Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
43/17.5IDFUN.L1-9
Relator: FILIPA COSTA LOURENÇO
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
PERDA DE VANTAGENS PATRIMONIAL DO FACTO ILÍCITO TÍPICO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/07/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I- A declaração de perdas das vantagens patrimoniais nos crimes fiscais ( artº 105 e ou 107 do RGIT ) ao abrigo do artº 110º nº 1 b) e nº 4 do C.P. não pode ser considerada como “ automática” ( dispensando-se neste caso até o pedido pelo MºPº), pois, a vingar, estar-se- ia, em situações pontuais a beneficiar o lesado Estado que ficaria com um leque, diremos multidisciplinar, de títulos executivos para poder ser ressarcido, quando até de outros já lançou mão como por exemplo o ter deduzido pedido cível, ou deter o competente titulo executivo relativa à divida fiscal, e concretamente quando no caso dos autos as arguidas estão a pagar no âmbito de uma execução fiscal em prestações a quantia em divida apurada nestes autos;
II- Daí que a declaração de perdimento prevista no art.º 110.º do Código Penal não possa, sempre, ter lugar, independentemente da formulação, ou não, de pedido de indemnização civil ou da existência de qualquer título executivo, ou acção executiva em curso, sendo que temos por entendimento que o confisco apenas operará na medida e na parte em que houver interesse útil, compatibilidade entre todos os institutos e que nunca se poderá traduzir numa dupla “penalização” para o agente;
III- Nos casos em que, nos crimes tributários, a vantagem corresponda integralmente à obrigação fiscal incumprida e à obrigação de indemnização civil decorrente da prática do facto ilícito típico, apenas pode e deve ser decretada a sua perda se o titular dos danos causados pelo mesmo (a Autoridade Tributária e Aduaneira) se desinteressar pela reparação do seu direito, casos que em a declaração de perda de vantagens, de forma necessária, proporcional e adequada, acautela as finalidades preventivas que a originaram.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM EM CONFERÊNCIA, NA 9ª SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I.RELATÓRIO
Nos presentes autos provenientes do Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, juízo local Criminal do Funchal- juiz 1 os arguidos foram condenados pela pratica dos seguintes crimes, AA, pela pratica de um crime de abuso de confiança fiscal, p.p. pelo artº 105º nº 1,4 e 7, do RGIT em 100 (cem) dias de multa, à taxa diárias de €8,00 (oito), o que perfaz o montante global de €800,00 (oitocentos) e “…………………., Unipessoal, Ld.ª”, como responsável de um crime de abuso de confiança fiscal, p.p. pelos artigos 7º nº1 e 105º, nº 1,4 e 7 do RGIT, na pena de 50 (cinquenta) dias de multa, à razão diária de €5,00, o que perfaz a multa de €250,00 (duzentos e cinquenta) através de sentença proferida a fls. 294 a 302, pelo Tribunal “ a quo” .
 Inconformado porém, com esta decisão proferida nestes autos, veio o recorrente, a saber, o Ministério Público, interpor recurso a folhas 306 até 311, da sentença que nestes autos foi proferida na 1ª instância, com os fundamentos constantes da respectiva motivação que aqui se dão por inteiramente reproduzidas, apresentando então as seguintes conclusões, as quais se circunscrevem no tocante ao indeferimento pelo Tribunal “ a quo” das requeridas perdas de vantagens (bem como ali se circunscrevendo todo o recurso):
1- O douto Tribunal a Quo condenou a arguida AA, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p.p. pelo artº 105º nº 1,4 e 7, do RGIT em 100 (cem) dias de multa, à taxa diárias de €8,00 (oito), o que perfaz o montante global de €800,00 (oitocentos).
2-Condenou a sociedade “…………………, Unipessoal, Ld.ª”, como responsável de um crime de abuso de confiança fiscal, p.p. pelos artigos 7º nº1 e 105º, nº 1,4 e 7 do RGIT, na pena de 50 (cinquenta) dias de multa, à razão diária de €5,00, o que perfaz a multa de €250,00 (duzentos e cinquenta).
3-Considerou improcedente a perda de vantagem patrimonial requerida pelo Ministério Público na perspectiva de que tudo o que é obtido através da pratica de crime deverá ser restituído, de que o crime não compensa.
4-O direito ao pedido de indemnização civil não pode contender ou substituir o direito de o Estado ser de imediato reintegrado na sua esfera patrimonial com os bens/direitos/ vantagens que lhe foram subtraídos com a prática do crime, mesmo quando é entendimento da autoridade tributária, serem suficientes os meios legalmente previstos para a execução fiscal.
5-A douta sentença violou o disposto nos artigos 110º nºs 1 a 4 do Código Penal, devendo ser substituída por outra que decrete a perda de vantagens da actividade criminosa obtida pelos arguidos com a pratica do crime, no valor de €7.757,75 (sete mil setecentos e sete euros e setenta e cinco cêntimos), conforme requerido pelo Ministério Público.

Mas Vªs Excelências farão como sempre a melhor justiça.

O recurso foi admitido a fls. 312, observando-se todos os termos legais.
As arguidas não responderam ao recurso.
Neste Tribunal a Digna Procuradora-Geral Adjunta nele apôs singelamente o seu visto a folhas 319.
O processo seguiu os seus termos legais.

II.FUNDAMENTAÇÃO
De acordo com o disposto no artigo 412° do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de Outubro de 1995, o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
As possibilidades de conhecimento oficioso, por parte deste Tribunal da Relação, decorrem da necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida, previstos no n.º 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, ou de alguma das causas de nulidade dessa decisão, consagradas no n.º 1 do artigo 379° do mesmo diploma legal.
Como é sabido, e resulta do disposto nos arts. 368.º e 369.º, ex vi art. 424.º, n.º 2, todos do CPP, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem o objecto do recurso pela seguinte ordem:
Em primeiro lugar, das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão.
Seguidamente das que a este respeitem, começando pelas atinentes à matéria de facto e, dentro destas, pela impugnação alargada, se tiver sido suscitada e, depois dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP.
Por fim, das questões relativas à matéria de direito.

As questões suscitadas e a apreciar no presente recurso reconduzem-se à pretensão do recorrente e de acordo com as conclusões ínsitas no recurso que é a seguinte por ser única:

-A douta sentença violou o disposto no artigo 110º nºs 1 a 4 do Código Penal, devendo ser substituída por outra que decrete a perda de vantagens da actividade criminosa obtida pelos arguidos com a pratica do crime, no valor de €7.757,75 (sete mil setecentos e sete euros e setenta e cinco cêntimos), conforme requerido pelo Ministério Público.

