Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
63/20.2PFBRR.L1-5
Relator: LUÍS GOMINHO
Descritores: ARMAS
FACA DE COZINHA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: Na sequência da alteração da Lei n.º 5/2006, de 23/02 (Regime Jurídico das Armas e Munições) pela Lei n.º 140/2019, de 24 de Julho, a detenção de uma faca de cozinha com lâmina de 19 cm, fora do local do seu normal emprego, não justificando o respectivo portador a sua posse, constitui o crime p. e p. no art. 86.º, n.º1, al. d) e 3, n.º 2, al. ab), da mencionada Lei. (Sumariado pelo relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal (5.ª) da Relação de Lisboa:

I - Relatório:
I - 1.) Inconformado com o despacho aqui melhor constante de fls. 57 a 60 no qual a Mm.ª Magistrada do Juízo Local Criminal do Barreiro (Juiz 1), Comarca de Lisboa, rejeitou a acusação pública deduzida contra o Arguido P. , na qual se lhe imputava a prática de um crime de detenção de arma proibida p. e p. na conjugação dos art.ºs 86.º, n.º 1, al. d) e 3.º, n.º 2, al. ab), ambos do Regime Jurídico das Armas e Munições, aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23/02, por entender dela não constar “a necessária factualidade tendente ao preenchimento do (respectivo) tipo legal de crime… nem de qualquer outro ilícito jurídico-penal”, recorreu o Ministério Público para esta Relação, apresentando as seguintes conclusões:
1.ª - No douto despacho recorrido a Mmª Juiz a quo decidiu rejeitar a acusação pública, por considerar que “a acusação é manifestamente infundada, pois os factos que a integram, nos moldes em que vêm exarados nessa peça processual, não constituem crime”.
2.ª - Sustentando tal decisão por entender, em suma, que a faca detida pelo arguido seria uma arma branca, porém, por ser uma faca de cozinha e, por essa via, se encontrar afecta às lides domésticas, tendo aplicação definida, não é passível de ser integrada na classe A, não sendo proibida a sua detenção.
3.ª - O Ministério Público não pode acolher esta fundamentação do tribunal a quo para rejeitar a acusação pública, pois, salvo o devido respeito, tal despacho revela uma fundamentação contra legem, não tendo tido em conta as alterações introduzidas ao REGIME JURÍDICO DAS ARMAS E MUNIÇÕES, pela Lei n.º 140/2019, de 24 de Julho, entradas em vigor em 22-09-2019.
i.    Na verdade, a Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro (doravante RJAM), na sua actual redacção estabelece na alínea m) do n.º 1 do artigo 2.º, como definição de arma banca “Todo o objecto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina ou outra superfície cortante, perfurante ou corto-contundente, de cumprimento superior a 10 cm (…)”
ii.   Por outro lado, relativamente à classificação das armas foi aditada a alínea ab) ao n.º 2 do artigo 3.º do RJAM, que classifica como arma da classe A “As armas brancas com afectação ao exercício de quaisquer práticas venatórias, comerciais, agrícolas, industriais, florestais, domésticas ou desportivas, ou objecto de colecção, quando encontradas fora dos locais do seu normal emprego e os portadores não justifiquem a sua posse”.
iii.  A mencionada lei procedeu ainda à alteração da alínea d) do n.º 1 do artigo 86.º do RJAM, onde, para além do mais, criminaliza de forma expressa a detenção das “armas brancas constantes da alínea ab) do n.º 2 do artigo 3.º”.
iv.  Isto é, com a entrada em vigor, da Lei n.º 50/2019, de 24 de Julho, o legislador respondeu adequadamente às expectativas comunitárias, passando a englobar na incriminação a posse das armas brancas com aplicação definida, quando encontradas fora dos locais destinados à sua utilização e cuja posse não seja justificada.
4.ª - Com o muito respeito devido pela posição assumida pela Mm.ª Juiz a quo, entendemos que o despacho proferido não se mostra de acordo com as normas jurídicas em vigor à data dos factos, nem com os factos narrados na acusação e consequente imputação jurídico penal.
