Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
11356/20.9T8LSB.L1-7
Relator: LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA
Descritores: SEGURO DE VIAGEM
PACOTE DE VIAGEM
CLÁUSULAS CONTRATUAIS
DEVER DE INFORMAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/24/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. Cabia aos autores alegar a preterição dos deveres de informação e comunicação das cláusulas contratuais gerais pela ré, o que os autores fizeram. Nessa sequência, cabia à ré o ónus da alegação e prova da comunicação adequada e efetiva.
II. Não tendo a Ré invocado que explicou/comunicou aos autores o teor das cláusulas contratuais gerais, designadamente a atinente à definição de cancelamento de viagem, perante a dúvida sobre a comunicação/explicação do teor das cláusulas contratuais gerais – cujo ónus incumbia sobre a ré – há que, nos termos do Artigo  414º do Código de Processo Civil , considerar que não ocorreu tal comunicação/explicação das cláusulas contratuais gerais.
III. Perante a omissão da comunicação das cláusulas contratuais gerais (máxime das referidas sob I) e J)), tais cláusulas são excluídas do contrato celebrado, nos termos da al. a) do Artigo 8º da LCCG.
IV. Integrando o contrato nos termos do Artigo 9º, nº1, da LCCG, há que apelar ao modo como uma pessoa normal, razoável e de boa fé configuraria as definições de viagem e de cancelamento de viagem no âmbito de um seguro de viagem.
V. Assim,  num contexto em que os clientes adquiriram um “pacote de viagem” que se iniciava na cidade do Porto  no dia 11.8.2018, passava pelas cidades americanas de Newark e de S. Francisco, passando por Honolulu, no Havai e com regresso no dia 1.9.2018, cremos que a noção de viagem abarca unitariamente todo o itinerário programado desde a saída até ao regresso. De forma mais concretizada, uma pessoa colocada no lugar dos autores diria, no âmbito das suas relações sociais, que estava a programar e a adquirir uma viagem aos EUA e não diria que estava a programar uma viagem a Newark, outra a São Fransico e ainda outra ao Hawai. Uma viagem pode ser integrada por vários voos e vários destinos, sendo que vários destinos não comportam várias viagens mas sim vários voos/deslocações.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO
 A, B, C,  D, E e F intentaram ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra “HH”, pedindo a condenação da ré a “a pagar a cada um dos demandantes a quantia de 1.250,00 € (...) juros de mora a partir da citação”.
Para tanto alegam, em síntese, que celebraram seguro de viagem com a ré, tendo por objeto viagem aos Estados Unidos, com determinado itinerário. Devido a um furacão, não foram ao Havai, como planeado, assistindo-lhes o direito ao capital coberto pelo cancelamento de viagem.
A ré contestou, defendendo que a referida cobertura respeita a cancelamentos antes da viagem ter iniciado, considerando-se como viagem aquela que surge identificada no certificado, ou seja, apenas se os autores não tivessem chegado a partir para os EUA poderiam ter direito a serem indemnizados das despesas/prejuízos que com isso sofressem, não tendo um direito a serem automaticamente indemnizados pelo valor máximo da cobertura.
Os autores foram convidados a responder, o que fizeram, alegando que o contrato de seguro contém cláusulas contratuais gerais que não lhes foram comunicadas nem informadas, devendo considerar-se excluída a referida definição da cobertura em causa.
Após julgamento, foi proferida sentença que julgou a ação improcedente por não provada, absolvendo a ré dos pedidos.
                                            *
Não se conformando com a decisão, dela apelaram os requerentes, formulando, no final das suas alegações, as seguintes CONCLUSÕES:

Relativamente à decisão qui em crise impõe-se começar por referir que, erradamente, a Meritíssima Juíza a quo deu como matéria de facto ASSENTE matéria de facto que estava absolutamente controvertida, atenta a posição assumida pelas partes nos autos.
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Quanto à alínea A), quando muito aquilo que poderia ter sido julgado assente seria apenas e tão só o facto de entre demandantes e demandada ter sido celebrado um contrato de seguro titulado pela apólice ali identificada, sendo que quanto aos riscos, coberturas e condições gerais dessa mesma apólice, como decorre da produção de prova, jamais essas condições gerais foram comunicadas, exibidas, informadas ou explicadas aos aderentes/recorrentes.
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Quanto à alínea J) apenas se poderia ter considerado assente que, não obstante a definição daquela cobertura de “cancelamento de viagem” não ter sido comunicada, informada ou explicada aos recorrentes, era essa a definição que constava das condições gerais da apólice. NADA MAIS.
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Finalmente, e quanto à alínea K) dos mesmos factos assentes, jamais esta matéria de facto poderia constar dos factos assentes, uma vez que, como se demonstrou e infra se remeterá para as declarações das várias testemunhas e das declarações de parte da recorrente D, NUNCA essas condições gerais foram comunicadas fosse por que modo fosse.
E disso deram conta os recorrentes nos autos.
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Por isso, e no que tange aos factos assentes perguntam os recorrentes o seguinte: - quem consentiu nessa aceitação? Como seria possível levar-se, como o fez a Meritíssima Juíza a quo, tal matéria de facto aos factos assentes?
Não foi, certamente, pela posição processual assumida pelos recorrentes em toda esta demanda!
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Por outro lado, como pôde a Meritíssima Juíza a quo permitir a existência de uma contradição e de um absoluto contrassenso na confrontação entre a definição de “viagem” e de “cancelamento de viagem”?
Não causou impressão à Meritíssima Juíza a quo que por viagem se entendesse qualquer deslocação realizada fora do domicílio do segurado, a partir do momento da sua saída do mesmo, até ao seu regresso a ele, ao concluir a deslocação e por cancelamento de viagem como a decisão do segurado de deixar sem efeito, antes da data da saída acordada. os serviços solicitados ou contratados?
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Então, se viagem é todo o período de tempo compreendido entre o momento da saída do domicílio por parte do segurado até ao seu regresso àquele seu domicílio, no fim da deslocação, como poderia entender-se que o cancelamento de viagem se reportava apenas e tão só ao momento anterior ao seu início, ou seja, até momento anterior ao início da viagem, à saída do domicílio?!!!
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Mas mais: - como pode a recorrida vir dizer aos autos, como dos mesmos decorre, que depois de ter sido iniciada a viagem esta cobertura (cancelamento de viagem) estava extinta, deixava de produzir efeitos?
Simplesmente porque se agarra a uma definição — não comunicada, não informada e não esclarecida — de que a viagem já se tinha iniciado...!
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Ocorre, mais uma vez, perguntar se os recorrentes, à semelhança de um qualquer de nós colocado naqueles concretas circunstâncias negociais, depois de devidamente informados e esclarecidos quanto aos contornos dessa cobertura, nomeadamente ao facto de a mesma se extinguir logo que abandonassem o domicílio em direção ao aeroporto, se ainda assim contrariam aquela cobertura
Á resposta parece-nos, com o devido respeito por opinião diversa, absolutamente cristalina: - um redondo NÃO.
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Mas o pior da decisão aqui em crise estava para vir, considerando os factos tidos por não provados pela Meritíssima Juíza a quo.
Mais parecia que, com o devido respeito, a decisão de que foram notificados os recorrentes não dizia respeito àquela que levaram à apreciação do Tribunal a quo, atenta a abundante e não contrariada prova que os recorrentes produziram nos presentes autos.
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Desde logo, e no que tange a esta matéria, para a Meritíssima Juíza a quo as declarações de parte da recorrente D não mereceram qualquer credibilidade simplesmente por ser parte interesse no desfecho da lide.
Apesar de ser uma verdade do sr. La Palisse que a recorrente D tinha interesse na demanda, não é menos verdade que a mesma, juntamente com o sr. ES (representante da recorrida), foram os ÚNICOS intervenientes nessa negociação do contrato de seguro.
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Por isso, melhor teria andado a Meritíssima Juíza a quo se tivesse percebido que a tomada de declarações de parte que passou a vigorar no nosso Cód. Proc. Civil a partir das alterações de 2013 se prende, maioritariamente» com este tipo de situações.
