Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2160/22.0T8SNT-H.L1-1
Relator: MANUELA ESPADANEIRA LOPES
Descritores: SUSPENSÃO DE ENTREGA JUDICIAL
CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
LEIS TEMPORÁRIAS COVID19
CADUCIDADE DA LEI
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I- Do disposto no art.º 6º-E, nº 7, alínea b), da Lei nº 1-A/2020, de 19/3, resulta que a suspensão das diligências de entrega judicial da casa de morada de família em processo executivo e de insolvência opera ope legis.
II- Não tendo o aludido normativo sido revogado pelo Dec. Lei nº 66-A/2022, de 30 de Setembro, nem se podendo concluir pela respectiva caducidade, o mesmo mantém-se actualmente em vigor.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência as Juízas na Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório
B… e seu marido, D…, apresentaram-se à insolvência, tendo, por sentença proferida em 08/02/2022 e transitada em julgado, sido declarados insolventes.
Indicaram na petição inicial que residem na Rua Impasse …, morada onde foi fixada residência aos mesmos na referida sentença.
Tal imóvel foi apreendido para a massa insolvente.
Em 02/12/2022 foi proferido despacho determinando a notificação dos insolventes para, “no prazo máximo de 60 dias, improrrogável, entregarem ao administrador de insolvência o imóvel correspondente ao Prédio Urbano - Fracção autónoma “AT” - Habitação no … andar D, sito em Impasse …, na Conservatória do Registo Predial de …, freguesia de …, sob o n.º .. – AT, correspondente à Verba n.º 1 do auto de apreensão”.
Inconformados com tal decisão, os devedores interpuseram recurso, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
1.ª: A Lei n.º 13-B/2021, de 5 de Abril determinou a cessação do regime de suspensão de prazos processuais e procedimentais adoptado no âmbito da pandemia da doença COVID-19, alterando a Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, tendo entrado em vigor no dia 6 de Abril de 2021 (Artigo 7.º), sendo que, ao mesmo tempo em que revoga os artigos 6.º-B e 6.º-C da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, na sua redacção “actual”, vem designadamente e também aditar à Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, o artigo 6.º-E, cujo n.º 7, alínea a) determina a suspensão, ope legis, de todos “os actos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família”.
2.ª: Efectivamente, cotejando a Lei n.º 13-B/2021, de 5 de Abril com a Lei nº 4-B/2021, de 1 de Fevereiro, vemos que, apesar de revogar a primeira o Artigo 6.º-B da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março - com a redacção introduzida pela Lei nº 4-B/2021, de 1 de Fevereiro -, vem porém e no essencial manter [agora no art.º Artigo 6.º-E, nº 7, alínea b)] a SUSPENSÃO já anteriormente decretada pelo nº 11 do Artº 6-B, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março - com a redacção introduzida pela Lei n.º 4-B/2021,de 1 de Fevereiro -, de todos “os actos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família”.
3.ª: Tendo presente o conteúdo dos dois normativos acabados de transcrever [o 6-E, nº 7, alínea b), e o revogado n.º 11 do Artº 6-B, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março], temos assim que o “nó górdio” da questão da presente Apelação tem a ver com o facto do Mm.º Juiz do Tribunal “a quo” ter entendido, erradamente, que a alínea b), do art.º 6º-E, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, se encontra revogado pelo Decreto-Lei 66-A/2022,de 30 de Setembro, que determinou a cessação de vigência de decretos-leis publicados, no âmbito da pandemia da doença COVID-19, e que entrou em vigor em 1 de Outubro de 2022 e o qual “ Considera revogados diversos decretos-leis aprovados no âmbito da pandemia da doença COVID -19, determinando expressamente que os mesmos não se encontram em vigor, em razão de caducidade, revogação tácita anterior ou revogação pelo presente decreto -lei ”.
4.ª: Porém, o art.º 6.º-E, nº 7, alínea b) da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, não foi visado ou atingido pelo Decreto-Lei 66-A/2022, de 30 de Setembro.
5.ª: Sendo certo que refere o n.º 7, do art.º 6.º-E, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, que “Ficam suspensos no decurso do período de vigência do regime excecional e transitório previsto no presente artigo”, a verdade é que o período de vigência do regime excecional e transitório visado é o que indica o n.º 1. do mesmo art.º 6.º-E, a saber, aquele em que permanecer a “situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19”.
6.ª: Ora, nada permite concluir que a “situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19”, deixou já de existir.
7.ª: Na realidade, tudo obriga a considerar que continuamos ainda hoje a viver em estado de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica, ainda que, é verdade, já não em período de estado de emergência - a qual se iniciou em Portugal ao abrigo do Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de Março, tendo sido objecto de diversas renovações, v.g. operadas pelo Decreto n.º 17-A/2020, de 2 de Abril, pelo Decreto n.º 20-A/2020, de 17 de Abril e pelo Decreto do Presidente da República n.º 41-A/2021, de 14 de Abril, mas já cessado - , de calamidade - estado que foi decretado pelo Governo através da Resolução do Conselho de Ministros n.º 33-A/2020, de 30 de abril, aprovada ao abrigo do artigo 19.º da Lei de Bases da Protecção Civil, aprovada pela Lei n.º 27/2006, de 3 de Julho, prorrogada por diversas vezes também, mas já cessado - , ou sequer de alerta - estado v.g. decretado e regulamentado através de Resolução do Conselho de Ministros n.º 73-A/2022, de 30 de Agosto e para vigorar até às 23:59 h do dia 30 de Setembro de 2022.
