os mesmos poderiam ter sido, embora parcialmente, ressarcidos).
Tal acto, pese embora não criando a situação de insolvência, agravou a mesma (como já anteriormente se afirmou).
Nessa medida, entendemos dever ser esse (8.000€) o montante a fixar como correspondendo ao da indemnização devida aos credores, o qual não se revela, de todo, excessivo ou desproporcional em face das circunstâncias do caso.
Para além da demais jurisprudência já citada, veja-se o decidido no acórdão da Relação do Porto de 21/04/2022[19], onde se escreveu que “a indemnização devida não pode ser fixada em montante igual ao dos créditos reconhecidos no processo de insolvência e que não obterão pagamento, mas fazendo apelo a um juízo equitativo, ponderando a culpa do afectado, que deverá responder apenas na medida em que o prejuízo possa/deva ser atribuído ao acto ou actos determinantes dessa culpa.

Termos em que procederá a apelação.

***
IV - DECISÃO
Perante o exposto, acordam os Juízes desta Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar o presente recurso procedente, por provado, e, nessa sequência, revogar a sentença recorrida, a qual se substitui por outra a:
1. Qualificar como culposa a insolvência, sendo pela mesma afectada a aqui devedora/insolvente AP;
2. Declarar a insolvente inibida pelo período de dois para a administração de patrimónios de terceiros, para o exercício do comércio, e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação, fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa;
3. Determinar a perda de quaisquer créditos que a mesma tenha sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente e condená-la na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos.
4. Condenar a insolvente a pagar aos credores reconhecidos, o montante indemnizatório de 8.000€.

Sem custas.