Daí que, ou muito enganados estão os recorrentes, ou os dois únicos “personagens” que poderiam depor sobre tudo quanto se passou na negociação daquele concreto contrato de seguro — quanto às coberturas e tudo o mais — seriam, como já se adiantou, a recorrente D e o sr. ES, do qual, diga-se, não existe o mais ténue sinal nos autos, nomeadamente a sua indicação como testemunha e a consequente, natural e até óbvia inquirição em sede de audiência de discussão e julgamento, atento o que estava em discussão na presente lide!.
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E diga-se desde já, em jeito de parêntesis, que esse ónus pertencia em exclusivo à recorrida, que não esboçou o mínimo esforço em demonstrar que tinha cumprido aquilo que a Lei lhe exige neste tipo de contratação.
E que poderia, e deveria até, ter procedido à sua inquirição em sede de audiência de discussão e julgamento o invés de requerer a inquirição de uma outra testemunha que prestou apenas um testemunho indireto, tanto mais que não participou na contratação daquele seguro.
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Como decorre dos depoimentos prestados pelas testemunhas arroladas pelos recorrentes em sede de audiência de discussão e julgamento, do documento que acompanhou a réplica apresentada nos presentes autos e, bem assim, das declarações de parte prestadas pela recorrente D — que estão integralmente transcritos no corpo destas alegações e para os quais se remete por uma questão de economia processual — não se demonstrou O VOO que OS recorrentes iriam realizar de S. Francisco para Honolulu, no Havai, no dia 25.08.2018? Não se demonstrou, do mesmo modo, que esse voo foi cancelado devido à existência do furacão Lane que assolou, nessa altura, aquele território?
Não se demonstrou que os recorrentes adquiriram um pacote de viagens?
A resposta a estas questões, e muitas outras que poderão ser colocadas perante a decisão aqui em crise, está de forma abundante em todos os meios de prova produzidos nos autos pelos recorrentes.
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E o que mais se estranha é o facto de a Meritíssima Juíza a quo os ter desconsiderado sem que lhes tivesse apontado um qualquer vício ou defeito, limitando-se a afirmar que os recorrentes poderiam ter feito isto ou aquilo.
Não cuidou, contudo, de perceber por que motivo os recorrentes indicaram aqueles meios de prova, que tanto quanto os recorrentes ainda sabem, são válidos à luz da lei e dos mais elementares princípios que norteiam a administração da Justiça.
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Não teria sido minimamente compreensível que os recorrentes não dispunham de outra forma de demonstrar aquilo que alegaram?
Estavam os mesmos impedidos de demonstrar esses factos que alegaram por outros meios de prova, nomeadamente por prova testemunhal e por declarações de parte? Conheceu-se, sequer, se os recorrentes, em face da existência daquele furacão Lane no destino para onde se dirigiam, se deslocaram ao aeroporto para iniciarem essa viagem? Com o devido respeito, mal andou a Meritíssima Juíza a quo quando laborou em juízos de valor, em pré-conceitos que a impediram de valorar, como podia e devia, a prova que perante ela foi produzida.
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Veja-se que quanto à negociação do contrato de seguro aqui em crise não foram suficientes para a Meritíssima Juíza a quo as declarações prestadas pela recorrente D, como já se referiu.
Mas por que outro meio de prova poderiam os recorrentes demonstrar o que se passou nessas negociações?
Não estão a ver, confessam aqui os recorrentes de forma humilde, a que outro meio de prova poderiam lançar mão para demonstrar ao Tribunal a quo tudo quanto se passou entre aquelas duas pessoas naquela fase de negociação, na fase pré-contratual...!
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E este, como já referimos, o objetivo e o interesse de um novo meio de prova que passou a ser admitido na alteração a que foi sujeito o Cód. Proc. Civil, a saber as declarações de parte prestadas ao abrigo do disposto no artigo 466° daquele mesmo Código.
Obviamente que não descuram os recorrentes que este “novo” meio de prova terá de ser, necessariamente, correlacionado com a restante prova, seja ela testemunhal, seja ela documental.
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Por isso, e como resulta de toda a prova produzida nos autos pelas partes, que informação na primeira pessoa trouxe, como lhe competia, a recorrida aos autos?
Apenas e tão só a inquirição de uma testemunha que nada sabia, pois nada tinha presenciado e ou negociado.
E se assim não fosse — e foi — jamais teria sido dada como não provada a matéria constante da alínea L) dos factos não provados.
Esse é o corolário da inércia processual da recorrida, mas que parece, com o devido respeito, ter escapado à Meritíssima Juíza a quo, que, desde cedo, se apressou a  desvalorizar as declarações de parte da recorrente D, simplesmente por ser parte interessada no desfecho da presente lide.
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A este propósito da valoração das declarações de parte, da sua importância e valoração importa chamar à colação, entre muitos outros doutos acórdãos, o que vai referido no acórdão do TRL, de 26.04.2017, no processo 18951/15.0T8SNT.L1.7, de onde se retira do ponto V do seu sumário o seguinte:
V —É infundada e incorreta a postura que degrada — prematuramente - o valor probatório das declarações de parte só pelo facto de haver interesse da parte na sorte do litígio. O julgador tem que valorar, em primeiro lugar, a declaração de parte e, só depois, a pessoa da parte porquanto o contrário (valorar primeiro a pessoa e depois a declaração) implica prejulgar as declarações e incorrer no viés confirmatório.
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Ora, com o devido respeito, foi este o comportamento da Meritíssima Juíza a quo que tratou primeiro de valorar a pessoa — que era parte interessada — para só depois valorar as suas declarações, que acabou por desconsiderar por ter feito aquela avaliação prévia e pré- conceituosa.
Mais pareceu que a recorrente D nem tampouco passou pela sala de audiências no dia da audiência de discussão e julgamento!!!
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Mas não só passou como deixou bem explicitado para quem quis entender que jamais lhe foi comunicada e/ou explicada uma cobertura absolutamente imprestável — para os interesse e preocupações dos recorrentes — pois que se lhe tivesse sido explicada essa cobertura jamais a teria contratado.
E, ao contrário do que parece transparecer da decisão aqui em crise, a recorrente D pretendia um seguro ABRANGENTE, não um seguro que cobrisse tudo como a Meritíssima Juíza a quo afirmou.
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É que, a este propósito, como decorre das declarações de parte da recorrente D aqui que a mesma pretendia com a contratação de semelhante seguro era cobrir os óbvios riscos de cancelamento de viagens ou voos, de assistência médica de que necessitassem nesse seu pacote de viagens — com muitos voos internos num continente que todos conhecem como sensível a vários fatores, sobretudo climatéricos — a perdas de bagagens, e tudo o mais que referiu.
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Jamais a recorrente D, a tal letrada, pretendia um seguro que cobrisse tudo e mais alguma coisa, sendo com o devido respeito, uma afirmação temerária e desprovida de qualquer sentido aquela que foi produzida pela Meritíssima Juíza a quo e vertida na decisão aqui em crise do seguinte modo:
(...)
A autora apenas referiu, insistentemente, que pediu um seguro o mais abrangente possível, que cobrisse tudo. Ora, isso, obviamente, é impossível, no plano lógico, porquanto não há nenhum seguro que tenha cobertura para todo e qualquer evento, e a autora sabe bem disso, porque é licenciada. professora e responsável numa IPSS. como referiu, não se tratando de pessoa de baixas habilitações, sem experiência de vida, desinformada. A autora, aliás, referiu que estava preocupada principalmente com a possibilidade de carecerem de assistência médica, não tendo resultado das suas declarações que não teria celebrado o seguro se soubesse que não cobria cancelamentos de voos posteriores à partida do Porto, não parecendo que a autora tivesse sequer antevisto tal possibilidade.
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Com o devido respeito, com um mínimo de atenção e a Meritíssima Juíza a quo ter-se-ia dispensado de escreveu o que supra se transcreveu, tanto mais que daquelas declarações resultou particularmente claro aquilo que apoquentava e preocupava a recorrente D quanto às coberturas do seguro que pretendia contratar.
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Mas dizer-se que parece nem se ter importado se não cobrisse cancelamento de voos parece-nos, com o devido respeito, de mais, uma vez que essa mesma declarante referiu de forma perentória e bem audível que essa era uma das suas, diremos nos, óbvias preocupações.
Mais uma vez é bem percetível nessa concreta passagem da decisão aqui em crise a apreciação, em primeiro lugar da pessoa (declarante) e só depois, com esse pré-conceito, a apreciação das suas declarações.
