Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | CARLOS CASTELO BRANCO | ||
Descritores: | ACÇÃO POPULAR IMPROBABILIDADE DE PROCEDÊNCIA DO PEDIDO BENS DE CONSUMO REENVIO PREJUDICIAL | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 05/25/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
Sumário: | I) Deve admitir-se a junção aos autos, nos termos do artigo 651.º, n.º 2, do CPC, o documento apresentado em recurso, consistente numa peça processual (resposta) elaborada pelo Ministério Público noutro processo judicial, constituindo específico trâmite desse processo, mas que, na economia dos presentes autos, tem a feição de um parecer jurídico, por representar uma posição opinativa sobre determinadas questões jurídicas, que se suscitam também nos presentes autos, relevando, na perspetiva dos autores, para a decisão dos mesmos. II) O artigo 13.º da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto contém um regime especial de indeferimento da petição inicial numa ação popular, o qual determina o indeferimento “quando o julgador entenda que é manifestamente improvável a procedência do pedido, ouvido o Ministério Público e feitas preliminarmente as averiguações que o julgador tenha por justificadas ou que o autor ou o Ministério Público requeiram”. III) A manifesta improbabilidade de procedência do pedido, pressupõe a análise da matéria de facto alegada e a subsunção à lei substantiva, mediante apreciação da causa de pedir e pedido invocados (pretensão, no caso, sustentada na inobservância do regime de garantia de bens de consumo, previsto no D.L. n.º 67/2003, de 8 de abril e, no diploma legal que lhe sucedeu, o D.L. n.º 84/2021, de 18 de outubro), por forma a se poder concluir, inequivocamente, que o autor não tem o direito que invoca. IV) Resultando da matéria de facto invocada pelos autores populares, da causa de pedir (conjunto de factos constitutivos da situação jurídica que os autores querem fazer valer de forma conjunta) e os pedidos que formularam (revelando a exercitação de um direito comum ou paritário a todos eles –consistente em terem adquirido à ré um bem de consumo (disco rígido), relativamente ao qual se verifica, no prazo de garantia, falta de conformidade com o contrato de compra e venda, falta não colmatada pela ré, mediante invocada recusa indevida desta)– conclui-se existir, face aos autores populares, interesse homogéneo na demanda, que legitima a presente ação popular. V) As eventuais divergências no apuramento de danos dos autores, não determinam qualquer juízo sobre a natureza dos interesses subjacentes à sua pretensão, os quais radicam, de modo paritário ou homogéneo, na circunstância de, os autores, não terem visto colmatada a falta de conformidade registada no bem de consumo que adquiriram. VI) Não ocorre, em face disso, circunstância que determine ser manifestamente improvável a procedência do pedido, não se mostrando justificada a decisão de indeferimento liminar da petição, ao abrigo do artigo 13.º da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto. VII) A dispensa do dever de reenvio prejudicial, instituto a que se refere o artigo 267.º do TFUE, no caso de ser insuscetível o recurso, é admitida em determinadas situações, a saber: 1.ª) Quando a questão de direito da União Europeia suscitada for impertinente ou desnecessária para a resolução do litígio concreto; 2.ª) Quando inexista dúvida razoável acerca do modo como deve ser interpretado o direito da União Europeia por referência à concreta questão suscitada – doutrina do acto claro: O Tribunal nacional considera que as normas da União Europeia aplicáveis não suscitam dúvidas interpretativas ou são suficientemente claras e determinadas, sendo aptas para serem aplicadas imediatamente, resultando a “clareza” das normas aplicáveis da sua interpretação teleológica e sistemática e da referência ao contexto histórico, social e económico em que foram adoptadas; 3.ª) Quando a questão esteja claramente estabelecida ou definida pela jurisprudência do TJUE, atento o efeito erga omnes das suas decisões – doutrina do acto clarificado; 4.ª) Quando a colocar ao TJUE seja materialmente idêntica a uma outra que já foi objecto de decisão, com carácter prejudicial, em assunto análogo. VIII) No caso, o reenvio prejudicial não tem, neste momento, justificação, não se afigurando, alguma pertinência ou necessidade na colocação de questão prejudicial junto do TJUE, em suma, pela seguinte ordem de razões: 1ª) Atenta a procedência da apelação, determinando o prosseguimento dos autos, verifica-se que a presente decisão, de caráter interlocutório, não decide, em última instância, o pleito, pelo que, inexistindo dupla conforme, não se alcança obrigatoriedade na submissão de questão prejudicial junto do TJUE; 2ª) Encontrando-se o presente processo numa fase preliminar (e sabendo-se que, idealmente, a colocação de questão prejudicial deve ser “tomada numa fase do processo em que o órgão jurisdicional de reenvio esteja em condições de definir, com precisão suficiente, o quadro jurídico e factual do processo principal, bem como as questões jurídicas que este suscita”, sendo desejável que o reenvio tenha lugar “na sequência de um debate contraditório” – cfr. ponto 13, das Recomendações do Tribunal de Justiça da União Europeia à atenção dos órgãos jurisdicionais nacionais, relativas à apresentação de processos prejudiciais (2018/C 257/01, publ. no JOUE, C 257, de 20-07-2018) não se mostra, por ora, pertinente ou relevante, o reenvio prejudicial; 3ª) Na prolação da decisão em apreço, não se mostra convocada, de algum modo, a interpretação de normas da Diretiva (UE) 2019/771, não tendo, também nesta perspetiva, pertinência ou utilidade, a submissão de questão prejudicial junto do TJUE; 4ª) Não se alcança existir dúvida de interpretação das disposições da Diretiva (UE) 2019/771 (ou de quaisquer outras normas de direito da União Europeia) em face das questões suscitadas nesta sede (mesmo na petição inicial, os autores aludem a uma contraditoriedade do “comportamento da ré” com as disposições dos “artigos 8 e 9 da diretiva 2005/29/CE, da diretiva (EU) 2019/771, dos artigos 3 (a) (d) (e) (f) e 4 da lei 24/96, dos artigos 5, 6 (a, b), 7 (1, a, b) (2), 12 (1), 15 (1, a), 18 (1) (2) (5 – por interpretação extensiva), 40 (1) e 43 (1) do decreto-lei 84/2021 e do decreto-lei 446/85”), mas, em si mesmo, não se alcança, da alegação efetuada, algum dissídio interpretativo face a qualquer texto normativo. | ||
Decisão Texto Parcial: | |||
Decisão Texto Integral: | Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: 1. Relatório: 1. CITIZENS' VOICE - CONSUMER ADVOCACY ASSOCIATION e OV, identificados nos autos, intentaram contra FNAC PORTUGAL – ACTIVIDADES CULTURAIS E DISTRIBUIÇÃO DE LIVROS, DISCOS MULTIMÉDIA E PRODUTOS TÉCNICOS, LDA., também com os sinais dos autos, a presente ação declarativa popular de condenação. Formularam na petição inicial que apresentaram, o seguinte pedido: “(…) A. deve a ré ser condenada a reconhecer que os consumidores, autores populares, incluindo o autor 2, têm direito a que lhe seja entregue o bem e serviço conforme o contrato de compra e venda; B. deve a ré ser condenada a reconhecer que em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, os consumidores, autores populares, incluindo o autor 2, têm direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou substituição; C. deve a ré ser condenada a reconhecer que não pode recusar-se a reparar e / ou indemnizar os consumidores, autores populares, incluindo o autor 2, por todos os danos manifesta e comprovadamente provocados pela falta de conformidade de um produto que lhe foi vendido e que existia no momento em que os bens lhe foram entregues, manifestada num prazo de dois anos a contar desse momento por intermédio da responsabilidade civil; D. deve a ré ser condenada a reconhecer que o comportamento supra descrito nos pontos anteriores, ao não ter reconhecido os mesmos perante o autor 2 e demais autores populares é ilícito; E. deve a ré ser condenada a reconhecer que agiu com culpa e consciência da ilicitude no que respeita aos factos supra referidos, seja quanto ao autor 2, como quanto aos autores populares; F. deve a ré ser condenada a reconhecer que em resultado do comportamento supra descrito no § 3, nomeadamente, mas não exclusivamente, ao recusar-se reparar os consumidores, autores populares, incluindo o autor 2, pelos danos provocados pela falta de conformidade dos discos rígidos e que resultou na inacessibilidade aos dados digitais nos mesmos armazenados, provocou os danos patrimoniais e não patrimoniais referidos no § 3; G. deve a ré ser condenada a reconhecer que com esse comportamento lesou gravemente os interesses do autor 2 e dos demais autores populares, nomeadamente sonegando-lhes o direito à garantia e reparação dos danos nos termos gerais do direito. e em consequência: H. deve a ré ser condenada a repor a falta de conformidade supra aludida no §3 dos discos rígidos a todos os autores populares e ao autor 2, sem qualquer encargo ou ónus por meio da reparação; I. no caso de não ser possível à ré repor a falta de conformidade dos discos rígidos conforme pedido anteriormente, deve esta ser condenada a substituir os mesmos por outros iguais ou com as mesmas características a todos os autores populares e ao autor 2; J. deve a ré ser condenada a recuperar os dados armazenados nos discos rígidos e inacessíveis por causa da falta de conformidade aludida no supra § 3 dos discos rígidos a todos os autores populares e ao autor 2, sem qualquer encargo ou ónus por meio da reparação; K. no caso de não ser possível à ré repor a falta de conformidade dos discos rígidos conforme pedido anteriormente, deve a mesma ser condenada a pagar uma indemnização nunca inferior a €8.000 (oito mil euros) a cada um dos autores populares, incluindo o autor 2, sem prejuízo de se apurar prejuízos mais elevados em execução de sentença, o que desde já se requer; L. deve a ré ser condenada a pagar uma indeminização por todos os restantes danos causados na esfera jurídica dos autores populares e autor 2 devido ao comportamento supra descrito no § 3, nomeadamente, mas não exclusivamente, da privação de uso e dos danos não patrimoniais supra descritos, a serem fixados pelo tribunal mediante indagação oficiosa, ordenando, designadamente, a produção de prova pericial, o que pode ser feito em sede de liquidação de sentença, mas nunca inferiores, no computo, a € 100 (cem euros) por consumidor, acrescido de € 5 (cinco euros) por dia, desde a apresentação dos discos rígidos para reparação e recuperação dos dados digitais, ou pagamento de indeminização dos danos causados por essa falta de reparação e recuperação. M. no caso de algum ou todos os pedidos supra não procederem total ou parcialmente, deve ser aplicado, a título subsidiário, o instituto de enriquecimento sem causa como peticionado §4 (l). N. em qualquer caso, as indemnizações devem ser acrescidas de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, ou, caso assim não se entenda, desde a citação da presente ação até ao seu integral pagamento. O. Ser a ré condenada a pagar todos os encargos que a autora interveniente tive ou venha ainda a ter com o processo, nomeadamente, mas não exclusivamente, com os honorários advocatícios, pareceres jurídicos de professores universitários, pareceres e assessoria necessária à interpretação da vária matéria técnica [tanto ao abrigo do artigo 480 (3) do CPC como fora do mesmo preceito], que compreende uma área de conhecimento jurídicoeconómico complexo e que importa traduzir e transmitir com a precisão de quem domina a especialidade em causa e em termos que sejam acessíveis para os autores e seu mandatário, de modo a que possam assim (e só assim) exercer eficazmente os seus direitos, nomeadamente de contraditório, e assim como os custos com o financiamento do litígio (litigation funding) que entretanto venha obter por via de celebração de um contrato. P. porque o artigo 22 (2) da Lei 83/95 estatui, de forma inequívoca e taxativa, que deve ser fixada uma indemnização global pela violação de interesses dos titulares ao individualmente identificados, mas por outro lado é omissa sobre quem deve administrar a quantia a ser paga, nomeadamente quem deve proceder à sua distribuição pelos autores representados na ação popular, vêm os autores interveniente requerer que declare que CITIZENS’ VOICE – CONSUMER ADVOCACY ASSOCIATION, agindo como autora interveniente neste processo e em representação dos restantes autores populares, têm legitimidade para exigir o pagamento das supras aludidas indemnizações, incluindo requerer a liquidação judicial nos termos do artigo 609 (2) do CPC e, caso a sentença não seja voluntariamente cumprida, executar a mesma, sem prejuízo do requerido nos pontos seguintes. Q. requer-se ainda que Vossa Excelência decida relativamente à responsabilidade civil subjetiva conforme § 14 infra, apesar de tal decorrer expressamente da lei 83/95, sem necessidade de entrar no pedido. R. requer-se também que Vossa Excelência decida relativamente ao recebimento e distribuição da indemnização global nos termos do § 15, apesar de tal decorrer expressamente da lei 83/95, sem necessidade de entrar no pedido.”. Alegaram, em síntese que: - A autora CITIZENS’ VOICE é uma associação que tem como fim a defesa dos consumidores na União Europeia, seus associados, e dos consumidores em geral, que na prossecução dos fins referidos, pode praticar todos os atos jurídicos adequados para o efeito, nomeadamente, promover e intentar ações judiciais, incluindo o recurso ao direito de ação popular ou ações coletivas; - O autor OV é cidadão português com domicílio em Portugal; - A ré é uma pessoa coletiva que exerce, com carácter profissional, uma atividade económica que visa a obtenção de benefícios, por intermédio da prestação de serviços e de venda de produtos culturais e eletrónicos; - Em 18.11.2021 o autor OV adquiriu à ré um disco rígido destinado a atividade não profissional; - O disco adquirido deixou de permitir o acesso ao conteúdo digital nele armazenado bem como de armazenar novo conteúdo digital; - O que determinou a perda de todo o conteúdo digital nele armazenado num total de cerca de 5GB em vários documentos digitais desenvolvidos pela Microsoft Office Word, nomeadamente: relativo a um livro com 501 páginas, escrito em língua inglesa, que implicou, tendo em vista a primeira publicação mais de 177 edições para copyediting e proofreading desenvolvidos durante mais de meio ano e por mais de 4 horas diárias, todos os dias; livro com 153 páginas, escrito em língua portuguesa, espanhola e italiana para publicação, que consumiu várias horas ao autor OV; pedido de patente nacional …, cujos direitos são titulados pela sociedade Thorn Assets, Lda, traduzido por uma profissional qualificada, para língua inglesa, com o objetivo de apresentar um pedido de prioridade junto do European Patent Office (“EPO”), o qual tem de ser feito até 17.08.2022 e que a ser aprovada poderá valer, a nível europeu, mais de 100 milhões de euros; vários documentos digitais relativos a vários pedidos de patentes nacionais, cujos direitos são titulados pela sociedade Thorn Assets. Lda.; documentos de cálculo financeiro, incluíndo folhas de cálculo financeiro, documentos pessoais, documentos relacionados com processos judiciais; - Computa o autor OV em quantia não inferior a €8.000,00 o orçamento mínimo para a recuperação de dados em disco rígido. - A recuperação dos dados digitais é possível e a ré recusou-se a recuperar os dados do autor, apesar de o produto se encontrar no prazo de garantia; - A ré impôs ao autor um contrato de adesão designado “Condições Gerais Reparações e Serviços” ao qual o autor OV aderiu; - A privação do uso do objecto e dos dados armazenados causaram danos: os não patrimoniais -frustração, preocupação, angústia, tristeza, o que valorizam em €100,00; e os patrimoniais de, pelo menos, €8.000,00 de custo de recuperação; - A ré violou o direito dos consumidores; - Os danos morais causados pela ré traduzem todo o universo de interesses homogéneos, sendo homogeneamente partilhados e sofridos por todos os autores populares, a saber: sofrimento com a quebra da confiança depositada na honestidade da insígnia da ré; a desconfiança, preocupação, transtornos e incómodos que decorrem da quebra de confiança que o comportamento da ré incutiu nos autores populares que agora sentem receio de armazenar dados digitais nos discos rígidos adquiridos à ré; - Sofreram preocupação, transtorno e incómodos decorrentes de verificarem que não têm acesso aos dados digitais armazenados, por vezes importantes para a sua subsistência ou levando à sua responsabilização perante terceiros; - A ré não cumpriu com o dever de reparação e indemnização, conhecendo os deveres referidos que sobre ela se impunham. * 2. Tramitando os autos inicialmente no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Central Cível de Vila Nova de Gaia - Juiz 1, por despacho de 29-09-2022, foi julgada verificada excepção dilatória de incompetência territorial e remetidos os autos ao Juízo Central Cível de Lisboa. * 3. Distribuídos os autos ao Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Central Cível de Lisboa, Juiz 15, em 13-10-2022 foi proferido despacho a fixar o valor da causa em € 60.002,00 e a determinar a audição do MINISTÉRIO PÚBLICO, nos termos do disposto no artigo 13.º da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto. * 4. Ouvido o MINISTÉRIO PÚBLICO, o mesmo pronunciou-se dizendo nada ter a opor ao prosseguimento da acção. * 5. Após, em 28-10-2022, foi proferido despacho de indeferimento liminar da petição inicial, constando da respetiva fundamentação, nomeadamente, o seguinte: “Nos termos do disposto no artº 53º nº 3 da CRP “É conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de acção popular nos casos e termos previstos na lei, incluindo o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização, nomeadamente para: a) Promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções contra a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida e a preservação do ambiente e do património cultural;…” Este direito veio a ser regulado pela Lei 83/95 de 31.8, lei que “define os casos e termos em que são conferidos e podem ser exercidos o direito de participação popular em procedimentos administrativos e o direito de acção popular”. E, de acordo com a mesma lei “…são designadamente interesses protegidos pela presente lei a saúde pública, o ambiente, a qualidade de vida, a protecção do consumo de bens e serviços, o património cultural e o domínio público”.— No caso dos presentes autos está em causa o direito de consumidor. Este está definido na Lei 24/96 de 31.7 no seu artº 2º nº 1 do seguinte modo: “Considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios.”- De acordo com a decisão preferida a 24.11.202, no Acórdão da T.R.L. no âmbito do processo 7692/20.2T8LSB-A.L1-7: “I. Através de uma acção popular todos os membros de uma comunidade, ou, pelo menos, um grupo de pessoas não individualizável pela titularidade de qualquer interesse directamente pessoal, estão investidos de um poder de acesso à justiça visando tutelar situações jurídicas materiais que são insusceptíveis de uma apropriação individual. II. O objecto de uma acção popular são os interesses difusos, onde podem incluir-se, quer os interesses difusos “stricto sensu", quer os interesses colectivos, quer ainda os respectivos interesses individuais homogéneos. III. Tal objecto nunca pode compreender direitos ou interesses meramente individuais, donde a diferença que existe entre a acção popular e a acção individual ser a mesma que existe entre o interesse difuso e interesse individual. IV. Os interesses difusos são interesses que possuem uma dimensão individual e supra-individual, ao contrário dos interesses individuais, que só possuem uma dimensão individual, pertencem exclusivamente a um ou a alguns titulares. V. São interesses que se encontram dispersos ou disseminados por vários titulares, mas são interesses sem sujeito ou sem titulares, que cabem a todos e cada um dos membros de uma classe ou de um grupo, mas que são insusceptíveis de apropriação individual por qualquer desses sujeitos, sendo, pois, a dupla dimensão individual e supra-individual uma característica essencial desses interesses. VI. São também indiferenciados, não só porque podem pertencer a qualquer sujeito que se inclua numa certa classe ou categoria, mas também porque eles existem independentemente de qualquer relação voluntária estabelecida entre os seus titulares. VII. São ainda interesses de uma classe ou de um grupo, ou seja, de um conjunto de pessoas que podem satisfazer uma necessidade através da apropriação de um mesmo bem e é por isso que se pode falar também de interesses difusos de consumidores. VIII. A acção inibitória prevista no artigo 10.º, n.