Lisboa, 04 de Julho de 2023
Renata Linhares de Castro
Nuno Magalhães Teixeira
Rosário Gonçalves
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[1] “(…) 3) Em 15 de Julho de 2016, a insolvente tomou de arrendamento uma fracção autónoma dum prédio sito no Caniço, em Santa Cruz, pela qual paga a renda mensal de €400,00, sendo certo que o senhorio é o referido ex-marido, por ser comproprietário de tal apartamento juntamente com LC; // 4) Em data que não foi possível apurar, a devedora reatou a relação com o ex-marido, pelo que reside com este no imóvel mencionado no ponto anterior, bem como com o filho de ambos, Lourenço, menor de 8 anos de idade; // 5) Em 21 de Abril de 2010, a insolvente adquiriu o veículo automóvel de marca KIA, com a matrícula XXX; // 6) Essa viatura, em 7 de Março de 2017, foi vendida pela insolvente à ex-sogra, LG; // 7) A insolvente foi proprietária duma fracção autónoma, designada pelas letras “AH”, (…) // 8) Em 30 de Novembro de 2017, vendeu o imóvel identificado em 7), pelo preço de € 65.500,00, a MG; // 9) Menos de seis meses depois, em 9 de Maio de 2018, AP (…) apresentou-se à insolvência; // (…)”.
[2] Decorre desta norma que o recorrente que impugne a matéria de facto deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da requerida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Mais acrescenta na alínea a) do número seguinte que incumbe ao recorrente o ónus de “indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.
[3] Já MENEZES LEITÃO, in Direito da Insolvência, 3.ª edição, págs. 284/285, defendia que este n.º 2, contém “uma presunção juris et de jure de insolvência culposa, considerando-a como tal sempre que os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja pessoa singular tenham praticado actos destinados a empobrecer o património do devedor ou incumprido determinadas obrigações legais”; considerando ainda, mais adiante que “A lei institui … no art.º 186.º, n.º 2, uma presunção juris et de jure, quer da existência da culpa grave, quer do nexo de causalidade desse comportamento para a criação ou agravamento da situação de insolvência, não admitindo a produção de prova em sentido contrário”.
[4] Cfr. CARVALHO FERNANDES, A Qualificação da Insolvência, Themis, Edição Especial, 2005, pág. 81 e segts; CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3.ª edição, Quid Juris, Lisboa, 2015, pág. 680; e, entre outros, o acórdão do STJ de 15/02/2018 (Proc. n.º 7353/15.4T8VNG-A.P1.S1, relator José Rainho) e o acórdão da Relação de Lisboa de 11/06/2019 (Proc. n.º 2278/17.1T8BRR-B.L1-1, relatora Maria do Rosário Gonçalves), ambos disponíveis in www.dgsi.pt.
Veja-se, ainda, CATARINA SERRA, in Lições de Direito da Insolvência, 2.ª edição, 2021, pág. 301, onde a ilustre Conselheira escreve que as als. a) a g) correspondem indiscutivelmente a presunções (absolutas) de insolvência culposa.
[5] In Manual de Direito de Insolvência, 7.ª edição, 2020, pág. 155.
[6] Após terem sido pagas as dívidas da massa insolvente, dar-se-á pagamento aos créditos garantidos pelo produto da venda dos bens onerados com a garantia real e, após estes, aos créditos privilegiados, sendo estes últimos pagos “à custa dos bens não afectos a garantias reais prevalecentes” – cfr. artigos 172.º, 174.º e 175.º do CIRE.
[7] Cfr. Acórdão desta Relação de 23/11/2021 (Proc. n.º 2439/20.6T8BRR-E.L1, relatora Maria do Rosário Gonçalves), disponível in www.dgsi.pt.
[8] Cfr. Sentença de verificação e graduação de créditos proferida em 01/03/2021, já transitada em julgado, no âmbito do apenso C – Ref.ª/Citius 49667084.
[9] Por pertinente, veja-se, quanto à al. d) do n.º 2 do artigo 186.º, o acórdão do STJ (Proc. n.º 7353/15.4T8VNG-A.P1.S1, relator José Rainho), no que se pode ler: “o proveito do terceiro exigido na alínea d) do nº 2 do art.º 186º do CIRE é compaginável com todas as situações em que os bens do insolvente são afetados (disponibilizados) ao terceiro, ou seja, a previsão legal é preenchida não apenas quando por negócio jurídico a titularidade do direito sobre os bens do insolvente é transferida para o terceiro, mas também quando, independentemente disso, é consentido a este que use, goze e frua os bens, que deles retire as respetivas utilidades em benefício próprio.”. Veja-se, ainda, o acórdão desta Relação de 11/04/2023 (Proc. n.º 1214/19.5T8VFX-E.L1, relatora Manuela Espadaneira Lopes, sendo a aqui relatora 2.ª adjunta): Como se sumariou no acórdão desta Relação 11/04/2023, “(…) IV– O proveito obtido por via de actos de disposição de bens do devedor que releva para efeitos de qualificação da insolvência nos termos da alínea d) do nº 2 do art.º 186º, corresponde a um benefício que não seja devido ou a um benefício que, apesar de devido, não deveria ter sido atribuído e concedido nas concretas circunstâncias em que o foi (…)”, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.
[10] Como escreve ALEXANDRE SOVERAL MARTINS, in Um Curso do Direito da Insolvência, Vol. I, Almedina, 2022, 4.ª edição, pág. 549, “A situação da insolvência pode ter sido criada sem que existisse culpa, mas pode ter havido culpa no agravamento da situação da insolvência. Em ambos os casos a insolvência pode ser qualificada como culposa.
[11] Sendo que, diga-se, sempre ficou por apurar o destino dado à diferença entre o montante pago pela venda da fracção autónoma (65.000€) e o montante liquidado ao banco (61.056,62€), a qual se traduz em 3.943,38€. Porém, tal questão não foi suscitada, pelo que se mostra afastada do objecto do recurso.
[12] Aqui aplicável, em face do disposto no artigo 10.º, n.º 1 da mesma Lei, porquanto a sentença foi proferida em 11/04/2022, data na qual o diploma entrou em vigor.
[13] Obra citada, pág. 159.
[14] Obra citada, págs. 160/161.
[15] Já previamente à Lei n.º 9/2022, e por forma a compatibilizar o que resultava da então redacção da al. e) do n.º 2 com o disposto no n.º 4, já a jurisprudência vinha entendendo que esta al. e) devia ser interpretada como estipulando apenas um limite máximo para a indemnização a fixar (como se mostra actualmente consignado).
Nesse sentido, vejam-se, entre outros, os acórdãos Relação do Porto de 11/03/2021 (Proc. n.º 918/13.0TYVNG-D.P1, relator Aristides Rodrigues de Almeida) e de 29/06/2017(Proc. n.º 2603/15.0T8STS-A.P1, relator Filipe Caroço), e da Relação de Guimarães (Proc. n.º 1266/17.2T8GMR-B.G1, relatora Raquel Baptista Tavares), todos disponíveis in www.dgsi.pt.
[16] Proc. n.º 2367/16.0T8VNG-H.P1, relator Filipe Caroço, disponível na mesma base de dados.
Veja-se, ainda, por pertinente, o acórdão do STJ de 22/06/2021 (Proc. n.º 439/14.7T8OLH-J.E1.S1, relator Barateiro Martins), em cujo sumário se consignou: ”(…) a observância do princípio da proporcionalidade não exige que a indemnização a impor tenha que ser avaliada como justa, razoável e proporcionada, mas sim e apenas, num controlo mais lasso, que a indemnização a impor não seja avaliada como excessiva, desproporcionada e desrazoável. (…)”
[17] ALEXANDRE SOVERAL MARTINS, obra citada, pág. 594, nota 123, pese embora aludindo a casos em que exista mais do que um afectado pela qualificação, resume algumas posições nos seguintes termos: “Nuno Pinto Oliveira, (…) escrevia (…) que «o administrador deverá ser condenado a indemnizar os credores na proporção em que o seu comportamento contribuiu para a insolvência, e só na proporção em que o seu comportamento contribuiu para a insolvência». Catarina Serra (…) também entendia que se deveria atender à «proporção em que o comportamento das pessoas afetadas contribuiu para a insolvência». (…) J. M. Coutinho de Abreu (…) defendia que o juiz teria de fixar o valor da indemnização devida por cada afetado tendo em conta […] eventualmente, o grau de culpa de cada um deles». O mesmo Professor, a fls. 597, referindo-se aos afectados pela qualificação, escreve: “Não são responsáveis por dívidas de terceiros por terem causado essas dívidas, mas por terem causado ou agravado a situação de insolvência do devedor. Este regime pode ser bastante gravoso para os afetados. A desproporção que possa gerar (entre o grau de culpa na não satisfação dos créditos e a responsabilidade por essa não satisfação) não pode ser de tal ordem que conduza a um juízo de inconstitucionalidade.”.
[18] Como resulta do relatório a que alude o artigo 155.º (apresentado pelo AI em 14/06/2018): “Não foram identificados quais prédios (rústicos e urbanos) inscritos em nome da insolvente (…) Não foram identificadas quaisquer matrículas registadas em nome da Insolvente” – Ref.ª/Citius 2727077.
[19] Proc. n.º 3668/18.8T8STS-B.P1, relator Paulo Dias da Silva.