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Importa aqui fazer um parêntesis para referir que, como a Meritíssima Juíza a quo o afirmou, estamos nos presentes autos perante um caso de cláusulas contratuais gerais, como infra se alegará, para referir que jamais a recorrente D ou os restante recorrentes, poderia ter sido rotulada como licenciada, professora ou responsável por uma IPSS, como se essas circunstâncias factuais lhe trouxessem algum dever acrescido de ser mais esclarecida.
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Vejamos, a este propósito, o que sabiamente escreve José Manuel de Araújo Barros, in Cláusulas Contratuais Gerais, Coimbra Editora, a propósito dos aderentes a este tipo de contratos:
(...)
Assim, os limites impostos ao princípio da liberdade negociai pela consagração legal de normas protetoras, como as referentes à divergência entre a vontade real e a declarada, ao dolo, à coação, à simulação e à reserva mental; ou a consagração de proibições relativas, com a dos negócios usurários ou dos pactos leoninos. Todavia, aceitar com válida tal asserção é esquecer que o que de novo se nos perfila ê um princípio geral com um alcance muito mais vasto, na medida em que visa a reposição da igualdade nas relações jurídico-negociais, face a uma desigualdade que axiologicamente se pressupõe. Até aqui, a regra era a igualdade. Agora, plasma-se a desigualdade como ponto de partida.
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E continua referindo:
(...)
3. A desigualdade na contratação que axiomaticamente se pressupõe e que se pretende combater com o regime das cláusulas contratuais gerais decorre essencialmente de três fatores.
0 primeiro reporta-se à generalidade e à indeterminação. Dirigindo-se as cláusulas contratuais a um grupo genericamente identificado e normalmente constituído por um conjunto indiferenciado de pessoas, não foram levados em conta na sua elaboração os interesses concretos e específicos de cada uma delas. Como vimos, a generalidade não é atualmente requisito essencial de aplicação do DL n° 446/85, substituída pelo critério da não negociação.
Com o que se enfatizou a segunda possível causa de apriorístico desequilibro contratual, que tem a ver com a não negociação das cláusulas. Presumindo.se que na elaboração destas se atendeu preferencialmente aos interesses de quem as ditou em detrimento dos daqueles a quem elas se dirigem.
Para essa não igualação contribuirá ainda a maior debilidade do destinatário das cláusulas. A qual provem do mais acentuado domínio da relação contratual por parte do predisponente. Na verdade, quem profissionalmente se dedica a determinado ramo de atividade, colhe ensinamentos que lhe permitem por força dessa especialização tirar mais proveito de uma relação contratual encetada nessa área. Anote-se que este factor não se identifica necessariamente com o maior poderio económico. Se o homem mais rico do mundo se apresentar a comprar artigos de cosmética, estará em uma posição contratual mais débil do que o fabricante dos mesmos, por mais modesto que este seja.
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Ou seja, jamais as qualificações da recorrente D poderiam ter sido utilizadas nos moldes em que o foi, pois que não é pelo facto de ser licenciada que fará dele um aderente diferente.
Sabia o que pretendia, disso tendo dado conta ao seu interlocutor naquela contratação. Mas não era, seguramente, uma expert em seguros de viagens ou qualquer outro tipo de contrato de seguro, uma vez que não é esse o seu ramo de atividade.
E não era nem, em boa verdade, tinha de ser.
Porém, e infelizmente, para a Meritíssima Juíza a quo teria mesmo de ser...!
Relembre-se, a este propósito, o exemplo que José Manuel de Araújo Barros refere na obra supra citada ao escrever o seguinte: - Se o homem mais rico do mundo se apresentar a comprar artigos de cosmética, estará em uma posição contratual mais débil do que o fabricante dos mesmos, por mais modesto que este seja.
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Curiosamente a Meritíssima Juíza a quo aponta como defeito aos depoimentos das testemunhas arroladas pelos recorrentes o facto de não terem tido conhecimento direto no que tange à contratação.
Não podíamos estar mais de acordo; porém, e como decorre dos seus depoimentos - integralmente transcritos no corpo das presentes alegações e para as quais remetemos por economia processual - tiveram conhecimento direto de outros factos, nomeadamente a aquisição de um pacote de viagem — não em estilo voo charter ou tipo excursão, atento até o custo desse pacote de viagens - assim como a existência do furacão “Lane” naquela zona do globo e, finalmente, na cancelamento do voo que os iria levar de S: Francisco a Honolulu, no Havai.
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Porem, e como a Meritíssima Juíza a quo o afirmou, pois mais parece que tudo tem de ser formatado ou obedecer a um determinado padrão ou formato, podiam os recorrentes ter junto uma qualquer declaração da companhia aérea ou do próprio aeroporto.
Já anteriormente o dissemos e iremos repeti-lo: - será o Tribunal que impõe às partes quais os meios de prova que irá validar?!!!
Cuidamos, com o devido respeito, que não. E assim queremos continuar a cuidar...
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Alguma das testemunhas fez referência ao facto de os recorrentes se terem dirigido ao aeroporto nesse dia? Alguma testemunha fez referência ao facto de terem ficado retidos no alojamento? Alguma das testemunhas fez referência ao facto de se ter de solicitar no operador aéreo ou no aeroporto essa declaração pretendida pela Meritíssima Juíza a quo? NÃO.
Mais uma vez o pré-conceito da Meritíssima Juíza a quo relativamente àquilo que deveria ter sido efetuado pelos recorrentes ...
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Porém, a testemunha GB__, funcionária da agência de viagens onde os recorrentes adquiriram aquele pacote de viagens referiu, de forma segura, audível, espontânea e verosímil que logo que foi avisada pela recorrente D da existência do furacão Lane na zona do Havai manteve-se em acompanhamento on-line dessa situação e pôde ali confirmar o cancelamento do voo que iria levar os recorrentes de S. Francisco para Honolulu, no Havai.
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Lamentavelmente são muito detalhes, muitos pormenores que parecem ter passado despercebidos à Meritíssima Juíza a quo, mas que a audição ou leitura dos depoimentos das testemunhas arroladas pelos recorrentes permitem uma conclusão diametralmente oposta àquele que foi alcançada pela Meritíssima Juíza a quo e que, por isso, impõem uma alteração da matéria de facto de não provada para provada, tal com referido no ponto III das presentes alegações, para as quais com a devida vénia aqui se remete e a consequente alteração da decisão proferida.
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E não menos despicienda foi a impossibilidade em se questionar a testemunha GB__ no que respeita às coberturas de um seguro de viagem que a mesma, como referiu, está obrigada a oferecer aos clientes - tal como o fez com os aqui recorrentes, mas que estes recusarem por pretenderem um seguro mais ABRANGENTE.
E para que se perceba o que acabou de se referir, não se desconhecendo que não era esse contrato de seguro que estava em discussão nos presentes autos, entendeu — e mal — a Meritíssima Juíza a quo concluir, sem mais, que se tratava de um seguro completamente diferente e que, portanto, poderia ter outras coberturas.
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Uma palavra mais quanto à prova produzida pela recorrida, que consistiu na demorada inquirição de uma testemunha, o sr. Dr. JC, que nada trouxe de relevante aos autos, pois que em nada tinha participado.
O seu conhecimento era contemporâneo com a entrada em juízo dos presentes autos, e limitou-se a um depoimento — para o que aos autos interessava — indireto, pois que nada presenciou na contratação.
Apenas afirmou, repetidas vezes, que o sr. ES lhe referiu isto ou aquilo, quando, com o devido respeito, melhor teria andado se tivesse feito comparecer o tal sr. ES para o mesmo, na primeira pessoa, pudesse dizer o que se passou naquela contratação, se cumpriu ou não os deveres que lhe estavam adstrito, nomeadamente de informação, de comunicação e explicitação das diferentes condições da apólices e coberturas.
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Por isso, e com a alteração da matéria de facto tal com plasmada no ponto III do corpo destas alegações — para o qual se remete por uma questão de economia processual — não pode a presente demanda deixar de ser julgada procedente e, em consequência, ser a recorrida condenada no pedido.
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É que da decisão aqui em crise o pior ainda estava para vir e julgavam os recorrentes que jamais poderiam ler tamanha afirmação numa decisão judicial.