Tem o seguinte teor a sentença recorrida nos segmentos que interessam:
(…)
“- FUNDAMENTAÇÃO
Com relevo para a decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos:
1- A sociedade `………………….., Unipessoal Lda", é uma sociedade por quotas, com sede social na Rua ……………….. Funchal, tem como objecto social as actividades de design, quer no domínio da criação de proiectos específicos, quer de consultoria. Compreende o design gráfico ou de comunicação, o design industrial, design de interiores, execução e reformulação de acabamentos interiores em habitações, lojas e escritórios, complementos de decoração e equipamentos para hotelaria e similares. Comércio a retalho de artigos para o lar, incluindo mobiliário, artigos de iluminação, tapeçaria, cortinados, colchoaria e outros artigos de decoração", é contribuinte com o n.° 510813925 e está enquadrada, para efeitos de IVA, no regime normal de periodicidade trimestral.
2.- A arguida AA era, à data dos factos, gerente de direito da arguida `………………., Lda", sendo ela que tomava todas as decisões de gestão da sociedade e o rumo dos negócios, davam ordens aos funcionários, contratavam com fornecedores e clientes, pagavam aos primeiros, recebiam dos segundos e representavam a sociedade arguida junto das repartições públicas, nomeadamente a Administração Fiscal.
3.- No âmbito da sua actividade profissional a arguida AA, no seu próprio interesse e no da sociedade arguida, não obstante ter recebido dos seus clientes os montantes devidos pela cobrança do IVA e de ter entregue a respectiva declaração periódica de IVA referente ao período 2015/09T, não efectuou, nem no prazo legal (22.12.2016), nem nos 90 dias posteriores ao termo do prazo legalmente estipulado, o pagamento do imposto apurado no valor de € 7 575,00 (sete mil, quinhentos e setenta e cinco).
4 - A arguida AA, por si e na qualidade de representante legal da arguida `……………………, Unipessoal, Lda", foi notificada, no dia 16.02.18, para, no prazo de 30 dias, proceder ao pagamento voluntário da quantia em dívida, não efectuando, no entanto, nesse prazo e até à presente data, o pagamento devido à Administração Fiscal.
5. - As arguidas não efectuaram o pagamento acima discriminado à Administração Fiscal, fazendo sua a referida quantia, utilizando-a em proveito da empresa, nomeadamente, pagamento a fornecedores e aos trabalhadores, e obtendo, desse modo, vantagens patrimoniais e benefícios que sabiam ser indevidos e proibidos por lei.
6.- A arguida, por si e em representação da sociedade arguida, ao agir da forma descrita, quis e conseguiu deduzir IVA, no âmbito da sua actividade comercial e dentro do objecto social da arguida sociedade, não o entregando, como estava obrigada, nos Cofres da Fazenda Nacional.
7.- A arguida AA, por si e em representação e no interesse da ……………………., Unipessoal Lda", agiu de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
8.- A arguida AA é gerente da sociedade arguida, auferindo pela sua qualidade de gerente rendimentos não apurados. Vive em casa arrendada, com uma renda mensal de € 570,00.
9.- O seu agregado familiar é composto por si e pelo marido, que é administrador de uma empresa, com um rendimento liquido de € 5 000,00. Tem 3 filhos, com 30, 26 e 22 anos de idade, todos autonomizados. Possui como habilitações literárias a frequência de Curso de Gestão Hoteleira.
10. - Do CRC da arguida mostra-se registada as seguintes condenações:
a)- No Processo no 61/11.7TAPNI, por sentença transitada em julgado em 29.02.12, pela prática de um crime de Abuso de Confiança contra a segurança social, praticado em 14.12.2011, na pena de 190 dias de multa, à taxa diária de € 10,00, já extinta, pelo seu pagamento;
b)- No Processo no 1059/10.8 IDLRA, por sentença transitada em julgado em 20.05.13, pela prática de um crime de Abuso de Confiança fiscal, praticado em 30.04.2010, na pena de 180 dias de multa, à taxa diária de € 10,00, já extinta, pelo seu pagamento.
11. - A `………………. Unipessoal Lda", não tem antecedentes criminais.
12. - A " ………………….. Unipessoal Lda", está a efectuar o pagamento das suas dívidas fiscais em prestações, onde se inclui o período 2016/09T, tendo sido pagas as prestações de Dezembro a Março de 2019, encontrando-se em dívida a quantia de € 6 313,11 (seis mil, trezentos e treze euros e onze cêntimos).
(…)
3.3. - Da declaração de perda das vantagens do facto ilícito típico a Favor do Estado.
O Ministério Público veio requerer a perda da vantagem patrimonial nos termos do artigo 110, ns 1, al.b) e 3 e 4, do Código Penal, no valor de € 7 575,75, quantia que era devida à AT e de que esta ficou desapossada pelo crime cometido pelas arguidos e imputado na acusação.
Dispõe o artº 110, do Código Penal, sob a epígrafe " perda de produtos e , com as alterações decorrentes da lei no 30/17, de 30/5, - que:
1 São declarados perdidos a favor do Estado:
a)          
b) As vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.
2- O disposto na alínea b) do número anterior abrange a recompensa dada ou prometida aos agentes de um facto ilícito típico, já cometido ou a cometer, para eles ou para outrem.
4 - Se os produtos ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.
Resultou apurado que a arguida Ana Teresa, por si e em representação e interesse da sociedade arguida, não entregou à AT quantia de € 7 575,75, equivalente ao montante do benefício que obtiveram.
Faz parte do tipo de ilícito em causa a apropriação da quantia em causa e o consequente enriquecimento do património do arguido (independentemente da afectação que conferiu a tal quantia) e o empobrecimento do património do Estado/Segurança Social.
A vantagem adquirida (por apropriação) é susceptível de ser declarada perdida a favor do Estado. Porém, teremos que compreender a locução conjuntiva
O conceito de ofendido encontra consagração legal no art' 68', n'1, al.a) do C.P.P., entendendo-se como tal, o titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, podendo, caso requeira a sua constituição, assumir a posição de assistente.
É consabido que a perda de vantagens é exclusivamente determinada por necessidades de prevenção, sendo que, na nossa ordem jurídico-penal, coexistem sistemas normativos especiais, relativos à perda de bens a favor do Estado, como os previstos, por exemplo, nos art's 35 e segs, da Lei n' 15/93, de 22/01, (Legislação de combate à droga) e art' 12'-B da Lei no 5/02, de 11/01, (estabelece medidas de combate à criminalidade organizada e económico-financeira) com um regime geral de perda de bens a favor do Estado, previsto na parte geral do C. Penal.
Nesta matéria de confisco das vantagens e a pretensão patrimonial da Autoridade Tributária e Aduaneira nos crimes tributários, não desconhecemos a posição de João Conde Correia e Hélio Rigor Rodrigues, em artigo publicado em Abril de 2015 na revista digital "Julgar Online", em anotação ao Acórdão da Relação do porto, de 23.11.16, no processo n' 905/15.4IDPRT.P.
Também não desconhecemos a posição assumida pela nossa jurisprudência que a perda de vantagens deve ser decretada sempre que se verifiquem os seus fundamentos, não ficando dependente da reclamação seu valor ou do sucesso dessa pretensão (v.g dedução do pedido civil) ou do facto de a AT ter ao seu dispor meios legais para ser ressarcida das quantias devidas. (vide, Acs. da R.P., de 22.03.17, no Proc. 86/14.; 31.05.17; 26.10.17, 22.02.17 e 12.09.18).
Por outro lado, há quem entenda que não pode ser decretada a pena de perda de vantagens nos casos em que a Autoridade Tributária comunicou ao MºPº que não pretendia deduzir pedido de indemnização civil por considerar suficiente os meios legais previstos para a execução fiscal da vantagem. (vide, Ac.R.P. de 23.11.06; 22.03.17, no proc. n' 84/15.7)
Ora, não foi deduzido pelo Ministério Público pedido de indemnização civil, pois que, é entendimento da Autoridade Tributária, serem suficientes os meios legalmente previstos no art. 148º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) para cobrança coerciva do imposto em causa, conforme melhor consta a fls.176 dos autos.
Concluímos citando a declaração de voto de vencido no Acórdão da Rel. do Porto, de 22.03.17, cuja pertinência e adesão aos argumentos ali invocados justifica aqui a sua reprodução: " manifestando a Autoridade Tributária que os meios de cobrança coerciva do imposto (que corresponde, quanto ao capital em causa, à obrigação de indemnização civil e à vantagem do crime) são suficientes para a restauração da sua esfera patrimonial em relação aos arguidos (contribuintes inadimplentes), a requerida perda de vantagens não poderá proceder"
Tendo a norma violada sido objeto de tutela judicial (o agente foi punido com pena de multa, que onera o seu património) e sendo a vantagem obtida pelos arguidos com o seu comportamento (que corresponde, integralmente, à obrigação de capital tributária e, simultaneamente, à obrigação de indemnização da responsabilidade civil extracontratual dos lesantes) revertível pelos mecanismos de execução coerciva que a Autoridade Tributária e Aduaneira pretende utilizar, não se percebe, compreende, que outro desígnio, em termos de prevenção geral intimidatória e prevenção especial, possa ser alcançado com a reclamada perda da vantagem (com a sua declaração e, principalmente, com a sua execução) de acordo com os princípios gerais da necessidade, proporcionalidade e adequação da aplicação das sanções (no sentido da existência de um verdadeiro pressuposto material de proporcionalidade, P. P. Albuquerque, CCP, 31edição, pág.462, e Figueiredo Dias, As consequências jurídicas do crime, 2005, pág.635) mesmo entendendo a perda de vantagens como medida sancionatória análoga à medida de segurança (sem menosprezar posição contrária e bem fundamentada, exposta por Damião da Cunha in Perda dos objetos relacionados com o crime, UCP, Porto, 1991, que defende a nature.Za de pena acessória da medida) e, por isso, não absorvida pelo princípio constitucional da inadmissibilidade de perda de direitos civis, profissionais e políticos como efeito necessário da pena - cfr. artigo 30°, n°4, da Constituição da República Portuguesa, e artigo 65°, n°1, do Código Penal. De outro modo, aceitando o efeito necessário desta medida apenas com a verificação dos pressupostos formais, estaria aberta a porta para a aplicação automática do instituto (que dispensaria o recurso ao princípio do pedido que o M°P° exerce e contraria o sistema sancionatório penal, orientado pelos princípios constitucionais da fragmentaridade e do mínimo de intervenção do direito penal).
(..) nos crimes tributários, que a perda das vantagens adquiridas pelo agente através do facto ilícito típico que correspondam, simultaneamente, à obrigação fiscal não cumprida e à obrigação de indemnização civil pela prática daquele facto só serve as suas finalidades preventivas quando a Administração Fiscal (o titular do interesse penalmente tutelado) se desinteressa pela mesma (em sentido aproximado, Figueiredo Dias, As consequências Jurídicas do Crime, 2005, pág.633), facto que não sucede quando a mesma, deforma clara, comunica (no âmbito das suas competências legais) que pretende proceder à cobrança coerciva do imposto-indemnização-vantagem".
IV - DECISÃO
Por tudo o exposto o tribunal decide:
Julgar procedente, por provada a acusação pública deduzida e, consequentemente:
A)- Condenar a arguida AA, pela prática de um crime de Abuso de confiança fiscal, p. p. pelo art. 105o, no 1, 4 e 7, do RGIT, 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de € 8,00, (oito) o que perfaz o montante global de € 800,00 (oitocentos).
B) - Declarar a arguida "……………………., Unipessoal, Lda", como responsável de um crime de abuso de confiança fiscal, p. p. pelos art's 7', n'1 e 105o, no 1, 4 e 7, do RGIT, na pena de 50 (cinquenta) dias de multa, à razão diária de € 5,00, o que perfaz a multa de € 250,00 (duzentos e cinquenta).
C)Condenar as arguidas nas custas criminais, fixando-se a taxa de justiça devida por cada um deles em 2 (duas) UC's, a reduzir a metade, por força da confissão.
D)- Declarar improcedente a perda das vantagens da actividade criminosa.”
(…)
Então analisando a pretensão do recorrente, diremos:
O artº 110º do Código Penal estabelece o seguinte,
Perda de produtos e vantagens
1 - São declarados perdidos a favor do Estado:
a) Os produtos de facto ilícito típico, considerando-se como tal todos os objetos que tiverem sido produzidos pela sua prática; e
b) As vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.
2 - O disposto na alínea b) do número anterior abrange a recompensa dada ou prometida aos agentes de um facto ilícito típico, já cometido ou a cometer, para eles ou para outrem.
3 - A perda dos produtos e das vantagens referidos nos números anteriores tem lugar ainda que os mesmos tenham sido objeto de eventual transformação ou reinvestimento posterior, abrangendo igualmente quaisquer ganhos quantificáveis que daí tenham resultado.
4 - Se os produtos ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º-A.
5 - O disposto nos números anteriores tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto, incluindo em caso de morte do agente ou quando o agente tenha sido declarado contumaz.
6 - O disposto no presente artigo não prejudica os direitos do ofendido.
Contém as alterações dos seguintes diplomas:
- Lei n.º 30/2017, de 30/05
Consultar versões anteriores deste artigo:
-1ª versão: DL n.º 48/95, de 15/03