8.ª: Em suma e no que verdadeiramente interessa, nada permite concluir, como o fez o Mm.º Juiz do Tribunal “a quo” que a alínea b), do nº 7, do art.º 6º-E, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, e aditado pela Lei n.º 13-B/2021, de 5 de Abril, não se encontra já em vigor.
9.ª: Ademais, e ao contrário do que afirma o Mm.º Juiz do Tribunal “a quo” a Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, não consubstancia uma lei temporária, que é limitada a um determinado período de vigência, ou porque o tempo seja nela prefixado ou se circunscreva a duração de certo acontecimento previamente identificado, mas sim a uma lei de emergência, porque prima facie destinada a vigorar enquanto se mantiverem as circunstâncias extraordinárias ou excepcionais e de interesse público que determinou a sua aprovação, circunstâncias de resto de duração indefinida, mais ou menos longa, as quais não deixaram já e em absoluto de existir, de todo.
10.ª: O art.º 6.º-E, n.º 7, alínea b), determina que no decurso do período de vigência do regime excepcional e transitório se encontram suspensos “Os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família”.
11.ª: O imóvel dos autos constitui a casa de morada de família dos ora Recorrentes, não dispondo estes de qualquer outra habitação, tal como já resulta provado no autos.
12.ª: O art.º 6.º-E, n.º 7, alínea b), da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, que é ope legis, não foi revogado pelo Decreto-Lei 66-A/2022, de 30 de Setembro, mantendo-se em vigor, o que deverá suceder enquanto permanecer a “situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19”.
13.ª: O Mm.º Juiz do Tribunal “a quo” interpretou e aplicou erradamente a alínea b), do n.º 7, do art.º 6º-E, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, e aditado pela Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril, e ainda o Decreto-Lei 66-A/2022, de 30 de Setembro.
Terminou peticionando que seja revogada a decisão recorrida na parte que decidiu a entrega do imóvel no prazo de 60 dias, ordenando-se, em consequência, a suspensão da entrega efectiva do imóvel dos autos por o mesmo constituir a casa de morada de família dos Recorrentes, até que o art.º 6.º-E, n.º 7, alínea b), da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, seja efectivamente revogado.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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O Mmº Juíz a quo proferiu despacho admitindo o recurso, o qual é admissível e foi recebido na forma e efeitos devidos.
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Foi proferida decisão singular pela relatora, tendo decidido pela procedência da apelação e, consequentemente, revogado a decisão recorrida, que se substituiu por outra, de suspensão da entrega da fracção apreendida nos autos enquanto vigorar o disposto no artigo 6º-E, nº7, al. b), da Lei nº 1-A/2020, de 19/3, aditado pela Lei nº 13-B/2021, de 5 de Abril.     
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Não conformado com a decisão da relatora, veio o credor hipotecário Banco C…, SA, requerer a realização de conferência, invocando, em síntese, que a caducidade da Lei nº 1-A/2020, de 19/03, resulta evidenciada da cessação das situações de vigência do estado de emergência, do estado de calamidade e, por fim, do estado de alerta. Diz que inexiste fundamento para que se considere estar em vigor uma norma com origem no estado de emergência, ainda que não tenha sido formalmente revogada pelo órgão a quem compete, i.e. Assembleia da República, quando toda a demais legislação proveniente do órgão executivo foi já revogada.  
Sustentou que, a defender-se o entendimento que resulta da decisão singular proferida pela relatora, estão a ser violados os princípios de proporcionalidade e de acesso ao direito e do direito à propriedade privada constitucionalmente previstos nos artigos 18/2, 19/1, 20/1, 4 e 5 e 62.º da Constituição da República Portuguesa, pelo que sempre resultará a inconstitucionalidade da Lei 1-A/2020.
Concluiu que a reclamação deve ser submetida à conferência e consequentemente ser proferido Acórdão que julgue improcedente o recurso e confirme a decisão de primeira instância.
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Os recorrentes apresentaram resposta, sustentando que o Acórdão a ser proferido deve declarar totalmente improcedente a reclamação deduzida pelo recorrido, acompanhando o entendimento sufragado na decisão singular e que a alegada inconstitucionalidade da Lei nº 1-A/2020, de 19 de Março, não tem qualquer sustentação legal.
Requereram a junção de um documento – relatório do Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge relativo à Evolução dos números de casos de Covid em Portugal à data de 15/02/2023.
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Posteriormente, através de requerimento de 06/03/2023, vieram apresentar um outro relatório do referido Instituto relativo à Evolução dos números de casos de Covid em Portugal à data de 23/02/2023.
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O credor Banco C.., SA, veio requerer o desentranhamento do requerimento apresentado pelos recorrentes, invocando tratar-se de um acto ilegal.
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Por sua vez, os recorrentes vieram opor-se ao pedido de desentranhamento.
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Em 28/03/2023, vieram os recorrentes “em complemento ao articulado de Resposta à Reclamação para a Conferência apresentada pelo Recorrido Banco C…, S.A.”, apresentar um outro articulado em que voltaram a sustentar a manutenção em vigor da Lei nº 1-A/2020, de 19 de Março.
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O recorrido Banco C…, SA, veio requerer o desentranhamento do aludido articulado, sustentando a sua inadmissibilidade.
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Foram colhidos os vistos das Exmªs Adjuntas.
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II– OBJECTO DO RECURSO
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações do recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (artigo 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608º, nº 2, ex vi do artigo 663º, nº 2, do mesmo Código). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.