É que a Meritíssima Juíza a quo, depois de afirmar — e bem — que o caso em presença nos autos se prendia com uma questão de cláusulas contratuais gerais fez simplesmente letra morta do que dispõe o Dec. Lei n° 446/85, de 25.10.
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Escreveu a esse propósito o seguinte:
Impõe-se, também, referir que nem a circunstância de a ré não ter logrado provar ter cumprido os deveres de comunicação e de informação das condições gerais do contrato de seguro que sobre si impendia, por constituírem cláusulas contratuais gerais, tal como definidas no Decreto-Lei n.0 446/85 de 25 de outubro, permitiria a procedência da pretensão dos autores, (o sublinhado e destacado é nosso).
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E como se esta passagem já não bastasse para arrepiar quer o Legislador, quer a Jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores, ainda se permitiu escrever mais o seguinte:
E que essa omissão não teria como consequência a exclusão da definição de “cancelamento de viagem” constante das condições gerais e a interpretação da cobertura com o sentido que os autores defendem. Velo contrário, as coberturas seguradas não subsistem ancoradas unicamente na sua denominação, na sua epígrafe, carecendo da definição e regulamentação constante das condições gerais. Se esta for excluída, por força do disposto no artigo 8o, alíneas a) e b) do referido Decreto-Lei n.º 446/85 de 25 de outubro, a mera identificação da cobertura pela sua denominação de “Cancelamento de viagens” apresenta uma indeterminação insuprível que não lhe permite subsistir autonomamente da sua definição, o que conduziria à sua invalidade, nos termos previstos no artigo 9o, n.º 2 do referido diploma. Ou seja, sempre soçobraria a pretensão dos autores.
Resta-nos, por tudo, concluir pela improcedência da ação.
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Com o devido respeito, demonstrou naquelas passagens um confrangedor desconhecimento da lei, em concreto do que dispõe o Dec. Lei n° 446/85, de 25.10, pois que parece desconhecer o que ali vai disposto no que tange à integração do negócio — aquilo que os aderentes pretendiam com a celebração daquele contrato - e, bem assim, o princípio da boa fé negociai.
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Com efeito, ficou absolutamente demonstrado que a recorrida, por intermédio de quem a representou naquela negociação daquele concreto contrato de seguro, não cumpriu aquilo que lhe é exigido pelo disposto nos artigos 5° e 6° do referido DL.
E por força desse mesmo dispositivo legal, o que sucede com essas cláusulas não comunicadas está previsto no seu artigo 8o, isto é, são excluídas do contrato.
No caso haveria que excluir do contrato a definição de cancelamento de viagem por não informado, por não comunicado.
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Veja-se, a este propósito, de entre muitos outros doutos acórdãos, o que vai vertido no Acórdão do STJ, de 13.09.2016 — cujo sumário integral vai transcrito no corpo destas alegações e que nos dispensamos de aqui o transcrever para não alongar mais as presentes conclusões — de onde se destaca o seguinte:
II - O cumprimento das prestações impostas pelos arts. 5.0 e 6.° da LCCG, cuja prova onera o predisponente. convoca deveres pré-contratuais de comunicação das cláusulas (a inserir no negócio) e de informação (prestação de todos os esclarecimentos que possibilitem ao aderente conhecer o significado e as implicações dessas cláusulas), enquanto meios que radicam no princípio da autonomia privada, cujo exercido efetivo pressupõe que se encontre bem formada a vontade do aderente ao contrato e, para tanto, que este tenha um antecipado e cabal conhecimento das cláusulas a que se vai vincular, sob pena de não ser autêntica a sua aceitação.
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Porém, a solução anda longe de ser aquela que a Meritíssima Juíza a quo encontrou, até ao arrepio do que vai previsto no referido DL.
E que nesses casos, reza o artigo 9o, epigrafado de Subsistência dos contratos singulares o seguinte:
1 - Nos casos previstos no artigo anterior os contratos singulares mantêm-se, vigorando na parte afetada as normas supletivas aplicáveis, com recurso, se necessário, às regras de integração dos negócios jurídicos.
2 - Os referidos contratos são, todavia, nulos quando, não obstante a utilização dos elementos indicados no número anterior, ocorra uma indeterminação insuprível de aspetos essenciais ou um desequilíbrio nas prestações gravemente atentatório da boa fé.
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Ou seja, a Meritíssima Juíza a quo deveria ter-se socorrido das normas relativas à integração dos negócios e, bem assim, da boa fé negociai, para alcançar a solução para a presente demanda, o que lhe impunha que procurasse — e parece não ter procurado — saber qual era a intenção, o objetivo dos recorrentes na celebração do contrato de seguro que acabou por celebrar com a recorrida.
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Resultou à saciedade, até por terem optado por tarifas para aquele pacote de viagens não reembolsáveis, que queriam contratar um seguro de viagem que cobrisse aquilo que lhes pudesse suceder nessa mesma viagem — com várias deslocações em continente norte americano — durante essa viagem.
Fez, inclusivamente, referência ao facto de viajarem naquela viagem menores!
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Porém, quedou-se pelo disposto no n° 2 do artigo 9o do DL 446/85, de 25.10, ao afirmar que sem aquela cobertura nos moldes em que a mesma estava inscrita nas condições gerais da apólice, não comunicadas, descurando totalmente aquilo que dispõe o artigo 16° desse mesmo diploma legal no que tange à integração dos negócios.
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Se fosse assim tão simples como a Meritíssima Juíza a quo quis fazer crer, jamais teria sido previsto que vai previsto no artigo acabado de referir, isto é, no artigo 16° do DL 446/85, de 25.10.
Onde fica a confiança que, óbvia e naturalmente, os recorrentes depositaram na contratação daquele seguro?
Onde fica o objetivo que os recorrentes pretenderam acautelar com a celebração daquele contrato de seguro?
Com o devido respeito, foram mandados às ortigas...
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Fará assim tanta espécie entender-se que o cancelamento de viagem diz respeito a qualquer cancelamento que ocorra durante a viagem, ou seja, durante o período de tempo que vai desde a saída do domicílio até ao seu regresso no fim da deslocação?
É assim tão abusiva essa interpretação?
Vai tão ao desencontro do interesse que os recorrentes pretendia ver protegido com a contratação daquele seguro?
Ocorre, assim, com esse entendimento, uma indeterminação insuprível?
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É que este entendimento, com o devido respeito por opinião diversa, tem acolhimento quer na definição de viagem, quer no certificado de seguro relativamente ao período de cobertura do seguro (do início ao fim da viagem), quer ainda naquilo que de boa fé os recorrentes pretendiam contratar.
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E ao invés do que foi afirmado pela Meritíssima Juíza a quo, melhor esta teria andado se tivesse entendido — como supra se afirmou — que por cancelamento de viagens se poderia entender qualquer cancelamento que ocorresse durante a viagem tal como a mesma vai definida naquele contrato de seguro.
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E a fazê-lo desse modo, em respeito pelos princípios da confiança e da boa fé objetiva, previstos no Dec. Lei n° 446/85, de 25.10, teria condenado a recorrida a pagar aos recorrentes a quantia que os mesmos contrataram para essa cobertura, ou seja, a quantia de 1.250,00 €.
54
E que nem mesmo a este propósito, tal como decorreu de toda a prova produzida nos autos, a recorrida logrou fazer prova de que àquele capital seguro de 1.250,00 € deveriam ser imputados os custos que qualquer cancelamento pudesse acarretar.
Nunca foi explicitado, informado ou comunicado à recorrente D que aquele capital de 1.250,00 € para aquela cobertura seria pago mediante as eventuais despesas que fosse apresentadas.
55
Por isso, e também aqui, se impõe convocar quer os princípios da confiança e da boa fé objetiva, previsto no supra referido Dec. Lei, quer aquilo que era o objetivo dos recorrentes com a celebração daquele contrato de seguro, quer ainda o facto de já se encontrar pago o preço daquele seguro, deveria a Meritíssima Juíza a quo, pelos mesmos motivos que a levariam a considerar válida aquela cobertura como supra se deixou alegado, ter condenado a recorrida a pagar a cada um dos recorrentes a quantia de 1.250,00 €.
56
Em suma, a decisão aqui em crise violou, entre outros, o disposto nos artigos 5º, 6º, 8º, 15° e 16° do Dec. Lei n° 446/85, de 25.10.