O Ministério Público e ora recorrente na acusação que formulou a fls 197, e depois validada pela competente decisão instrutória de fls 247 e seguintes, requereu a final o seguinte:

-“ Nestes termos o Ministério Público promove que se declare perdido a favor do Estado o valor de 7.575,75 euros que corresponde à vantagem da actividade criminosa desenvolvida pelas arguidas e que as mesmas sejam condenadas a proceder à entrega ao Estado dessa quantia, nos termos do disposto no artº 110 nº 1 al. b), 3 e 4 do Código Penal, sem prejuízo da satisfação dos direitos patrimoniais do Estado por outra via, nomeadamente execução fiscal ou deferimento de eventual PIC.”

Entende então que o tribunal “a quo” haveria de ter decretado a perda da vantagem patrimonial obtida pelos arguidos como consequência directa da prática do crime em causa, nos termos previstos no art.º 110.º, nºs. 1 al b) a 4 do Código Penal, o que foi promovido em sede de acusação, mas que o mesmo tribunal desconsiderou na decisão final.
No entanto resulta claramente de folhas 272 e 288 a 292 e seguintes, que as arguidas no âmbito de uma execução fiscal que a AT RAM lhes instaurou, e exactamente relativamente à quantia devida a titulo de IVA nestes autos, que constituem a génese deste processo, se encontram a pagar esta divida em prestações estando devidamente equacionado pelas partes o plano de pagamento e as quantias já pagas (resultando até tal dos factos provados na sentença recorrida).
Ora daqui se retira, que os direitos patrimoniais do Estado estão a ser satisfeitos por via de execução fiscal encontrando-se as arguidas a proceder ao pagamento faseado da quantia exequenda devida ao Estado pela não entrega de IVA no período referido na sentença recorrida.
Também resulta de forma cristalina destes autos, que a AT RAM não deduziu pedido cível, contra as arguidas para ressarcimento do devido, e possivelmente dizemos nós, devido ao facto incontestável, de, ter instaurado execução fiscal contra as arguidas, munida que estava do competente e exequível titulo executivo, relativamente às quantias devidas pelo não pagamento do IVA relativo a 2016/09, 3º trimestre do ano de 2016 no valor de  €7575,75.
Então nesta sede, indeferiu o tribunal “a quo” a pretensão do Ministério Público com o fundamento de não ter, a AT RAM deduzido pedido cível, por ser entendimento da Autoridade Tributária, suficientes os meios previstos no artº 148º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) para cobrança coerciva do imposto em causa, e adiantando-se já que se concorda com a decisão e a fundamentação que a sustenta.