º 1, proémio, da Lei de Defesa do Consumidor, aprovada pela Lei 24/96, de 31.07, deve ser considerada, quando seja proposta por um consumidor ou por uma associação de consumidores, uma acção popular. IX. A acção popular não é admissível quando o demandado possa invocar contra algum ou alguns dos representados uma defesa pessoal, isto é, quando possa utilizar fundamentos de defesa específicos contra alguns desses representados. (…) XI. A pretensão formulada pelos requerentes de que «a requerida seja «inibida, de imediato, de cobrar aos consumidores valores que estes não tenham expressamente contratado, no âmbito dos serviços referidos no Art. 11º desta providência”, Go4Mobility, Mobibox, ou outros análogos[i], por via do mecanismo WAP BILLING, aos quais os consumidores não tenham dado o seu consentimento expresso para contratar – Art.11º e 13º da Lei de Defesa do Consumidor», extravasa o âmbito do direito de acção popular, pois sempre seria necessário determinar: - quais os consumidores aos quais a requerida está a cobrar valores não expressamente contratados, no âmbito daqueles serviços; - quais os consumidores que deram e quais os que não deram o seu consentimento expresso para contratar. XII. É que não está aqui em causa um conjunto de interesses materiais solidariamente comuns aos membros de uma comunidade e cuja titularidade se mostra indivisível através de um processo de apropriação individual, ou seja, estão em causa, à luz do pedido formulado no requerimento inicial e da causa de pedir que lhe subjaz, não interesses difusos, mas direitos ou interesses individuais, pertencentes a alguns titulares, ou seja, segundo os requerentes, aos consumidores aos quais a requerida está a cobrar valores não expressamente contratados, no âmbito dos serviços referidos em X., ou outros análogos, e que não deram o seu consentimento expresso para contratar.” E no ponto III do Acórdão proferido a 8.9.2016 no processo 7617/15.7T8PRT.S1 “III- A tutela do interesse difuso supõe a abstração de particularidades respeitantes a cada um dos titulares, pois o que sobreleva é a proteção do interesse supra individual e a prossecução da finalidade visada com a sua criação na ordem jurídica, o que prescinde da apreciação de qualquer especificidade; porém, quando por intermédio daquela acção se almeje a tutela de um interesse colectivo, releva a proteção de situações individuais dos respectivos titulares, sendo que tal é admissível apenas até ao limite em que seja aceitável uma apreciação indiferenciada das mesmas, sem que, contudo, se dispense a análise individualizada de cada uma. IV - Posto que a ação popular não é admissível quando o demandado possa invocar diferentes defesas contra os vários representados, deve-se atentar na posição por este assumida, assumindo-se assim aquela possibilidade como um critério prático para discutir a sua admissibilidade.” Assim e muito sinteticamente: ⎯ A acção popular pode ser instaurada para promover a protecção do consumo de bens e serviços. ⎯ São “consumidores” todos aqueles a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, por pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios; ⎯ O objecto de uma acção popular são os interesses difusos, onde podem incluir-se os interesses difusos “stricto sensu" ou os interesses colectivos e ainda os respectivos interesses individuais homogéneos. - O objeto da acção popular não compreende direitos ou interesses meramente individuais - A ação popular não é admissível quando o demandado possa invocar diferentes defesas contra os vários representados. No caso concreto, afirmam os autores que o autor OV adquiriu à ré (que se dedica à prestação de serviços e de venda de produtos culturais e electrónicos) a 18.11.2021 um disco rígido. Em data que não precisa, aquele equipamento deixou de permitir o acesso ao conteúdo nele já armazenado, bem como deixou de permitir a gravação de outra informação; por conseguinte, deixou de cumprir a função para que se destinava e determinou que o autor perdesse o conteúdo que nele ali se encontrava. Para a recuperação dos dados acondicionados no equipamento, operação que é passível de ser realizada, afirmam os autores que o autor OV despenderá quantia que não pode precisar, mas não inferior a €8.000,00. A ré recusa-se a recuperar os dados do autor OV, como também se recusa a fazê-lo para qualquer outro cliente. Em perícia realizada a impulso do autor OV, apurou-se que o equipamento tem um defeito de fabrico que não permite o arranque. A ré recusou-se a recuperar o equipamento. A privação dos dados armazenados causou ao autor danos patrimoniais e não patrimoniais: no que respeita aos primeiros, o custo da recuperação dos dados, em montante não inferior a € 8.000,00, e outros susceptíveis de serem apurados em execução de sentença mediante a prova que cada um dos autores populares trouxer dos danos e custos de reparação; quanto aos segundos, os decorrentes da perda de confiança nos equipamentos de armazenamento adquiridos à ré, o sofrimento dos autores com a preocupação, transtorno e incómodos decorrentes de verificarem que não tem acesso aos dados digitais armazenados, por vezes importantes para a sua subsistência ou levando à sua responsabilização perante terceiros, como acontece com o autor 2. A ré não cumpriu com o dever de reparação e indemnização.— No caso não estão em causa interesses públicos. Estes são os gerais da comunidade, os do Estado, e a sua defesa está cometida ao MºPº. Os interesses difusos são os do indivíduo mas enquanto parte de uma comunidade. “Os interesses públicos aferem-se pelas necessidades gerais da colectividade, pelo que, ainda que seja apenas o interesse de um único individuo, esta satisfação corresponde a um interesse público se ela for imposta por aquelas necessidades gerais. Em contrapartida, os interesses difusos só são delimitáveis em função das necessidades concretamente satisfeitas aos membros de uma colectividade: como esses interesses se desdobram numa dimensão individual e numa dimensão supra-individual, não há interesses difusos que não satisfaçam efectivamente uma necessidade de todos e de cada um dos membros da colectividade.” (Miguel Teixeira de Sousa, A Legitimidade Popular na Tutela dos Interesses Difusos”, Lex, Lisboa, 2003, pp 31-31). Os interesses individuais homogéneos são aqueles de cada um dos titulares do interesse difuso, assumindo uma natureza que ultrapassa a individual. Donde se conclui que em causa estão interesse individuais que não são homogéneos.— Nessa medida, as referidas consequências da avaria ou do defeito de fabrico do equipamento adquirido à ré, ainda que viessem a demonstrar-se terem ocorrido e serem danosas, não podem ser ressarcidas ou garantidas através da acção popular. Explicitando: Com o não acesso ao conteúdo digital já guardado podem ter-se verificado consequências na vida do autor popular OV (ou não, caso o mesmo tenha um outro suporte com os mesmos elementos, tendo em conta a importância que lhes atribuí); não obstante, a perda de acesso repercutir-se-á de forma distinta relativamente a cada um dos possíveis adquirentes do disco defeituoso.— Por exemplo, se uns o utilizaram para armazenar dados da sua vida profissional, outro tê-lo-ão utilizado par arrecadar informações relativas a passatempos, ou fotografias, ou gravações de férias; se uns depositaram no equipamento o armazenamento completo de dados, outros ter-se-ão revenido com cópias de segurança em outros dispositivos; se uns utilizaram a totalidade do espaço disponível para armazenamento outros terão utilizado apenas uma pequena parcela entendendo-se desapossados apenas da quantia de custo do equipamento. E assim sucessivamente.— E tanto assim é, que os próprios autores na petição inicial e no que corne aos danos de montante a liquidar em execução de sentença, afirmam que a mesma dependerá da prova que cada um dos autores populares trouxer dos danos e custos de reparação Ou seja, cada um dos adquirentes utilizou o equipamento da forma que bem lhe aprouve e, consequentemente, a perda dos dados armazenados trará para cada um, danos de diversa natureza, sejam os patrimoniais, sejam os não patrimoniais.— E estas características diversas trazem ao conjunto dos autores populares pedidos de indemnização que têm de ser diversos e proporcionam à ré defesas distintas. Essa singularidade afasta claramente que em causa estejam interesses individuais homogéneos. Se é certo que a avaria ou defeito de fabrico afectou os compradores daquele produto em concreto e afectará outros que adquiram bens com aquela mesma característica, o interesse no ressarcimento - seja a substituição, seja a reparação -, é de todos e de cada um mas de forma heterogénea. E o vendedor poderá sempre invocar contra cada um fundamentos de defesa específicos. Assim, a garantia e defesa dos direitos invocados na petição inicial, não pode obter ressarcimento através do expediente da acção popular.- Acrescenta-se ainda que, no que respeita ao pedido de condenação da ré a reconhecer que os consumidores têm direito a que lhe seja entregue o bem conforme o contrato de compra e venda e que, na falta de conformidade com o contrato, têm direito a que a conformidade seja reposta sem encargos por meio de reparação ou substituição, não podendo o fornecedor recusar-se a reparar por falta de conformidade, no prazo de dois anos, o pedido não tem de ser apreciado em acção judicial. Na verdade, esses são direitos do consumidor, já garantidos pela legislação vigente – concretamente o DL 84/2021 de 18.10, como resulta, nomeadamente, dos artigos 6º, 7º, 12º, 15º, 16º e 18º daquele diploma- não cabendo ao tribunal reiterar o que ali consta (…)”. * 6. Não se conformando com o referido despacho, dele apelam os autores, pugnando pela sua revogação, ordenando-se que os autos voltem à 1.ª instância, para prosseguimento dos seus ulteriores termos e, para a eventualidade de ser entendida como necessária a intervenção do TJUE, nos termos do artigo 267.º do TFUE, requerem a suspensão da instância para que o TJUE se pronuncie, a título prejudicial, tendo formulado as seguintes conclusões: “1. Os autores populares, ora apelantes, notificados da douta sentença proferida nos presentes autos e não se conformando com a mesma, vêm interpor recurso de apelação, sobre a matéria de facto e de direito, nos termos e ao abrigo do disposto nos artigos 627, 629 (1), 631, 637, 639, 644 (1,a) e 647 (1), todos do CPC. 2. O tribunal a quo, ponderada toda a matéria de facto e de direito, decidiu julgar improcedente a ação, indeferindo a mesma, por considerar ser manifestamente improvável a procedência do pedido (cf. artigo 13 da Lei 83/95). 3. Tal juízo liminar, foi sustentado no entendimento que a ação é manifestamente inviável por se não verificarem os pressupostos da proposta ação popular. Isto porque, os danos resultantes da desconformidade dos discos duros (ou equivalentes) adquiridos pelos autores populares à ré, não podem ser ressarcidos ou garantidos através da ação popular, porquanto (tais danos) podem ser diferentes de consumidor, para consumidor. 4. Tal juízo, fundou-se ainda, no que respeita ao pedido de condenação da ré a reconhecer que os consumidores têm direito a que lhe seja entregue o bem conforme o contrato de compra e venda e que, na falta de conformidade com o contrato, têm direito a que a conformidade seja reposta sem encargos por meio de reparação ou substituição, não podendo o fornecedor recusar-se a reparar por falta de conformidade, no prazo de dois anos, o pedido não tem de ser apreciado em ação judicial. 5. Ressalvado o devido respeito, que é o maior, o tribunal recorrido decidiu mal, não avaliando convenientemente o caso sub judice quanto à matéria de direito. 6. O objeto do litígio é o que se alude no § 1.2. supra, para onde se remete e aqui se dá como integralmente reproduzido, evitando sermos fastidiosos a repetir o já supra exaustivamente mencionado. 7. Mas, que de forma tanto quanto resumida possível, se circunscreve ao direito que os autores populares reclamarem o direito a que lhes seja entregue o bem e serviço conforme o contrato de compra e venda e que, em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, tenham direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, nomeadamente nos termos do decreto-lei 63/2007. 8. Tudo isto, com as mais consequências legais, incluindo respetivas indeminizações. 9. As questões a resolver circunscrevem-se a todas as que estão vertidas em 1.5 supra, para onde se remete, por razões de proficiência, dando-as aqui como integralmente reproduzidas. 10. Resolvendo-se essas questões, que, se diga, são na verdade já o mérito da causa, tudo o resto se resolve por inerência, designadamente a possibilidade de proceder a uma apreciação indiferenciada da situação de cada um dos consumidores, aqui autores populares. 11. Não foram dados provados ou não provados nenhuns factos, tendo sido apenas apreciados os factos alegados pelos autores populares. 12. O alegado pelos autores populares, aqui apelantes, são os que constam na petição inicial e que se resumem, no que interessa, aos seguintes: a. A autora, CITIZENS’ VOICE, é uma associação que tem como fim a defesa dos consumidores na União Europeia, seus associados, e dos consumidores em geral, que na prossecução dos fins referidos, pode praticar todos os atos jurídicos adequados para o efeito, nomeadamente, promover e intentar ações judiciais, incluindo o recurso ao direito de ação popular ou ações coletivas; b. A ré violou o direito dos consumidores; c. Os danos morais causados pela ré traduzem todo o universo de interesses homogéneos, sendo homogeneamente partilhados e sofridos por todos os autores populares, a saber: sofrimento com a quebra da confiança depositada na honestidade da insígnia da ré; a desconfiança, preocupação, transtornos e incómodos que decorrem da quebra de confiança que o comportamento da ré incutiu nos autores populares que agora sentem receio de armazenar dados digitais nos discos rígidos adquiridos à ré; d. Sofreram [os autores populares] preocupação, transtorno e incómodos decorrentes de verificarem que não têm acesso aos dados digitais armazenados, por vezes importantes para a sua subsistência ou levando à sua responsabilização perante terceiros; e. A ré não cumpriu com o dever de reparação e indemnização [previsto nos artigos 3, 4 (1) e 5 (1) decreto-lei 67/2003 e artigos 10 e 11 da diretiva (EU) 2019/771] f. Conhecia os deveres supra referidos que sobre ela se impunham. 13. Pelas razões de direito apresentadas nos §§ 4 e 5 supra, os apelantes discordam em absoluto com o entendimento do tribunal a quo, mas que em resumo entendem que: a. tem de sucumbir o entendimento de que a ação é manifestamente inviável por se não verificarem os pressupostos da ação popular, porque os danos resultantes da desconformidade dos discos duros (ou equivalentes) podem ser diferentes de consumidor para consumidor, face à mais recente jurisprudência do Colendo Tribunal de Justiça, citada em 1.4 supra. b. tem de sucumbir o entendimento pedido de condenação da ré a reconhecer que os consumidores têm direito a que lhe seja entregue o bem conforme o contrato de compra e venda e que, na falta de conformidade com o contrato, têm direito a que a conformidade seja reposta sem encargos por meio de reparação ou substituição, não podendo o fornecedor recusar-se a reparar por falta de conformidade, no prazo de dois anos, não poder ser apreciado em ação judicial. Isto porque, parece óbvio, que os tribunais comuns, seja em ação popular ou não, têm competência para apreciar os artigos 3, 4 (1) e 5 (1) decreto-lei 67/2003 e artigos 10 e 11 da diretiva (EU) 2019/771 e aplica-los às relações entre consumidores e fornecedores. 14. Por fim, conforme sustentam no § 6 supra, para onde se remente, evitando fastidiosas e prolixas conclusões, os apelantes entendem que o regime atual de custas processuais na ação popular resulta da conjugação do artigo 4 (1, b) e (5) do decreto-lei 34/2008 e que o aludido artigo 4 (1, b) concede a isenção, mas o (5) exceciona caso se conclua se o pedido for julgado manifestamente improcedente, caso em que é responsável nos termos gerais – o que não foi o caso. O pedido não foi manifestamente improcedente – o tribunal apenas concluiu que não estavam verificados os pressupostos da ação popular. Sustentam este entendimento com a jurisprudência do Colendo Supremo Tribunal de Justiça. 15. Os apelantes requerem o reenvio para interpretação prejudicial pelo TJUE para interpretação dos artigos 10 (1), 11, 13(1)(2) e 14(1)(2) da Diretiva (EU) 2019/771 à luz da factualidade apresentada, dissertando e justificando melhor esse reenvio no §8 supra, para onde se remente por razões de proficiência. 16. Assim, para a eventualidade de entenderem Vossas Excelências, Venerandos(as) Juízes(as) Desembargadores(as), que é necessária a intervenção do TJUE, como se demonstrou ser, nos termos e para os efeitos supra requeridos, entendem os apelantes, que a pronúncia do TJUE, no caso sub judice, será indispensável para a decisão da controvérsia jurídica que constitui objeto da presente ação. Por essa razão, requerem a suspensão da presente instância até que o TJUE se pronuncie, a título prejudicial, expressa e especificamente, sobre tais questões” * 7. Nos termos do despacho proferido em 04-01-2023 foi admitido o requerimento recursório e observado o disposto no artigo 641.º, n.º 7, do CPC. * 8. Por requerimento apresentado em juízo em 10-01-2023, os autores vieram juntar aos autos parecer de direito. * 9. Dos autos não constam contra-alegações. * 10. Nos termos do despacho proferido em 19-04-2023 foi determinada a notificação ao Ministério Público das alegações de recurso apresentadas e do despacho de 04-01-2023. * 11. Foram colhidos os vistos legais. * 2. Questões a decidir: O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art. 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art. 663.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC). Não pode igualmente este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais (destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação). Em face do exposto, identificam-se as seguintes questões a decidir: I) Questões prévias: A) Da admissibilidade de junção do documento junto aos autos com o requerimento de 10-01-2023. B) Valor da causa – retificação de erro material. II) Da impugnação da decisão de direito: C) Se deve ser revogada a decisão recorrida que indeferiu liminarmente a petição inicial de ação popular? D) Se deve ser revogada a decisão recorrida que condenou os apelantes em custas? III) Do pedido de reenvio prejudicial: E) Se deve ter lugar reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia, nos termos do artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, para interpretação dos artigos 10 (1), 11, 13(1)(2) e 14(1)(2) da Diretiva (EU) 2019/771? * 3. Fundamentação de facto: São elementos processuais relevantes para a apreciação do recurso, conforme resultam dos autos, os elencados no relatório. * 4. Fundamentação de Direito: * I) Questão prévia: * A) Da admissibilidade de junção do documento junto aos autos com o requerimento de 10-01-2023: Como se disse, com o requerimento de 10-01-2023, os autores vêm juntar aos autos um documento elaborado – ulteriormente à data de apresentação das alegações de recurso nos presentes autos - pelo Ministério Público (constituindo resposta apresentada na ação que vem identificada no requerimento). Cumpre decidir da admissibilidade de tal junção. Nos termos do disposto no artigo 362.º do Código Civil, “diz-se documento qualquer objecto elaborado pelo homem com o fim de reproduzir ou representar uma pessoa coisa ou facto”, norma que consagra uma noção ampla de documento, onde se destaca a sua “função representativa ou reconstitutiva do objecto” (assim, Pires de Lima e Antunes Varela; Código Civil Anotado, Volume I, Coimbra Editora, 3.ª Edição, 1982, p. 319). Numa noção restrita, documento é “o escrito que corporiza uma declaração de verdade ou ciência (declaração testemunhal: destinada a representar um estado de coisas) ou uma declaração de vontade (declaração constitutiva, dispositiva ou negocial: destinada a modificar uma situação jurídica pré-existente)” (assim, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, p. 221). Neste âmbito, o documento traduz um suporte material que integra uma declaração de natureza meramente descritiva de uma realidade ou destinada a produzir efeitos de natureza jurídica sobre uma situação pré-existente. O Código de Processo Civil regula os termos da junção de documentos aos autos, referindo no n.º 1 do artigo 423.º que “os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da acção ou da defesa devem ser juntos com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes”. Nos n.ºs. 2 e 3 do artigo 423.º do CPC estabelecem-se as condições em que pode ocorrer a junção posterior de documentos, prevendo-se no artigo 425.º do CPC que “depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento”, sendo junto com as alegações, nos termos do artigo 651.º do mesmo código. O CPC distingue a junção de documentos destinados à prova dos factos alegados como fundamento da acção ou da defesa, da junção de pareceres independentemente da natureza que estes tenham. Efectivamente, de acordo com o disposto no artigo 426.º do CPC “os pareceres de advogados, professores ou técnicos podem ser juntos, nos tribunais de 1.ª instância, em qualquer estado do processo”. Estão em causa os pareceres de natureza jurídica ou técnica, com interesse relativamente à dilucidação das questões de natureza jurídica suscitadas pelo processo, ou de questões de natureza técnica essenciais à fixação da matéria de facto, sendo certo que neste caso, “a utilidade do parecer cessa com a decisão sobre a matéria de facto, sem prejuízo da sua utilidade nos casos em que haja recurso em matéria de facto” (assim, Lebre de Freitas et al; Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, Coimbra Editora, 2001, p. 427). Em fase de recurso, rege, de forma mais restrita, o artigo 651.º, n.º 2, do CPC: “As partes podem juntar pareceres de jurisconsultos até ao início do prazo para a elaboração do projeto de acórdão”. A separação entre documentos e pareceres permite afirmar que para o Código de Processo Civil, os pareceres, nomeadamente, os pareceres de natureza jurídica, têm um regime de aquisição processual e são realidade diversa dos documentos que integram a prova documental e que se destinam à prova dos factos que servem de fundamento à acção ou à defesa. Conforme se nota no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04-02-2015 (processo 3319/07.6TTLSB.L3.S1-A, relator ANTÓNIO LEONES DANTAS): “Embora os pareceres de natureza técnica relevem no contexto da prova ao nível da interpretação e da fixação dos factos, eles não se confundem com os documentos nem estão sujeitos ao regime de aquisição processual específico deste meio de prova. Os pareceres de natureza jurídica relevam ao nível do estudo e do enquadramento das questões de natureza jurídica suscitadas pelas partes mas nada têm a ver com a fixação da matéria de facto e com a prova”. Os pareceres de técnicos dizem respeito, em regra, a questões de facto; destinam-se a elucidar o tribunal sobre a significação e alcance de factos de natureza técnica, cuja interpretação demanda conhecimentos especiais. Por seu turno, os pareceres de advogados e de professores têm, ordinariamente, feição jurídica, propondo-se resolver questões de interpretação e aplicação da lei. E, não obstante se reconhecer que os pareceres dos técnicos são como os dos advogados e professores, peças escritas que se juntam ao processo para serem tomadas pelo tribunal na consideração que merecerem, os mesmos poderão constituir um documento de prova quando integrando relatório oferecido precisamente para fazer a prova de determinado facto. Repare-se que, por vezes, a distinção tem inegáveis consequências práticas. Conforme se decidiu no citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04-02-2015 (processo 3319/07.6TTLSB.L3.S1-A, relator ANTÓNIO LEONES DANTAS), ao contrário do que sucede com os documentos probatórios, “os pareceres de natureza jurídica não se integram, assim, no conceito de documento referido na alínea c) do artigo 696.