Pelo exposto, revogando-se a decisão proferida e substituindo-se por outra que julgue a presente lide totalmente procedente, tal como se alegou no ponto III do corpo destas alegações, condenando a recorrida no pedido, se fará sã e acostumada JUSTIÇA.»
*
Contra-alegou a apelada,  propugnando pela improcedência da apelação.
QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo um função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso, v.g., abuso de direito.[2]
Nestes termos, as questões a decidir são as seguintes:
I. Impugnação da decisão da matéria de facto;
II. Inobservância pela ré do disposto nos artigos 5º e 6º da Lei das cláusulas contratuais gerais e consequência daí emergentes quanto ao seguro contratado.
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A sentença sob recurso considerou como provada a seguinte factualidade:
A)
Os autores contrataram com a ré um seguro de viagem titulado pela apólice n° (...), pelo qual esta assumiu os riscos indicados na mesma e nas respetivas condições gerais,
B)
Foi contratada a cobertura de “Despesas por cancelamento de viagem”, com um capital de 1250,00€ por pessoa segura.
C)
Contactada a ré pelo mandatário dos autores, pela carta junta como documento n° 1 da p.i., a ré declinou a sua responsabilidade, alegando que para que aquela cobertura pudesse funcionar, necessário seria que esse cancelamento tivesse ocorrido antes de se iniciar a viagem.
D)  
Os autores haviam contratado viagem com partida do aeroporto do Porto e destino a Newark, e depois, no dia 29.08.2018, novo voo com destino ao Havai, mais concretamente a Honolulu,
E)  
Entre a ré, enquanto seguradora, e D (a 4ª autora), como tomador de seguro, foi celebrado em 09/08/2018 o contrato de seguro Multi-Assistência de Viagem (modalidade temporária), produto/protocolo SEGURAMOS/ERV, titulado pela apólice n° (...) – Certificado n° 10494 – tendo como pessoas seguras/segurados o tomador de seguro e os cinco outros autores, já acima referido em A) e B).
F)   
Na contratação do seguro interveio o mediador de seguros “Seguramos” e a emissão dos documentos contratuais foi online.
G)  
O Certificado de seguro e as Condições Gerais da apólice, que constituem os documentos 1 a 3 da contestação, foram enviados ao tomador de seguro em 09/08/2018.
H)  
Do Certificado entregue ao tomador do seguro consta que o destino da viagem eram os
Estados Unidos e que as datas da viagem eram: de 11/08/2018 a 02/09/2018.
I)   
Estabelecem as Condições Gerais da apólice, nas “Definições” que “por viagem (Modalidade Temporária) entender-se-á qualquer deslocação realizada fora do domicílio habitual do segurado, a partir do momento da sua saída do mesmo, até ao seu regresso a ele, ao concluir a deslocação”.
J)
Das definições constantes das Condições Gerais consta ainda o “cancelamento de viagem”: “para os efeitos da presente apólice, a decisão do SEGURADO de deixar sem efeito, antes da data de saída acordada, os serviços solicitados ou contratados.”
K)  
Nos termos da cláusula 7-7.1. das Condições Gerais (“Despesas por Cancelamento de Viagem”) - a SEGURADORA garante, até ao limite fixado nas Condições Particulares, e salvo as exclusões mencionadas nestas Condições Gerais, o reembolso das despesas de Cancelamento de viagem produzidas a cargo da PESSOA SEGURA e faturadas a ele pela aplicação das condições gerais de venda da Agência, ou de qualquer um dos provedores da viagem, sempre que anule a viagem antes do seu início por alguma das causas de seguida descritas sobrevindas depois da subscrição do seguro e obriguem a Pessoa Segura a cancelar ou adiar a viagem na data prevista.
L)  
Os autores iniciaram a viagem em 11/08/2018, data em que viajaram do Porto para Newark – Estados Unidos da América no dia previsto para o início da deslocação coberta pelo seguro, ou seja 11/08/2018.
M)
Foi difundido em meios de comunicação social que o Havai foi atingido pelo furacão
“Lane”, em agosto de 2018.
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Impugnação da decisão da matéria de facto
Nos termos do Artigo 640º, nº 1, do Código de Processo Civil,
«Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”
No que toca à especificação dos meios probatórios, incumbe ainda ao recorrente «Quando os meios probatórios invocados tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes” (Artigo 640º, nº 2, al. a) do Código de Processo Civil).
Existe divergência jurisprudencial no que tange a saber se os requisitos do ónus impugnatório previstos no Artigo 640º, nº1, devem figurar apenas no corpo das alegações ou se também devem ser levados às conclusões sob pena da rejeição do recurso (cf. Artigos 635º, nº2 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil). Todavia, o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a sedimentar como predominante a posição que se expressa nos seguintes arestos. Assim, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.2.2015, Tomé Gomes, 299/05, afirma-se que «(…) enquanto a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória.» Em sentido confluente, o mesmo STJ afirmou no Acórdão de 31.5.2016, Garcia Calejo, 1572/12 que: «Do art. 640º nº 1 al. b) não resulta que a descriminação dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou da gravação realizada tenha que ser feita exclusiva e unicamente nas conclusões. / Tem sim, essa especificação de ser efetuada nas alegações. / Nas conclusões deve ser incluída a questão atinente à impugnação da matéria de facto, ou seja, aí deve introduzir-se, sinteticamente “os fundamentos por que pede a alteração (ou anulação) da decisão” (art. 639º nº 1), o que servirá para o recorrente afirmar que matéria de facto pretende ver reapreciada, indicando os pontos concretos que considera como incorretamente julgados, face aos meios probatórios que indica nas alegações.» No Acórdão de 11.4.2016, Ana Luísa Geraldes, 449/410, defendeu-se que servindo as conclusões para delimitar o objeto do recurso, deverão nelas ser identificadas com precisão os pontos de factos que são objeto de impugnação; quanto aos demais requisitos do ónus impugnatório, basta que constem de forma explícita na motivação do recurso. As conclusões do recurso não têm de reproduzir todos os elementos do corpo da alegação – cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.1.2015, Clara Sottomayor, 1060/07.
Ora, os apelantes cumpriram de forma deficiente os ónus legais porquanto, desde logo, não precisam nas conclusões quais as alterações à matéria factual que pretendem, limitando-se a remeter para o Capítulo III do corpo das alegações (cf. conclusão 35). Também não precisam quais os meios de prova que, em concreto, justificam as alterações pretendidas, fazendo uma crítica global à apreciação da prova.
Todavia, o STJ vem entendendo que, na verificação do cumprimento dos ónus de impugnação previstos no citado artigo 640º, os aspetos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.[3]
Nessa medida, este Tribunal da Relação apreciará a defeituosa impugnação da matéria de facto.
Assim, cotejando a matéria de facto provada na sentença e o teor do capítulo III do corpo das alegações, infere-se que as alterações pretendidas pelos apelantes são as seguintes:
§ Supressão do facto K):
K)  
Nos termos da cláusula 7-7.1. das Condições Gerais (“Despesas por Cancelamento de Viagem”) - a SEGURADORA garante, até ao limite fixado nas Condições Particulares, e salvo as exclusões mencionadas nestas Condições Gerais, o reembolso das despesas de Cancelamento de viagem produzidas a cargo da PESSOA SEGURA e faturadas a ele pela aplicação das condições gerais de venda da Agência, ou de qualquer um dos provedores da viagem, sempre que anule a viagem antes do seu início por alguma das causas de seguida descritas sobrevindas depois da subscrição do seguro e obriguem a Pessoa Segura a cancelar ou adiar a viagem na data prevista.
§ Aditamento dos seguintes factos provados como provados:
A viagem que os demandantes iriam realizar, de Newark para Honolulu não chegou sequer a realizar-se, por ter sido cancelada devido ao furacão “Lane”;
Os autores adquiriram um “pacote de viagem” que se iniciava na cidade do Porto  no dia 11.8.2018, passava pelas cidades americanas de Newark e de S. Francisco, passando por Honolulu, no Havai e com regresso no dia 1.9.2018;
Se os autores soubessem que o seguro só tinha cobertura para o cancelamento da viagem  antes de esta começar não o teriam contratado.
Apreciando.
O facto K) corresponde ao teor do artigo 12º da contestação, o qual – por sua vez – corresponde ao teor da Cláusula 7.7.1. das Condições Gerais da Apólice juntas aos autos, mais concretamente a fls. 61.