Subscrevemos no entanto de facto que, a perda de vantagem do facto ilícito a favor do Estado ou a chamada “perda clássica”, prevista no art.º 110.º do Cód. Penal, tem subjacente o princípio ético-jurídico de que “o crime nunca pode compensar”.
Ora, sendo o confisco, segundo Leal Henriques e Simas Santos, in “Código Penal Anotado”, 2002, pág. 1160, “uma medida destinada a restabelecer a ordem económica conforme o direito, conduzindo a uma justa privação dos benefícios ilicitamente obtidos que só indirecta e imprecisamente se poderia conseguir com a multa”, visa-se com o mesmo colocar o agente infractor no mesmo nível ou patamar patrimonial em que se encontrava antes da prática do facto ilícito, pretendendo-se, assim, evitar que o mesmo possa, por qualquer meio ou forma, directa ou indirectamente, retirar proveito da sua acção delituosa.
Poder-se-á dizer que o confisco visa directamente o agente infractor, constituindo um instrumento destinado não só a “penalizá-lo”, na medida em que a privação do benefício pretendido obter constitui, só por si, uma frustração ou agaste psicológico, mas, principalmente, a desincentivá-lo no cometimento de novas práticas, as quais, de forma ilícita, possam enriquecer o seu património, interiorizando, assim, a convicção de que o crime não o irá compensar.
Destas asserções consolidadas não temos qualquer dúvida e suspeição, no entanto a questão a resolver encontra-se, equacionando sempre a situação concreta dos respectivos autos, mais concretamente aqui o ressarcimento do lesado, neste caso, a AT RAM, pelas arguidas, e repudiando desde já a posição daqueles que sustentam, ser este instituto de aplicação automática, independentemente de ter sido ou não deduzido cível, de ter sido instaurada execução fiscal etc, com o fundamento de constituir este uma espécie de salvaguarda, neste caso para o Estado AT RAM, uma tábua de salvação para o caso de falência dos demais meios atrás referidos, e também da sua natureza a que atribuem por vezes como que uma natureza de “pena acessória” e/ou “medida de segurança”.
 Até absurda se tornaria esta posição, pois, a vingar, estar-se- ia, em situações pontuais a beneficiar o lesado Estado que ficaria com um leque, diremos multidisciplinar, de títulos executivos para poder ser ressarcido, quando de outros já lançou mão, e concretamente no caso dos autos estando as arguidas a pagar no âmbito de uma execução fiscal em prestações a quantia em divida apurada nestes autos.

Não repudiamos porém de forma alguma que o confisco/ perda de vantagens, é um poderoso instrumento de incentivo à abstenção de prática de crimes, ressonando um forte efeito preventivo geral, tão ou mais poderoso do que aquele sinalizado pelas penas, ainda que o seu modo de funcionamento assente na recondução do condenado ao seu estatuto patrimonial anterior à prática do crime.
Diferentemente se passam as coisas, por exemplo com a formulação de um pedido de indemnização civil, onde o objectivo imediato pretendido, quando a lesão atinge bens de natureza patrimonial, é a defesa dos interesses do lesado, reconstituindo-se, tanto quanto possível, a situação que existia antes da prática do crime (P.º da reposição natural). Não se visa aqui, como propósito primeiro do instituto, “ferir” o infractor, mas, antes, curar as feridas provocadas no seu lesado património.
Por isso, os dois institutos não conflituam entre si. O confisco visa, sempre, independentemente da dedução, ou não, de pedido de indemnização civil ou da eventual execução de um qualquer título, evitar que o agente retire quaisquer dividendos da sua acção criminosa, mesmo quando estes vão além do real e efectivo prejuízo da vítima, precavendo-se, também assim, as finalidades de prevenção geral e especial.
Não pode, é, em circunstância alguma, haver “vantagem patrimonial” para o agente infractor.
Vantagem patrimonial essa para o infractor que se resume ao facto de este não ressarcir/compensar o lesado, sendo esta a pedra de toque, talvez desconsiderada nas formulações e interpretações que tem sido feitas deste instituto legal, principalmente quando o Estado é o lesado.

Daí que a declaração de perdimento prevista no art.º 110.º do Código Penal não possa, sempre, ter lugar, independentemente da formulação, ou não, de pedido de indemnização civil ou da existência de qualquer título executivo, ou acção executiva em curso, sendo que temos por entendimento que o confisco apenas operará na medida e na parte em que houver interesse útil, compatibilidade entre todos os institutos e que nunca se poderá traduzir numa dupla “penalização” para o agente, como será por demais evidente, o qual para além do mais já foi condenado numa pena pela prática do crime.
Neste particular desiderato haverá que forçosamente que atender à “homeostase” do sistema jurídico Português, no conspecto deste instituto, que se resume efectivamente no evitar de uma dupla ou tripla penalização dos arguidos, ao infirmar/insistir na aplicação automática deste instituto independentemente dos títulos executivos munidos pelo ofendido, se bem que nalguns casos, se faça a ressalva referida supra no parágrafo anterior, ou seja, dever-se-á evitar uma dupla penalização, mas rematando, acrescenta-se, que nunca se concretiza, e seria forçosamente necessário, o modo concreto de evitar tal.

Neste conspecto aderimos na íntegra aos fundamentos, do voto de vencido do Sr. Juiz Desembargador João Pedro Nunes Maldonado, no AC do TRP de 22.03.2017, os quais passaremos de seguida a transcrever:” O que o julgador entende é algo distinto: a perda de vantagens constitui uma medida sancionatória análoga à medida de segurança (explicando as suas finalidades) e manifestando a Autoridade Tributária que os meios de cobrança coerciva do imposto (que corresponde, quanto ao capital em causa, à obrigação de indemnização civil e à vantagem do crime) são suficientes para a restauração da sua esfera patrimonial em relação aos arguidos (contribuintes inadimplentes), a requerida perda de vantagens não poderá proceder.
A decisão, não obstante a sua narrativa simples, não condiciona a aplicação do instituto à dedução de pedido de indemnização civil, nem retira legitimidade ao Mº Pº para a requerer mas, tão só, entende não se alcança na declaração de perda que substancialmente legitima a aplicação desta medida as exigências preventivas que são pela mesmas visadas.
E reveste-se de todo o sentido o entendimento expresso pelo julgador, reforçado por outros argumentos.
A finalidade visada pelo instituto em questão é, pacificamente, a “(…) prevenção da criminalidade em globo, ligada à ideia – antiga, mas nem por isso menos prezável – de que “o crime” não compensa. Ideia que se deseja reafirmar tanto sobre o concreto agente do ilícito-típico (prevenção especial ou individual), como nos seus reflexos sobre a sociedade no seu todo (prevenção geral), mas sem que neste último aspeto deixe de caber o reflexo da providência ao nível de reforço da vigência de norma (prevenção especial positiva ou de integração) (…)” (cfr. Figueiredo Dias, As consequências Jurídicas do Crime, 2005, pág.632).
Tendo a norma violada sido objeto de tutela judicial (o agente foi punido com pena de multa, que onera o seu património) e sendo a vantagem obtida pelos arguidos com o seu comportamento (que corresponde, integralmente, à obrigação de capital tributária e, simultaneamente, à obrigação de indemnização da responsabilidade civil extracontratual dos lesantes) revertível pelos mecanismos de execução coerciva que a Autoridade Tributária e Aduaneira pretende utilizar, não se percebe, compreende, que outro desígnio, em termos de prevenção geral intimidatória e prevenção especial, possa ser alcançado com a reclamada perda da vantagem (com a sua declaração e, principalmente, com a sua execução) de acordo com os princípios gerais da necessidade, proporcionalidade e adequação da aplicação das sanções (no sentido da existência de um verdadeiro pressuposto material de proporcionalidade, P. P. Albuquerque, CCP, 3ªedição, pág.462, e Figueiredo Dias, As consequências jurídicas do crime, 2005, pág.635) mesmo entendendo a perda de vantagens como medida sancionatória análoga à medida de segurança (sem menosprezar posição contrária e bem fundamentada, exposta por Damião da Cunha in Perda dos objetos relacionados com o crime, UCP, Porto, 1991, que defende a natureza de pena acessória da medida) e, por isso, não absorvida pelo princípio constitucional da inadmissibilidade de perda de direitos civis, profissionais e políticos como efeito necessário da pena - cfr. artigo 30º, nº4, da Constituição da República Portuguesa, e artigo 65º, nº1, do Código Penal.
De outro modo, aceitando o efeito necessário desta medida apenas com a verificação dos pressupostos formais, estaria aberta a porta para a aplicação automática do instituto (que dispensaria o recurso ao princípio do pedido que o MºPº exerce e contraria o sistema sancionatório penal, orientado pelos princípios constitucionais da fragmentaridade e do mínimo de intervenção do direito penal).
Entendo, nos crimes tributários, que a perda das vantagens adquiridas pelo agente através do facto ilícito típico que correspondam, simultaneamente, à obrigação fiscal não cumprida e à obrigação de indemnização civil pela prática daquele facto só serve as suas finalidades preventivas quando a Administração Fiscal (o titular do interesse penalmente tutelado) se desinteressa pela mesma (em sentido aproximado, Figueiredo Dias, As consequências Jurídicas do Crime, 2005, pág.633), facto que não sucede quando a mesma, de forma clara, comunica (no âmbito das suas competências legais) que pretende proceder à cobrança coerciva do imposto-indemnização-vantagem.
Tal entendimento não abrange, naturalmente, as eventuais vantagens na parte em que excedam o empobrecimento do Estado-Administração Fiscal, casos em que o instituto preenche, plenamente, as finalidades que estão na sua génese.
Concluindo, entendo que:
1º só podem ser declaradas perdidas a favor do Estado as coisas, direitos e vantagens que, através do facto ilícito típico, tiverem sido adquiridas pelo agente e representem uma vantagem patrimonial, com fundamento no artigo 111º, nº 2, do Código Penal;
2º o referido instituto, medida sancionatória análoga à medida de segurança, visa exclusivamente finalidades de prevenção geral e especial, nas modalidades de integração e dissuasão;
3º nos casos em que, nos crimes tributários, a vantagem corresponda integralmente à obrigação fiscal incumprida e à obrigação de indemnização civil decorrente da prática do facto ilícito típico, apenas pode/deve ser decretada a sua perda se o titular dos danos causados pelo mesmo (a Autoridade Tributária e Aduaneira) se desinteressar pela reparação do seu direito, casos que em a declaração de perda de vantagens, de forma necessária, proporcional e adequada, acautela as finalidades preventivas que a originaram.
Nestes termos negaria provimento ao recurso do Mº Pº.”(…)