º do Código de Processo Civil para servir de fundamento ao recurso de revisão, existindo no caso dos autos, motivo para a rejeição do recurso interposto, nos termos do n.º 1 do artigo 699.º do Código de Processo Civil”. Em síntese: “I - Os documentos têm uma função representativa ou reconstitutiva do objecto, destinando-se a servir como meio de prova real de determinados factos. II - Os pareceres representam, apenas, a opinião dos jurisconsultos ou técnicos que os subscrevem, sobre a solução de determinado problema, e destinam-se a elucidar o tribunal sobre o significado e alcance de factos de natureza técnica, cuja interpretação demanda conhecimentos especiais. III - Se as opiniões dos técnicos forem expressas em diligência judicial, valem como meio de prova pericial; se forem expressas por via extrajudicial, valem como pareceres, representam apenas uma opinião sobre a situação e têm a autoridade que o seu autor lhes confere, isto é, são meros documentos particulares para efeitos probatórios” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07-04-2016, processo 197/14.2TTOAZ.P1, relator DOMINGOS MORAIS). Assente a distinção entre documentos e pareceres, importa apreciar se o escrito invocado pelos autores/apelantes, nesta sede recursória, se deverá considerar como um parecer. Em causa está uma peça processual (resposta) elaborada pelo Ministério Público noutro processo judicial, constituindo, pois, específico trâmite desse processo. As considerações expendidas no documento não revestem uma pronúncia concreta sobre os factos em questão nos presentes autos, não constituindo, por isso, um documento probatório. As considerações expendidas no documento em questão permitem, no fundo, formular uma opinião – a veiculada pelo autor do respetivo documento, um Magistrado do Ministério Público (jurista) - sobre a questão que se discute no processo a que o mesmo documento respeita, mas que, na perspetiva dos autores, releva, igualmente, para a decisão dos presentes autos: De acordo com o que alegam o respetivo “conteúdo não se pode afastar da relevância e utilidade atribuída a um parecer jurídico, pois tem a virtude de contribuir para uma decisão mais esclarecida desse Venerando Tribunal (vide acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, no processo 25722/12.0T2SNT-L1.2), quanto ao mérito da ação e ao entendimento a extrair do artigo 13, da lei 83/95, nomeadamente, mas não exclusivamente (…)”. No referido Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27-10-2022 (Pº 25722/12.0T2SNT.L1-2, rel. INÊS MOURA) concluiu-se que: “Deve admitir-se a junção aos autos em sede de recurso de dois acórdãos que se reportam a processos judiciais a que o tribunal de 1ª instância alude nos factos provados, acórdãos que permitem verificar o desfecho de tais processos e que por isso têm interesse para a decisão, documentos que pela data da sua prolação não podiam ter sido juntos até ao encerramento da discussão em audiência de julgamento, integrando-se a situação no âmbito da previsão do art.º 651.º n.º 1 e 425.º do CPC que excecionalmente admite a apresentação de documentos em sede de recurso”. O referido documento tem, na realidade, na economia dos presentes autos, a feição de um parecer jurídico, uma posição opinativa sobre determinadas questões jurídicas, que se suscitam também nos presentes autos, nada obstando, em consequência, à sua admissão nos autos. E o mesmo foi junto aos autos tempestivamente, atento o disposto no artigo 651.º, n.º 2, do CPC. Em suma: Deve admitir-se a junção aos autos, nos termos do artigo 651.º, n.º 2, do CPC, o documento apresentado em recurso, consistente numa peça processual (resposta) elaborada pelo Ministério Público noutro processo judicial, constituindo específico trâmite desse processo, mas que, na economia dos presentes autos, tem a feição de um parecer jurídico, por representar uma posição opinativa sobre determinadas questões jurídicas, que se suscitam também nos presentes autos, relevando, na perspetiva dos autores, para a decisão dos mesmos. De acordo com o exposto, admite-se a junção do documento junto pelo requerimento apresentado em 10-01-2023. * B) Valor da causa – retificação de erro material. No § 11º das alegações de recurso, os apelantes invocam o seguinte: “A causa tem o valor de €60.001 (sessenta mil e um euros), tendo em conta o disposto no artigo 303 (3) do CPC, que estabelece que [n]os processos para tutela de interesses difusos, o valor da ação corresponde ao do dano invocado, com o limite máximo do dobro da alçada do Tribunal da Relação [sublinhado nosso], apesar de tal valor não ter sido fixado na sentença de primeira instância”. No despacho proferido em 13-10-2022 foi fixado à causa o valor de € 60.002,00, nos termos do disposto no artigo 303.º do CPC. O referido despacho foi objeto de notificação aos autores por ofício de 02-11-2022. O artigo 303.º do CPC – com a epígrafe “Valor das ações sobre o estado das pessoas ou sobre interesses imateriais ou difusos” – estabelece no seu n.º 3 que, “nos processos para tutela de interesses difusos, o valor da ação corresponde ao do dano invocado, com o limite máximo do dobro da alçada do Tribunal da Relação”. Foi este, como se disse, o normativo considerado no despacho proferido em 13-10-2022 que fixou o valor da causa. Contudo, embora se tenha atendido ao normativo em questão, verifica-se que existe manifesto lapso na indicação do valor fixado, nos termos de tal preceito legal. Com efeito, nesse normativo, considera-se como valor a fixar para a ação popular o dos danos reclamados, com o limite máximo correspondente ao dobro da alçada do Tribunal da Relação. A alçada dos Tribunais da Relação é, presentemente, de € 30.000,00 (cfr. artigo 44.º, n.º 1, da LOSJ, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto), pelo que, o valor correspondente ao dobro dessa alçada, corresponde a € 60.000,00. Conforme refere Miguel de Sousa Ferro (“Ações populares cíveis em Portugal”, in Revista de Direito Comercial, 2022-02-23, p. 432, artigo disponível em linha, no endereço: https://www.revistadedireitocomercial.com), “[n]a medida em que as ações populares prosseguem interesses difusos (frequentemente, em conjunto com a defesa de interesses individuais homogéneos, i.e., de direitos subjetivos), é-lhes atribuído um valor ficcionado de 60.000 EUR, em vez, por exemplo do valor pedido da indemnização global (…)”. A indicação do valor de € 60.002,00, embora assente no aludido artigo 303.º, n.º 3, do CPC, padece, pois, de lapso, o qual, por manifesto é, nessa medida, corrigível – cfr. artigos 613.º, n.º 2, 614.º, n.º 1, do CPC. Em conformidade, determina-se a correção do valor indicado para a causa, fixando-se esta no valor de € 60.000,00, em conformidade com o previsto no n.º 3 do artigo 303.º do CPC. * II) Da impugnação da decisão de direito: * C) Se deve ser revogada a decisão recorrida que indeferiu liminarmente a petição inicial de ação popular? Conforme resulta da fundamentação da decisão recorrida, a mesma indeferiu liminarmente a petição inicial de ação popular, em suma, pela seguinte ordem de considerações: “(…) em causa estão interesse individuais que não são homogéneos.— Nessa medida, as referidas consequências da avaria ou do defeito de fabrico do equipamento adquirido à ré, ainda que viessem a demonstrar-se terem ocorrido e serem danosas, não podem ser ressarcidas ou garantidas através da acção popular. Explicitando: Com o não acesso ao conteúdo digital já guardado podem ter-se verificado consequências na vida do autor popular OV (ou não, caso o mesmo tenha um outro suporte com os mesmos elementos, tendo em conta a importância que lhes atribuí); não obstante, a perda de acesso repercutir-se-á de forma distinta relativamente a cada um dos possíveis adquirentes do disco defeituoso.— Por exemplo, se uns o utilizaram para armazenar dados da sua vida profissional, outro tê-lo-ão utilizado par arrecadar informações relativas a passatempos, ou fotografias, ou gravações de férias; se uns depositaram no equipamento o armazenamento completo de dados, outros ter-se-ão revenido com cópias de segurança em outros dispositivos; se uns utilizaram a totalidade do espaço disponível para armazenamento outros terão utilizado apenas uma pequena parcela entendendo-se desapossados apenas da quantia de custo do equipamento. E assim sucessivamente.— E tanto assim é, que os próprios autores na petição inicial e no que corne aos danos de montante a liquidar em execução de sentença, afirmam que a mesma dependerá da prova que cada um dos autores populares trouxer dos danos e custos de reparação. Ou seja, cada um dos adquirentes utilizou o equipamento da forma que bem lhe aprouve e, consequentemente, a perda dos dados armazenados trará para cada um, danos de diversa natureza, sejam os patrimoniais, sejam os não patrimoniais.— E estas características diversas trazem ao conjunto dos autores populares pedidos de indemnização que têm de ser diversos e proporcionam à ré defesas distintas. Essa singularidade afasta claramente que em causa estejam interesses individuais homogéneos. Se é certo que a avaria ou defeito de fabrico afectou os compradores daquele produto em concreto e afectará outros que adquiram bens com aquela mesma característica, o interesse no ressarcimento - seja a substituição, seja a reparação -, é de todos e de cada um mas de forma heterogénea. E o vendedor poderá sempre invocar contra cada um fundamentos de defesa específicos. Assim, a garantia e defesa dos direitos invocados na petição inicial, não pode obter ressarcimento através do expediente da acção popular.- Acrescenta-se ainda que, no que respeita ao pedido de condenação da ré a reconhecer que os consumidores têm direito a que lhe seja entregue o bem conforme o contrato de compra e venda e que, na falta de conformidade com o contrato, têm direito a que a conformidade seja reposta sem encargos por meio de reparação ou substituição, não podendo o fornecedor recusar-se a reparar por falta de conformidade, no prazo de dois anos, o pedido não tem de ser apreciado em acção judicial. Na verdade, esses são direitos do consumidor, já garantidos pela legislação vigente – concretamente o DL 84/2021 de 18.10, como resulta, nomeadamente, dos artigos 6º, 7º, 12º, 15º, 16º e 18º daquele diploma- não cabendo ao tribunal reiterar o que ali consta.-”. Pugnam os recorrentes no sentido de ser revertida a decisão recorrida, devendo, em seu entender “sucumbir o entendimento de que a ação é manifestamente inviável”, por “os danos resultantes da desconformidade dos discos duros (ou equivalentes) podem ser diferentes de consumidor para consumidor” e que a pretensão de “reconhecer que os consumidores têm direito a que lhe seja entregue o bem conforme o contrato de compra e venda e que, na falta de conformidade com o contrato, têm direito a que a conformidade seja reposta sem encargos por meio de reparação ou substituição, não podendo o fornecedor recusar-se a reparar por falta de conformidade, no prazo de 2 anos” pode ser apreciada em ação judicial, tendo os “os tribunais comuns, seja em ação popular ou não, (…) competência para apreciar os arts 3, 4 (1) e 5 (1) DL 67/2003 e 10 e 11 da diretiva (EU) 2019/771 e aplica-los às relações entre consumidores e fornecedores”. Na motivação das alegações de recurso expenderam os recorrentes, em particular, que: “(…) Os autores têm uma especial conexão com a presente demanda: são todos clientes da ré, consumidores, tendo adquiridos discos rígidos ou equivalentes, que avariaram num prazo não superior a dois anos após a aquisição, e foram prejudicados com o comportamento ilícito da ré descrito na petição inicial, com os subsequentes danos. Dúvidas não podem, por isso, restar de que são os autores populares parte legítima na presente ação - são consumidores -, e que têm interesse na presente ação - são titulares, simultaneamente, de direitos coletivos e de direitos individuais homogéneos. Tudo sem prejuízo de a autora considerar que a ação popular não exige interesse na demanda, sendo a este propósito ilustrativo o teor do artigo 2 (1) da lei 83/95 (independentemente de terem ou não interesse direto na demanda) e do artigo 9 (2) do CPTA (independentemente de terem interesse pessoal na demanda). E que, portanto, ainda que a autora interveniente não fosse uma associação de defesa dos consumidores - que o é - e mesmo que, um autor interveniente que não fosse associação, não tivesse sofrido dos mesmos danos provocados pelo comportamento da ré, teriam sempre direito e legitimidade ao acesso à ação popular, por força dos termos conjugados dos artigos 52 (3) da CRP e artigo 2 (1) da lei 83/95, sob pena inconstitucionalidade da norma do 2 (1) da lei 83/95, neste caso particular. Pelo que nunca poderia ser denegado aos AA o recurso à ação popular para resolver o caso concreto. (…) invocando os autores populares um interesse pretensamente partilhado por todos os clientes da ré, nas mesmas condições - afetados pelo comportamento ilícito desta (causa de pedir estribada de forma depurada nos factos) - e o direito de verem os bens desconformes reparado ou então a serem indemnizados pelos danos provocados pela sua não reparação, é de considerar, inequivocamente, que estamos perante a defesa de interesses coletivos (que se prendem com os pedidos), não revelando a causa de pedir ou o pedido quaisquer particularidades derivadas da multiplicidade dos factos que caraterizam as relações entre os autores populares e aos réus ou um qualquer pleito abusivo do direito da ação popular (…)”. Vejamos: Estabelece o artigo 52.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa (CRP) que: “É conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de ação popular nos casos e termos previstos na lei, incluindo o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização, nomeadamente para: a) Promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infrações contra a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida, a preservação do ambiente e do património cultural; b) (…).” O direito de ação popular, constitucionalmente consagrado, veio a ser regulamentado pela Lei n.º 83/95, de 31 de agosto (com a redação que lhe foi conferida pelo D.L. n.º 214-G/2015, de 2 de outubro), que “define os casos e termos em que são conferidos e podem ser exercidos o direito de participação popular em procedimentos administrativos e o direito de acção popular” (cfr. artigo 1.º, n.º 1), sendo que, sem prejuízo do previsto no n.º 1 do artigo 1.º constituem “designadamente interesses protegidos pela presente lei a saúde pública, o ambiente, a qualidade de vida, a protecção do consumo de bens e serviços, o património cultural e o domínio público” (cfr. artigo 1.º, n.º 2). Nos termos do artigo 2.º da Lei n.º 83/95, que rege sobre a “Titularidade dos direitos de participação procedimental e do direito de acção popular”, prevê-se que: “1 - São titulares do direito procedimental de participação popular e do direito de ação popular quaisquer cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos e as associações e fundações defensoras dos interesses previstos no artigo anterior, independentemente de terem ou não interesse direto na demanda. 2 - São igualmente titulares dos direitos referidos no número anterior as autarquias locais em relação aos interesses de que sejam titulares residentes na área da respectiva circunscrição”. O artigo 3.º da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto estabelece os requisitos da legitimidade activa das associações e fundações no exercício da ação popular, a saber: a) A personalidade jurídica; b) O incluírem expressamente nas suas atribuições ou nos seus objectivos estatutários a defesa dos interesses em causa no tipo de acção de que se trate; c) Não exercerem qualquer tipo de actividade profissional concorrente com empresas ou profissionais liberais. A lei distingue entre ação popular administrativa (podendo revestir qualquer das formas de processo previstas no Código de Processo nos Tribunais Administrativos) e ação popular civil (que pode revestir qualquer das formas previstas no CPC) - cfr. artigo 12.º da Lei n.º 83/95. Na ação popular, o autor representa por iniciativa própria, com dispensa de mandato ou autorização expressa, todos os demais titulares dos direitos ou interesses em causa que não tenham exercido o direito de autoexclusão (“opt-out”), com as consequências constantes da lei (cfr. artigos 14.º e 15.º da Lei n.º 83/95). A ação popular não é uma ação especial: “(…) o que está em causa é apenas um direito de acção judicial e não um meio ou forma de processo (…)” (assim, José Eduardo Figueiredo Dias; “As providências cautelares na acção popular civil ambiental e o relevo do princípio da proporcionalidade”, in CEDOUA, n.º 9, ano V, 2002, p. 140), permitindo a lei apenas o alargamento da legitimidade atribuída aos titulares para defesa dos bens mencionados no artigo 1.º, n.º 2, da Lei n.º 83/95, artigo 9.º, n.º 2, do Código do Processo dos Tribunais Administrativos e no n.º 3 do artigo 52.º da Constituição, sendo a ação intentada através dos meios processuais existentes no foro cível ou administrativo. Essa legitimidade alargada encontra-se também prevista no artigo 31.º do CPC, preceito onde se estabelece que: “Têm legitimidade para propor e intervir nas ações e procedimentos cautelares destinados, designadamente, à defesa da saúde pública, do ambiente, da qualidade de vida, do património cultural e do domínio público, bem como à proteção do consumo de bens e serviços, qualquer cidadão no gozo dos seus direitos civis e políticos, as associações e fundações defensoras dos interesses em causa, as autarquias locais e o Ministério Público, nos termos previstos na lei”. No artigo 13.º da Lei n.º 83/95 prevê-se um regime especial de indeferimento da petição inicial: “A petição deve ser indeferida quando o julgador entenda que é manifestamente improvável a procedência do pedido, ouvido o Ministério Público e feitas preliminarmente as averiguações que o julgador tenha por justificadas ou que o autor ou o Ministério Público requeiram”. A respeito desta previsão refere João Alves (“Ação popular: manifesta improcedência do pedido – parecer do Ministério Público”, in Revista do Ministério Público, ano 37.º, n.º 148, pp. 144-145) que: “Importa, desde logo, clarificar quando é que um pedido pode ser considerado manifestamente improvável, trata-se de um conceito indeterminado, já que a lei não nos dá uma definição expressa do mesmo. Estamos perante um conceito semelhante ao de “manifestamente improcedente”, que não constitui uma novidade no nosso ordenamento jurídico, já que ele se encontrava previsto em anteriores redações do CPC (art. 234.º-A, n.º 2, art. 474.º), quer mesmos no CPC de 1939 (art. 481.º) e no art. 27.º, n.º 1, al. a) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (DL 53/2004, de 18/3). Da leitura do artigo consta-se existirem duas possibilidades, o Ministério Público entende serem necessárias diligências e requere-as ou, considera que a ação contém os elementos necessários para se pronunciar. Neste último caso, importa efetuar um juízo de prognose do mérito da causa, a manifesta improcedência do pedido pressupõe a análise da matéria de facto alegada e sua subsunção à lei substantiva, concluindo-se inequivocamente que o autor não tem o direito que invoca. A análise da jurisprudência permite identificar um Acórdão do STJ [de 08-09-2016, Pº 7617/15.7T8PRT.S1] em que é abordada a análise a efetuar ao abrigo do art. 13.º, “O juízo de manifesta improcedência previsto no art. 13.º da Lei n.