O Tribunal a quo considerou tal facto provado por não ter sido impugnado.
E pensamos que bem.
Na verdade, no artigo 1º da réplica, afirmaram os autores: «Desconhecem os demandantes o que vai referido nos artigos 12º (por não lhes ter sido comunicado) (…)». E, mais à frente, retomam esta linha argumentativa, afirmando: «23 . Que necessidade existiria de serem enviadas essas condições gerais da apólice se as mesmas tivessem sido – e não foram – devidamente explicadas e informadas aos demandantes?!».
Ou seja, o que os autores sustentam é que as condições gerais da apólice não lhe foram explicadas e informadas, o que constitui questão diversa da sua existência. Ou seja, os autores/apelantes não negaram a existência da cláusula 7.7.1. das Condições Gerais, o que questionaram foi a ocorrência da sua comunicação e explicação aos autores. Assim, o facto enunciado sob k) está correto. Questão diversa é a de saber se deveria ser dada como provada factualidade atinente à não comunicação e explicação de tal cláusula (cf. infra).
No que tange ao facto que os apelantes pretendem que seja aditado («Se os autores soubessem que o seguro só tinha cobertura para o cancelamento da viagem  antes de esta começar não o teriam contratado»), trata-se de matéria que não foi alegada nesses termos pelos autores nem na petição nem na réplica.
A pretensão não pode proceder por duas ordens de razões.
Em primeiro lugar, o aditamento do facto em causa só colhe sentido no âmbito de uma convolação da causa de pedir para uma situação de erro sobre o objeto do negócio (Artigo  251º do Código Civil). Ora, os autores/apelantes não podem em sede de recurso vir alterar a causa de pedir, não se destinando o recurso a apreciar questões novas.
Com efeito, o facto em causa não releva para os efeitos do disposto nos Artigos 9º, nº1, da Lei das cláusulas contratuais gerais conjugado com o artigo 239º, nº1 do Código Civil (ou seja, na tese dos apelantes, excluindo-se a cláusula atinente à definição do cancelamento da viagem, haveria que recorrer às regras de integração dos negócios jurídicos; cf. Ana Filipa Morais Antunes, Comentário à Lei das Cláusulas Contratuais Gerais, p.196) porquanto do mesmo (de per si ou conjugado com os demais factos provados) não decorre minimamente qual seria a vontade conjetural de ambas as partes quanto à definição do que seja cancelamento da viagem, caso fosse excluída a cláusula da apólice que a define, sendo certo que os apelantes nada aduzem sobre a vontade hipotética da ré.
Ora, o direito à impugnação da decisão de facto não subsiste a se mas assume um caráter instrumental face à decisão de mérito do pleito. Deste modo, por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objeto da impugnação for insuscetível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente.[4]
Em segundo lugar, mesmo que assim não fosse, no melhor dos cenários o facto em causa poderia assumir a natureza de facto complementar, nos termos do Artigo 5º, nº2, al. b), do Código de Processo Civil.
Os factos complementares só podem ser introduzidos no processo no decurso do julgamento em primeira instância, mediante iniciativa da parte ou oficiosamente, sendo que, neste último caso, cabe ao juiz anunciar às partes que está a equacionar utilizar esse mecanismo de ampliação da matéria de facto, sob pena de proferir uma decisão-surpresa. Em qualquer dessas circunstâncias, assiste à parte beneficiada pelo facto complementar e à contraparte a faculdade de requererem a produção de novos meios de prova para fazer a prova ou contraprova dos novos factos complementares – cf. Geraldes, Abrantes/Pimenta, Paulo/Sousa, Luís Filipe, Código de Processo Civil Anotado, I Vol., 2020, 2ª ed., Almedina, pp. 31-32.
Não tendo os apelantes desencadeado tal mecanismo de ampliação fáctica nem tendo o mesmo sido utilizado oficiosamente pelo tribunal,  está precludida a ampliação da matéria de facto com tal fundamento em sede de apelação porquanto o conteúdo da decisão seria excessivo por envolver a consideração de factos essenciais complementares ou concretizadores fora das condições previstas no art. 5º ( cf. Geraldes, Abrantes/Pimenta, Paulo/Sousa, Luís Filipe, Código de Processo Civil Anotado, I Vol., 2020, 2ª ed., Almedina, p. 825) ou, segundo Alberto dos Reis, ocorreria erro de julgamento por a sentença/acórdão se ter socorrido de elementos de que não podia socorrer-se (Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pp.. 145-146). Note-se que a ampliação da matéria de facto (Artigo 662º, nº2, al. c), in fine, do Código de Processo Civil) tem por limite a factualidade alegada, tempestivamente, pelas partes, não constituindo um sucedâneo do mecanismo sucedâneo do Artigo 5º, nº2, al. b), do Código de Processo Civil).
Sobram, assim, os seguintes factos que os apelantes pretendem que sejam aditados:
A viagem que os demandantes iriam realizar, de Newark para Honolulu não chegou sequer a realizar-se, por ter sido cancelada devido ao furacão “Lane”;
Os autores adquiriram um “pacote de viagem” que se iniciava na cidade do Porto  no dia 11.8.2018, passava pelas cidades americanas de Newark e de S. Francisco, passando por Honolulu, no Havai e com regresso no dia 1.9.2018;
Cremos que assiste razão aos apelantes nesta pretensão.
Previamente, haverá que corrigir um erro de escrita nos factos provados.
Nos artigos 3º e 4º da petição, alegaram os autores que, no dia 25.8.2018, iriam voar para Honolulu, onde tinham alojamento reservado entre os dias 25.8.2018 e 31.8.2018. Todavia, mais à frente no artigo 15º da petição alegaram que havia um novo voo com destino ao Havai, em 29.8.2018. Trata-se de manifesto erro de escrita, pretendendo os autores reportar-se a 25.8.2018, o que resulta – de forma clara – do documento de fls. 71 v. (fatura da viagem) no qual consta a viagem para Honolulu em 25.8.2018.
Assim sendo, altera-se a redação do facto D) passando a constar “25.8.2018” em vez de “29.8.2028”.
Que a viagem para Honolulu não se realizou devido ao furacão Lane resulta – além das declarações de parte da autora - dos depoimentos de PT__, amiga da autora, que acompanhou a realização da viagem da autora e família e relatos da autora, bem como do depoimento da testemunha GB__, agente de viagens que tem a autora como cliente, a qual também acompanhou as vicissitudes da viagem, apercebendo-se que os autores não saíram de São Francisco para Honolulu.
Se é certo que estas testemunhas não estavam fisicamente na viagem, tinham interesse no seu desenrolar e mantinham contactos regulares com a autora.
Além do mais, embora não constitua facto notório em Portugal a ocorrência de um furacão no Havai, não nos podemos alhear do mundo global em que vivemos, sabendo-se que este tipo de fenómenos é muito estudado nos EUA, sendo objeto de registo nas agências oficiais dos Estados Unidos.
É o que ocorre no caso, conforme deflui do estudo de John L. Beven II e Derek Wroe, HURRICANE LANE (EP142018) 15-28 August 2018, acessível em https://www.nhc.noaa.gov/data/tcr/EP142018_Lane.pdf (site oficial do governo americano) , de que extratamos este passo:
«Under persistent strong vertical wind shear, Lane rapidly weakened late 24 August through 25 August as it made its closest approach to the State of Hawaii, within 130 n mi south and west of most islands. Lane had been a major hurricane for a six-day period ending early 24 August, but between 0600 UTC 24 August and 0600 UTC 25 August, Lane rapidly weakened to a tropical storm. Under relentless vertical wind shear, Lane continued to lose strength during the second half of 25 August. The primary steering feature for the increasingly shallow cyclone became the low-level subtropical ridge to the north, causing Lane to make a sharp turn toward the west as the tropical storm came within 120 n mi of the Island of Oahu. From 26 August through dissipation, Lane mostly moved westward, away from the main Hawaiian Islands.»
Daqui resulta que o furacão em causa afetou as ilhas do Havai indubitavelmente nos dias 25 e 26 de agosto de 2018.