Retornando ao caso dos autos, mais ainda reforçada sai a decisão recorrida, pois dela deflui, e estando manifestamente documentada nos autos (vide fls. 288 até 292 e fls. 272), que a AT RAM munida do devido titulo executivo instaurou execução fiscal contra as arguidas encontrando-se estas pagar, segundo o plano gizado, a quantia exequenda que se encontra em divida nos presentes autos, acrescida naturalmente dos juros devidos, pelo que, tendo a AT RAM manifestado no pretérito um genuíno direito de ver ressarcido o pagamento do IVA em falta, e subscrevendo o voto de vencido acima transcrito bem como os seus fundamentos que essencialmente reforçam até a nossa posição anteriormente assumida, de não penalizar duplamente as arguidas, teremos de julgar improcedente o recurso interposto pelo Ministério Publico.

Como nota final deixaremos expressas as seguintes considerações, as quais vêm ainda reforçar e suportar o nosso entendimento e posição sobre o “thema decidendum”aderindo aos seus fundamentos, diremos e transcrevendo/citando ( estando a referência feita a final):
 
(…)A perda de bens a favor do Estado é uma forma elegante de referência a um instituto jurídico milenar, de reputação duvidosa: o confisco de bens pelo Estado. Já na antiguidade clássica o confisco de bens representava uma forma de as autoridades estaduais reprimirem violações da ordem social e política instituída.
Nas cidades-estado gregas e na Roma imperial, o confisco de bens estava invariavelmente associado às penas de morte ou de degredo dos que conspiravam ou atentavam contra quem detinha o poder, sendo um meio eficaz de prevenção dessas condutas, já que os seus possíveis autores ficavam advertidos de que não seriam apenas eles próprios os únicos condenados a severas penas, mas que sujeitariam também a sua família alargada à miséria e opróbrio, ao serem confiscados todos os bens do chefe do clã familiar (mais desenvolvimentos sobre esta matéria in “Da proibição do confisco à perda alargada de bens”, João Conde Correia, INCM, págs. 30 e ss.).
Esta tradição do recurso indiscriminado ao confisco continuou pela idade média, apenas vindo a conhecer alguma moderação, nos seus pressupostos e alcance, com o advento do iluminismo e o condicionamento que a classe burguesa exerceu sobre o poder político, cujas primeiras manifestações se começam a vislumbrar na magna carta, fermento do constitucionalismo europeu.
Em Portugal, o instituto esteve presente nas nossas leis, desde o início da portugalidade. Foi generosamente consagrado logo na nossa grande primeira codificação legal, ordenada por D. Afonso IV, as Ordenações Afonsinas, onde os crimes de lesa-majestade mais graves eram punidos com pena de morte, os de lesa-majestade menos graves com degredo, mas, invariavelmente, também com o confisco dos bens do prevaricador.
Nada de substancial se alterou nas Ordenações Filipinas, onde, quer as penas de morte “mais suaves”, por enforcamento, quer as mais vis ou infamantes, por esquartejamento, tinham sempre o confisco de bens como a consequência legal do acto criminoso.
 No nosso primeiro Código Penal, em 1852, dispunha o respectivo artº 53º que o condenado a qualquer das penas perpétuas de trabalhos públicos, prisão ou degredo, perde o direito a administrar o seus bens, somente podendo receber dos seus bens ou rendimentos a porção que o governo julgar conveniente autorizar.
Como precursor dos actuais artigos 109º e 110º do C. Penal, dispunha o artº 64º a perda a favor do Estado do objecto, do produto do crime e das armas com que foi cometido ou que eram destinadas para esse fim, determinando que esta apenas teria lugar nos casos em que o ofendido ou algum terceiro não responsável pelo crime não tivessem direito à restituição. Daqui decorre que, historicamente, o princípio da perda dos instrumentos e das vantagens do crime a favor do Estado foi sempre subsidiário em relação aos direitos dos lesados pelo crime.
 Esta tendência de subsidiariedade foi amplamente alargada no C. Penal de 1886, onde, no respectivo artº 75º, se dispunha um regime híbrido particularmente interessante: por um lado, os instrumentos do crime seriam declarados perdidos a favor do Estado, sem que o ofendido ou terceira pessoa tivessem direito à sua restituição, mas, por outro, e em contrapartida, o condenado por qualquer crime incorria na obrigação de restituição ao ofendido das coisas que, pelo crime, o tiver privado, ou do seu justo valor, se a restituição não for possível e desde que o ofendido ou os seus herdeiros o requeiram.
Note-se bem:
“desde que o ofendido ou os seus herdeiros o requeiram”.
 Daqui se extrai novamente a conclusão do primado dos interesses do lesado pelo crime, deixando a lei na disponibilidade do lesado (ou dos seus herdeiros) despojar o condenado das vantagens do crime e afastando o Estado dessa prerrogativa.
 O nosso C. Penal da democracia, publicado a 23 de Setembro de 1982, consagrava, no título VII do Livro I, sob a epígrafe “Da perda de coisas ou direitos relacionados com o crime”:
ARTIGO 107.º
(Perda)
1 - Serão declarados perdidos a favor do Estado os objectos que sirvam ou estavam destinados a servir para a prática de um crime, ou que por este foram produzidos, quando pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso ponham em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem pública, ou ofereçam sérios riscos de serem utilizados para o cometimento de novos crimes.
2 - A perda dos objectos tem lugar, ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser criminalmente perseguida ou condenada
(…)
ARTIGO 108.º
(Objectos de terceiro)
1 - Se os objectos a que se refere o artigo anterior não pertencerem, na data do crime, a nenhum dos agentes do facto criminoso ou seus beneficiários ou já não lhes pertencerem no momento em que a perda foi decretada, será atribuída ao respectivo titular uma indemnização igual ao valor dos objectos perdidos, por cujo pagamento os agentes do crime respondem solidariamente. No caso de insolvabilidade destes, será devolvida ao Estado a responsabilidade pela indemnização.
2 - Não há lugar à indemnização quando os titulares dos objectos tenham concorrido censuravelmente para a sua utilização ou produção, ou quando de modo igualmente reprovável os tenham adquirido, ou do crime hajam tirado vantagens.
ARTIGO 109.º
(Perda de coisas ou direitos relacionados com o crime)
1 - Toda a recompensa dada ou prometida aos agentes do crime é perdida a favor do Estado. Tratando-se de qualquer vantagem insusceptível de transferência directa, ficará o Estado com o direito de exigir de quem a recebeu ou se obrigou a pagá-la o valor correspondente.
2 - São ainda perdidos a favor do Estado, sem prejuízo dos direitos do ofendido ou de terceiros, os instrumentos, objectos ou produtos do crime não abrangidos pelo disposto no artigo 107.º, e os objectos, direitos ou vantagens que, através do crime, hajam sido directamente adquiridos pelos seus agentes.
(…)
 Logo, também em Democracia se consolidou o princípio de que os instrumentos do crime deverão ser declarados perdidos a favor do Estado e se afirmou o princípio de que também as vantagens do crime o deveriam ser.
 Com a mediação do D. L. 48/95, de 15/03 e da Lei 59/07, de 04/09, chegou-se à redacção legal actual deste instituto, definida na Lei nº 30/17, de 30/05, entrada em vigor a 29 de Abril de 2017, ocupando todo o capítulo IX do Livro I, sob a epígrafe “Perda de instrumentos, produtos e vantagens”, de onde se destaca, pela pertinência para o ponto em apreço, o tiverem sido produzidos pela sua prática; e
b) As vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.
2 - O disposto na alínea b) do número anterior abrange a recompensa dada ou prometida aos agentes de um facto ilícito típico, já cometido ou a cometer, para eles ou para outrem.
3 - A perda dos produtos e das vantagens referidos nos números anteriores tem lugar ainda que os mesmos tenham sido objeto de eventual transformação ou reinvestimento posterior, abrangendo igualmente quaisquer ganhos quantificáveis que daí tenham resultado.
4 - Se os produtos ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º-A.
5 - O disposto nos números anteriores tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto, incluindo em caso de morte do agente ou quando o agente tenha sido declarado contumaz.
6 - O disposto no presente artigo não prejudica os direitos do ofendido.