5.ª - Assim, e considerando que o arguido, P. , no dia 16-11-2020, detinha na sua posse, na via pública (Largo dos Cravos) uma faca de cozinha com uma lâmina perfurante e cortante em aço inox, com um comprimento de 19 cm, que sabia que detinha tal instrumento fora do local onde a mesma se destina a ser usada e não justificou a sua posse, estando consciente da punibilidade da sua conduta, praticou o mesmo um crime de detenção de arma proibida, encontrando-se preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do respectivo tipo legal, (cfr. artigo 3.º, n.º 2, alínea ab) e artigo 86.º, n.º 1 alínea d) do RJAM).
6.ª - A douta decisão recorrida, violou as seguintes disposições: artigos 86.º, n.º 1, alínea d) e 3.º, n.º 2, alínea ab), ambos da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, artigo 311.º, n.º 1, n.º 2, alínea a) e n.º 3, alínea d) do Código de Processo Penal e artigo 32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa
7.ª - Pelo que, deverá ser revogado o despacho sob recurso, substituindo-se por outro que determine o recebimento da acusação, devendo o processo prosseguir os demais termos até final.
II - 2.) Não coube resposta ao recurso interposto.
 II - Subidos os autos a esta Relação, a Exm.ª Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer seja acompanhando os fundamentos do recurso apresentado, seja aditando as razões pelas quais, no seu entendimento, o Tribunal a quo interpretou e aplicou mal o Direito.
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No cumprimento do preceituado no art. 417.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, nada mais foi acrescentado.
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Seguiram-se os vistos legais.
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Teve lugar a conferência.
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Cumpre apreciar e decidir:
III - 1.) De harmonia com as respectivas conclusões, a única questão suscitada pelo recurso interposto pelo Ministério Público, convoca a integração, ou não, da faca de cozinha detida pelo Arguido no conceito de arma proibida constante da “Lei das Armas”, na sua versão mais recente, e como tal, a justificar (ou não), o juízo de rejeição da acusação que depois foi formulado.
III - 2.) Como temos por habitual, vamos conferir primeiro o teor do despacho de que se discorda:
É este o momento próprio para proceder ao saneamento do processo.
O arguido P.  vem acusado pelo cometimento, em autoria material, de 1 (um) crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 86.º, n.º 1, alínea d) e 3.º, n.º 2, alínea ab), ambos do REGIME JURÍDICO DAS ARMAS E MUNIÇÕES, aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro.
Contudo, analisada a acusação e atentando no quadro factual na mesma exarado, constata-se com clareza que da mesma não consta a necessária factualidade tendente ao preenchimento do tipo legal de crime imputado ao arguido, nem de qualquer outro ilícito jurídico-penal.
Senão vejamos:
Nos termos do disposto na alínea m), do n.º 1, do art. 2.º (com a epígrafe «Definições legais»), da Lei nº 5/2006, «e com vista a uma uniformização conceptual», o legislador fornece o conceito de «arma branca» como sendo «todo o objeto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina ou outra superfície cortante, perfurante ou corto-contundente, de comprimento superior a 10 cm, as facas borboleta, as facas de abertura automática ou de ponta e mola, as facas de arremesso, as estrelas de lançar ou equiparadas, os cardsharp ou cartões com lâmina dissimulada, os estiletes e todos os objetos destinados a lançar lâminas, flechas ou virotões»
Acresce que no artigo 3.º, do mesmo diploma legal, o legislador instituiu, «de acordo com o grau de perigosidade, o fim a que se destinam e a sua utilização», uma classificação «das armas, munições e outros acessórios» nas classes A, B, B1, C, D, E, F e G.
Assim, e para além de outras que não interessam para o caso dos autos, pertencem à classe A, as seguintes armas:
(…)
d) As armas brancas ou de fogo dissimuladas sob a forma de outro objeto;
e) As facas de abertura automática ou ponta e mola, estiletes, facas de borboleta, facas de arremesso, estrelas de lançar ou equiparadas, cardsharps e boxers;
f) As armas brancas sem afetação ao exercício de quaisquer práticas venatórias, comerciais, agrícolas, industriais, florestais, domésticas ou desportivas, ou que pelo seu valor histórico ou artístico não sejam objeto de coleção;
(…).