º 83/95, de 31-08, supõe a inexistência do fumus boni iuris”, ou seja, a petição deve ser indeferida quando não existir “aparência do bom direito””. No mencionado Acórdão do STJ de 08-09-2016 (Pº 7617/15.7T8PRT.S1, rel. OLIVEIRA VASCONCELOS) teceram-se sobre os interesses em presença no âmbito da ação popular as seguintes considerações: “(…) Comecemos por expor alguns conceitos, socorrendo-nos, fundamentalmente, da obra do professor Miguel Teixeira de Sousa intitulada “A Legitimidade Popular Na Tutela Dos Interesses Difusos”. O objeto de uma ação popular são os interesses difusos, onde podem incluir-se, quer os interesses difusos “stricto sensu," quer os interesses coletivos, quer ainda os respetivos interesses individuais homogéneos. No objeto da ação popular nunca pode compreender direitos ou interesses meramente individuais. Daí que a diferença que existe entre a ação popular e a ação individual ser a mesma que existe entre o interesse difuso e interesse individual. Atentemos, pois, no conceito de interesses difusos. Os interesses difusos são interesses que possuem uma dimensão individual e supra- individual, ao contrário dos interesses individuais, que só possuem uma dimensão individual, pertencem exclusivamente a um ou a alguns titulares. Os interesses particulares homogéneos são aqueles em que não existem situações individuais particularizadas, mas tão só situações jurídicas genericamente consideradas. Os interesses difusos encontram-se dispersos ou disseminados por vários titulares, mas são interesses sem sujeito ou sem titulares, cabem a cada a todos a cada um dos membros de uma classe ou de um grupo, mas são insusceptíveis de apropriação individual por qualquer desses sujeitos, sendo, pois, a dupla dimensão individual e supra -individual uma característica essencial desses interesses. Os interesses difusos são indiferenciados, não só porque podem pertencer a qualquer sujeito que se inclua numa certa classe ou categoria, mas também porque eles existem independentemente de qualquer relação voluntária estabelecida entre os seus titulares. São interesses de uma classe ou de um grupo, ou seja, de um conjunto de pessoas que podem satisfazer uma necessidade através da apropriação de um mesmo bem e é por isso que se pode falar também de interesses difusos de consumidores. Os interesses difusos recaem sobre bens que podem ser gozados de uma forma concorrente e não exclusiva, pois que os seus titulares, ao beneficiarem de um certo bem, não impedem os outros que possam igualmente disfrutar desse mesmo bem. Os interesses individuais homogéneos podem ser definidos como os interesses de cada um dos titulares de um interesse difuso “stricto sensu” ou de um interesse coletivo. Não são apenas interesses singulares, isto é, de um indivíduo, mas também interesses supra-individuais, pois que pertencem a todos os titulares do interesse difuso “stricto sensu” ou do interesse coletivo. Na ação popular procura-se a tutela de um interesse difuso, assim como os correspondentes interesses individuais homogéneos de todos os seus titulares. No entanto, para que a tutela coletiva seja praticável, ela impõe normalmente a abstração de algumas particularidades respeitantes a cada um dos seus titulares. Na verdade, a tutela coletiva não é possível sem a abstração do “lastro de individualização” que é característica das situações “standard”. A tutela de interesses difusos “stricto sensu” e a tutela de interesses coletivos visam finalidades que não são totalmente coincidentes. Quando se trata de defender interesses difusos, o que sobreleva é a proteção do interesse supra individual “qual tale” e a prossecução da finalidade visada com a sua previsão no ordenamento jurídico, por exemplo, a prevenção de uma agressão ambiental ou uma reação contra o uso de uma cláusula contratual ilegal. Quando se trata de defender interesses coletivos, o que ressalta é a proteção das situações individuais de cada um dos titulares. Enquanto os interesses difusos são sempre compatíveis com uma tutela subjetivamente indiferenciada, à proteção dos interesses coletivos pode não interessar a apreciação individualizada da situação de cada um dos titulares. A tutela dos interesses coletivos só é admissível até onde for aceitável uma apreciação indiferenciada da situação de cada um dos seus titilares. A tutela individual requer uma cuidadosa reconstrução dos factos e o sucesso dela pode depender da averiguação de alguns pormenores, mas a tutela coletiva só é viável abstraindo das especificidades de cada uma das situações individuais. Quando uma ação se destina à proteção de interesses difusos “stricto sensu”, ela tutela um interesse indivisível e insusceptível de ser individualizado, pelo que não se requer qualquer apreciação individual de cada um dos titulares daquele interesse. Quando se destina à proteção de interesses coletivos, ela permite a coletivização de uma massa de ações individuais, mas como estão em causa bens privado[s] de vários sujeitos, não pode dispensar uma análise individualizada da situação de cada um dos seus titulares. A ação inibitória prevista no artigo 10º, nº1, proémio, da Lei de Defesa do Consumidor, aprovada pela Lei 24/96, de 31.07, deve ser considerada, quando seja proposta por um consumidor ou por uma associação de consumidores, uma ação popular. A ação popular não é admissível quando o demandado possa invocar contra algum ou alguns dos representados uma defesa pessoal, isto é, quando possa utilizar fundamentos de defesa específicos contra alguns desses representados. Assim, a possibilidade de o demandado numa ação popular invocar diferentes defesas contra vários representados pode ser utilizada como um critério prático para verificar se eles são titulares de um mesmo interesse individual homogéneo. Isto favorece que o demandado procure demonstrar que as especificidades da situação de algum ou alguns deles prevaleçam sobre os elementos de facto e de direito que lhe devem ser comuns, o que conduz a discussão para a análise da admissibilidade da ação e afasta-a dos problemas relativos ao mérito da causa. Por isso, deve o Tribunal exercer o devido controlo sobre a atuação do demandado. A legitimidade popular deve ser aferida em função de dois elementos: - o poder de representação do autor popular, ou seja, a faculdade que cabe ao demandante de representar os titulares do interesse difuso; - o interesse em demandar do autor popular, isto é, a vantagem que o demandante retira da procedência da ação. Os representados numa ação popular têm de ser titulares de um mesmo interesse individual homogéneo, ou seja, todos devem ser atingidos pela violação de um mesmo interesse difuso ou todos devem estar em risco de serem afetados pela ofenda de um mesmo interesse difuso. Não basta que um autor popular possua poderes de representação dos titulares de um interesse difuso, também é necessário que esse autor tenha uma relação com aquela interesse que justifique que, no caso concreto, ele possa instaurar a ação popular. A adequação da representação exercida pelo autor popular pressupõe o preenchimento de dois requisitos: um deles, de carater negativo, é a ausência de qualquer conflito de interesses entre o autor popular e os titulares do interesse difuso; o outro requisito, de carater positivo, é a garantia que a atuação do demandante permite substituir a presença dos titulares do interesse difuso na ação popular (…)”. A Lei n.º 83/95, de 31 de agosto regula ações para tutela de interesses difusos, coletivos e individuais homogéneos. De acordo com Miguel Teixeira de Sousa (A Legitimidade Popular na Tutela dos Interesses Difusos, Lex, 2003, p. 47 e ss.) pode estabelecer-se o seguinte modelo de divisão: Os interesses difusos stricto sensu referem-se a bens públicos que, por natureza, só podem ser gozados numa dimensão colectiva, pertencem a uma pluralidade indiferenciada de sujeitos e recaem sobre bens indivisíveis o que implica que nenhum dos seus titulares se pode apropriar de qualquer parcela desses bens: “No caso de lesão do interesse difuso, a lesão é sofrida por todos os titulares do interesse, e consequentemente, a satisfação de um dos titulares implica obrigatoriamente a satisfação de todos os titulares” (cfr., Margarida Sousa Lobo de Carvalho; Tutela Coletiva Indemnizatória; Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, Escola de Lisboa, 2020, p. 13, texto disponível em: https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/32714/1/Margarida%20Carvalho_Dissertação.pdf). Os interesses difusos correspondem a um interesse jurídico reconhecido e tutelado, cuja titularidade pertence a todos e a cada um dos membros de uma comunidade ou grupo, mas não são susceptíveis de apropriação individual por qualquer um desses membros (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 02-07-1998, Pº 0027892, rel. LOUREIRO DA FONSECA). Os interesses difusos stricto sensu reportam-se a bens que podem ser gozados por todos, sem que daí possa decorrer qualquer conflito, porque nenhum interessado pode tornar esse bem exclusivo de si próprio nem nenhum pode ser excluído do seu gozo. Integram-se nesta categoria, v.g., o interesse de qualquer pessoa na qualidade do ar ou da água ou o interesse de qualquer consumidor na qualidade dos bens e serviços prestados. O principal critério utilizado para delimitar os interesses colectivos distinguindo-os dos interesses difusos stricto sensu será o seguinte: estes incidem sobre bens públicos possuindo, por isso, necessariamente, uma pluralidade de titulares, ao invés daqueles que incidem sobre bens privados de uma pluralidade de sujeitos. Nessa medida, os interesses colectivos agrupam os interesses paralelos de cada um dos titulares de bens privados, interesses esses que podem ser prosseguidos por uma defesa colectiva mas que pressupõe uma estrutura auto-organizada. Os interesses coletivos dizem respeito a um grupo, uma categoria, um conjunto de pessoas ligadas entre si por uma relação jurídica (pertença a uma associação, a uma classe, a uma categoria) (cfr. Jorge Pegado Liz; Introdução ao Direito e à Política de Consumo; Notícias Editorial, 1999, p. 227). Cada um dos titulares do interesse colectivo é titular de um bem privado exclusivo (v.g., o direito a uma indemnização), sendo, por isso necessário, que todos os titulares desse interesse se encontrem federados por um elemento comum, como, por exemplo, uma específica qualidade profissional ou a qualidade de utente de um mesmo serviço público. Nesta perspectiva, o principal critério diferenciador do interesse difuso stricto sensu do interesse colectivo é o do objecto sobre o qual incide: o primeiro incide sobre bens indivisíveis que, por definição, não podem ser divididos pelos seus titulares; os segundos integram uma pluralidade de interesses individuais sobre bens exclusivos que são repartidos por cada um dos respectivos titulares. Assim sendo, o interesse colectivo distingue-se do interesse comum na medida em que este pertence a vários sujeitos que repartem entre si o mesmo bem (são dele contitulares), ao passo que aquele congrega vários titulares de vários bens. Com base no critério proposto, concluir-se-á que, por exemplo, o interesse dos consumidores consubstancia um interesse difuso stricto sensu, que transcende a vontade dos seus titulares, mas o conjunto dos interesses individuais, sobre bens privados, de cada um daqueles consumidores (v.g., o direito de indemnização) constitui um interesse colectivo, que conjuga a vontade dos respectivos titulares. Por último, restam os interesses individuais homogéneos que assim se denominam pela identidade do seu conteúdo: os titulares de interesses individuais homogéneos são simultaneamente titulares de um mesmo interesse difuso stricto sensu ou de um mesmo interesse colectivo. Por essa razão, os interesses difusos stricto sensu e colectivos, por um lado, e os interesses homogéneos, por outro, correspondem a uma mesma realidade analisada por prismas distintos – uma supra-individual e outra individual. Contudo, importa salientar que não se trata de um interesse singular de um único indivíduo, mas de um interesse que é também supra-individual na medida em pertence a todos os titulares de um interesse difuso stricto sensu ou de um interesse colectivo. Os interesses individuais homogéneos possuem, assim, uma dupla dimensão: individual e supra-individual. Assim, por exemplo, o interesse na qualidade de vida ou na preservação do património cultural consubstancia um interesse difuso stricto sensu, mas o interesse de cada um dos habitantes de uma região nessa protecção ou nessa qualidade constitui um interesse individual homogéneo; os lesados por uma substância lesiva da saúde são titulares de um interesse colectivo, mas o interesse de cada uma das vítimas, perspectivado em conjunto com o idêntico interesse de todos os outros lesados, constitui também um interesse individual homogéneo. “Nos interesses individuais homogéneos, os membros do conjunto são titulares de direitos subjectivos clássicos, perfeitamente cindíveis, cuja agregação resulta apenas da similitude da relação jurídica estabelecida com a outra parte, relação jurídica de conteúdo formalmente idêntico” (cfr. Jorge Pegado Liz; Introdução ao Direito e à Política de Consumo; Notícias Editorial, 1999, p. 228). No caso em apreço pretende-se a tutela dos direitos dos autores enquanto consumidores. O consumidor é definido, de harmonia com o previsto no artigo 1.º, n.º 1, da Lei de Defesa do Consumidor (Lei n.º 24/96, de 31 de julho, na redação em vigor), como “todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios”. De acordo com o artigo 3.º, al. f) da Lei n.º 24/96, o consumidor tem, nomeadamente, o direito “à prevenção e à reparação dos danos patrimoniais ou não patrimoniais que resultem da ofensa de interesses ou direitos individuais homogéneos, coletivos ou difusos”. Os interesses individuais homogéneos foram discutidos no Acórdão do STJ de 23-09-1997 (Pº 97B503, rel. MIRANDA GUSMÃO), aí se tendo concluído que “o artigo 1 da Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto, abarca não só os "interesses difusos", mas também "os interesses individuais homogéneos".”. Na respetiva fundamentação deste aresto, a respeito da discussão sobre o âmbito das normas do artigo 52.º, n.º 3, da CRP e da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto, expendeu-se, nomeadamente, o seguinte: “(…) No âmbito das mesmas estão, necessariamente, os interesses difusos, já que incluídos no n. 3 do artigo 52 da Constituição, conforme se sublinhou na esteira dos ensinamentos de G. Canotilho e V. Moreira. Para além dos interesses difusos (que são os radicados na própria colectividade, deles sendo titular, afinal, uma pluralidade indefinida de sujeitos..., reportando-se a bens por natureza indivisíveis e insusceptíveis de apropriação individual - vide LOPES REGO, Revista do Ministério Público, 1990, caderno 5, página 203; JOÃO CORREIA, Interesses Difusos e Legitimidade Processual, página 277) caem no âmbito destas normas outros interesses? Nomeadamente, "os interesses individuais homogéneos" (que representa todos aqueles casos em que os membros da classe são titulares de direitos diversos, mas dependentes de uma única questão de facto ou de direito, pedindo-se para todos eles um provimento jurisdicional de conteúdo idêntico - ADA PELLEGRINI GRINOVER, Revista Portuguesa de Direito de Consumo, n. 5, Janeiro, 1996, página 10). (…) Para interpretar as normas transcritas parece-nos bastante socorrermo-nos do elemento sistemático (que é constituído pelas disposições reguladoras do instituto em que se integra a norma a interpretar - o chamado contexto da lei - e pelas disposições reguladoras de institutos ou problemas afins - os chamados lugares paralelos - PIRES LIMA e A. VARELA, Noções Fundamentais de Direito Civil, volume I, 5. edição, página 157). E no contexto da lei destaca-se a norma insíta no artigo 15 n. 1, da Lei n. 83/95, que prescreve: "Recebida petição da acção popular, serão citados os titulares dos interesses em causa na acção de que se trata, e não intervenientes nela, para o efeito de, no prazo fixado pelo Juiz, passarem a intervir no processo a título principal... ou se, pelo contrário, se excluem dessa representação, nomeadamente para o efeito de não lhes serem aplicáveis as decisões proferidas...". 7. Tal norma confere a prerrogativa de os membros do grupo a que a acção popular se reporta dela se auto-excluírem, prerrogativa conferida com visto dos representados escaparem ao caso julgado da decisão. Só no âmbito de bens divisíveis (e não no de bens indivisíveis, insusceptíveis de apropriação individual, objectos dos interesses difusos) é que o direito de auto-exclusão permite o afastamento do caso julgado da decisão proferida na acção popular e a consequente oportunidade de o auto excluído propor, futuramente, uma acção singular. Os bens divisíveis são objecto dos chamados "interesses individuais homogéneos", tendo presente o referenciado alcance conceitual. Assim sendo, o alcance e sentido da norma insíta no n. 1 do artigo 15 da Lei n. 83/95, implica que as normas do artigo 1, do mesmo diploma legal, sejam interpretados no sentido de abarcarem não só "os interesses difusos", mas também "os interesses individuais homogéneos". 8. Nos "interesses individuais homogéneos" abrangidos no artigo 1 da Lei n. 83/95, destaca-se um dos direitos dos consumidores: "o caso do direito à reparação de danos", tendo presente o seu alcance, conforme se sublinhou na esteira dos ensinamentos de G. CANOTILHO e V. MOREIRA, obra citada, páginas 281 a 283 e 323 e 324”. “[A] sua qualificação como direitos individuais homogéneos não desvirtua nem altera a sua natureza individual, somente os relaciona a outros direitos individuais semelhantes, pelo facto de que em mutos dos casos, também apenas a sua tutela coletiva permite a sua defesa e proteção” (assim, Raquel de Jesus Caetano; A ação popular (civil) como instrumento de tutela coletiva – uma análise à luz da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto; Universidade de Coimbra, Faculdade de Direito, out. 2020, p. 31, texto disponível em: https://estudogeral.uc.pt/bitstream/10316/92667/1/A%20a%c3%a7%c3%a3o%20popular%20%28civil%29%20como%20instrumento%20de%20tutela%20coletiva%20-%20uma%20an%c3%a1lise%20%c3%a0%20luz%20da%20Lei%20n.%c2%ba%2083%2095%2c%20de%2031%20de%20Agosto.%20Raquel%20Caetano.pdf). A homogeneidade dos interesses individuais “refere-se à identidade ou proximidade de situações entre as pessoas integrantes da classe, de modo a justificar a sua reunião no pólo ativo de uma única ação” (assim, Luís Roberto Barroso; “A proteção coletiva dos direitos no brasil e alguns aspectos da class action norte americana”, in De Jure – Revista Jurídica do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, 2007, p. 38). Contudo, importa sublinhar que a qualificação de um determinado direito como difuso, coletivo ou individual homogéneo depende do tipo de tutela jurisdicional que se pretende quando a ação judicial é instaurada: “o método classificatório parte não do tipo de direito perante o qual estamos, mas sim do pedido e da causa de pedir (…) se o pedido formulado na ação judicial for a condenação do réu na indemnização pelos prejuízos causados aos consumidores que adquiriam o produto ou serviço publicitado então estaremos perante ação popular cujo objeto são interesses individuais homogéneos” (assim, Raquel de Jesus Caetano; A ação popular (civil) como instrumento de tutela coletiva – uma análise à luz da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto; Universidade de Coimbra, Faculdade de Direito, out. 2020, p. 84). A jurisprudência dos tribunais superiores tem concretizado, em diversas ocasiões, a aplicação destes conceitos, podendo, exemplificativamente, citar-se as seguintes decisões (elencadas por ordem cronológica decrescente): - Acórdão do STJ de 30-03-2023 (Pº 1572/21.1T8CVL-C.S1, rel. NUNO PINTO OLIVEIRA): “A acção popular pode ser proposta para a defesa de interesses difusos, de interesses colectivos e de interesses individuais homogéneos: os interesses difusos são insusceptíveis de individualização, como, p. ex., os interesses na preservação do ambiente e do património cultural, os interesses colectivos são titulados por um grupo de pessoas determinadas ou determináveis, como, p. ex., os clientes ou os trabalhadores de uma determinada empresa; os interesses individuais homogéneos, esses, são a expressão individualizada dos interesses colectivos ou dos interesses difusos”; - Acórdão do TRL de 12-01-2023 (Pº 3114/22.2T8OER.L1-2, rel. LAURINDA GEMAS): “Uma ação popular tem necessariamente por objeto - conformado pelo pedido e causa de pedir - interesses difusos em sentido amplo, aqui se incluindo quer os interesses difusos stricto sensu, quer os interesses coletivos, quer ainda os respetivos interesses individuais homogéneos. É correta a decisão de indeferimento liminar da Petição Inicial mediante a qual foi instaurada uma ação popular civil se, face ao pedido formulado e à respetiva causa de pedir, não é possível identificar uma situação em que se justifique a tutela jurisdicional de posições jurídicas materiais pertencentes a todos os membros de uma certa comunidade e não apropriáveis por nenhum deles em termos individuais (…)”. - Acórdão do TRP de 27-10-2022 (Pº 14051/21.8T8PRT.P1, rel. DEOLINDA VARÃO): “O direito de ação popular, previsto na Lei nº 83/95, de 31.8, pode ser exercido para a prevenção, cessação ou perseguição judicial de infrações relativas à saúde pública, ao ambiente, à qualidade de vida, à proteção do consumo de bens e serviços, ao património cultural e ao domínio público. A petição respetiva deve ser indeferida quando o julgador entende que é manifestamente improvável a procedência do pedido. Se o cliente/consumidor é informado pelo vendedor de que a reparação ou substituição do bem está excluída da garantia, o cliente pode optar por: a) aceitar as condições contratuais propostas, caso pretenda que o vendedor repare o bem; b) repará-lo noutro local; c) discordar da conclusão do vendedor no sentido da exclusão da garantia. Neste último caso, está-se perante uma situação pontual, que terá de ser dirimida nos meios próprios, cabendo ao vendedor o ónus de ilidir a presunção de desconformidade do bem que sobre ele impende”; - Acórdão do TRL de 11-10-2022 (Pº 2075/18.7T8LSB.L1-7, rel. DIOGO RAVARA): “(…) verificamos que a apelada não pode qualificar-se como associação de consumidores, porque as empresas suas associadas não têm a qualidade de consumidoras, pelo contrário, atuam no mercado prestando serviços (de transporte) mediante retribuição em dinheiro. Por outro lado, os atos ilícitos invocados na petição inicial nada têm que ver com os valores da saúde pública, qualidade de vida, preservação do ambiente, defesa do património cultural, ou defesa de bens públicos. Nessa medida, concluímos que na presente causa, e no que tange ao pedido indemnizatório tendente ao ressarcimento de danos sofridos pelos associados da apelada não estão em causa interesses difusos, tutelados nos termos previstos no regime jurídico da ação popular, razão pela qual não é aplicável o disposto no art. 31º do CPC”; - Acórdão do TRL de 15-07-2022 (Pº 4350/20.1T8LSB-B.L1-6, rel. VERA ANTUNES): “não pode deixar de se nortear a escolha do meio processual pela finalidade da AP - instrumento de participação e intervenção democrática dos cidadãos na vida pública, de fiscalização da legalidade, de defesa dos interesses das colectividades e de educação e formação cívica de todos, sendo uma forma peculiar de participação na defesa e preservação de valores essenciais, por pertencerem a uma mesma colectividade – o que não é manifestamente a finalidade do Inquérito judicial à sociedade”; - Acórdão do TRL de 26-05-2022 (Pº 26412/16.0T8LSB.L2-2, rel. JORGE LEAL): “O objeto natural e próprio da ação popular e que pressupõe o alargamento da legitimidade próprio do autor popular é uma tutela coletiva que impõe a abstração de algumas particularidades respeitantes a cada um dos titulares lesados. O autor popular não tem legitimidade para apresentar em juízo pedidos de providência jurisdicional próprios da clássica ação individual, norteada pela tutela do interesse individual de cada um dos