Como resulta do preâmbulo da Lei nº 30/17, de 30/05, a mesma teve por objectivo a transposição para o ordenamento jurídico nacional da Directiva 2014/42/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de Abril de 2014, sobre o congelamento e a perda dos  instrumentos e produtos do crime na União Europeia (consultável, na íntegra, in http://www.dgpj.mj.pt).
 Compulsando o preâmbulo dessa directiva, constata-se que a razão da sua publicação se prende exclusivamente com o combate à criminalidade internacional organizada, incluindo organizações criminosas de tipo mafioso, que têm por principal objectivo o lucro, tentando dar às autoridades competentes os meios necessários para detectar, congelar, administrar e decidir a perda dos produtos do crime desse tipo de criminalidade. Assim, quando o artigo 3º desta directiva dispõe sobre o seu próprio objecto, determina que a mesma se aplique a crimes de corrupção, contrafacção de moeda, fraude e contrafacção de meios de pagamento, branqueamento de capitais, terrorismo, tráfico de estupefacientes, criminalidade organizada, tráfico de seres humanos, exploração sexual, pornografia infantil e ataques aos sistemas de informação (criminalidade informática).
 Pode questionar-se se, tal como acontece quanto ao objecto da directiva, a aplicabilidade do sistema normativo ínsito nos artºs 109º e ss. do C. Penal português estará reservado a algum catálogo de crimes.
O elemento literal da lei e a sua inserção sistemática parecem afastar, desde logo, tal conclusão.
Na ordem jurídico-penal portuguesa coexistem sistemas normativos especiais, relativos à perda de bens a favor do Estado, como os que previstos, v. g. nos artºs 35º e ss. da Lei nº 15/93, de 22/01 (“Lei da Droga”) e 12º-B da Lei nº 5/02, de 11/01, (estabelece medidas de combate à criminalidade organizada e económico-financeira) com um regime geral de perda de bens a favor do Estado, previsto na parte geral do C. Penal. Como é consabido, as directivas comunitárias vinculam os Estados destinatários quanto aos resultados visados, mas deixam-lhes a opção pelos meios mais adequados, na perspectiva do direito interno, para alcançar tais resultados.
Ora, a transposição da Directiva 2014/42/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de Abril de 2014 operada pela lei nº 30/17, de 30/05, tanto procedeu à modificação do regime de perda de bens a favor do Estado em alguns desses regimes especiais, v. g., aditando o artº 12º-B à referida Lei nº 5/02, de 11/01, como à modificação do regime geral, previsto no C. Penal. Logo, não pode afirmar-se que a transposição da directiva se tenha esgotado nas alterações feitas ao C. Penal, mas apenas que estas alterações aproveitaram o ensejo da directiva para melhorar esse regime geral.
A referida Lei nº 5/02, de 11/01 afirma expressamente, em contrapartida, que o regime especial de perda de bens a favor do Estado nela instituído é apenas aplicável as crimes de catálogo previstos no seu artº 1º. Logo, a única conclusão razoável, para que apontam todos os elementos hermenêuticos, o literal, racional, sistemático e histórico, é de que o regime de perda de bens a favor do Estado previsto no artº 109º e ss. do C. Penal é aplicável a todos e quaisquer crimes previstos na sua parte especial.
Não deixa de ser empiricamente observável, no entanto, que este instituto da perda de bens a favor do Estado ou confisco se perfila com maior acuidade ou, porventura, apenas se torna relevante, no tipo de criminalidade em causa na referida directiva, criminalidade esta que, entre outras particularidades, tende a desligar o elo de conexão normalmente facilmente apreensível existente entre as vantagens do crime e as correspondentes desvantagens. Queremos com isto significar que, neste tipo de criminalidade, as vantagens  patrimoniais alcançadas pelos agentes do crime provêm, ou de uma miríade de ofendidos ou de ofendidos que nenhum interesse têm em reclamar a recuperação de tais vantagens ou têm poucas possibilidades de o fazer, v. g., e respectivamente, tráfico de estupefacientes, corrupção ou tráfico internacional de pessoas ou pornografia de menores.
Estão em causa crimes em que, ou há um número indeterminável de lesados, ou há “victimless crimes”, em que os lesados nenhum interesse têm em desapossar os criminosos dos seus proventos ou em que as vítimas estão numa tal posição de fragilização ou mesmo fisicamente deslocados dos locais onde os crimes se repercutem, v. g., fraude com meios de pagamento por usurpação de identidade ou pornografia de menores através da internet. Perde-se, assim, a natural ligação e fácil apreensão da deslocação patrimonial de um ofendido para um agente do crime que normalmente existe na criminalidade tradicional, por oposição à criminalidade organizada e/ ou “internacional”. Onde existe esta ligação entre um lesante e um lesado patrimonial, não tem o Estado, normalmente, qualquer interesse em intervir para desapossar o agente do crime dos seus proventos, pois, como bem intuiu o legislador penal de 1886, o lesado é quem o interesse e motivação para esse desiderato (em sentido aproximado, Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime” Ed. Notícias, de onde se extraem, na pág. 633, as seguintes considerações: “À primeira vista, a consagração da perda das vantagens como providência de carácter criminal parece absurda: em princípio, com efeito, ela resulta automaticamente das regras da responsabilidade civil (nomeadamente sob a forma de restituição em espécie) ... Sem deixar de reconhecer-se, em todo o caso, que, sempre que tenha havido pedido civil conexo com o  processo penal, poucas serão as hipóteses em que a perda das vantagens poderá vir a ser decretada utilmente”. Também explorando esta linha de raciocínio - afigura-se-nos -, o Ac. TRG de 01/12/14, relatado pelo Desembargador Fernando Monterroso, de cujo sumário consta “Não há fundamento legal (nomeadamente nas normas do art. 111º nºs 1 e 4 do Cod. Penal) para que o autor de um furto seja condenado a pagar ao Estado um montante equivalente ao valor da vantagem patrimonial que obteve com a prática do crime, mesmo nos casos em que o ofendido não deduziu pedido de indemnização civil.” Conclui-se na fundamentação deste acórdão toda a sua tese inspiradora: “Bem ou mal, na economia dos nossos direitos penal e processual penal, só os lesados podem reclamar ser compensados pelos prejuízos directamente decorrentes da prática de um crime.
O perdimento de bens visa outros fins, diferentes da “substituição” do Estado aos direitos dos lesados”.
 Esta conclusão parece, no entanto, conflituar abertamente com a norma do (actual) artigo 110º, nº 1 do C. Penal, onde se dispõe que são declaradas perdidas a favor do Estado as vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, directa ou indirectamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.
Sendo esta norma, como vimos, aplicável ao agente de qualquer crime previsto na parte especial do C. Penal, torna-se difícil sustentar, como o faz o referido acórdão que, em face do elemento literal da norma, não possam ser declarados perdidos a favor do Estado as vantagens obtidas pelo autor de um crime de furto.