Por outro lado, importa ter presente que, nos termos do art. 4.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2006, são proibidos os actos de venda, de aquisição, de cedência, de detenção, de uso e de porte das supra mencionadas armas.
E, por último, há que atentar no artigo 86.º, n.º 1, al. d) da Lei nº 5/2006, que estabelece que:
“1 - Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, exportar, importar, transferir, guardar, reparar, desativar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação ou transferência, usar ou trouxer consigo:
a) Bens e tecnologias militares, arma biológica, arma química, arma radioativa ou suscetível de explosão nuclear, arma de fogo automática, arma com configuração para uso militar ou das forças de segurança, explosivo civil, engenho explosivo civil, engenho explosivo, químico, radiológico, biológico ou incendiário improvisado, é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos;
b) Produtos ou substâncias que se destinem ou possam destinar, total ou parcialmente, a serem utilizados para o desenvolvimento, produção, manuseamento, acionamento, manutenção, armazenamento ou proliferação de armas biológicas, armas químicas ou armas radioativas ou suscetíveis de explosão nuclear, ou para o desenvolvimento, produção, manutenção ou armazenamento de engenhos suscetíveis de transportar essas armas, é punido com pena de prisão de 2 a 5 anos;
c) Arma das classes B, B1, C e D, espingarda ou carabina facilmente desmontável em componentes de reduzida dimensão com vista à sua dissimulação, espingarda não modificada de cano de alma lisa inferior a 46 cm, arma de fogo dissimulada sob a forma de outro objeto, arma de fogo fabricada sem autorização ou arma de fogo transformada ou modificada, bem como as armas previstas nas alíneas ae) a ai) do n.º 2 do artigo 3.º, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos ou com pena de multa até 600 dias;
d) Arma branca dissimulada sob a forma de outro objeto, faca de abertura automática ou ponta e mola, estilete, faca de borboleta, faca de arremesso, cardsharp ou cartão com lâmina dissimulada, estrela de lançar ou equiparada, boxers, outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse, as armas brancas constantes na alínea ab) do n.º 2 do artigo 3.º, aerossóis de defesa não constantes da alínea a) do n.º 7 do artigo 3.º, armas lançadoras de gases, bastão, bastão extensível, bastão elétrico, armas elétricas não constantes da alínea b) do n.º 7 do artigo 3.º, quaisquer engenhos ou instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão, artigos de pirotecnia, exceto os fogos-de-artifício das categorias F1, F2, F3, T1 ou P1 previstas nos artigos 6.º e 7.º do Decreto-Lei n.º 135/2015, de 28 de julho, e bem assim as munições de armas de fogo constantes nas alíneas q) e r) do n.º 2 do artigo 3.º, é punido com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias;
(…)”
Pois bem.
Perante a definição constante do art. 2.º, n.º 1, al. m), da Lei n.º 5/2006, dúvidas não restam que a faca de cozinha em causa é uma arma branca, uma vez que está dotada de uma lâmina com 19 cm de comprimento.
Mas é também inquestionável que se trata de uma arma branca que não é passível de ser integrada na classe A, na medida em que está afecta às lides domésticas, e que, como é óbvio, não tem disfarce, não é uma «faca de arremesso», uma «faca de borboleta» ou uma «faca de abertura automática ou faca de ponta e mola» - vd. definições respectivas nas alíneas do nº 1 do art. 2.º da Lei n.º 5/2006.
O que significa que, à luz do art. 4.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2006, não é proibida a sua venda, aquisição, cedência, detenção e uso.
Acresce.
Como se trata de uma arma branca com aplicação definida (afecta às lides domésticas, como indica o próprio nome) – o que, aliás, ninguém contesta –, também não é susceptível de integrar o conceito de «…outras armas brancas … sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse», a que alude o art. 86.º, n.º 1, al. d) da Lei n.º 5/2006. Aliás, é neste preciso segmento que estão abrangidas as armas brancas a que se refere o art. 3.º, n.º 2, al. f), da mesma Lei, ou seja, as que não estão afectas ao exercício de quaisquer práticas venatórias, comerciais, agrícolas, industriais florestais, domésticas ou desportivas, ou que pelo seu valor histórico ou artístico não sejam objecto de colecção, desde que possam ser usadas como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse.