consumidores concretamente lesados. Assim, no caso dos presentes autos, a A., associação de defesa dos interesses dos consumidores, não tem legitimidade para peticionar, em alegada ação popular, que o tribunal condene as RR. a retomarem os veículos afetados pagando aos respetivos proprietários um valor que dependerá do valor inicial do veículo, do ano, da kilometragem mas que não poderá ser inferior a um montante entre os 12.500 USD e os 44.000 USD oferecido aos consumidores norte-americanos, ou a repará-los, se for essa a opção dos consumidores e se a reparação do veículo for possível; a assumirem os custos remanescentes dos contratos de aluguer ou leasing celebrados pelos consumidores para aquisição dos veículos afetados, no caso dos consumidores optarem por porem fim a tais contratos; a pagarem aos consumidores uma indemnização pelas informações falsas produzidas e pela depreciação do valor dos veículos afetados, não inferior a um montante entre os 5.100 USD e os 10.000 USD ou, em alternativa, se o tribunal assim o entender, a 15% do valor de compra do veículo”; - Acórdão do TRL de 22-03-2022 (Pº 7692/20.2T8LSB.L1-7, rel. MARIA DA CONCEIÇÃO SAAVEDRA): “O que releva para aferir sobre a idoneidade da forma do processo é a pretensão que foi formulada e não a pretensão que deveria ter sido deduzida. O que importa saber neste âmbito é se ao(s) concretos pedido(s) corresponderia uma forma de processo diferente – e se pode adequar-se a ação instaurada à forma prevista na lei – e não se os pedidos são viáveis ou têm fundamento legal; Esta última avaliação respeitará a um vício de substância e não a um vício de forma, que poderá conduzir, em última análise, à improcedência, total ou parcial, da causa, mas não há nulidade a que alude o art. 193 do C.P.C.; Tendo os AA. pedido, em “ação popular cível, inibitória, declarativa comum de condenação para tutela de interesses difusos”, que a Ré seja “a) inibida de cobrar aos consumidores valores que estes não tenham expressamente contratado, no âmbito dos serviços referidos no Art. 11º desta PI, ou outros análogos, por via do mecanismo digital designado por WAP BILLING aos quais os consumidores não tenham dado o seu consentimento expresso para contratar — Art.11º e 13° da Lei de Defesa do Consumidor” e“b) Devolver aos consumidores os valores que tenha cobrado ilicitamente, ou que tenha feito seus, à revelia de um contrato, no âmbito da alínea anterior - Art. 22º, n°3 da Lei n° 83/95, de 31 de Agosto”, a forma de processo adequada era, como foi, a ação popular e não a ação declarativa comum; Questão distinta será a da análise sobre a viabilidade e/ou procedência dos pedidos em concreto e, antes disso, da oportunidade dessa ponderação no despacho saneador (por o estado do processo o permitir, sem necessidade de mais provas – art. 595, nº 1, al. b), do C.P.C.)”; - Acórdão do TRL de 24-11-2020 (Pº 7692/20.2T8LSB-A.L1-7, rel. JOSÉ CAPACETE): “Através de uma acção popular todos os membros de uma comunidade, ou, pelo menos, um grupo de pessoas não individualizável pela titularidade de qualquer interesse directamente pessoal, estão investidos de um poder de acesso à justiça visando tutelar situações jurídicas materiais que são insusceptíveis de uma apropriação individual. O objecto de uma acção popular são os interesses difusos, onde podem incluir-se, quer os interesses difusos “stricto sensu", quer os interesses colectivos, quer ainda os respectivos interesses individuais homogéneos. Tal objecto nunca pode compreender direitos ou interesses meramente individuais, donde a diferença que existe entre a acção popular e a acção individual ser a mesma que existe entre o interesse difuso e interesse individual. Os interesses difusos são interesses que possuem uma dimensão individual e supra-individual, ao contrário dos interesses individuais, que só possuem uma dimensão individual, pertencem exclusivamente a um ou a alguns titulares. São interesses que se encontram dispersos ou disseminados por vários titulares, mas são interesses sem sujeito ou sem titulares, que cabem a todos e cada um dos membros de uma classe ou de um grupo, mas que são insusceptíveis de apropriação individual por qualquer desses sujeitos, sendo, pois, a dupla dimensão individual e supra-individual uma característica essencial desses interesses. São também indiferenciados, não só porque podem pertencer a qualquer sujeito que se inclua numa certa classe ou categoria, mas também porque eles existem independentemente de qualquer relação voluntária estabelecida entre os seus titulares. São ainda interesses de uma classe ou de um grupo, ou seja, de um conjunto de pessoas que podem satisfazer uma necessidade através da apropriação de um mesmo bem e é por isso que se pode falar também de interesses difusos de consumidores.(…) A acção popular não é admissível quando o demandado possa invocar contra algum ou alguns dos representados uma defesa pessoal, isto é, quando possa utilizar fundamentos de defesa específicos contra alguns desses representados”; - Acórdão do STJ de 12-11-2020 (Pº 7617/15.7T8PRT.S2, rel. MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA): “encontra-se estabilizado o entendimento segundo o qual a acção popular tanto pode ter como objecto interesses difusos, insusceptíveis de individualização (defesa do ambiente, ou do património cultural, por exemplo), interesses colectivos (no sentido de interesses encabeçados por um grupo de pessoas determinadas ou determináveis) ou interesses individuais homogéneos, expressão individualizada de interesses difusos ou colectivos – no caso, relacionados com a defesa dos consumidores (cfr. n.º 2 do artigo 1.º da citada Lei n.º 83/95); cfr., neste sentido, a título de exemplo, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Outubro de 2003, ECLI:PT:STJ:2003:03A1243.D8 ou de 20 de Outubro de 2005, ECLI:PT:STJ:2005:05B2578.10”; - Acórdão do TRG de 05-03-2020 (Pº 107/19.0T8CHV.G1, rel. MARIA JOÃO MATOS): “A acção popular tem como objecto a tutela de interesses difusos (o que compreende os interesses difusos stricto sensu, os interesses colectivos e os interesses individuais homogéneos), os quais se caracterizam por possuírem uma dimensão individual e supra-individual, pela sua titularidade caber a todos e a cada um dos membros de uma classe ou de um grupo (independentemente da sua vontade), e por recaírem sobre bens que podem ser gozados de forma concorrente e não exclusiva. (…) Ao atribuir o direito de acção popular a “todos”, a lei permite que qualquer pessoa defenda interesses ou bens protegidos que não são apenas seus, mas de todos os neles interessados, por integrarem a comunidade a que os mesmos bens respeitam. Por isso, o específico interesse processual do autor popular não é condicionado à existência de uma conexão substantiva entre o mesmo, individualmente considerado, e o bem tutelado, antes é originário, porque baseado na lei e radicado no direito fundamental dos cidadãos à participação na condução dos assuntos públicos, pelo que deve ser averiguado a partir da integração do demandante em determinadas categorias de indivíduos que se encontrem em relação com o objecto do processo, que, necessariamente, deverá transcender o interesse pessoal de qualquer deles. Assim, só a integração na comunidade de “interesses” visados pela acção permite assegurar a legitimidade popular e o interesse em agir, ainda que, em determinadas situações, tal interesse radique em qualquer cidadão, como sucede, p. ex., com a defesa do domínio público» (Ac. do STJ, de 29.11.2016, Alexandre Reis, Processo n.º 135/14.2T8MDL.G1.S1, com bold apócrifo) (…)”; - Acórdão do TRL de 04-12-2018 (Pº 7074/15.8T8LSB. L1-1, rel. ISABEL FONSECA): “Distinguindo entre interesses difusos stricto sensu, interesses coletivos e interesses individuais homogéneos, vem a doutrina e jurisprudência admitindo que todos podem ser abrangidos pela ação popular, afigurando-se, pois, correta a asserção de que esta tem, assim, por objeto a tutela de interesses difusos (latu sensu). Uma associação sem fins lucrativos que tem, estatutariamente, “como fim a promoção da defesa da concorrência em Portugal e a proteção dos consumidores, com vista ao aumento do bem-estar dos consumidores e da economia portuguesa” – e, “designadamente”, “intentar e promover ações judiciais para defesa da concorrência em Portugal, nomeadamente com recurso à ação popular ou a qualquer outro meio processual de defesa dos interesses difusos ou coletivos, nos termos da lei em vigor” –, tem legitimidade popular para instaurar ação tendente a reconhecer o direito de indemnização por infração ao direito da concorrência, assim prosseguindo a defesa dos consumidores”. Formularam os autores, nos presentes autos, os seguintes pedidos na petição inicial: “A. deve a ré ser condenada a reconhecer que os consumidores, autores populares, incluindo o autor 2, têm direito a que lhe seja entregue o bem e serviço conforme o contrato de compra e venda; B. deve a ré ser condenada a reconhecer que em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, os consumidores, autores populares, incluindo o autor 2, têm direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou substituição; C. deve a ré ser condenada a reconhecer que não pode recusar-se a reparar e / ou indemnizar os consumidores, autores populares, incluindo o autor 2, por todos os danos manifesta e comprovadamente provocados pela falta de conformidade de um produto que lhe foi vendido e que existia no momento em que os bens lhe foram entregues, manifestada num prazo de dois anos a contar desse momento por intermédio da responsabilidade civil; D. deve a ré ser condenada a reconhecer que o comportamento supra descrito nos pontos anteriores, ao não ter reconhecido os mesmos perante o autor 2 e demais autores populares é ilícito; E. deve a ré ser condenada a reconhecer que agiu com culpa e consciência da ilicitude no que respeita aos factos supra referidos, seja quanto ao autor 2, como quanto aos autores populares; F. deve a ré ser condenada a reconhecer que em resultado do comportamento supra descrito no § 3, nomeadamente, mas não exclusivamente, ao recusar-se reparar os consumidores, autores populares, incluindo o autor 2, pelos danos provocados pela falta de conformidade dos discos rígidos e que resultou na inacessibilidade aos dados digitais nos mesmos armazenados, provocou os danos patrimoniais e não patrimoniais referidos no § 3; G. deve a ré ser condenada a reconhecer que com esse comportamento lesou gravemente os interesses do autor 2 e dos demais autores populares, nomeadamente sonegando-lhes o direito à garantia e reparação dos danos nos termos gerais do direito. e em consequência: H. deve a ré ser condenada a repor a falta de conformidade supra aludida no §3 dos discos rígidos a todos os autores populares e ao autor 2, sem qualquer encargo ou ónus por meio da reparação; I. no caso de não ser possível à ré repor a falta de conformidade dos discos rígidos conforme pedido anteriormente, deve esta ser condenada a substituir os mesmos por outros iguais ou com as mesmas características a todos os autores populares e ao autor 2; J. deve a ré ser condenada a recuperar os dados armazenados nos discos rígidos e inacessíveis por causa da falta de conformidade aludida no supra § 3 dos discos rígidos a todos os autores populares e ao autor 2, sem qualquer encargo ou ónus por meio da reparação; K. no caso de não ser possível à ré repor a falta de conformidade dos discos rígidos conforme pedido anteriormente, deve a mesma ser condenada a pagar uma indemnização nunca inferior a €8.000 (oito mil euros) a cada um dos autores populares, incluindo o autor 2, sem prejuízo de se apurar prejuízos mais elevados em execução de sentença, o que desde já se requer; L. deve a ré ser condenada a pagar uma indeminização por todos os restantes danos causados na esfera jurídica dos autores populares e autor 2 devido ao comportamento supra descrito no § 3, nomeadamente, mas não exclusivamente, da privação de uso e dos danos não patrimoniais supra descritos, a serem fixados pelo tribunal mediante indagação oficiosa, ordenando, designadamente, a produção de prova pericial, o que pode ser feito em sede de liquidação de sentença, mas nunca inferiores, no computo, a € 100 (cem euros) por consumidor, acrescido de € 5 (cinco euros) por dia, desde a apresentação dos discos rígidos para reparação e recuperação dos dados digitais, ou pagamento de indeminização dos danos causados por essa falta de reparação e recuperação. M. no caso de algum ou todos os pedidos supra não procederem total ou parcialmente, deve ser aplicado, a título subsidiário, o instituto de enriquecimento sem causa como peticionado §4 (l). N. em qualquer caso, as indemnizações devem ser acrescidas de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, ou, caso assim não se entenda, desde a citação da presente ação até ao seu integral pagamento. O. Ser a ré condenada a pagar todos os encargos que a autora interveniente tive ou venha ainda a ter com o processo, nomeadamente, mas não exclusivamente, com os honorários advocatícios, pareceres jurídicos de professores universitários, pareceres e assessoria necessária à interpretação da vária matéria técnica [tanto ao abrigo do artigo 480 (3) do CPC como fora do mesmo preceito], que compreende uma área de conhecimento jurídicoeconómico complexo e que importa traduzir e transmitir com a precisão de quem domina a especialidade em causa e em termos que sejam acessíveis para os autores e seu mandatário, de modo a que possam assim (e só assim) exercer eficazmente os seus direitos, nomeadamente de contraditório, e assim como os custos com o financiamento do litígio (litigation funding) que entretanto venha obter por via de celebração de um contrato. P. porque o artigo 22 (2) da Lei 83/95 estatui, de forma inequívoca e taxativa, que deve ser fixada uma indemnização global pela violação de interesses dos titulares ao individualmente identificados, mas por outro lado é omissa sobre quem deve administrar a quantia a ser paga, nomeadamente quem deve proceder à sua distribuição pelos autores representados na ação popular, vêm os autores interveniente requerer que declare que CITIZENS’ VOICE – CONSUMER ADVOCACY ASSOCIATION, agindo como autora interveniente neste processo e em representação dos restantes autores populares, têm legitimidade para exigir o pagamento das supras aludidas indemnizações, incluindo requerer a liquidação judicial nos termos do artigo 609 (2) do CPC e, caso a sentença não seja voluntariamente cumprida, executar a mesma, sem prejuízo do requerido nos pontos seguintes. Q. requer-se ainda que Vossa Excelência decida relativamente à responsabilidade civil subjetiva conforme § 14 infra, apesar de tal decorrer expressamente da lei 83/95, sem necessidade de entrar no pedido. R. requer-se também que Vossa Excelência decida relativamente ao recebimento e distribuição da indemnização global nos termos do § 15, apesar de tal decorrer expressamente da lei 83/95, sem necessidade de entrar no pedido.”. Antes de prosseguirmos, deixamos uma nota sobre o processo n.º 14051/21.8T8PRT, com muitas semelhanças com a situação do caso em apreço (embora, ali, o bem de consumo em questão trata-se de auriculares). Nesse processo, em acórdão prolatado pelo Tribunal da Relação do Porto de 27-10-2022 (rel. DEOLINDA VARÃO) veio a ser confirmada a decisão de indeferimento liminar que a 1.ª instância tinha tomado (sendo que, não tal decisão não terá ainda transitado em julgado), aí se concluindo que: “O direito de ação popular, previsto na Lei nº 83/95, de 31.8, pode ser exercido para a prevenção, cessação ou perseguição judicial de infrações relativas à saúde pública, ao ambiente, à qualidade de vida, à proteção do consumo de bens e serviços, ao património cultural e ao domínio público. A petição respetiva deve ser indeferida quando o julgador entende que é manifestamente improvável a procedência do pedido. Se o cliente/consumidor é informado pelo vendedor de que a reparação ou substituição do bem está excluída da garantia, o cliente pode optar por: a) aceitar as condições contratuais propostas, caso pretenda que o vendedor repare o bem; b) repará-lo noutro local; c) discordar da conclusão do vendedor no sentido da exclusão da garantia. Neste último caso, está-se perante uma situação pontual, que terá de ser dirimida nos meios próprios, cabendo ao vendedor o ónus de ilidir a presunção de desconformidade do bem que sobre ele impende (…)”. No mencionado Acórdão de 27-10-2022 pode ler-se, nomeadamente, a seguinte fundamentação: “(…) AA instaurou acção declarativa popular de condenação, sob a forma única de processo, contra F..., LDA. Pediu a condenação da ré a: A- Reconhecer que os consumidores, autores populares, incluindo o autor, têm direito a que lhe seja entregue o bem e serviço conforme o contrato de compra e venda; B- Reconhecer que em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, os consumidores, autores populares, incluindo o autor, têm direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição; C- Reconhecer que impõe aos consumidores, autores populares, incluindo o autor, a celebração de um contrato (acessório ao contrato de compra e venda) com cláusulas gerais para que estes assim e só assim possam exercer o seu direito à garantia; D- Reconhecer que impõe aos consumidores, autores populares, incluindo o autor, um entrave extracontratual oneroso e desproporcionado quando os autores populares, incluindo o autor, pretendem exercer os seus direitos contratuais, incluindo o exercício do direito a garantia, está a praticar um comportamento comercial agressivo que é qualificado como assédio, a coacção ou a influência indevida; E- Reconhecer que o comportamento supra descrito nos pontos C e D, tido com o autor e demais autores populares, é ilícito; F- Abster-se de realizar as práticas comerciais agressivas e ilegais mencionadas nos pontos C e D supra; G- Permitir que os autores populares, incluindo o autor, possam exercer o direito à garantia consagrado na Lei sem necessidade de celebrar um novo contrato ou contrato acessório, como aquele que a ré tenta impor quando algum autor popular tenta exercer tal direito; H- Reconhecer que agiu com culpa e consciência da ilicitude no que respeita aos factos supra referidos, seja quanto ao autor, como quanto aos autores populares; I- Reconhecer que com esse comportamento lesaram gravemente os interesses do autor e dos demais autores populares, nomeadamente sonegando-lhes o direito à garantia. Em consequência, pediu ainda a condenação da ré a: J- Em relação ao autor e aos demais autores populares: a. Repor a falta de conformidade do bem com o contrato sem qualquer encargo, ónus ou necessidade de novo contrato ou contratos acessórios, por meio de reparação ou de substituição nos termos dos artigos 4(1)(5) e 5(1) do Decreto Lei 67/2003; b. Uma indeminização por todos os danos que causaram na esfera jurídica e patrimonial do autor e dos autores populares devido ao comportamento ilícito supra descrito, nomeadamente, mas não exclusivamente, da privação de uso e de todos os custos que os autores populares tenham incorrido para poderem exercer a frustrada tentativa de exercer o legitimo direito à garantia. Considerando ser no caso do autor possível de concretizar, já neste momento, o pedido, fê-lo do seguinte modo: c. Repor a falta de conformidade dos auriculares adquiridos em 29.04.2021 (a que corresponde a factura ...) por meio de reparação ou substituição; d. Pagar a quantia de 5 euros por dia a contar desde 07.09.2021 até à reposição do bem desconforme; e. 10 euros a titulo de danos morais e que resultaram da lesão da tranquilidade, do bem-estar físico e psíquico, tudo devido ao comportamento ilícito da ré, o que levou obviamente a algum sofrimento físico e moral, perda de confiança nas normas e nas relações comerciais, ainda que o autor atribua culpa deste comportamento despregado, ostensivo e arrogante da ré à falta de inacção da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica que deviria sancionar e impedir tais comportamentos, mas que inexplicavelmente não o faz; f. Assim como uma indeminização dos custos suportados pelo autor a propositura desta acção, não obstante o carácter popular da mesma e a “teoria das custas de parte”; g. Os juros que se vencerem à taxa legal aplicável a cada momento contados desde a data do vencimento da obrigação de indemnizar até integral pagamento. No caso de qualquer um dos pedidos supra procederem, pediu ainda a condenação da ré a: L- Enviar a sentença que vier a ser proferida a todos os seus clientes e/ou ex-clientes, potenciais autores populares e nessa qualidade titulares dos interesses identificados, para que estes, querendo, façam valer os seus direitos nos termos da Lei 84/95 artigo 22(3). Como fundamento, alegou, em síntese: - O autor é uma pessoa singular que, em 29.04.21, adquiriu um produto à ré destinado a uso não profissional, pelo que tem a qualidade de consumidor, como a maioria dos clientes da ré; - Adquiriu um auricular Swingson True II, que não apresenta as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o autor podia razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem, designadamente, o auricular direito emitia a um volume sonoro máximo quase inaudível e muitíssimo inferior ao emitido pelo auricular direito; - Perante a falta de conformidade do auricular, que foi notória logo no momento em que o mesmo foi adquirido, o autor dirigiu-se, assim que teve oportunidade, à ré a fim de que esta repusesse o auricular sem encargos por meio de reparação ou de substituição; - A ré só admitiu aceitar o auricular para efeito de reparação ao abrigo da garantia caso o autor celebrasse o contrato designado como “CONDIÇÕES GERAIS REPARAÇÕES E SERVIÇOS PÓS VENDA”, que o autor anexa como documento n.