Assim, face das conclusões apresentadas pelos recorrentes são as seguintes as questões que importa analisar e decidir:
- como questões prévias – da admissibilidade do articulado de resposta apresentado pelos recorrentes, bem como da junção do documento requerida com o mesmo, tal como da junção do documento apresentado em 06/03/2023 e bem assim do articulado em que se vieram opor ao pedido de desentranhamento e do requerimento apresentado pelos recorrentes em 28/03/2023 e
- se o despacho que determinou a notificação dos insolventes para procederem à entrega ao Administrador da Insolvência da fracção apreendida nos autos deve ser mantido por força da caducidade da lei que determinava a suspensão e da inconstitucionalidade da sua aplicação por violação do princípio da proporcionalidade e do direito à propriedade e do acesso ao direito, ou se tal despacho revogado e substituído por outro que declare suspensa a entrega de tal imóvel.
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III- Fundamentação
A) De Facto
O tribunal de primeira instância considerou provados os seguintes factos:
1. B… e o seu marido, D…, apresentaram-se à insolvência em 04.02.2022, e requereram simultaneamente a concessão do benefício de exoneração do passivo restante, tendo sido proferido despacho inicial em 02.05.2022;
2. Por sentença proferida em 08.02.2022 foi declarada a insolvência do acima identificados devedores;
3. Em 24.03.2022 o AI apresentou o relatório previsto no art.º 155º, do CIRE e propôs o prosseguimento dos autos para a liquidação do activo;
4. Em 24.03.2022 o AI apresentou o auto de apreensão de bens, descrevendo como verba n.º 1 o imóvel correspondente ao Prédio Urbano -Fracção autónoma … - Habitação no .. andar D, sito em Impasse …, descrito na Conservatória do Registo Predial de …, freguesia de … sob o n.º .. – AT;
5. Por carta registada, remetida a 25.03.2022, recebida pelos devedores em 29.03.2022, o AI notificou-os para procederem à entrega do imóvel no prazo máximo de 30 dias;
6. O registo da declaração de insolvência mostra-se efectuado na descrição predial desde 31.03.2022;
7. Por requerimento apresentado a 06.04.2022, na sequência do recebimento da carta supra aludida, os devedores solicitaram que o teor da carta remetida pelo AI ficasse destituída de efeito e fossem os mesmos nomeados depositários até à data da concretização da compra e venda do mesmo (por se tratar da casa de habitação).
Mais mencionaram que a entrega do imóvel se encontra prejudicada na sequência do o teor da alínea b) do n.º 7 do art.º 6-E da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março (RESPOSTA À SITUAÇÃO EPIDEMIOLÓGICA PROVOCADA PELO CORONAVÍRUS SARS-COV-2), com a redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13-B/2021, de 05 de Abril, que determinou a suspensão de todos os actos a realizar em sede de processo de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família, razão pela qual também se deveria considerar a carta em apreço sem qualquer efeito;
8. Por despacho proferido a 02.05.2022 foi determinado o prosseguimento dos autos para liquidação do activo, foi proferido despacho inicial no âmbito da exoneração do passivo restante, fixando o montante a ceder pelos devedores em tudo o que exceda o equivalente a 2 RMMG, bem como a quantia que exceder o correspondente a 75% dos subsídios de férias e de natal recebidos pelos insolventes;
9. No mesmo despacho, foi determinado que os insolventes ficassem depositários do imóvel até à concretização da venda, conquanto não criassem entraves no exercício de funções pelo AI, sendo ainda certo que, tendo promovido a própria apresentação à insolvência estavam cientes da necessidade de entrega do imóvel a breve prazo;
10. Mediante requerimento de 09.06.2022, o AI comunicou que, apesar de ter combinado previamente com os devedores uma visita de interessados na aquisição do imóvel, não foi dado o acesso ao imóvel, apesar de várias tentativas de comunicação com os insolventes estes não permitiram a efetivação das diligências;
11. Mediante requerimento de 22.06.2022, os devedores justificaram a ocorrência relatada com a ida a urgência hospitalar, juntando declaração de comparência;
12. Em 28.07.2022 os requerentes solicitaram a destituição do AI com fundamento em justa causa, que foi indeferida;
13. Por requerimento de 05.09.2022, os devedores requereram a suspensão do leilão eletrónico em curso, e a suspensão imediata do processo de venda do imóvel dos autos nos termos e ao abrigo do n.º 8 do art.º 6.º-E da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, ao que os credores se opuseram;
14. Mediante R/21.09.2022, os devedores informaram que, por carta de 19.09.2022, o AI solicitou-lhes que procedessem à entrega das chaves do imóvel no prazo máximo de 20 dias, entregando-o mesmo livre de pessoas e bens, e solicitaram ao tribunal que desse sem efeito o teor da carta, declarando que o imóvel constitui a casa de morada de família dos Insolventes e que, por via do disposto na alínea b) do n.º 7 do art.º 6.º-E da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, se encontram suspensos todos os atos relacionados com a entrega do imóvel dos autos, desobrigando, por consequência, os Insolventes de entregar as chaves do mesmo até que seja revogada a disposição legal atrás referida;
15. Por despacho de 30.09.2022, foi indeferido o pedido de destituição do AI (decisão sob recurso), bem como indeferiu o pedido de ser declarada sem efeito a carta remetida e ordenou a notificação dos insolventes para, no prazo de 30 dias, procederem à entrega do imóvel apreendido e objeto de liquidação neste processo ao AI (decisão sob recurso);
16. O leilão electrónico para venda do imóvel terminou no dia 14 de Setembro de 2022, com os seguintes resultados: A Verba n.º 1, Prédio Urbano – Fracção autónoma … - Habitação no 9º andar D, sito em Impasse …, descrito na Conservatória do Registo Predial de …, freguesia de … sob o n.º .. - AT e inscrito na respetiva matriz urbana sob o artigo n.º .. – AT, da União das freguesias do …, Concelho de …, teve a melhor proposta no valor de €125.184,85 (cento vinte cinco mil cento oitenta quatro euros e oitenta cinco cêntimos) apresentada por Q…, Compra e Revenda de Imoveis, Lda, NIPC-…, sede na Rua …;
17. A proposta para a Verba n.º 1, foi aceite lavrado o Auto de Aceitação da Proposta, depositado na conta da massa Insolvente o valor de 20% do preço da proposta, ou seja, a quantia de €25.036,97 (vinte cinco mil trinta seis euros noventa e sete cêntimos) como caução e princípio de pagamento;
18. O montante dos créditos reclamados ascende ao montante de €220.106,17;
19. A Insolvente recebe uma pensão de sobrevivência no valor mensal de €296,28;
20. O Insolvente recebe uma pensão de reforma por velhice no valor mensal de €626,55;
21. Os insolventes residem no imóvel na sequência da nomeação como depositários, sem se encontrarem a pagar qualquer quantia à massa insolvente.