Em suma, a detenção pelo arguido da faca de cozinha, ainda que nas circunstâncias narradas na acusação, não integra o crime de detenção de arma proibida p. p. no art. 86.º, n.º 1, al. d), da Lei n.º 5/2006 (Nesse sentido, v.g., AcRP de 13.12.2006 (Olga Maurício – subscrito pelo aqui relator), AcRG de 9.2.2009 (Nazaré Saraiva), AcRL de 08.10.2009, Processo 279/03.6GBBNV da 9.ª Secção (Abrunhosa de Carvalho) e AcRL de 20.12.2011 (Agostinho Torres), disponíveis em www.dgsi.pt, com exceção do penúltimo, disponível em www.pgdlisboa/pt).
Em face do exposto, constata-se com clareza que da acusação não consta a necessária factualidade tendente ao preenchimento do tipo legal de crime imputado ao arguido, nem de qualquer outro ilícito jurídico-penal.
Por isso, a acusação é manifestamente infundada, pois os factos que a integram, nos moldes em que vêm exarados nessa peça processual, não constituem crime.
Atentos os expostos fundamentos e ao abrigo do disposto no art.º 311.º, n.º 1, n.º 2, alínea a) e n.º 3, alínea d), do Código de Processo Penal, rejeito o despacho de acusação.
Notifique os sujeitos processuais.
Após trânsito, arquive.
Dê baixa na estatística oficial.
III – 3.1.) Tal como decorre do acima sumariado, o despacho acabado de transcrever insere-se na fase de saneamento prevista no art. 311.º do Cód. Proc. Penal, e assume como pressuposto da decisão, o entendimento em como a acusação pública deduzida é manifestamente infundada, uma vez que os respectivos factos não constituiriam crime, pois que o concreto tipo de instrumento detido - uma faca de cozinha -, assume uma finalidade perfeitamente definida.
A esse nível, era a seguinte a respectiva enunciação descritiva de imputação:
1. No dia 16 de Novembro de 2020, pelas 22h05m, o arguido, P. , no Largo dos Cravos, Vale da Amoreira, detinha na sua posse uma faca de cozinha com uma lâmina perfurante e cortante em aço inox, com um comprimento de 19 cm;
2. O arguido sabia, dadas as características da faca cozinha que detinha, fora do local onde a mesma se destina a ser usada, sabia ainda ser proibida a posse do descrito objecto nessas circunstâncias, uma vez que, não justificando a sua posse, a aludida faca apenas poderia ser utilizada como arma de agressão;
3. Ao praticar os factos supra descritos, o arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida como ilícito criminal, por lei penal.
Que estamos perante uma arma, e mais concretamente, de uma arma branca, não haverá dúvidas.
Trata-se, com efeito, de um “objeto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina ou outra superfície cortante, perfurante ou corto-contundente, de comprimento superior a 10 cm” – cfr. art. 2.º, n.º1, al. m), da Lei das Armas.
No domínio das redacções anteriores à Lei n.º 50/2019, de 24 de Julho, é verdade que por relação às “facas de cozinha”, se formou entendimento Jurisprudencial no sentido de que as mesmas “tem uma aplicação definida (a afectação às lides domésticas), não se transformando numa arma branca proibida pelo simples facto de ser desviada dessa sua aplicação/afectação” (por todos, o acórdão desta Secção de 20/12/2011 - que está por nós assinado como adjunto -, no processo n.º 1246/08.9TASNT.L1-5, disponível em www.dgsi.pj/jtrl).
 Ou seja, “ a caracterização de um objecto como arma proibida tem a ver com as suas características (grau de perigosidade) e com a utilização ou afectação normal delas, com a idoneidade dessa utilização ou afectação normal como meio de agressão. O uso desviado das propriedades do objecto não pode servir como critério para o definir como arma proibida.