º 2; - Tal contrato onera sobremaneira os consumidores no exercício do seu direito de garantia, já que exige uma taxa de orçamento de € 20,00, impõe uma taxa de armazenamento caso os equipamentos não sejam levantados após a sua reparação, reduz o prazo de garantia de 2 anos para 6 meses em caso de baterias, carregadores e outros bens equiparados; - A ré coage os consumidores em geral, seus clientes, autores populares, a aderirem a um contrato desproporcional, o qual não podem modificar, para assim e só assim poderem exercer o direito à garantia, quando deveria ser bastante a apresentação do bem ou serviço desconforme e a prova da sua aquisição para exercer um direito consagrado na Lei; o autor e restantes autores Populares, ou aceitam aderir ao dito contrato, ao não vêem o seu bem ou serviço reparado ou substituído, ficando neste último caso privado do seu uso; - O quadro descrito verificou-se com o autor, que desde 07.09.21 (artigo adquirido em 29.04.21, segundo documento que anexa), data em que apresentou o bem para reparação e a mesma lhe foi recusada pela ré, deixou de poder utilizar o bem em conformidade com o uso que lhe seria expectável, incorrendo em danos patrimoniais e não patrimoniais; No enquadramento jurídico dos direitos dos consumidores que entende serem violados pela actuação da ré, invoca o autor que é violado o direito a reposição, sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, sendo esta conformidade esperada do contrato de compra e venda, não podendo ser imposta aos consumidores a celebração de um novo contrato ou de um contrato acessório que condiciona a obrigação da ré de repor o bem ou prestar o serviço, o que traduz um condicionamento ao exercício do direito de garantia e utilização de assédio e coacção sobre os consumidores. Justifica o recurso à acção popular e delimita o universo de autores como – que têm uma especial ligação com a presente demanda – como sendo todos clientes da ré, consumidores que, tendo-lhe comprado bens ou serviços e que foram ou podem vir a ser prejudicados com o comportamento ilícito da ré supra descrito, com a subsequente perda dos montantes despendidos na compra de tais bens e serviços e na privação de uso e, mais relevante, com a sonegação do elementar direito de garantia perfeitamente previsto na Lei e com força imperativa, tendo sido colocados numa situação de sujeição relativamente às vontades e coacção da ré. No mais, invoca o dano por si sofrido e quantifica a sua pretensão indemnizatória, invocando elementos factuais que delimitam o seu interesse individual. Mais refere, justificando o recurso à acção popular que “tal como o Autor, vários são os Autores Populares que ou aceitaram esse contrato desproporcional ficando sujeito às suas consequências e, portanto, foram onerados quando não deviam, ou simplesmente abriram mão do direito à garantia ficando privados do uso dos bens e serviços adquiridos e em desconformidade”. Em justificação da necessidade de reenvio prejudicial, alega ainda que, ao impor um entrave extracontratual oneroso ou desproporcionado quando o autor e demais autores populares, consumidores em geral, pretendem exercer os seus direitos contratuais, incluindo o exercício de o direito a garantia, a ré está a praticar um comportamento comercial agressivo que é qualificado como assédio, a coacção ou a influência indevida. De seguida, foi proferido despacho que, ao abrigo do disposto no artigo 13.º da Lei 83/95, de 31.08, por ser manifestamente improvável a procedência do pedido, indeferiu a petição de acção popular. O autor recorreu, formulando as seguintes CONCLUSÕES “1. Os Autores, ora Recorrentes, notificados da douta sentença proferida nos presentes autos e não se conformando com a mesma, vêm interpor RECURSO DE APELAÇÃO, sobre a matéria de facto e de direito, nos termos e ao abrigo do disposto nos artigos 627, 629 (1), 631, 637, 639, 644 (1,a) e 647 (1), todos do CPC. 2. A Meritíssima Senhora Juíza de direito, ponderada toda a matéria de facto e de direito, decidiu julgar improcedente a ação, indeferindo a mesma, por considerar ser manifestamente improvável a procedência do pedido (cf. artigo 13 da Lei 83/95). 3. Tal juízo liminar do Tribunal a quo é sustentado no entendimento que é legal exigir aos consumidores que aderiam a um contrato, com o qual não concordam, o qual não podem modelar e no qual não tem qualquer interesse, apresentado subsequente à compra e apenas no momento em que exercem o seu direito à garantia, caso queiram ver os seu bens reparados e que as baterias e os carregadores são bens perecíveis e de natureza incompatível com o prazo de dois anos de garantia, podendo por isso a mesma ser reduzida para seis meses. 4. E que em consequência desse entendimento, não havia possibilidade de proceder a uma apreciação indiferenciada da situação de cada um dos consumidores, Autores Populares, aqui Recorrentes. 5. Ressalvado o devido respeito, que é o maior, o Meritíssimo Juiz recorrido decidiu mal, não avaliando convenientemente o caso sub judice quanto à matéria de facto, como de direito. 6. O objeto do litígio é o que se alude no § 1.2. supra, para onde se remete e aqui se dá como integralmente reproduzido, evitando sermos fastidiosos a repetir o já supra exaustivamente mencionado. 7. Mas que de forma tanto quanto resumida possível se circunscreve ao direito que os Autores reclamam a que lhe seja entregue o bem e serviço conforme o contrato de compra e venda e que em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, tenham direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, e sem lhes impor a celebração de um contrato (acessório ao contrato de compra e venda) com cláusulas gerais para que estes assim e só assim possam exercer tal direito à garantia. 8. Tudo isto, com as mais consequências legais, incluindo respectivas indeminizações. 9. As questões a resolver circunscrevem-se a todas que estão vertidas no §1.3 supra, para onde se remete dando aqui como integralmente reproduzidas, evitando uma mera repetição das mesmas. 10. Resolvendo-se essas questões, que diga-se, são na verdade já o mérito da causa, tudo o resto se resolve por inerência, designadamente a possibilidade de proceder a uma apreciação indiferenciada da situação de cada um dos consumidores, aqui Autores Populares. 11. A Meritíssima Senhora Juíza a quo decidiu, sem conceder o direito a um julgamento com audiência de testemunhas, a ser ouvida a parte contrária e feitas alegações finais, o mérito da causa, porquanto, de facto, decidiu a substância do pedido e a questão de fundo. 12. Razão pela qual entendem os Autores, ora Recorrentes, não terem tido direito a um julgamento justo, tal como defende no § 3 supra, para onde se remete. 13. Não foram dados provados ou não provados nenhuns factos, tendo sido apenas apreciados os factos alegados pelos Autores Populares. 14. O alegado pelos Autores Populares, aqui Recorrentes, são os que contas na petição inicial e que se resumem aos seguintes: a. A Ré é uma cadeia é uma cadeia de lojas que vende produtos culturais e eletrónicos. b. A Ré, tal como é público e notório, exercer a sua actividade económica com carácter profissional e visando a obtenção de benefícios. c. O autor é uma pessoa singular que adquiriu em 29.04.2021 um produto à Ré destinado a uso não profissional, revestindo-se dos requisitos do artigo 2 da Lei 24/96 de 31 de Julho para ser considerado como consumidor (cf. Documento 1 que se juntou com a petição inicial). d. Assim como são [consumidores na aceção do artigo 2 da Lei 24/96] a maioria dos clientes que adquirem produtos e serviços à Ré. e. O Autor adquiriu um auricular Swingson True II, melhor identificado na fatura que se juntou com o documento 1 ibidem. f. O aludido auricular não apresenta as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o autor podia razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem, designadamente o auricular direito emitia a um volume sonoro máximo quase inaudível e muitíssimo inferior ao emitido pelo auricular direito. g. Perante a falta de conformidade que do auricular, que se foi notória logo no momento em que o mesmo foi adquirido, o Autor dirigiu-se, assim que teve oportunidade, à Ré a fim de que esta repusesse o auricular sem encargos por meio de reparação ou de substituição. h. A Ré recusou-se a receber o auricular, apesar de aceitar que se verificava a aludida falta de conformidade e de autor ainda estar dentro do prazo de garantia de dois anos (cf. artigo 5 do Decreto Lei 37/2003). i. A Ré só admitiu aceitar o auricular para efeito de reparação ao abrigo da garantia se o Autor aceita-se celebrar um contrato (de adesão) que a mesma designava como “CONDIÇÕES GERAIS REPARAÇÕES E SERVIÇOS PÓS VENDA” (cf. Documento 2 que se juntou com a petição inicial e que se dá como integralmente reproduzido). j. O contato supra referido onera sobremaneira os consumidores que queiram, nos termos da do Decreto-lei 37/2003, exercer o seu direito a garantia. k. Este comportamento da Ré foi assim com o Autor, tal como é com todos os restantes Autores Populares, seus clientes, consumidores sem geral. l. Pois a Ré impõe o supra aludido contrato, com cláusulas contratuais gerais, que os consumidores, clientes da Ré, aqui Autores Populares, não podem discutir ou modificar o seu conteúdo, quando estes, perante a falta de conformidade de um bem ou serviço comprado na Ré apenas pretendem exercer o seu direito a garantia. m. Assim, o Autor e restantes Autores Populares, ou aceitam aderir ao dito contrato, ao não vêm o seu bem ou serviço reparado ou substituído, ficando neste último caso privado do seu uso. 15. Pelas razões de direito apresentadas no § 4 supra, os Recorrentes descordam em absolto com o entendimento do Tribunal a quo, mas que em resumo entendem que: a. O exercício da garantia prevista no artigo 5 do decreto-lei 63/2007 não pode ficar condicionada à exigência do consumidor assinar um contrato, seja lá qual for o seu teor e os seus efeitos económico-jurídicos, apresentado (muito) depois de concluída a venda e apenas no momento que o consumidor pretenda exercer o seu direito à garantia, muito menos quando esse é um contato de adesão, impossível de modelar pelos consumidores, e que lhe reduzem direitos, designadamente os previstos no artigo 5 do decreto-lei 63/2007. b. A presunção legal ínsita no artigo 3 (2) do decreto-lei 63/2007 não pode ser confundido com o prazo de garantia que o artigo 5 (1) do mesmo decreto-lei 63/2007 prevê e como tal o prazo de garantia dos bens móveis, novos, é sempre 2 anos, não podendo ser reduzida para 6 meses. 16. Ainda que lateral à questão, os aqui Recorrentes também discordam do Tribunal a quo na consideração de que as baterias e os carregadores são bens perecíveis. 17. Os Recorrente requerem o reenvio para interpretação prejudicial pelo TJUE para interpretação dos artigos 8 e 9 (d) da Diretiva 2005/29/EC, artigos 10 (1), 11, 13(1)(2) e, em particular, 14(1)(2) da Diretiva (EU) 2019/771 à luz da factualidade apresentada, dissertando e justificando melhor esse reenvio e a sua obrigação (em caso de decisão em dupla conforme) no § 5 supra, para onde se remete. 18. Igualmente requerem o reenvio para interpretação prejudicial pelo TJUE para interpretação do artigo 47 da CDFUE e artigo 2 do TUE, por entenderem que não tiverem direito a um julgamento justo, perante uma sentença assente num juízo liminar, privando os Autores Populares de fazerem prova testemunhal em sede de audiência de julgamento, prova essa suscetível de alterar a decisão ora recorrida. 19. Assim, para a eventualidade de entenderem Vossas Excelências, Venerandos Juízes Desembargadores que é necessária a intervenção do TJUE, como se demonstrou ser, nos termos e para os efeitos supra requeridos, entendem os Recorrentes, que a pronúncia do TJUE, no caso sub judice, será indispensável para a decisão da controvérsia jurídica que constitui objeto da presente ação. Por essa razão, requerem a suspensão da presente instância até que o TJUE se pronuncie, a título prejudicial, expressa e especificamente, sobre tais questões.”. (…) O despacho recorrido é um despacho de indeferimento liminar da petição inicial, proferido ao abrigo do disposto no citado artigo 13.º. A fundamentação do despacho recorrido é a seguinte: “(…). Efectuada a apreciação dos factos alegados, analisado o enquadramento jurídico e conjugados estes com o teor do documento que está na origem das conclusões extraídas pelo autor em relação à existência de fundamento para instauração de uma acção popular, importa apreciar se existe probabilidade de procedência do pedido (art.º 13º da Lei nº83/95, de 31.08. O consagrado direito de acção popular, que autoriza qualquer cidadão a exercer um direito com repercussões na esfera jurídica de um conjunto de cidadãos em situação similar, tem uma base altruística, permitindo que, com isenção inicial de preparos e custas, o cidadão que considera que uma actuação de terceiros é lesiva, não só do seu direito, como do direito de todo um universo de consumidores que contrate com a infractora, possa pôr termo a essa actuação em seu nome e em nome de todos os demais que se encontrem na mesma situação. Porém, sendo uma acção que acarreta elevados custos para o Estado – pelo universo de citações e pela dimensão e complexidade de julgamento que abstractamente pode ter –, reclama um crivo criterioso que evite que, sob a capa da defesa de todo um universo de lesados ou potenciais lesados, se persigam interesses pessoais concretos, efeito para o qual a lei dispõe de meios processuais próprios. Em matéria de consumo e, muito concretamente, quando em causa esteja o exercício do direito de garantia, que o autor proclama ser violado pela ré ao impor aos consumidores a assinatura de um contrato para poderem exercer a sua garantia, os consumidores beneficiam, por aplicação do disposto no art.º 3º, nº2 do Decreto-Lei 67/2003, de 08.04, de um alívio do ónus de prova, que consiste na presunção de que qualquer falta de conformidade que se manifeste num prazo de dois anos (coisa móvel) a contar da data de entrega do bem, se presume existente já nessa data, salvo quando tal for incompatível com a natureza da coisa ou com as características da falta de conformidade. Resulta ainda do art.º 4º, nº1 do citado diploma que, em caso de falta de conformidade, o consumidor tem direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato, esclarecendo o nº3 que a expressão “sem encargos” se reporta às despesas necessárias para repor o bem em conformidade com o contrato, incluindo, designadamente, despesas de transporte, de mão-de-obra e material. Em suma, o vendedor do bem não pode reclamar do consumidor quaisquer encargos quando exista falta de conformidade, sendo que esta se presume existir quando se manifeste num bem móvel adquirido há menos de dois anos. A base do exercício do direito de acção, na perspectiva do aqui autor, assenta no documento que o mesmo anexa à petição inicial (junto, em versão legível, em 21.09.2021) e que, segundo refere, corresponde a um contrato cuja assinatura a ré impõe aos consumidores que pretendam exercer o seu direito de garantia. Tal como resulta do referido documento - anexo ao requerimento com a referência nº 29963816, de 21.09.2021 -, na parte referente aos “artigos sob garantia” refere o documento em questão o seguinte: “CONDIÇÕES GERAIS REPARAÇÕES E SERVIÇO PÓS VENDA Artigos sob garantia Todos os produtos adquiridos na F… beneficiam de uma garantia legal de conformidade de 2 (dois) anos a contar da respectiva entrega ao cliente, desde que cumpridas as condições de garantia da marca. Para que o cliente possa accionar a garantia legal é necessário que apresente a fatura de compra em qualquer estabelecimento F… c/ou certificado de garantia da marca (quando aplicável). No caso de reparação do produto, o respectivo processo será iniciado quando a documentação necessária for entregue. O prazo previsível de reparação é de 30 (trinta) dias. Se na verificação técnica detectar sinais de mau uso, e/ou qualquer problema que possa ter causado o mau funcionamento do equipamento (por ex: queda, humidade, etc.) o cliente será contactado para indicar se pretende que se proceda à reparação do equipamento, sendo-lhe comunicado o correspondente orçamento de reparação. A não-aceitação do orçamento pelo Cliente, está sujeita ao pagamento de uma taxa de orçamento de 20€, excepto Aderentes F…. A taxa de orçamento deverá ser liquidada pelo Cliente no acto de levantamento do equipamento. O processo de reparação só será iniciado quando seja efectuado o pagamento de 50% do valor orçamentado”. Ou seja, não há limitação do prazo de garantia, não há imposição de condições para que seja actuada a garantia, apenas se destinando o clausulado questionado a condicionar os direitos do cliente nos casos em que sejam detectados sinais de mau uso e/ou problemas que possam ter causado o mau funcionamento do equipamento cuja reparação ou substituição é pretendida (pr ex. queda ou humidade, etc.), caso em que, sem imposição, o cliente é contactado para indicar se pretende que se proceda à reparação do equipamento, com apresentação do orçamento de reparação que, caso não seja aceite, está sujeita ao pagamento de uma taxa de orçamento de 20 €, a liquidar aquando do levantamento do equipamento, implicando (nestes casos, em que não está a reparação abarcada pela garantia) que o processo de reparação seja iniciado apenas após pagamento de 50% do valor orçamentado. O autor alega que o dito contrato de adesão, designado como “condições gerais de reparações e serviço pós venda” onera os consumidores que queiram exercer o seu direito de garantia, quando estejam perante uma falta de conformidade, coagindo-os a aderirem a um contrato desproporcional, quando deveria ser bastante a apresentação do bem desconforme para exercerem o seu direito. Ou seja, ou aceitam aderir ao contrato, ou não veem o seu bem reparado, ficando privados do seu uso. O autor reclamou e, segundo alega, ficou privado do uso do bem, peticionando uma indemnização pelo período de privação, alegando que a reparação ou substituição dos auriculares por si adquiridos “não foi possível devido ao comportamento da ré”. Analisado o documento, sem prejuízo de quaisquer questões que, em concreto, se possam verificar em relação a cada específica situação do consumidor colocado na posição de cidadão que exerce o seu direito de garantia, não podemos ter por verificada a invocada lesão geral e abstracta aos consumidores, no sentido de “a ré não aceitar colmatar a falta de conformidade dos bens por meio de reparação ou substituição” ou que, em caso de verificação dos pressupostos de activação da garantia, se negue a efectuar a reparação ou substituição a título gratuito. O que resulta do documento junto é que a ré se reserva o direito de cobrar um valor associado aos custos que tem com a verificação técnica, quando conclua que existem sinais de mau uso ou factores externos ao normal funcionamento do bem que possam ter dado causa ao mau funcionamento do equipamento e sejam imputáveis ao consumidor. Independentemente de poderem ocorrer situações de abuso concreto, a ressalva contratual de imputação ao consumidor dos custos a que dê causa a verificação técnica da origem da falta de conformidade do bem no prazo legal da garantia não corresponde, a nosso ver, a uma inversão das regras legais que possa, a título geral e com possibilidade de inclusão no campo amplo da acção popular, dar causa a uma sentença que produza os efeitos gerais que o autor pretende ver declarados. Note-se que é pretensão do autor que o tribunal condene a ré a repor a falta de conformidade do bem com o contrato sem qualquer encargo, ónus ou necessidade de novo contrato ou contratos acessórios, por meio de reparação ou de substituição, quando do documento anexo como fonte da indicada pretensão de declaração geral não resulta que a ré se negue a repor gratuitamente a falta de conformidade, negando aos consumidores o exercício do seu direito de garantia, antes sendo os custos ali previstos acautelados para os casos em que, após verificação técnica, a ré conclua que não se verifica a referida falta de conformidade. Haverá, seguramente, uma margem concreta de casos em que, apesar de a ré concluir que não se verifica a falta de conformidade ou que o mau funcionamento é imputável ao consumidor, tal não corresponda à realidade. Mas essas situações terão tratamento jurídico autónomo no contexto da situação individual em que se verifiquem. O autor negou-se a assinar o documento e, consequentemente, desconhece o resultado da apreciação técnica da sua concreta situação. Porém, caso houvesse autorizado a remessa do bem para verificação técnica e a conclusão fosse produzida no sentido de que inexistia qualquer mau uso ou causa imputável ao autor na falta de conformidade do produto, nenhum valor lhe seria reclamado, nos termos do documento junto. Ao vendedor, responsável pela reparação/substituição, tem que ser disponibilizado o bem para viabilizar a possibilidade de ilidir a presunção de que a desconformidade já ocorria na data de entrega do bem, podendo efectuar uma averiguação técnica para apurar se o defeito é originário. Se esta averiguação tem custos, não choca o comum sentimento jurídico que, em caso de abuso do direito de garantia por evidente mau uso do bem, tais custos sejam imputados ao consumidor que, quando não se conforme com o resultado da apreciação técnica, tem o direito de ver a questão ser solucionada por um tribunal. Mas esta questão, salvo melhor opinião, com a incidência concreta que tem, não pode ser genericamente declarada em relação a todos os consumidores e, nessa medida, escapa ao âmbito de aplicação da acção popular. A lei estabelece a gratuitidade para o consumidor do exercício dos seus direitos. O já citado n.º 1 do artigo 4.º do diploma determina que, “em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor tem direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato”. O n.º 3 do artigo 4.