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B) De Direito
i) questão prévia - da admissibilidade do articulado de resposta apresentado pelos recorrentes, bem como da junção do documento requerida com o mesmo, tal como da junção do documento apresentado em 06/03/2023 e bem assim da admissibilidade do requerimento apresentado pelos recorrentes em 28/03/2023:
Resulta do disposto no art.º 652º do C.P.Civil que ao relator incumbe, entre outras, a função de julgar sumariamente o objecto do recurso, nos termos previstos no art.º 656º.
Por sua vez, dispõe o nº 3 do mesmo artigo: “Salvo o disposto no n.º 6 do artigo 641º - situação relativa à reclamação pela não admissão do recurso ou pela sua retenção D (esclarecimento nosso) - quando a parte se considere prejudicada por qualquer despacho do relator, que não seja de mero expediente, pode requerer que sobre a matéria do despacho recaia um acórdão; o relator deve submeter o caso à conferência, depois de ouvida a parte contrária.
Tendo o recorrido Banco C… requerido que recaia acórdão sobre a matéria decida pela relatora, deve o caso ser submetido à conferência, depois de ouvida a parte contrária, pelo que in casu os recorrentes têm o direito de se pronunciar nos termos em que o fizeram através do articulado apresentado em 03/03/2023.
Mas se assim é no que respeita a este requerimento, já o mesmo não acontece com o articulado apresentado pelos mesmos em 28/03/2023, articulado esse no qual os recorrentes apresentam “em complemento ao articulado de Resposta à Reclamação para a Conferência apresentada pelo Recorrido Banco C…, S.A.”.
Os recorrentes exerceram o contraditório através da resposta que apresentaram anteriormente e que supra foi admitida, não estando prevista a apresentação de qualquer outro articulado, nem em complemento do anterior e muito para além do prazo de 10 dias a contar da notificação do requerimento em que o recorrido veio requerer a submissão do caso a conferência.
No que concerne aos documentos cuja junção foi requerida pelos recorrentes, de acordo com o dispõe o art.º 651º, do C.P.Civil, aplicável ex vi do art.º 17º do CIRE, as partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância. Por sua vez, prevê o referido artigo 425º do mesmo diploma que: “Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.”
O disposto no nº 1 do artigo 651º não afasta o princípio geral relativo à junção de documentos: Só devem ser admitidos aos autos documentos para fazer prova de fundamentos da acção ou da defesa e não quaisquer outros irrelevantes para a boa decisão da causa.
Salvo o devido respeito por opinião contrária, os documentos em causa não assumem relevância para a decisão porquanto não está aqui em causa saber, de acordo com as estimativas, qual o índice de transmissibilidade, ou R(t), do vírus que provoca a covid-19. Trata-se tão só de decidir se a entrega do imóvel apreendido para a massa insolvente não está suspensa face à caducidade da lei que determinava a suspensão e da inconstitucionalidade da sua aplicação por violação do princípio da proporcionalidade e do direito à propriedade e ainda por violação do princípio da igualdade.
Deste modo, dos documentos em causa não resulta a necessidade, nem a pertinência dos mesmos para a decisão a proferir.
Pelo exposto, decide-se não admitir a junção aos autos do articulado apresentado pelos recorrentes em 28/03/2023, nem dos documentos apresentados pelos mesmos com a resposta de 03/03/2023 e em 06/03/2023.
Custas do incidente pelos recorrentes, fixando-se taxa de justiça em 2 Ucs.
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ii) Da inconstitucionalidade:
Por uma questão de precedência, vamos começar por nos pronunciarmos acerca da inconstitucionalidade invocada pelo credor hipotecário recorrido Banco C….
Sustentou este que, a defender-se o entendimento que resulta da decisão singular proferida pela relatora, estão a ser violados os princípios de proporcionalidade e de acesso ao direito e do direito à propriedade privada constitucionalmente previstos nos artigos 18/2, 19/1, 20/1, 4 e 5 e 62.º da Constituição da República Portuguesa, pelo que sempre resultará a inconstitucionalidade da Lei 1-A/2020.
O que o recorrente invocou é que a situação de facto que levou sucessivamente à declaração de estado de emergência, de calamidade e de alerta, já não existe mais.