 Daí que João Conde Correia e Hélio Rigor Rodrigues, em artigo publicado em Abril de 2015 na revista digital “Julgar Online” tenham comentado criticamente este acórdão, concluindo que o quadro normativo vigente impõe a conclusão que inexiste qualquer limite ao confisco motivado pela mera possibilidade de ser deduzido um pedido de indemnização civil.
No entanto, se é certo que aquele acórdão parece desafiar abertamente a letra da lei, também os autores referidos e outra jurisprudência recente, em sentido diametralmente oposto ao acórdão da Relação de Guimarães, deixam na sombra as consequências práticas da conclusão de que a perda de bens a favor do Estado abstrai totalmente da dedução de um pedido cível pelo lesado (cfr. Acs. R. P. de 31/11/17 e 12/07/17, consultáveis in www.dgsi.pt).
Se parece sustentável que, quando o lesado não manifesta interesse em desapossar o agente do crime dos proventos que com ele obteve, a aplicação do regime de perda de bens a favor do Estado se pode aplicar irrestritamente, temos, por outro lado, que atentar no disposto no artº 110º, nº 6 do C. Penal, onde se dispõe “O disposto no presente artigo não prejudica os direitos do ofendido”. É na conjugação destas duas normas (nºs 1 e 6 do artº 110º do C. Penal) que reside o busílis da questão: como conciliar este aparente afã do Estado em desapossar os agentes do crime de todas as vantagens patrimoniais adquiridas com o direito que o Estado também reconhece ao lesado de exercitar os seus direitos?
Ora, que direitos reconhece a lei ao lesado?
Desde logo, manifestamente, o direito a exigir do agente do crime e autor do facto ilícito criminal, uma indemnização pelos seus prejuízos patrimoniais, nos termos previstos no artº 483º e ss. do C. Civil e 71º e ss. do C. P. P. Penal.
Em que medida é que este direito se compatibiliza com a declaração de perda das vantagens do crime a favor do Estado?
 É fácil afirmar, como tem feito alguma jurisprudência recente dos Tribunais superiores, referida no parágrafo anterior, que à declaração de perda de bens a favor do Estado é rigorosamente indiferente a dedução de pedido de indemnização pelo lesado.
Se é assim, como se conciliam, na prática, essas duas realidades?
Como proceder quando o lesado e o Estado se precipitam a requerer a mesma coisa: que o agente do crime perca, em seu favor, as vantagens do crime? O actual C. Penal não responde, minimamente, a esta questão, cabendo ao intérprete, por isso, conciliar estas duas vertentes da perda: é que, a restituição ao lesado dos bens com que o criminoso se avantajou faz perder interesse prático ao artº 110º do C. Penal, na medida em que o provimento na acção indemnizatória já logra ou tende a lograr integralmente o objectivo, a ratio legis do artº 110º do C. Penal: a mensagem preventiva geral que a comunidade não irá admitir que o agente do crime mantenha na sua posse as vantagens patrimoniais obtidas.
É que, convenhamos, ofenderia a mais elementar consciência jurídica que o agente do crime fosse obrigado a indemnizar o lesado e a devolver ao Estado as vantagens do crime coincidentes com essa lesão!
O artº 130º, nº 2 do C. Penal aparenta estabelecer a primazia do direito do Estado sobre o direito do lesado, ao estabelecer que, nos casos não cobertos pela legislação especial em que o Estado assegura a indemnização às vítimas de crimes, o Tribunal pode atribuir ao lesado, a requerimento deste e até ao limite do dano causado os instrumentos, produtos ou vantagens declarados perdidos a favor do Estado, ao abrigo do disposto nos artºs 109º a 111º do C. Penal. Daqui parece poder inferir-se que existiria um direito primacial do Estado a ser investido na propriedade dos bens, a que se seguiria a satisfação de um direito secundário do lesado a ser ressarcido com o produto dos seus bens.
 Não nos parece que este artigo da lei deva ser lido desta forma. De facto, o lesado não tem interesse ou vantagem em exercitar o direito que esta norma lhe concede, quando já deduziu um pedido de indemnização com esse mesmo objecto. A norma em causa deverá ser interpretada como restringindo-se aos casos em que o lesado não deduziu no processo pedido de indemnização.
A Constituição da República Portuguesa protege, no seu artº 62º, nº 1, o direito à propriedade privada. Da conjugação deste artigo da lei fundamental com o artº 1305º do C. Civil decorre que o direito de propriedade da vítima de um crime prevalece necessariamente sobre o interesse de política criminal do Estado em ver declarada a perda, a seu favor, das vantagens do crime. Nesta medida, consideramos que, na concorrência entre o pedido de indemnização por danos patrimoniais fundado na prática de um crime e a pretensão do Estado na declaração de perda a seu favor das vantagens do mesmo, este último não deverá merecer deferimento, ao menos até à parte em que coincidem a perda do lesado e a vantagem do agente do crime.
Mais consideramos que o Estado não pode, sequer, instrumentalizar, em seu favor, o direito de propriedade privada do lesado, adquirindo os bens mesmo contra a vontade do lesado. Mesmo desapossado dos bens pelo agente do crime, o lesado não deixa de ser o legítimo proprietário dos mesmos, pelo que, na hipótese, v. g., de declarar expressamente prescindir deles em favor agente do crime (numa palavra: oferecendo-lhos), não pode o Estado, no âmbito da sua pretensão punitiva e na prossecução da sua política criminal, sobrepor-se a esta vontade do lesado, na medida em que tal solução seria claramente inconstitucional, em face do referido artº 62º, nº 1 da CRP  (que protege o direito de transmissão em vida do direito à propriedade). Não pode o Estado, por isso, contrariar o eventual desejo do lesado pela prática de um crime em agraciar o criminoso com os seus bens.
Isto é válido, por exemplo, nas situações em que, tendo o lesado deduzido no processo criminal um pedido de indemnização, vem a desistir do pedido, no decurso do processo.
Mais difícil é a resposta à questão da decisão de perda das vantagens do crime a favor do Estado nas situações em que o lesado não deduz pedido de indemnização, desinteressando-se dos seus direitos patrimoniais lesados.
Afigura-se-nos incontroverso que as situações em que não existe um elo de ligação facilmente apreensível entre as vantagens patrimoniais do crime e as correspondentes desvantagens, v. g., quando estão em causa “victimless crimes” ou crimes em que está em causa um número indeterminado de lesados, representam o domínio indisputado do instituto da perdas de bens a favor do Estado, não apenas aliás, da perda clássica, como, sobretudo, da perda ampliada de bens.
Para os casos em que é simples a ligação entre o avantajamento patrimonial do agente do crime e o empobrecimento de um ou vários ofendidos, resulta insatisfatória, actualmente, a resposta dada pelo legislador de 1886 e perfilhada pela Relação de Guimarães (ac. citado), segundo os quais o Estado não deve intrometer-se nesta matéria, que representaria um problema de lesante e de lesado, que a este competiria exclusivamente decidir. Em abono desta tese, pode alegar-se que, em matéria de crime de natureza particular e semi-pública, o ofendido tem sempre o direito discricionário da própria  perseguição criminal do agente do crime, pelo que, por maioria de razão, teria também a discricionariedade de privar ou não o agente dos seus proveitos, quando exercesse queixa.