Ora, é facilmente configurável uma presunção judicial desta índole: facto-base = ocorrência de furacão em determinado local/Havai no dia 25.8.2018; regra da experiência = não se realizam voos comerciais para locais onde estejam ativos furacões; facto presumido- o voo para o Havai/Honolulu de 25.8.2018 não se realizou porque ocorreu ai um furacão nesse dia (cf. Artigo  351º do Código Civil). Sobre a admissibilidade da utilização de presunções no Tribunal da Relação, cf. Luís Filipe Sousa, Prova por Presunção no Direito Civil, 3ª ed., pp. 187-189.
No que tange ao facto de que os autores adquiriram um “pacote de viagem” tal resulta também das declarações de parte da autora, corroboradas pelo depoimento da testemunha GB__ bem como pelo documento junto a fls. 71-72 (fatura da viagem), onde consta a menção dos sucessivos voos entre vários destinos, saindo do Porto para os EUA , seguindo-se voos internos, com regresso final dos EUA para o Porto.
Assim sendo, aditam-se os seguintes factos provados.
N) A viagem que os demandantes iriam realizar, de Newark para Honolulu não chegou sequer a realizar-se, por ter sido cancelada devido ao furacão “Lane”;
O) Os autores adquiriram um “pacote de viagem” que se iniciava na cidade do Porto  no dia 11.8.2018, passava pelas cidades americanas de Newark e de S. Francisco, passando por Honolulu, no Havai e com regresso no dia 1.9.2018.
Inobservância pela ré do disposto nos artigos 5º e 6º da Lei das cláusulas contratuais gerais e consequência daí emergentes quanto ao seguro contratado.
Sustentam os apelantes, longamente, que a ré não deu cumprimento do disposto nos Artigos 5º e 6º da Lei das Cláusulas Contratuais Gerais, o que determina a exclusão das cláusulas contratuais (artigo 8º), designadamente da provada sob J) (“Das definições constantes das Condições Gerais consta ainda o “cancelamento de viagem”: “para os efeitos da presente apólice, a decisão do SEGURADO de deixar sem efeito, antes da data de saída acordada, os serviços solicitados ou contratados.”)
Nessa sequência, na ótica dos apelantes, deveria o tribunal a quo ter-se socorrido das normas de integração dos negócios, aquilatando qual a intenção dos autores na celebração do contrato de seguro, devendo-se concluir que o cancelamento de viagens que foi objeto do seguro deve interpretar-se como qualquer cancelamento que ocorresse durante a viagem e não antes desta iniciar-se.
Apreciando.
Conforme se refere em Luís Filipe Sousa, Direito Probatório Material Comentado, 2ª ed., Almedina, 2021, pp. 26-27:
«Nos termos dos arts. 5º e 6º do DL nº 446/85, de 25.10, recai sobre o proponente o dever de comunicação do teor das cláusulas, bem como o ónus da prova da comunicação adequada e efetiva, acrescendo o dever de informação sobre os aspetos nelas compreendidos cuja aclaração se justifique (Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 1.6.2010, João Camilo, 600/05, de 30.3.2017, João Trindade, 4267/12). Sem embargo, cabe ao aderente invocar a violação/preterição desses deveres por parte do proponente (Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.6.2010, Bettencourt de Faria, 5611/03, de 21.10.2010, Lázaro Faria, 3214/06, de 28.9.2017, Tomé Gomes, 580/13, de 2.11.2017, Isabel Pereira, 620/09). Previamente à demonstração a que os ónus da prova previstos no DL nº 446/85, de 25-10, se reportam, tem de haver a demonstração, a cargo da parte que quer beneficiar da invalidade das cláusulas contratuais, de que se está em terreno próprio destas (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.3.2010, João Bernardo, 806/05).»
Assim, cabia aos autores alegar a preterição dos deveres de informação e comunicação pela ré, o que os autores fizeram. Nessa sequência, cabia à ré o ónus da alegação e prova da comunicação adequada e efetiva.
Ora, os autores invocaram a preterição dos deveres de informação e comunicação pela ré em articulado, na sequência de despacho que lhes facultou especificamente o contraditório sobre as exceções deduzidas na contestação. Na sequência desse segundo articulado dos autores, a ré apresentou também um articulado próprio, no qual não invocou que tenha explicado/comunicado aos autores o teor das cláusulas contratuais gerais, designadamente a atinente à definição de cancelamento de viagem. O que alegou foi, designadamente,  que o teor das cláusulas não suscitou reparo da entidade supervisora.
Nos termos do Artigo  414º do Código de Processo Civil , «A dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita
Conforme se refere em João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Vol. I, AAFDL, 2022, p. 497:
«A dúvida que o art. 414º resolve não é a dúvida sobre a valoração a atribuir a um meio de prova, mas a dúvida sobre a realidade de um facto: perante a falta de prova de um facto, há dúvida sobre se esse facto é verdadeiro; o art. 414º resolve esta dúvida considerando que o facto não é verdadeiro. O art. 414º não se destina a resolver dúvidas sobre provas, mas antes dúvidas sobre factos.»
Assim sendo, perante a dúvida sobre a comunicação/explicação do teor das cláusulas contratuais gerais – cujo ónus incumbia sobre a ré – há que, nos termos do Artigo  414º do Código de Processo Civil , considerar que não ocorreu tal comunicação/explicação das cláusulas contratuais gerais.
A circunstância de as condições gerais da apólice  terem sido enviados ao tomador de seguro em 9.8.2018 (facto G)) não supre a omissão do dever de comunicação, tanto mais que a viagem se iniciou em 11.8.2018.
Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.9.2016, Alexandre Reis, 1262/14:
II - O cumprimento das prestações impostas pelos arts. 5.º e 6.º da LCCG – cuja prova onera o predisponente – convoca deveres pré-contratuais de comunicação das cláusulas (a inserir no negócio) e de informação (prestação de todos os esclarecimentos que possibilitem ao aderente conhecer o significado e as implicações dessas cláusulas), enquanto meios que radicam no princípio da autonomia privada, cujo exercício efetivo pressupõe que se encontre bem formada a vontade do aderente ao contrato e, para tanto, que este tenha um antecipado e cabal conhecimento das cláusulas a que se vai vincular, sob pena de não ser autêntica a sua aceitação.
III - Por isso, esse cumprimento deve ser assumido na fase de negociação e feito com antecedência necessária ao conhecimento completo e efetivo do aderente, tendo em conta as circunstâncias (objetivas e subjetivas) presentes na negociação e na conclusão do contrato – a importância deste, a extensão e a complexidade (maior ou menor) das cláusulas e o nível de instrução ou conhecimento daquele –, para que o mesmo, usando da diligência própria do cidadão médio ou comum, as possa analisar e, assim, aceder ao seu conhecimento completo e efetivo, para além de poder pedir algum esclarecimento ou sugerir qualquer alteração.
IV - É certo que as exigências especiais da promoção do efetivo conhecimento das cláusulas contratuais gerais e da sua precedente comunicação, que oneram o predisponente, têm como contrapartida, também por imposição do princípio da boa-fé, o aludido dever de diligência média por banda do aderente e destinatário da informação – com intensidade e grau dependentes da importância do contrato, da extensão e da complexidade (maior ou menor) das cláusulas e do nível de instrução ou conhecimento daquele –, de quem se espera um comportamento leal e correto, nomeadamente pedindo esclarecimentos, depois de materializado que seja o seu efetivo conhecimento e informação sobre o conteúdo de tais cláusulas.
V - Porém, essa constatação, em caso algum, poderá levar a admitir que o predisponente fique eximido dos deveres que o oneram, ou a conceber como legítimas uma sua completa passividade na promoção do efetivo conhecimento das cláusulas contratuais gerais e, sobretudo, uma ausência de comunicação destas ao aderente com a antecedência necessária ao conhecimento completo e efetivo, até para que o mesmo possa exercitar aquele seu dever de diligência, nos apontados termos. Uma tal conceção conduziria à inversão não consentida da hierarquia legalmente estatuída entre os deveres do predisponente e do aderente.
Perante a omissão da comunicação das cláusulas contratuais gerais (máxime das referidas sob I) e J)), tais cláusulas são excluídas do contrato celebrado, nos termos da al. a) do Artigo 8º da LCCG.