Salvo o devido respeito por opinião contrária, uma norma não passa a ser inconstitucional pelo facto de o respectivo fundamento ter deixado de se verificar.
A inconstitucionalidade procede da desconformidade de uma determinada norma, em si, à Constituição, o que não se confunde com a cessação da situação de facto que determinou a emissão legislativa da referida norma.
Relativamente à invocação da inconstitucionalidade por violação do princípio da proporcionalidade, o que se verificou foi que o legislador entendeu, face à situação de pandemia, estabelecer “medidas excecionais e temporárias” destinadas a fazer face à situação criada pela pandemia originada pelo Covid 19.
Como se diz no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 468/2022, publicado no DR, 1ª série, de 22 de Julho de 2022:
«Como é sabido, o princípio da proporcionalidade, como critério de apreciação de leis restritivas exige a averiguação dos seguintes requisitos: adequação ou idoneidade, exigibilidade ou necessidade e proporcionalidade em sentido restrito ou não desrazoabilidade.
Na síntese de Gomes Canotilho e Vital Moreira, «o princípio da proporcionalidade (também chamado princípio da proibição do excesso) desdobra-se em três subprincípios: (a) princípio da adequação (também designado por princípio da idoneidade), isto é, as medidas restritivas legalmente previstas devem revelar -se como meio adequado para a prossecução dos fins visados pela lei (salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); (b) princípio da exigibilidade (também chamado princípio da necessidade ou da indispensabilidade), ou seja, as medidas restritivas previstas na lei devem revelar -se necessárias (tornaram-se exigíveis), porque os fins visados pela lei não podiam ser obtidos por outros meios menos onerosos para os direitos, liberdades e garantias; (c) princípio da proporcionalidade em sentido restrito, que significa que os meios legais restritivos e os fins obtidos devem situar -se numa «justa medida», impedindo -se a adoção de medidas legais restritivas desproporcionadas, excessivas, em relação aos fins obtidos» — cf. Constituição…, cit., pp. 392 -393.
A mesma orientação tem expressão na jurisprudência do Tribunal Constitucional: «o princípio da proibição do excesso analisa -se em três subprincípios: idoneidade, exigibilidade e proporcionalidade. O subprincípio da idoneidade determina que o meio restritivo escolhido pelo legislador não pode ser inadequado ou inepto para atingir a finalidade a que se destina; caso contrário, admitir- -se -ia um sacrifício frívolo de valor constitucional. O subprincípio da exigibilidade determina que o meio escolhido pelo legislador não pode ser mais restritivo do que o indispensável para atingir a finalidade a que se destina; caso contrário, admitir -se -ia um sacrifício desnecessário de valor constitucional. Finalmente, o subprincípio da proporcionalidade determina que os fins alcançados pela medida devem, tudo visto e ponderado, justificar o emprego do meio restritivo; o contrário seria admitir soluções legislativas que importem um sacrifício líquido de valor constitucional» (Acórdão n.º 123/2018).»  
Como se disse, está em causa uma lei em que se encontram previstas medidas destinadas a fazer face a uma situação excepcional e não é o facto de o fundamento que esteve na base da mesma, segundo o credor/recorrido, se ter deixado de verificar que torna a lei violadora de qualquer destes subprincípios.
Também não se nos afigura a verificação de inconstitucionalidade por violação do princípio do acesso ao direito estabelecido no art.º 20º da Constituição. O recorrido não invoca qualquer factualidade concreta susceptível de ser subsumível à violação do ali previsto e o mesmo se diga quanto à invocada inconstitucionalidade por violação do direito de propriedade privada. Da suspensão da entrega da casa de morada de família prevista no artigo 6º-E, nº7, al. b) da Lei nº 1-A/2020, de 19/3, aditado pela Lei nº 13-B/2021, de 5 de Abril, não resulta a impossibilidade de o credor vir a ver o seu crédito satisfeito, mas tão só a suspensão, na vigência da lei, da entrega do imóvel apreendido à ordem da massa insolvente (e nem sequer da venda do mesmo).
Não se nos afigura, assim, a verificação das invocadas inconstitucionalidades.
*
Da caducidade do artigo 6.º-E, n.º 7, alínea b), da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, na redação da Lei n.º 13-B/2021, de 4 de Abril:
A Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, que veio estabelecer medidas excepcionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, na redacção introduzida pela Lei n.º 4-A/2020, de 6 de Abril, previa que:
“Art.º 7º
Prazos e diligências
(…)
2 - O regime previsto no presente artigo cessa em data a definir por decreto-lei, no qual se declara o termo da situação excecional.
(…)
6 - Ficam também suspensos:
a) O prazo de apresentação do devedor à insolvência, previsto no n.º 1 do artigo 18.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas;
b) Quaisquer atos a realizar em sede de processo executivo, designadamente os referentes a vendas, concurso de credores, entregas judiciais de imóveis e diligências de penhora e seus atos preparatórios, com exceção daqueles que causem prejuízo grave à subsistência do exequente ou cuja não realização lhe provoque prejuízo irreparável, nos termos previstos no n.º 2 do artigo 137.º do Código de Processo Civil, prejuízo esse que depende de prévia decisão judicial. (…)”.