Esta ideia parece, no entanto, ser contrariada pela letra expressa da lei (artº 110º do C. Penal), sabendo-se que o intérprete não pode afastar abusivamente a sua interpretação da letra da lei (cfr. artº 9º, nº 2 do C. Civil).
 Parece ser também contrariada pelo reconhecimento do fortíssimo efeito preventivo geral que a remoção das vantagens do crime tem sobre a criminalidade que as visa.
É certo que não deixa de existir alguma instrumentalização, por parte do Estado, relativamente a bens que lhe não pertencem, mas esta ideia ganha pouca relevância material nas situações em que o lesado se desinteressou desses bens e, por isso, esta perspectiva da questão não tem força axiológica bastante para obstar à intenção de política criminal que subjazeu ao instituto ínsito ao artº 110º do C. Penal.
Nesta medida, parece que a interpretação mais adequada ao pensamento legislativo quanto ao instituto da perda de bens a favor do Estado é que este perdimento deve comprimir-se quando em presença do instituto concorrente do pedido de indemnização pelo lesado e deve expandir-se quando este se desinteressa do seu património, perdido para o agente do crime.
Uma questão aparentemente ainda mais complexa é que a resulta da pretensão do Ministério Público deduzida nestes autos, em que o ofendido/lesado e a entidade que vem requerer a perda de bens a seu favor se confundem – o Estado.
Deve salientar-se, de qualquer modo, que o Ministério Público funda o seu pedido em normas que em nada se relacionam nem fundamentam a sua pretensão. De facto, pretende que os arguidos sejam  condenados a devolver ao Estado a vantagem correspondente à actividade criminosa desenvolvida, o que a lei regula nos nºs 2 e 4 do artº 110º do C. Penal, mas fundamenta esse pedido com o disposto nos números 2 e 4 do artigo subsequente, que diz respeito às situações em que os bens pertençam a terceiro e que, manifestamente, não releva neste caso. Quererá o Ministério Público, seguramente, aludir ao disposto nos números 2 e 4 do artº 110º, que correspondiam, de facto, aos anteriores nºs 2 e 4 do artº 111º, que invoca, antes da alteração introduzida pela Lei nº 30/17, de 30/05. Mesmo nesta situação valem as considerações genéricas expostas nos parágrafos anteriores, segundo as quais a dedução de um eventual pedido de indemnização, pela lesada Autoridade Tributária, representada pelo Ministério Público, pretere a perda de bens a favor do Estado.
Considera o Tribunal que não faz o menor sentido o deferimento judicial de ambas as pretensões, caso se conjugassem num mesmo processo, pois que o objecto de uma é coincidente com o objecto da outra, ou seja, a condenação do arguido a pagar ao Estado aquilo em que ela ficou fiscalmente prejudicado coincide com a sanção dos arguidos ao perdimento dos mesmos a favor do Estado.
Vale também aqui o princípio de que o recurso ao instituto de perdimento a favor do Estado apenas se justifica quando o lesado se desinteressa da recuperação do seu património.
Se resulta dos autos que o lesado não se desinteressa do seu património, ou, porque deduz o pedido de indemnização ou, porque tem outros meios de ser ressarcido, eventualmente até mais rápidos e eficazes, também se não justifica ao recurso ao instituto de perda de bens a favor do Estado.
Seguimos, nesta matéria, o entendimento (…)segundo o qual “A perda de vantagens não pode prejudicar o direito de reparação do património do titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação e que sofreu danos ocasionados pelo facto ilícito típico. Nos casos em que a perda de vantagens corresponda à obrigação de indemnização civil decorrente da prática do facto ilícito típico apenas pode ser decretada se o titular dos danos causados pelo mesmo se desinteressar pela reparação do seu direito. Não pode ser decretada a pena de perda de vantagens (quantia correspondente ao IVA apropriado pelo arguido) nos casos em que a Autoridade Tributária e Aduaneira comunicou ao MºPº que não pretendia deduzir pedido de indemnização civil por considerar suficiente os meios legais previstos para a execução fiscal da vantagem.” No mesmo sentido, o Ac. R. P. de 22/03/17, relatado pela Desembargadora Airisa Caldinho segundo o qual “Não há lugar ao decretamento da perda de vantagens (artºs 111º CP) se o Estado (A.T.) optou pela recuperação do seu crédito de imposto através da execução fiscal, arredando o Mº Pº de intervenção na recuperação daquela quantia por considerar ter meios suficientes para cobrança coerciva desse imposto. Ainda no mesmo sentido e da mesma R. P. o Ac. De 07/12/16, relatado pela Desembargadora Maria Dolores da Silva e Sousa, segundo a qual “Quando as vantagens do crime não vão além do prejuízo da vítima e o lesado não prescinde da reparação, apresentando o respectivo pedido, a providência não terá justificação. (…)
A vantagem do crime pode deixar de ser declarada perdida a favor do Estado quando o ofendido possa ser restabelecido do seu direito de forma mais eficaz ou menos onerosa ou mais vantajosa ou por outras vias legais” (todos disponíveis para consulta in www.dgsi.pt).
Resulta expressamente dos autos (cfr. fls. 307), que a autoridade tributária deu instruções expressas para que não fosse deduzido pedido de indemnização nestes autos, porquanto está decorrer processo de execução fiscal para cobrança coerciva das dívidas tributárias em causa, ou seja, a lesada não se desinteressou, de todo, pela recuperação do seu património.
É de entender que, onde a autoridade tributária não pretende deduzir pedido de indemnização, por já ter recorrido a outros meios que lhe dão as mesmas prerrogativas que obteria com a dedução do pedido cível, não se justifica nem tem fundamento o recurso à declaração de perda de bens a favor do Estado, com um objecto coincidente à dedução do pedido de indemnização e de que a lesada expressamente prescindiu.
Vide aqui e supra citando decisão judicial in,
https://comarcas.tribunais.org.pt/comarcas/juris2/madeira/pdf/Senten%C3%A7a%20proferida%20no%20P.%20C.%20S.%2091-14.pdf.         
Em síntese conclusiva e face à pretensão do Ministério Público no recurso que interpôs, concluímos que no caso dos autos, mais ainda reforçada sai a decisão recorrida, pois deflui dela e estando manifestamente documentada nos autos (vide fls. 288 até 292 e fls. 272), que a AT RAM munida do devido titulo executivo instaurou execução fiscal contra as arguidas, manifestando interesse na recuperação do seu património, encontrando-se estas pagar, segundo o plano gizado, a quantia exequenda que se encontra em divida nos presentes autos, acrescida naturalmente dos juros devidos, pelo que, não podendo nem devendo penalizar duplamente as arguidas, teremos de julgar improcedente o recurso interposto pelo Ministério Publico.
Desta forma e tendo em conta todo o atrás exposto, julga-se não provido o recurso interposto pelo Ministério Público, mantendo-se na íntegra a decisão recorrida.

III.DECISÃO
Face ao exposto, julga-se não provido o recurso interposto pelo Ministério Público, mantendo-se na íntegra a decisão recorrida.
Sem custas por não serem devidas.
Notifique e D.N.
Lisboa, 7 de Novembro de 2019
(elaborado em computador e integralmente revisto pela Juíza Desembargadora signatária nos termos do disposto no artº 94º nº 2 do C.P.P.)

Filipa Costa Lourenço
Cristina Santana