Nos termos do Artigo  9º, nº1, da LCCG, «Nos casos previstos no artigo anterior os contratos singulares mantêm-se, vigorando na parte afetada as normas supletivas aplicáveis, com recurso, se necessário às regras de integração dos negócios jurídicos
Excluídas as cláusulas referidas nos factos I) e j), não existem normas supletivas legais aplicáveis que definam o que se deve entender por viagem e por cancelamento de viagem. O regime decorrente do Decreto-lei nº 17/2018, de 8.3., não contém tais definições, o mesmo sucedendo com o Regulamento (EU) nº 261/2004, o qual rege sobre estabelece regras comuns para a indemnização e a assistência aos passageiros dos transportes aéreos em caso de recusa de embarque e de cancelamento ou atraso considerável dos voos.
Inexistindo normas supletivas, há que recorrer às regras de integração dos negócios jurídicos.
Sobre a densificação deste regime, relevam os seguintes contributos doutrinários.
Ana Filipa Morais Antunes, Comentário à Lei das Cláusulas Contratuais Gerais, p. 196:
«Por sua vez, a integração do contrato segundo o regime comum pressupõe a existência de uma lacuna negocial, portanto, de um aspeto essencial do contrato carecido de regulamentação e determina, a final, a consideração da denominada vontade conjetural ou hipotética das pares, isto é, a vontade que as partes teriam manifestado se houvessem antecipado o vício da cláusula e a correspondente ineficácia negocial (sancionada com a inexistência jurídica ou com a nulidade negocial, em função da tese propugnada quanto ao desvalor jurídico do ato). Nas palavras da lei, “a vontade que as partes teriam tido se houvessem previsto o ponto omisso” (cf. artigo 239º, n1ª parte do CC). A regra do apelo à vontade conjetural cede, no entanto, em termos erais, na eventualidade de ser outra a solução imposta pelos ditames da boa fé (cf. artigo 239º, 2ª parte do CC).»
José Manuel de Araújo Barros, Cláusulas Contratuais Gerais, DL nº 446/85- Anotado, p. 132:
«Por outro lado, quanto à substituição da parte do contrato afetada pela exclusão, que na lei alemã se faz apenas com recurso às disposições legais supletivas, opera-se aqui também com a aplicação das regras de integração dos negócios jurídicos. O que é de louvar e tem pleno cabimento, em coerência com a regra geral do artigo 239º do Código Civil. Anote-se, no entanto, que só dificilmente nos veremos reconduzidos à hipótese do recurso à vontade conjetural das partes, já que a do predisponente não é hipotética nem é recuperável, por se encontrar plasmada na própria cláusula que foi excluída. De qualquer modo, sempre se poderá indagar de uma vontade sucedânea saquela, convergente com a do aderente ao contrato.»
Em Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, 2014, p. 551:
«Seja como for cabe realçar que o juiz não pode emitir simplesmente o seu próprio juízo, mas tomar por base o texto e situar-se no contexto do negócio em causa. Em princípio, num comum contrato bilateral de troca, na falta de elementos que lhe permitam concluir com razoável segurança que as as partes concretas teriam efetivamente consagrado certa solução se tivessem pensado no assunto (vontade hipotética quase real), ele deve prioritariamente procurar determinar o que as mesmas partes  que definiram o conteúdo conhecido do negócio, agindo de forma coerente, como pessoas razoáveis e de boa fé, e ponderando os interesses em jogo, teriam acordado de houvessem previsto o ponto em causa; ou noutros termos, deve procurar o modo como uma pessoa normal, razoável e de boa fé, pertencente ao círculo comum de ambas as partes, se for o caso, integraria a lacuna.»
Por sua vez, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.12.2001, Abel Freire, 02B1814, afirmou-se que excluídas, por falta de comunicação, as cláusulas contratuais gerais que o integravam, o contrato deve valer com o sentido que um declaratário normal lhe atribuiria perante as restantes cláusulas não excluídas.
Assim, apelando ao modo como uma pessoa normal, razoável e de boa fé configuraria as definições de viagem e de cancelamento de viagem no âmbito de uma seguro de viagem - num contexto em que os clientes  adquiriram um “pacote de viagem” que se iniciava na cidade do Porto  no dia 11.8.2018, passava pelas cidades americanas de Newark e de S. Francisco, passando por Honolulu, no Havai e com regresso no dia 1.9.2018 – cremos que a noção de viagem abarca unitariamente todo o itinerário programado desde a saída até ao regresso. De forma mais concretizada, uma pessoa colocada no lugar dos autores diria, no âmbito das suas relações sociais, que estava a programar e a adquirir uma viagem aos EUA e não diria que estava a programar uma viagem a Newark, outra a São Fransico e ainda outra ao Hawai. Uma viagem pode ser integrada por vários voos e vários destinos, sendo que vários destinos não comportam várias viagens mas sim vários voos/deslocações. De tal modo que o cancelamento de voos tem um regime próprio na União Europeia (cf. supra).
No fundo,  o que os Autores pretendem no presente processo é reagir ao cancelamento do voo de São Francisco para Honolulu, na sequência do furacão Lane. Não está em causa o cancelamento da viagem, a qual os autores realizaram embora – por força do cancelamento do voo para Honolulu – a mesma não tenha integrado um dos destinos inicialmente programados. No limite e na própria lógica dos autores (que não acolhemos), haveria – quanto muito – um cancelamento de viagem  parcial ou alteração da viagem e não um cancelamento de viagem tout court.
Mesmo para o cidadão comum é facilmente configurável a distinção entre o cancelamento de uma viagem (não chega a iniciar-se) do cancelamento de um voo, sendo que só é configurável sobreposição destes conceitos quando a viagem tem um só destino, o que não é o caso.
Assim sendo, não se afigura que a vontade conjetural das partes fosse no sentido de configurar o risco de cancelamento de viagem em termos deste se sobrepor ao  cancelamento de um voo para um de vários destinos que se integram na mesma viagem.
Por todo o exposto,  não ocorre o sinistro prevenido na apólice, razão da improcedência da ação.
A fundamentação autónoma da condenação em custas só se tornará necessária se existir controvérsia no processo a esse propósito (cf. art. 154º, nº1, do Código de Processo Civil; Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs. 303/2010, de 14.7.2010, Vítor Gomes, e 708/2013, de 15.10.2013, Maria João Antunes).

DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida na parte em que julgou improcedente a ação.
Custas pelos apelantes na vertente de custas de parte (Artigos 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº6 e 663º, nº2, do Código de Processo Civil).

Lisboa, 24.5.2022
Luís Filipe Sousa
José Capacete
Carlos Oliveira
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[1] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª ed., 2018, p. 115.
[2] Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 119.
Neste sentido, cf. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13, de 10.12.2015, Melo Lima, 677/12, de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, de 17.11.2016, Ana Luísa Geraldes, 861/13, de 22.2.2017, Ribeiro Cardoso, 1519/15, de 25.10.2018, Hélder Almeida, 3788/14, de 18.3.2021, Oliveira Abreu, 214/18. O tribunal de recurso não pode conhecer de questões novas sob pena de violação do contraditório e do direito de defesa da parte contrária (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.12.2014, Fonseca Ramos, 971/12).
[3] Cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 21.3.2018, Ferreira Pinto, 5074/15, de 12.7.2018, Ferreira Pinto, 167/11, de 11.9.2019, Ribeiro Cardoso, 42/18, de 3.10.2019, Rosa Tching, 77/06, de 5.2.2020, Pinto de Oliveira, ECLI:PT:STJ:2020:3920.14.1TCLRS.S1, de 4.6.2020, Rijo Ferreira, 1519/18, de 9.2.2021, Maria João Tomé, 26069/18, de 11.2.2021, Graça Trigo, 4279/17, de 6.5.2021, Pinto Oliveira, 618/18, de 18.1.2022, Maria Vaz Tomé, 701/19.
[4] Cf.: Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 24.4.2012, Beça Pereira, 219/10, de 14.1.2014, Henrique Antunes, 6628/10, de 27.5.2014, Moreira do Carmo, 1024/12; Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 3.10.2019, Paulo Reis, 582/17; Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 23.1.2020, Tomé Gomes, ECLI:PT:STJ:2020:4172.16.4T8FNC.L1.S1., de 24.9.2020, Graça Trigo, 127.16, ECLI, de 19.5.2021, Júlio Gomes, 1429/18, de 14.7.2021, Fernando Baptista, 65/18; Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 14.7.2020, Rita Romeira, 1429/18, de 12.4.2021, Eusébio Almeida, 6775/19.