O referido art.º 7º foi revogado pela Lei n.º 16/2020, de 29 de Maio, que aditou à Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, o art.º 6º-A, que, no que aqui importa, previa o seguinte:
“Regime processual transitório e excecional
(…)
6 - Ficam suspensos no decurso do período de vigência do regime excecional e transitório:
a) O prazo de apresentação do devedor à insolvência, previsto no n.º 1 do artigo 18.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março;
b) Os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família;
c) As ações de despejo, os procedimentos especiais de despejo e os processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa;
d) Os prazos de prescrição e de caducidade relativos aos processos e procedimentos referidos nas alíneas anteriores;
e) Os prazos de prescrição e de caducidade relativos aos processos cujas diligências não possam ser feitas nos termos da alínea b) do n.º 2, da alínea b) do n.º 3 ou do n.º 7.
(…)”.
O referido art.º 6º-A foi revogado pela Lei n.º 4-B/2021, de 1 de Fevereiro, que aditou à Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, o art.º 6º-B, que previa, na parte aqui relevante, o seguinte:
“Artigo 6.º-B
Prazos e diligências
(…)
11 - São igualmente suspensos os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família ou de entrega do locado, designadamente, no âmbito das ações de despejo, dos procedimentos especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando, por requerimento do arrendatário ou do ex-arrendatário e ouvida a contraparte, venha a ser proferida decisão que confirme que tais atos o colocam em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa.
(…)”
A Lei n.º 13-B/2021, de 5 de Abril, que procedeu à décima alteração à referida Lei n.º 1-A/2020, veio determinar a Cessação do regime de suspensão de prazos processuais e procedimentais adoptado no âmbito da pandemia da doença COVID-19, entrou em vigor no dia 6 de Abril de 2021 - artigo 7º. Esta mesma lei, ao mesmo tempo em que revogou os artigos 6.º-B e 6.º-C da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, veio também aditar à Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, o artigo 6.º-E, com a seguinte redacção:
“Artigo 6.º-E
Regime processual excepcional e transitório
1– No decurso da situação excepcional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infecção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, as diligências a realizar no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal regem-se pelo regime excepcional e transitório previsto no presente artigo.
2–As audiências de discussão e julgamento, bem como outras diligências que importem inquirição de testemunhas, realizam-se:
(...)
7–Ficam suspensos no decurso do período de vigência do regime excepcional e transitório previsto no presente artigo:
a)- O prazo de apresentação do devedor à insolvência, previsto no n.º 1 do artigo 18.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março;
b)- Os actos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família;
c)- Os actos de execução da entrega do local arrendado, no âmbito das acções de despejo, dos procedimentos especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa;
(...)
8–Nos casos em que os actos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência referentes a vendas e entregas judiciais de imóveis sejam susceptíveis de causar prejuízo à subsistência do executado ou do declarado insolvente, este pode requerer a suspensão da sua prática, desde que essa suspensão não cause prejuízo grave à subsistência do exequente ou dos credores do insolvente, ou um prejuízo irreparável, devendo o tribunal decidir o incidente no prazo de 10 dias, ouvida a parte contrária.
(...)
A Lei n.º 13-B/2021, de 5 de Abril,  apesar de revogar a Lei nº 4-B/2021, de 1 de Fevereiro, veio, assim, no essencial, manter - agora no art.º Artigo 6.º-E, nº 7, alíneas b) e c) -  a suspensão já anteriormente decretada pelo nº 11 do Artº 6-B, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março - com a redacção introduzida pela referida Lei n.º 4-B/2021,de 1 de Fevereiro.
Do disposto no art.º 6-E, nº7, alínea b), supra citado, resulta que a suspensão das diligências de entrega judicial da casa de morada de família em processo executivo e de insolvência opera ope legis. Pelo contrário, a suspensão de actos de execução da entrega do local arrendado, apenas terá lugar quando se revele que os referidos actos podem colocar o “obrigado” em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa, cabendo, neste caso, ao arrendatário o ónus de requerer e provar os factos concretos de onde resulte que, a concretizar-se a entrega do arrendado, ele ficará na aludida “situação de fragilidade por falta de habitação própria” ou que há uma "outra razão social imperiosa" também justificava da não entrega do locado - cfr neste sentido, entre outros, Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães, de 10/3/2022, Processo nº 2822/19.0T8VCT-A.G1, o qual pode ser consultado in www.dgsi.pt.
Face ao que resulta dos autos, não restam dúvidas que o imóvel cuja entrega foi determinada no despacho objecto de recurso se trata da casa de morada de família dos insolventes. É ali que os mesmos têm o centro da organização doméstica e social da respectiva família, recebendo a respectiva correspondência, conforme resulta dos documentos juntos com a petição inicial e onde lhe foi fixada residência aquando da declaração da insolvência. Trata-se do único imóvel apreendido para a massa insolvente.
Importa, então, decidir se, conforme entendeu o tribunal a quo, ocorreu a caducidade do artigo art.º 6.º-E em questão, ou se tal norma ainda se mantém em vigor.  
Consta do preambulo do DL 66-A/2022, de 30 de Setembro, que o mesmo veio proceder “à clarificação dos decretos-leis que ainda se encontram em vigor, bem como à eliminação das medidas que atualmente já não se revelam necessárias, através da determinação expressa de cessação de vigência de decretos-leis já caducos, anacrónicos ou ultrapassados pelo evoluir da pandemia.
Importa, contudo, garantir que as alterações promovidas a legislação anterior à pandemia pelos decretos-leis agora revogados não são afetadas. Assim, clarifica-se que a revogação promovida pelo presente decreto-lei tem os seus efeitos limitados aos decretos-leis aqui previstos, não afetando alterações a outros diplomas introduzidas por estes que agora se revogam. Desta forma, ganha-se em clareza e certeza jurídica, permitindo aos cidadãos saber — sem qualquer margem para dúvidas — qual a legislação relativa à pandemia da doença COVID-19 que se mantém aplicável. (…)”.