º clarifica o alcance desta expressão, estabelecendo que ela se reporta “às despesas necessárias para repor o bem em conformidade com o contrato, incluindo, designadamente, as despesas de transporte, de mão-de-obra e material”. Assim, o consumidor não tem de pagar qualquer valor pelas operações de reposição da conformidade, incluindo as relativas a perícias ou ao transporte do bem. Em todos os casos previstos nos dispositivos citados, estamos perante situações em que existe falta de conformidade do bem, sendo que os valores que a ré, por documento escrito, comunica/informa que serão suportados pelo consumidor, são aqueles que (ainda que na perspectiva das conclusões dos serviços técnicos da ré, naturalmente questionáveis e sindicáveis judicialmente) se encontram excluídos da garantia legal de conformidade, o que não constitui violação da lei. O documento cuja assinatura a ré impõe ao cliente que apresenta o bem para reparação - com âmbito de aplicação genérica a artigos sob garantia e a artigos fora de garantia -, corresponde a uma espécie de panfleto informativo, por efeito da assinatura do qual o consumidor toma conhecimento e aceita as condições gerais de reparação do serviço pós-venda. A aceitação das condições não significa ou impõe a renúncia ao direito de garantia, nem impõe custos ao consumidor que legitimamente exerce o direito de garantia, antes informa o consumidor que, caso exista conclusão técnica de que a falta de conformidade do bem é imputável ao consumidor (designadamente mau uso ou acondicionamento com exposição indevida a elementos reconhecidamente causadores de danos em determinados equipamentos), o custo da reparação e da orçamentação será imputado ao cliente. O objectivo será o de retrair o consumidor de praticar algum abuso do direito de garantia, designadamente quando sabe que a avaria foi causada por qualquer comportamento por si conhecido, caso em que pode ponderar, ao conhecer as condições de reparação, o risco que envolve a análise técnica do defeito. A averiguação das causas de não conformidade e a sua orçamentação envolve custos para a vendedora que, em casos pontuais de eventual abuso por parte do consumidor, não será excessivo ou abusivo imputar a este último, sendo que, conforme referido, não resulta do indicado documento que os direitos do consumidor sejam coarctados, já que, caso discorde das conclusões da ré, em nenhum momento deixa de ter o direito de accionar a vendedora, que terá que ilidir a presunção de que a falta de conformidade existia no momento da entrega/venda. A partir deste conjunto de factos e ponderados os factores em conflito, teremos que concluir que existe uma elevada improbabilidade de procedência do pedido, já que a pretensão de, com efeitos em relação a todo um conjunto indiferenciado de consumidores, obter a condenação da ré a reconhecer que os consumidores, Autores Populares, incluindo o autor, têm direito a que lhe seja entregue o bem e serviço conforme o contrato de compra e venda, ou a reconhecer que em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, os consumidores, autores populares, incluindo o autor, têm direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou substituição, implicaria que em algum momento, o tribunal pudesse fundadamente concluir que, pela via da imposição da assinatura do documento, através da qual o consumidor declara o conhecimento e aceitação das condições gerais de reparações e serviços pós venda (aplicáveis a todas as reparações, que incluem artigos sob garantia e fora de garantia), a ré nega tais direitos aos consumidores. Sem prejuízo de, como sucede com qualquer contrato de adesão, o consumidor poder posteriormente questionar a informação que lhe foi prestada ou de, em qualquer caso, poder o consumidor discordar das conclusões dos serviços técnicos da ré, negando-se a pagar o valor reclamado a título de taxa de orçamento e accionando a ré em cada situação concreta em que se tenha por justificado o exercício do direito, cremos que não existe base suficiente para que se possa concluir pela probabilidade mínima de procedência da acção, já que, por um lado, os pedidos deduzidos não têm base factual/documental que suporte a concreta pretensão jurídica deduzida e, por outro lado, não existe um desequilíbrio de prestações ou uma especial oneração do consumidor que se antecipe resultar da subscrição de um documento que mais não traduz do que a declaração de que conhece e aceita as condições de reparação (em cujo texto expressamente se reconhecem os direitos do consumidor que se encontre a reclamar a falta de conformidade de um bem abrangido pela garantia de dois anos), o que não equivale a declarar que aceita as conclusões que vierem a ser alcançadas pelos serviços técnicos da ré - única aceitação que corresponderia a uma ilegítima imposição de renúncia a direitos. Não cremos, deste modo, que as pretensões deduzidas nas alíneas A a F, de que dependem os demais pedidos deduzidos, tenham uma probabilidade mínima de procedência que viabilize o prosseguimento da acção. O autor alude ainda à genérica ilegalidade da restrição contida no referido documento em relação a bens de consumo perecíveis (baterias, carregadores) a seis meses de garantia. Tal questão, porém, contende com a tipologia dos bens que, quando separados do bem móvel e autonomizáveis dele, podem, pela sua própria natureza, esgotar-se ou consumir-se em prazo incompatível com a garantia de 2 anos, o que requer apreciações individuais ou concretas em relação às específicas relações contratuais em que se desenvolvam e aos bens sobre os quais incidem, como resulta da previsão do art.º 3º, nº2 do Decreto-Lei nº67/2003, não constituindo, salvo melhor opinião, base suficiente para uma decisão judicial que nos autorize a reconhecer a existência de uma prática comercial abusiva que suporte a procedência da acção, com a amplitude legitimadora do recurso à acção popular. Dado que a discordância do autor em relação aos procedimentos comerciais da ré corresponde a uma questão que pode e deve ser tratada no contexto da relação contratual bilateral que o próprio estabeleceu com a ré, esta não ultrapassa os limites interpessoais e, nessa medida, não permite um juízo de prognose favorável à possibilidade de procedência futura da acção proposta. Deste modo, pelos motivos expostos, por ser manifestamente improvável a procedência do pedido, conclui-se pelo indeferimento da petição (art.º 13º da Lei nº83/95, de 31.08). (…).”. (…) B) Nas conclusões 14. a 16., o autor manifesta a sua discordância em relação ao fundamento da manifesta improcedência dos pedidos deduzidos. Adiantamos já que concordamos inteiramente com a decisão e com a fundamentação do despacho recorrido, acima transcrita, nada mais se nos oferecendo dizer que não seja redundante e, consequentemente, inútil. Por isso, em apoio do despacho recorrido, diremos apenas o seguinte: Resulta dos factos alegados e do próprio documento junto pelo autor, que contém as Condições Gerais de Garantia e Serviço Pós-Venda (reproduzido no despacho recorrido), que a ré não recusa a reparação ou substituição do bem nem impõe quaisquer condições para efectuar essa reparação ou substituição, desde que a mesma seja efectuada ao abrigo da garantia. O que a ré faz é informar o cliente, no acto da entrega do bem para reparação, que, caso, na verificação técnica, sejam detectados sinais de mau uso e/ou problemas que possam ter causado o mau funcionamento do bem (v.g., queda ou humidade, etc.), o cliente é contactado para indicar se pretende que se proceda à reparação do bem, com apresentação do respectivo orçamento. E que, caso o cliente não aceite o orçamento proposto pela ré, terá de liquidar uma taxa de €20,00, aquando do levantamento do bem, sendo que a reparação será iniciada apenas após o pagamento de 50% do valor orçamentado. Como se vê, todas aquelas condições se aplicam apenas à reparação que a ré entenda estar excluída da garantia, pela verificação de algum dos factores ali indicados. Após ter sido informado pela ré de que esta entende que a reparação ou substituição do bem está excluída da garantia, o cliente pode optar por: a) aceitar as condições contratuais propostas, caso pretenda que a ré repare o bem; b) repará-lo noutro local; c) discordar da conclusão da ré no sentido da exclusão da garantia. Neste último caso, estamos perante uma situação pontual, que terá de ser dirimida nos meios próprios, impendendo sobre a ré o ónus de ilidir a presunção de desconformidade do bem, que decorre do artigo 3.º, n.º 2 do DL 67/03, de 08.04[1]. Conforme bem se explicou no despacho recorrido, a verificação das causas da falta de desconformidade do bem e a orçamentação da reparação têm custos para a ré, pelo que a imposição do pagamento desses custos ao cliente, caso se verifique que a falta de conformidade é imputável a este, não é excessiva nem abusiva. Ao fazê-lo, a ré não está a fazer mais do que a exercer o seu direito à recusa da reparação ou da substituição em caso de abuso de direito por parte do cliente, que está expressamente previsto no artigo 4.º, n.º 5 do DL 67/03. E, de acordo com aquele preceito, ainda que não pedisse a adesão do cliente às condições contratuais supra referidas, a ré poderia sempre recusar reparar ou substituir gratuitamente o bem, caso verificasse estar perante uma situação de abuso de direito por parte do cliente. Ou seja, da própria factualidade alegada na petição inicial resulta que, se o autor tivesse aceitado as condições contratuais da ré, o auricular teria sido reparado ou substituído gratuitamente pela ré, a menos que esta entendesse que as falhas de funcionamento do auricular eram imputáveis ao autor. As condições contratuais exigidas pela ré não impedem, pois, o pleno exercício por parte do cliente dos direitos que lhe são conferidos pelas normas do DL 67/03. Quanto à redução do prazo de garantia para seis meses, no caso de bens de consumo perecíveis (bateria, carregadores), tal como melhor se explicou no despacho recorrido, não se pode considerar tal cláusula como ilegal ou abusiva, em termos genéricos, tratando-se de uma situação a ser apreciada e dirimida casuisticamente. Por todas as razões expostas e pelas demais que se aduziram na proficiente fundamentação do despacho recorrido, acima transcrita, conclui-se pela manifesta improbabilidade de procedência do pedido do autor, pelo que a petição inicial teria de ser julgada manifestamente improcedente, conforme foi”. No âmbito deste processo, o Ministério Público apresentou resposta às alegações de revista junto do STJ, referindo, em particular, o seguinte: “(…) as instâncias fizeram uma interpretação redutora dos factos alegados na petição inicial, e circunscreveram-no à situação concreta da reparação – ou recusa dela - do auricular Swingson True II que havia sido adquirido pelo autor/consumidor em estabelecimento da Ré. De facto, importa não esquecer que (…) a falta de conformidade do auricular foi notória logo no momento em que o mesmo foi adquirido, e o autor dirigiu-se, assim que teve oportunidade, à ré a fim de que esta repusesse o auricular sem encargos por meio de reparação ou de substituição; - A ré só admitiu aceitar o auricular para efeito de reparação ao abrigo da garantia caso o autor celebrasse o contrato designado como “CONDIÇÕES GERAIS REPARAÇÕES E SERVIÇOS PÓS VENDA”, que o autor anexa como documento n.º 2; - Tal contrato onera sobremaneira os consumidores no exercício do seu direito de garantia, já que exige uma taxa de orçamento de € 20,00, impõe uma taxa de armazenamento caso os equipamentos não sejam levantados após a sua reparação, reduz o prazo de garantia de 2 anos para 6 meses em caso de baterias, carregadores e outros bens equiparados; - A ré coage os consumidores em geral, seus clientes, autores populares, a aderirem a um contrato desproporcional, o qual não podem modificar, para assim e só assim poderem exercer o direito à garantia, quando deveria ser bastante a apresentação do bem ou serviço desconforme e a prova da sua aquisição para exercer um direito consagrado na Lei; o autor e restantes autores Populares, ou aceitam aderir ao dito contrato, ao não vêem o seu bem ou serviço reparado ou substituído, ficando neste último caso privado do seu uso; - O quadro descrito verificou-se com o autor, que desde 07.09.21 (artigo adquirido em 29.04.21, segundo documento que anexa), data em que apresentou o bem para reparação e a mesma lhe foi recusada pela ré, deixou de poder utilizar o bem em conformidade com o uso que lhe seria expectável, incorrendo em danos patrimoniais e não patrimoniais. E esta factualidade não foi contraditada pela Ré Fnac Portugal-Actividades Culturais e Distribuição de Livros, Discos Multimédia e Produtos Técnicos, L.da – apesar de ter sido citada para a ação e termos do recurso (de apelação). Por isso, em nosso entender, e salvo o devido respeito, deveria o Tribunal de 1.ª instância, no mínimo, proceder à inquirição das testemunhas arroladas pelo autor na petição inicial e respeitar o contraditório (cf.r art.º 3.º do CPC), antes de avançar logo para o indeferimento liminar da petição nos termos do art.º 13.º da Lei n.º 83/95, de 31/8 – que, assim, foi violado. E, consequentemente, o douto Acórdão ora recorrido, em vez de confirmar integralmente a decisão de indeferimento liminar proferida pela 1.ª instância, deveria tê-la revogado e ordenado a remessa dos autos ao tribunal de 1.ª instância para aí prosseguirem seus termos legais. Como não o fez, em nosso entender, deverá agora ser revogado pelo STJ, e ordenada a remessa dos autos à 1.ª instância para aquele efeito. (…)”. Importa referir que, no caso em apreço, o documento invocado pelos autores não se mostra ainda junto aos autos, tendo os autores protestado a sua junção, a qual ainda não ocorreu (cfr. artigo 35.º da p.i.). Conforme se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21-05-2020 (Pº 217/18.1T8MTA.L1, relatado pelo ora relator), “o “protestar” juntar documento não tem qualquer consequência, pois, a intenção de praticar um acto processual não equivale à sua prática, não podendo advir daí consequências jurídicas, como se o acto que não foi praticado, o tivesse sido”. Subsiste, pois, no caso, apenas a alegação factual, não sendo prestável, por e nos presentes autos, qualquer consideração – nomeadamente, as expendidas no âmbito do processo n.º 14051/21.8T8PRT.P1 - quanto a documento que nos autos não se encontra. De todo o modo, na petição inicial apresentada pelos autores, ora recorrentes, nos presentes autos, foram alegados os seguintes factos: “(…) 13º. A ré é uma cadeia é uma cadeia de lojas que vende produtos culturais e eletrónicos [cf. artigo 412 (1) do CPC]. 14º. A ré exerce a sua atividade económica com carácter profissional e visando a obtenção de benefícios [cf. artigo 412 (1) do CPC]. 15º. Em 18.11.2021, o autor 2 adquiriu um produto à ré destinado a uso não profissional, revestindo-se dos requisitos do artigo 2 da lei 24/96 para ser considerado como consumidor (cf. documento que se protesta juntar). 16º. Assim como são [consumidores na aceção do artigo 2 da lei 24/96] a maioria dos clientes que adquirem produtos e serviços à ré, portanto todos os aqui autores populares. 17º. O autor 2 adquiriu um disco rígido, melhor identificado na fatura que se protestou juntar. 18º. Um disco rígido é o componente de hardware que armazena todo o seu conteúdo digital, desde de documentos, fotos, músicas, vídeos, programas, preferências de aplicativo e sistema operacional representam o conteúdo digital armazenado em um disco rígido e podem ser externos ou internos, definição esta de um dos maiores fabricantes de disco rígidos do mundo. 19º. Ou seja, a finalidade específica que os consumidores, aqui autores populares, destina aos discos rígidos adquiridos à ré, é o que decorre da natureza dos mesmos enquanto suporte de armazenamento de conteúdo digital (dados digitais), independente da capacidade, compatibilidades e outras funcionalidades que cada disco rígido terá mas que para o caso são irrelevantes. 20º. O disco rígido que o autor 2 adquiriu à ré, assim com acontece com os restantes autores populares, não apresenta as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o autor 2 e restantes autores populares podiam razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem, designadamente porque deixou de permitir aceder ao conteúdo digital no mesmo armazenado e tão pouco de armazenar (gravar) novo conteúdo digital. 21º. Ou seja, para além de a desconformidade registada não permitir usar o bem para a finalidade de que foi adquirido (armazenar conteúdo digital), originou os danos que resultam da perda de todo o conteúdo digital entretanto produzido e ali armazenado. 22º. No caso do autor 2 esses danos são, em parte, já possíveis de concretizar e elencar e que correspondem à perda, aproximada, de 5 GB de conteúdo digital, nomeadamente, mas não exclusivamente: 1. Documento digital desenvolvido em Microsoft Office Word, relativo a um livro com 501 páginas, escrito todo em língua inglesa, cuja author’s proof foi editada pela editora Thorn Publishers em 2021, com respetivo ISBN e depósito legal, mas que implicou, tendo em vista a primeira publicação (first edition) mais de 177 edições para copyediting e proofreading desenvolvidos durante mais de meio ano e por mais de 4 horas diárias, todos os dias; 2. Documento digital desenvolvido em Microsoft Office Word, relativo a um livro com 153 páginas, escrito em língua portuguesa, espanhola e italiana, para publicação pela editora Thorn Publishers, que ainda que inacabado e não revisto, consumiu várias horas ao autor 2 e cujo valor é inestimável, apesar de vários textos, partilhados com terceiros, terem sido, parcialmente, recuperados; 3. Documento digital desenvolvido em Microsoft Office Word, relativo ao pedido de patente nacional …, cujos direitos são titulados pela sociedade Thorn Assets, Lda, traduzido por uma profissional qualificada, para língua inglesa, com o objetivo de apresentar um pedido de prioridade junto do European Patent Office (“EPO”), o qual tem de ser feito até 17.08.2022, patente que se aprovada poderá valer, a nível europeu, mais de 100 milhões de euros, sendo que o autor 2, junto com ES, cidadão italiano e gerente da supra referida sociedade Thorn Assets, Lda, foram os inventores, tendo o autor 2 ficado responsável por todos os procedimentos tendentes à aprovação da aludida patente a nível europeu, o que não pode fazer por falta desse documento armazenado no disco rígido; 4. Vários outros documentos digitais desenvolvido em Microsoft Office Word, relativo a vários pedidos de patentes nacionais, cujos direitos são titulados pela sociedade Thorn Assets, Lda, algumas delas com o objetivo de apresentar um pedido de prioridade junto do European Patent Office (“EPO”), o qual tem um período muito limitado de tempo para ser feito, sendo patentes que se aprovadas poderão valer, a nível europeu, vários milhões de euros, sendo que o autor 2, junto com ES, cidadão italiano e gerente da supra referida sociedade Thorn Assets, Lda, foram os inventores, tendo o autor 2 ficado responsável por todos os procedimentos tendentes à aprovação das aludidas patentes, o que não pode fazer por falta desse documento armazenado no disco rígido, sendo que uma dessas patentes é importante para que a supra referida sociedade, por intermédio da representação do autor 2, que com isso teria benefícios financeiros, integre um consórcio europeu, financiado pela Comissão Europeia, liderado pela Eurecat – Centro Tecnológico de Cataluña, contando com com participantes como a Ernst & Young e a Fiat Automobiles S.p.A., para o desenvolvimento de soluções sustentáveis e inovadoras, ligados à aplicação de grafeno, para a industria automóvel. 5. Vários outros documentos digitais desenvolvidos em Microsoft Office Word e Microsoft Office Excel, incluído folhas de cálculo financeiro por este desenvolvidas, documentos pessoais, documentos relacionados com vários processo judiciais, documentos relacionados com a atividade que desenvolveu e desenvolve em diversas autoridades europeias e grupos, nomeadamente, mas não exclusivamente, na European Securities and Markets Authority, na Comissão Europeia, em várias associações, etc. cujo acervo é de extrema relevância e com um valor incalculável para o autor 2. 23º. Ainda assim, no caso do autor 2, como com os restantes autores populares, só em execução de sentença será possível apurar, em concreto, o quantum desses danos, mas que nunca serão inferiores a €8.000 (oito mil euros por consumidor), correspondente ao orçamento mínimo obtido para a recuperação de dados em discos rígidos nas circunstâncias descritas nos autos (cf. documento que se protestar juntar). 24º. A recuperação dos dados digitais armazenados no disco rígido é possível, como a própria ré reconheceu (cf. documento que se protestar juntar). 25º. A recuperação dos dados digitais armazenados no disco rígido é possível, como empresa Planeta Digitial, Unipessoal Lda e designação comercial “Point Repair”. 26º. A recuperação dos dados digitais armazenados no disco rígido é possível, com uma taxa de sucesso de 95% na recuperação de dados interna de discos rígidos SSDs e HDDs, tal como reconhece a empresa líder do setor. 27º. Conforme supra se referiu, o serviço de recuperação de dados efetuado por empresas especializadas, tem um custo mínimo não inferior a €8.000 (oito mil euros). 28º. A ré tem uma empresa especializada que presta esses serviços de recuperação de dados. 29º. A ré recusou-se a recuperar os dados do autor 2, assim como se recusa a faze-lo para qualquer outro seu cliente, os aqui autores populares (cf. documento que se protestar juntar). 30º. Essa recusa deriva, como já supra referido, é um comportamento que a ré adota, de forma indiferenciada, enquanto comportamento padrão assente nas suas orientações internas, com todos os demais clientes, aqui os autores populares, em situações análogas (cf. documento que se protestar juntar). 31º. Perante a falta de conformidade, o autor 2, assim como fizeram e fazem os autores populares, dirigiram-se à ré a fim de que esta repusesse o produto sem encargos por meio de reparação, onde se incluía, obviamente, a recuperação dos dados digitais armazenados no aludido disco rígido 32º. O autor 2, diligentemente, pediu uma perícia ao disco rígido adquirido à ré e que apresentava a dita desconformidade, o que o fez junto da empresa Planeta Digitial, Unipessoal Lda, 33º. A aludida empresa, especialista neste tipo de diagnósticos e reparações, de pois de testes massivos, que duraram mais de 24 horas, confirmou que o problema derivada de um defeito de fabrico que não permitia o arranque do disco rígido, tendo verificado todas as ligações e o estado do disco, as quais declarou, por escrito, encontrar-se em perfeito estado de conservação; como novo (cf. documento que se protestar juntar). 