Uma faca de cozinha tem uma aplicação definida (a afectação às lides domésticas) que não é a de meio de agressão contra pessoas mas que, subtraída ao contexto normal da sua utilização, pode ser utilizado como tal.
Sendo indubitavelmente uma arma branca, não é (pelo menos num quadro de mera detenção) uma arma branca proibida”.
III – 3.2.) Ora se no que toca a sua classificação como arma da Classe A por via do art. 3.º, n.º 2, al. d) (classificação operada em função do seu grau de perigosidade, fim a que se destinam e sua utilização), não parece ter havido grandes alterações em relação à redacção que se mostrava contemplada na anterior redacção da Lei das Armas [embora a actual al e), especifique na categoria das facas de abertura automática, as de ponta e mola, e acrescente as “cardsharps “e as equiparadas às estrelas de lançar], o mesmo não se diga em relação ao aditamento agora operado pela Lei n.º 50/2019, de 24/07, ao referido preceito, de uma alínea designada por ab), a sustentar:
“ab) As armas brancas com afetação ao exercício de quaisquer práticas venatórias, comerciais, agrícolas, industriais, florestais, domésticas ou desportivas, ou objeto de coleção, quando encontradas fora dos locais do seu normal emprego e os seus portadores não justifiquem a sua posse;”
Esta referência à não justificação da posse, era um conceito já anteriormente conhecido, por referência ao normativado no art. 86.º, n.º 1, al. d), da RJAM, em termos de incriminação pela detenção de arma proibida, mormente das armas brancas:
“… arma branca dissimulada sob a forma de outro objeto, faca de abertura automática, estilete, faca de borboleta, faca de arremesso, estrela de lançar, boxers, outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse, (…).
Mas a actual al. d) de tal preceito, para além da actualização operada no respectivo elenco, em correspondência com a mencionada al. e) “Arma branca dissimulada sob a forma de outro objeto, faca de abertura automática ou ponta e mola, estilete, faca de borboleta, faca de arremesso, cardsharp ou cartão com lâmina dissimulada, estrela de lançar ou equiparada, boxers, outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse”, veio também a acrescentar expressamente a essa incriminação “as armas brancas constantes na alínea ab) do n.º 2 do artigo 3.º”.
Ou seja, as armas brancas de utilização definida, rectius, as armas brancas com afetação ao exercício de quaisquer práticas venatórias, comerciais, agrícolas, industriais, florestais, domésticas ou desportivas, ou objeto de coleção, passam a ser consideradas como proibidas, à semelhança das acima indicadas, “quando encontradas fora dos locais do seu normal emprego e os seus portadores não justifiquem a sua posse”.
Tal como pertinentemente o assinala o Digno Recorrente, com a entrada em vigor da mencionada Lei, “o legislador passou a englobar na incriminação” do art. 86.º “a posse de objectos com idêntica potencialidade lesiva aos que já se mostravam incluídos na norma incriminatória, nomeadamente as armas brancas com aplicação definida, quando encontradas fora dos locais destinados à sua utilização e cuja posse não seja justificada”, seguramente por ter entendido, serem “igualmente susceptíveis de provocar lesão ou perigo de lesão dos bens jurídicos tutelados” por aquela norma.
 É precisamente a situação dos autos: o Arguido foi alegadamente surpreendido com a faca em causa, não na sua cozinha, mas na rua, e não justificou a respectiva posse.
Donde, na sua consequência jurídica, os factos imputados preencherem os exactos normativos apontados na acusação, razão pela qual haverá que revogar o despacho recorrido, a fim de ser substituído por outro, em que não concorrendo qualquer outra causa que a tanto impeça, se determine o recebimento da acusação e se assegure o prosseguimento do processo.
Nesta conformidade:

IV – Decisão:
Nos termos e com os fundamentos mencionados, na procedência do recurso interposto pelo Ministério Público, acorda-se em revogar o despacho acima identificado, que deverá ser substituído por outro que, na ausência de outra causa que a tanto impeça, determine o recebimento da acusação e assegure o prosseguimento dos autos.

Elaborado em computador. Revisto pelo Relator o 1.º signatário.
Lisboa, 15-03-2022
Luís Gominho
Vieira Lamim