O art.º 6º E, nº 7, da Lei 1-A/2020 não é visado/atingido pelo DL 66-A/2022. Dispõe o art.º 1º deste diploma:
O presente decreto-lei:
a) Considera revogados diversos decretos-leis aprovados no âmbito da pandemia da doença COVID-19, determinando expressamente que os mesmos não se encontram em vigor, em razão de caducidade, revogação tácita anterior ou revogação pelo presente decreto-lei;
(…)”
Constam a seguir elencados os diplomas que são revogados pelo aludido decreto lei, não estando ali referido o referido art.º 6º-E, nº 7.
No que respeita à cessação da vigência da lei, estabelece o art.º 7º do C. Civil:
“1- Quando se destine a ter vigência temporária, a lei só deixa de vigorar se for revogada por outra lei.
2- A revogação pode resultar de declaração expressa, da incompatibilidade entre as novas disposições e as regras precedentes ou da circunstância de a nova lei regular toda a matéria da lei anterior.
3- A lei geral não revoga a lei especial, excepto se outra for a intenção inequívoca do legislador.
(…)”
Diz Baptista Machado, in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 25ª reimpressão, págs 165, 166:
 «Como modo de cessação da vigência da lei o art.º 7º apenas prevê a caducidade e a revogação. Outras formas possíveis seriam o desuso e o costume contrário. Já sabemos, porém, que o nosso legislador não quis reconhecer ao costume o valor de fonte de direito.
A caducidade strito sensu dá-se por superveniência de um facto (previsto pela própria lei que se destina a vigência temporária) ou pelo desaparecimento, em termos definitivos, daquela realidade que a lei se destina a regular. É frequente estabelecer-se numa lei que o regime nela estabelecido será revisto dentro de certo prazo. Passado o prazo sem que se verifique revisão, não cessa a vigência de tal lei por caducidade: ela continua em vigor até à sua substituição.
A revogação, essa pressupõe a entrada em vigor de uma nova lei (segundo o nosso legislador). A revogação pode ser expressa ou tácita, total (ab-rogação) ou parcial (derrogação). É expressa quando consta de declaração feita na lei posterior (fica revogado…), e tácita quando resulta da incompatibilidade entre as disposições novas e antigas, ou ainda quando a nova lei regula toda a matéria da lei anterior – substituição global (art.º 7º, 2). Porém, nos termos do art.º 7º, 3, a lei geral posterior não revoga a lei a lei especial anterior, salvo se “outra for a intenção inequívoca do legislador”.»   
Como se viu, não ocorreu a revogação expressa, nem tão pouco resulta que tenha tido lugar a revogação tácita da alínea b) do art.º 6º-E, nº 7.
É certo que, como o legislador expressamente declarou, as normas deste artigo consubstanciam um regime excepcional e temporário, mas, salvo o devido respeito por opinião contrária, não é possível afirmar que a “situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19”, já tenha deixado de existir de modo a que se conclua pela caducidade das aludidas normas.
Do facto de já haver cessado o estado de emergência - o qual se iniciou nos termos do Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de Março, tendo sido objecto de diversas renovações -, de calamidade - estado que foi decretado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 33-A/2020, de 30 de Abril, aprovada ao abrigo do artigo 19.º da Lei de Bases da Proteção Civil, aprovada pela Lei n.º 27/2006, de 3 de Julho, prorrogado por diversas vezes, mas também já cessado -, bem como o período de estado de alerta - estado v.g. decretado e regulamentado através de Resolução do Conselho de Ministros n.º 73-A/2022, de 30 de Agosto e para vigorar até às 23:59 h do dia 30 de Setembro de 2022 -, não resulta automaticamente a aludida caducidade. Da lei não resulta que o regime do art.º 6º-E, nº 7, als. b) e c) da Lei nº 1-A/2020, de 19/03, se destinasse a vigorar apenas enquanto vigorasse quaisquer dos aludidos estados e também não se pode dizer que a situação pandémica e os efeitos que da mesma resultaram e que estiveram subjacentes ao estabelecimento deste regime excepcional e temporário de tutela do direito à habitação tenham desaparecido totalmente.
Assim e tal como se entendeu no Acórdão desta Relação de 13/10/2022, relator: António Santos, o qual pode ser consultado in www.dgsi.pt:
“(…) nada permite concluir que a alínea c), do nº 7, do art.º 6º-E, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, e aditado pela Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril , não se encontra já em vigor, por ter a sua vigência cessado por aplicação do art.º 7º, nºs 1 e/ou 2, do CC”, também não se pode concluir que a alínea b) do mesmo nº 7 tenha caducado. 
Como se refere também no mesmo acórdão: “(…) em rigor, não consubstancia a Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março uma lei temporária [limitada a um determinado período de vigência, ou porque o tempo seja nela prefixado ou se circunscreva a duração de certo acontecimento previamente identificado]”.
Acresce que as dúvidas que se suscitam acerca da eventual caducidade do referido artigo 6º-E, nº 7, al. b) da Lei nº 1-A/2020 suscitar-se-ão de igual modo em relação ao disposto na alínea a) do mesmo normativo, o qual consagrou a suspensão do prazo de apresentação do devedor à insolvência, previsto no nº1 do artigo 18º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, situação em que a necessidade de segurança jurídica assume também enorme relevância, considerando as consequências que podem resultar para o devedor da não apresentação atempada à insolvência.
A propósito da necessária segurança jurídica e porque com ele também concordamos, transcrevemos parte da fundamentação do Acórdão da Relação de Lisboa de 23/02/2023, proferido no Proc. 16142/12.7T2SNT-F.L1-6, relator: Eduardo Petersen Silva e que pode também ser consultado in www.dgsi.pt:
“É verdade que passaram vários meses desde a publicação do Decreto-Lei 66-A/2022 e que a evolução relativamente à pandemia aparentemente é positiva, mas entendemos não alterar o juízo sobre a não caducidade do artigo 6º E da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, e aditado pela Lei n.º 13-B/2021, de 5 de Abril por uma razão, a saber, porque com um legislador que legisla com o propósito específico de clarificar a legislação que já caducou, seguramente mais munido de informação relevante em termos sanitários do que os tribunais, e portanto que legisla em função da certeza e segurança jurídica, terá esse legislador ponderado mesmo que a norma em vigor não tinha deixado de ter um fundamento factual a que se referir/aplicar, não cabendo então ao tribunal introduzir um elemento de incerteza na mesma apreciação, devendo outrossim em benefício da segurança jurídica esperar-se que o legislador venha a produzir nova legislação em que revogue as normas da legislação “pandémica” que já não tenham correspondência com a situação de facto real. É que, renova-se, o artigo 7º do Código Civil estabelece, na parte que aqui nos interessa, que1. Quando se não destine a ter vigência temporária, a lei só deixa de vigorar se for revogada por outra lei.
2. A revogação pode resultar de declaração expressa, da incompatibilidade entre as novas disposições e as regras precedentes ou da circunstância de a nova lei regular toda a matéria da lei anterior. Nenhuma destas situações ocorre no presente caso.”
Diga-se ainda que a Exposição de Motivos que consta da Proposta de Lei nº 45/XV, aprovada em Conselho de Ministros de 29/09/2022 e a qual já foi aprovada na generalidade na Assembleia da República no passado dia 24/03 e baixou à 1ª Comissão - cfr https://www.parlamento.pt/ - é clara no sentido do supra exposto e que defendemos:
“Face ao desenvolvimento da situação epidemiológica num sentido positivo, observado nos últimos meses, assistiu-se à redução da necessidade de aprovação de novas medidas e de renovação das já aprovadas. Concomitantemente, importa ter presente que a legislação relativa à pandemia da doença COVID-19 consubstanciou-se num número significativo de leis com medidas aprovadas com o desidrato de vigorar durante um período justificado de tempo. Neste contexto, através da presente proposta de lei, procede-se à clarificação das leis que ainda se encontram em vigor, bem como à eliminação das medidas que atualmente já não se revelam necessárias, através da determinação expressa de cessação de vigência de leis já caducas, anacrónicas ou ultrapassadas pelo evoluir da pandemia. Desta forma, ganha-se em clareza e certeza jurídica, permitindo aos cidadãos saber - sem qualquer margem para dúvidas - qual a legislação relativa à pandemia da doença COVID-19 que se mantém aplicável. Adicionalmente, na sequência da revogação da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, determina-se que os prazos para apresentação à insolvência apenas iniciam a respetiva contagem com a entrada em vigor da presente lei.”
No artigo 1.º, define-se o objecto do diploma, daí decorrendo que o mesmo “considera revogadas diversas leis aprovadas no âmbito da pandemia da doença COVID-19, determinando expressamente que as mesmas não se encontram em vigor, em razão de caducidade, revogação tácita anterior ou revogação pela presente lei” e no artigo 2.º, sob a epígrafe “norma revogatória”, são enunciados os diplomas que a proposta de lei considera revogados, constando logo da alínea a) “A Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na sua redação atual, que estabelece medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, com exceção do artigo 5.º;
Entendendo o próprio Governo a necessidade de afirmar de forma peremptória que, “na sequência da revogação da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, determina-se que os prazos para apresentação à insolvência apenas iniciam a respetiva contagem com a entrada em vigor da presente lei”, ou seja, tomando posição clara quanto à não caducidade anterior da a) do nº 7 do art.º 6º-E da Lei nº 1-A/2020, não se vê como se poderá sustentar tal caducidade relativamente à alínea b) do mesmo normativo.
Pelo exposto, não tendo o artigo 6º-E, nº 7, al. b) da Lei nº 1-A/2020 sido ainda revogado e nem se podendo concluir pela respectiva caducidade, não se pode manter a decisão que determinou a entrega da fracção por parte dos insolventes ao Administrador da Insolvência no prazo de 60 dias a contar da notificação de tal despacho, devendo o recurso ser julgado procedente.
*
IV- Decisão
Nestes termos, as juízas desta Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa, acordam, em conferência, em julgar procedente a apelação e em consequência, revoga-se a decisão recorrida, que se substitui por outra, de suspensão da entrega da fracção apreendida nos autos enquanto vigorar o disposto no artigo 6º-E, nº 7, al. b) da Lei nº 1-A/2020, de 19/3, aditado pela Lei nº 13-B/2021, de 5 de Abril.     
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Custas pelo credor/reclamante Banco C…, SA.   
Registe e Notifique.

Lisboa, 11/04/2023
Manuela Espadaneira Lopes
Paula Cardoso (com voto de concordância da 1ª adjunta, que não assina neste momento por se encontrar ausente da sessão com dispensa de serviço e que oportunamente, aporá a sua assinatura em conformidade).  
Renata Linhares de Castro