34º. A ré recusou-se a reparar o produto em desconformidade, nomeadamente, recuperando os dados digitais armazenados, apesar de aceitar que se verificar a aludida falta de conformidade e de autor, como com os restantes autores populares na mesma situação, estava dentro do prazo legal de garantia. 35º. A ré inclusivamente impôs ao autor 2, como impõe a todos os restantes autores populares, a celebração de um um contrato (de adesão) que a mesma designa como “CONDIÇÕES GERAIS REPARAÇÕES E SERVIÇOS PÓS VENDA” (cf. documento que se protestar juntar). 36º. O autor 2, sem hipótese, teve de aderir ao aludido contrato, apesar de o considerar manifestamente ilegal e o ter repudiado por escrito (cf. documento que se protestar juntar). 37º. Este comportamento da ré foi assim com o autor 2, tal como é com todos os restantes autores populares, seus clientes, consumidores sem geral. 38º. Em resumo, os autores populares, tal como o autor 2, ficam privados do uso do bem que adquiriram, com os dados digitais lá armazenados e, com isso, incorrem em danos patrimoniais e não patrimoniais. 39º. Os danos não patrimoniais são elevados, desde logo porque qualquer pessoa, colocada na posição dos autores populares e do autor 2, sofreria de normal desgaste, frustração, preocupação, angústia, tristeza e stress, ao verificarem que perderam danos digitais que armazenaram num produto adquirido à ré exatamente para esse fim, tudo isto muito para além de simples incómodos ou contrariedades normais do quotidiano – pelo que foi isso que aconteceu com os autores populares com o o autor 2. 40º. Podemos mesmos dizer que estamos, neste segmento, perante danos in re ipsa, e que não podem ser inferiores a € 100 (cem euros) por consumidor. 41º. Para além dos danos não patrimoniais os autores populares sofreram danos patrimoniais neste momento difíceis de calcular, mas que podem e que se requer que sejam apurados em execução de sentença, mas que se estima que ascendam, por autor popular, a €8.000 (oito mil euros), está quantia correspondente ao custo da recuperação desses dados por uma empresa especializada. 42º. Sendo que o quantum de tais danos podem diferir entre os diversos autores populares, os quais serão, pois, apurados em execução de sentença mediante a prova que cada um trouxer desse danos e dos custos que efetivamente incorreram derivado do supra referido comportamento da ré. 43º. O valor de €8.000 (oito mil euros) supra apresentado, que teve simplesmente como base o custo do serviço da reparação de dados, serve apenas para o cálculo da indemnização global a fixar por este tribunal e que deverá ter em conta, ainda, o número de discos rígidos vendidos pela ré nos últimos dois anos a contar da propositura desta ação e a respetiva annualized failure rate (“AFR”), a apurar por perícia colegial (tanto por via da contabilidade da ré, como pela analise do tipo de discos). 44º. Sem prejuízo da perícia necessária e requerida a final, a AFR, que confere uma imagem mais precisada do que a anual failure rate, na medida em que ajusta os dados para contabilizar as unidades que foram adicionadas ou removidas da amostra no meio do ano, garantindo que as unidades novas e infalíveis adicionadas no quarto trimestre não façam um modelo parecer mais confiável do que poderia parecer, é atualmente de 1,01 % na generalidade dos discos rígidos inferiores a 12 TB, os quais são os mais adquiridos pelo consumidor comum, os aqui autores populares. 45º. Assim, sem nos pretendermos substituir às conclusões da perícia necessária, diríamos que a indeminização global, para além, será equivalente a 1,01 % das vendas de discos rígidos da ré nos últimos 3 anos, multiplicado por € 8.100 (oito mil e cem euros). 46º. Ou seja, a ré não se comportou de forma honesta com os autores populares e com o autor 2, deixando de cumprir com as suas obrigações legais e violando ostensivamente o direito dos consumidores na compra de vendas de bens, colocando-os numa situação de sujeição e de extrema vulnerabilidade, sem acesso aos dados que armazenaram nos discos rígidos adquiridos à ré, apenas porque economicamente lhe é mais interessante, contando com a inércia e desconhecimento dos consumidores lesados por tal comportamento, nomeadamente quando confrontado estes perante as orientações internas de que não se responsabilizavam pela perda de dados. 47º. Os danos morais causados pela ré são avultadíssimos considerando o universo de autores populares que traduzem todo o universo de interesses homogéneos, sendo esses danos morais os homogeneamente partilhados e sofridos por todos os autores populares e que resultam, nos seguintes: 1. sofrimento com a quebra da confiança depositada na honestidade da insígnia da ré; 2. a desconfiança, preocupação, transtornos e incómodos que decorrem da quebra de confiança que o comportamento da ré incutiu nos autores populares, que agora se sentem com receio de armazenar dados digitais nos discos rígidos adquiridos à ré, mesmo aqueles que, entretanto, tenham comprando novo disco rígido para substituir os não reparados; 3. sofreram com a preocupação, transtorno e incómodos decorrentes de verificarem que não tem acesso aos dados digitais armazenados, por vezes importantes para a sua subsistência ou levando à sua responsabilização perante terceiros, como acontece com o autor 2 - alguns autores populares, eventualmente sem meios económicos para pagarem por essa recuperação de dados, tal como aconteceu com o autor 2, que não pode desembolsar € 8.000 (oito mil euros) para adquirir um serviço de recuperação de dados. 48º. Este dano foi causado de modo homogéneo a todos os autores populares, seja os que já conhecem a prática ilegal da ré e que os afetou, como aqueles que ainda não conhecem, por desconhecerem os seus direitos – pois a ré engana os consumidores com as suas orientações internas – mas que vão acabar por conhecer por via desta ação popular. 49º. Referimo-nos aos autores populares que, tendo, por exemplo, tenham aceitado a substituição ou reparação do disco rígido, mas sem nunca recuperaram os dados digitais nos mesmos armazenados, que é o que verdadeiramente está em causa neste processo. 50º. Os autores populares, vivem num Estado de direito (cf. artigo 2 da CRP), cujos seus direitos à qualidade dos bens e serviços consumidos (…) à informação, à proteção (…) dos seus interesses económicos, bem como à reparação de danos são consagrados constitucionalmente [cf. artigo 60 (1) da CRP], sofreram e sofrem com os danos morais supra descritos e necessariamente ínsitos a tais direitos violados ostensivamente pelo comportamento da ré (dolus in re ipsa, isto é, a presunção de que o dolo resulta da simples materialidade da infração praticada pela ré), sendo, tais danos, tal como se sustentou supra, danos morais in re ipsa. 3.3. Comportamento de má-fé e consciência da ilicitude 51º. A ré não cumpriu com o dever de reparação e indemnização previstos nos supra aludidos diplomas em sumário, § 2 supra. 52º. A ré conhecia os deveres supra referidos que sobre ela se impunha porque é uma cadeia de lojas que exerce a sua atividade económica com carácter profissional e visando a obtenção de benefícios, sujeita aos referidos regulamentos e que inclusivamente os menciona no supra aludido contrato de adesão designado como “CONDIÇÕES GERAIS REPARAÇÕES E SERVIÇOS PÓS VENDA”. 3.4. Comportamento de má-fé e consciência da ilicitude 53º. Os ditames da boa-fé e os deveres acessórios de conduta, em particular aquilo que deveria ser o respeito pelos consumidores, os aqui autores populares, pelos regulamentos supra referidos e da confiança adquirida no sucesso das negociações que levaram os autores populares a escolherem a ré como vendedora dos aludidos produtos, foram dolosamente postos de parte pela ré que alterou conscientemente, os deveres de proteção, atuação e informação pelos vários aludidos supra decretos-lei, se não acatados, são um verdadeiro incumprimento contratual e um comportamento ilícito, inclusivamente sancionado com contraordenações, cuja fiscalização e aplicação das mesmas compete à Autoridade de Segurança Alimentar e Económica. 54º. Se os autores populares conhecessem que a ré não iria cumprir com o previsto nesses regulamentos, tal seria decisivo para, numa perspetiva de razoabilidade e experiência comum, não adquirem o produto da ré, pois ficaria claro que de tal comportamento iria resultar num dano para os autores populares, sobretudo para quem precisava de tais produtos para armazenar dados digitais importantes para a sua vida – só adquiririam, na verdade, mais produtos à ré, num caso de necessidade. 55º. A ré sabendo que os autores populares necessitavam de tais serviços de reparação – como qualquer pessoa normal necessita e decorre das circunstâncias supra referidas e da legislação ordinária interna e da União Europeia – deveria ter observado um são padrão de cumprimento do contrato com significativa expressão estratégica e económica na esfera dos autores populares. 56º. O que não foi feito. 57º. Feita a narração dos factos relevantes à causa, passemos agora, então, ao direito (…)”. Considerados os factos invocados e o enquadramento jurídico que sobre eles os autores efetuam, atenta a causa de pedir invocada e o pedido que formulam, importa apreciar se existe probabilidade de procedência do pedido, ou se, ao invés, “é manifestamente improvável a procedência do pedido” (cfr. art.º 13º da Lei nº83/95, de 31 de agosto). “A. Varela, reportando-se ao anterior CPC, defendia que o despacho de indeferimento liminar decorre do princípio básico da economia processual e constitui um julgamento prévio ou preliminar através do qual a lei procurava defender o demandado contra os casos de demanda absolutamente injustificada. Todavia, ao contrário da anterior redação do art. 474.º, n.º 1, al. c) do CPC, o art. 13.º da Lei 83/95 é mais exigente, pois é utilizado o advérbio «manifestamente». Embora a propósito de outro instituto, lê-se no Ac. da Relação de Coimbra de 2/3/2010 que a terminologia “de pedido manifestamente improcedente” «significa evidente, patente, notória, pública ou, como afirma a jurisprudência, de ostensiva, indiscutível, irrefutável, unânime, incontroversa, isenta de dúvidas, ou, noutra formulação, quando seja inequívoco que o procedimento nunca poderá proceder, qualquer que seja a interpretação jurídica que se faça dos preceitos legais». Estamos pois, perante um juízo de prognose do mérito da causa a efetuar apenas quando seja evidente a inutilidade e consequente decisão de não requerer a realização de diligências. Assim sendo, a manifesta improcedência do pedido pressupõe a análise da matéria de facto alegada e a subsunção à lei substantiva, concluindo-se inequivocamente que o autor não tem o direito que invoca” (assim, João Alves; “Ação popular: manifesta improcedência do pedido – parecer do Ministério Público”, in Revista do Ministério Público, Ano 37.º, n.º 148, out.-dez. 2016, pp. 146-147). Conforme resulta da petição inicial, designadamente, dos trechos acima sublinhados, a ação popular deduzida é fundada, segundo os autores, na violação pela ré dos direitos dos consumidores decorrentes da venda efetuada (gozando o bem vendido de garantia perante a eventual falta de conformidade), invocando que, de acordo com orientações internas da ré, recusou esta a assistência aos autores, não reparando a desconformidade verificada (cfr. artigos 29.º a 86.º da p.i.). Entendem ter sido violado o direito a reposição (mediante substituição ou reparação do bem), sem encargos, em caso de falta de conformidade do bem, referindo que, a ré impôs ao autor 2, como impõe a todos os restantes autores a celebração de um contrato de adesão que a mesma designa como “CONDIÇÕES GERAIS REPARAÇÕES E SERVIÇOS PÓS VENDA” (cfr. artigos 29.º a 37.º da p.i.). Justificam os autores o recurso à ação popular e delimitam o universo de autores como – que têm uma especial ligação com a presente demanda – como sendo “todos clientes da ré, consumidores que, tendo-lhe comprado bens ou serviços e que foram ou podem vir a ser prejudicados com o comportamento ilícito da ré supra descrito, com a subsequente perda dos montantes despendidos na compra de tais bens e serviços e na privação de uso e, mais relevante, com a sonegação do elementar direito de garantia perfeitamente previsto na Lei e com força imperativa, tendo sido colocados numa situação de sujeição relativamente às vontades e coacção da ré” (cfr. artigo 212.º da p.i.). Invocam que a conduta da ré determinou os danos patrimoniais e não patrimoniais que descrevem e quantificam a respetiva pretensão indemnizatória, invocando elementos factuais que delimitam o seu interesse individual (cfr. artigos 115.º a 142.º da p.i.). No caso, a decisão recorrida assentou a “manifesta improbabilidade” de procedência da ação em dois fundamentos: 1º) A ação é manifestamente inviável por se não verificarem os pressupostos da ação popular, porque os danos resultantes da desconformidade dos discos duros (ou equivalentes) podem ser diferentes de consumidor para consumidor; 2º) O direito dos consumidores, a que lhes seja entregue o bem conforme o contrato de compra e venda e a reposição sem encargos – por meio de reparação ou substituição – da falta de conformidade manifestada no prazo de dois anos, não tem de ser apreciada em ação judicial. Ora, não nos parece que a questão da diversa repercussão de danos registada nas esferas jurídicas dos vários autores populares, possa comprometer – e de forma manifesta – o êxito da ação popular. Do mesmo modo, não nos parece que a diversa determinação de danos – quantitativa ou qualitativamente – nas pessoas dos autores populares, se baste para concluir que a consideração dos interesses em presença “não são homogéneos” (recorda-se esta expressão da decisão recorrida, que a fundamenta na invocação de que, “as referidas consequências da avaria ou do defeito de fabrico do equipamento adquirido à ré, ainda que viessem a demonstrar-se terem ocorrido e serem danosas, não podem ser ressarcidas ou garantidas através da acção popular”). Na realidade, tendo em conta o núcleo da matéria posta à consideração do Tribunal – sem prejuízo da concreta apreciação de uma situação particular, designadamente, ao nível das diferentes consequências danosas que venham a ser apuradas, que torne impossível a sua abstração – é o mesmo o interesse que está subjacente ao reconhecimento e verificação de tais danos: O interesse (sustentado na inobservância do regime de garantia de bens de consumo, previsto no D.L. n.º 67/2003, de 8 de abril e, no diploma legal que lhe sucedeu, o D.L. n.º 84/2021, de 18 de outubro), na reposição do bem adquirido pelos autores populares – respeitantes, de forma comum, a todos os consumidores que se encontrarem na referida situação homogénea de adquirentes do bem de consumo em causa -, mediante substituição ou reparação (recorde-se que, face a todos os autores, constitui feixe comum, a aquisição à ré de um bem de consumo, no qual se verifica) da sua falta de conformidade (com o fim esperado), verificada no prazo de garantia, falta essa que não foi objeto de reparação/substituição pela ré, mediante recusa indevida desta. As divergências de apuramento dos danos que os autores populares terão tido, não determina qualquer juízo sobre a natureza dos interesses que estão subjacentes à pretensão dos autores, os quais radicam, na verdade, de modo paritário ou homogéneo, na circunstância de, todos os autores não terem visto colmatada a falta de conformidade registada no bem de consumo que adquiriram. Essas circunstâncias não determinam alguma ilação sobre a inadmissibilidade da ação popular. É que, conforme bem se assinalou no Acórdão do STJ de 12-11-2020 (Pº 7617/15.7T8PRT.S2, rel. MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA) as particularidades de facto que a prova revele, “podem determinar respostas de direito diferentes para os recorrentes e para os consumidores que não tenham beneficiado deste regime, mas não podem já ditar a inadmissibilidade da acção popular”. Valem ainda, para aplicação à situação em apreço, as considerações expendidas no Acórdão do STJ de 08-09-2016 (Pº 7617/15.7T8PRT.S1, rel. OLIVEIRA VASCONCELOS) a respeito da natureza dos interesses em presença numa ação popular: “(…) O que os autores pretendem defender não é só a sua situação individual, mas também a de uma massa de interesses individuais de outros titulares (…). Face ao objecto da presente ação – definido, como se sabe, pelo pedido e pela causa de pedir - não estão aqui em causa quaisquer particularidades (…), particularidades estas que, eventualmente e em fase ulterior do processo poderão ser apreciadas. (…) Tal como a ação foi proposta, é perfeitamente possível uma apreciação indiferenciada de cada um dos titulares (…), sendo que competirá ao Tribunal, numa fase ulterior do processo, averiguar se as particularidades invocadas pela ré podem ser abstraídas para a tomada de uma decisão numa ação popular, tendo sempre em atenção, como acima ficou referido, que a tutela coletiva não é possível sem a abstração do “lastro de individualização” que é caraterística das situações “standard”. Há que ter sempre em atenção que os elementos de facto a ter em conta não são só os que eventualmente existam como específicos de cada situação, mas também os elementos de facto comuns a todas elas, devendo o Tribunal exercer o devido controlo sobre a prevalência daqueles primeiros elementos que eventualmente existam sobre os elementos de facto comuns que sustentam os pedidos formulados, sem nunca perder de vista a tendencial abstração daqueles elementos particulares como base quase necessária para a possibilidade da existência da ação popular. Na verdade, se qualquer elemento particular invocado por um demandante fosse suficiente para descaraterizar imediatamente o interesse como coletivo, praticamente seria impossível a existência de qualquer ação popular, ficando esta, na realidade, na disponibilidade daquele. Finalmente, há que dizer que não se revela, desde já, qualquer conflito de interesses entre os autores e os outros titulares do interesse comum por eles invocado, antes e pelo contrário, revela-se, tal como a questão é posta pelos autores, essa comunidade. (…)”. Podem formular-se, em face do exposto, as seguintes proposições conclusivas: - O artigo 13.º da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto contém um regime especial de indeferimento da petição inicial numa ação popular, o qual determina o indeferimento “quando o julgador entenda que é manifestamente improvável a procedência do pedido, ouvido o Ministério Público e feitas preliminarmente as averiguações que o julgador tenha por justificadas ou que o autor ou o Ministério Público requeiram”; - A manifesta improbabilidade de procedência do pedido, pressupõe a análise da matéria de facto alegada e a subsunção à lei substantiva, mediante apreciação da causa de pedir e pedido invocados (pretensão, no caso, sustentada na inobservância do regime de garantia de bens de consumo, previsto no D.L. n.º 67/2003, de 8 de abril e, no diploma legal que lhe sucedeu, o D.L. n.º 84/2021, de 18 de outubro), por forma a se poder concluir, inequivocamente, que o autor não tem o direito que invoca; - Resultando da matéria de facto invocada pelos autores populares, da causa de pedir (conjunto de factos constitutivos da situação jurídica que os autores querem fazer valer de forma conjunta) e os pedidos que formularam (revelando a exercitação de um direito comum ou paritário a todos eles –consistente em terem adquirido à ré um bem de consumo (disco rígido), relativamente ao qual se verifica, no prazo de garantia, falta de conformidade com o contrato de compra e venda, falta não colmatada pela ré, mediante invocada recusa indevida desta)– conclui-se existir, face aos autores populares, interesse homogéneo na demanda, que legitima a presente ação popular; - As eventuais divergências no apuramento de danos dos autores, não determinam qualquer juízo sobre a natureza dos interesses subjacentes à sua pretensão, os quais radicam, de modo paritário ou homogéneo, na circunstância de, os autores, não terem visto colmatada a falta de conformidade registada no bem de consumo que adquiriram; - Não ocorre, em face disso, circunstância que determine ser manifestamente improvável a procedência do pedido, não se mostrando justificada a decisão de indeferimento liminar da petição, ao abrigo do artigo 13.º da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto. Procede, pois, nesta parte, o recurso, devendo ser revogada a decisão de indeferimento recorrida e substituída por outra que determine que os autos voltem à 1.ª instância, para a ação prosseguir os seus ulteriores termos. * D) Se deve ser revogada a decisão recorrida que condenou os apelantes em custas? Concluem os apelantes (conclusão 14.ª), entendendo “que o regime atual de custas processuais na ação popular resulta da conjugação do artigo 4 (1, b) e (5) do decreto-lei 34/2008 e que o aludido artigo 4 (1, b) concede a isenção, mas o (5) exceciona caso se conclua se o pedido for julgado manifestamente improcedente, caso em que é responsável nos termos gerais - o que não foi o caso. O pedido não foi manifestamente improcedente - o tribunal apenas concluiu que não estavam verificados os pressupostos da ação popular”. Vejamos: Estabelecia o artigo 20.º da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto que: “1 - Pelo exercício do direito de acção popular não são exigíveis preparos. 2 - O autor fica isento do pagamento de custas em caso de procedência parcial do pedido. 3 - Em caso de decaimento total, o autor interveniente será condenado em montante a fixar pelo julgador entre um décimo e metade das custas que normalmente seriam devidas, tendo em conta a sua situação económica e a razão formal ou substantiva da improcedência. 4 - A litigância de má-fé rege-se pela lei geral. 5 - A responsabilidade por custas dos autores intervenientes é solidária, nos termos gerais”. O artigo 25.º, n.º 1, do D.L. n.º 34/2008, de 26 de fevereiro, que aprovou o Regulamento das Custas Processuais (RCP) veio revogar as isenções de custas previstas em qualquer lei, regulamento ou portaria e conferidas a quaisquer entidades públicas ou privadas, que não estivessem previstas no novo diploma aprovado. No artigo 4.º, n.º 1, al. b) do RCP, introduzido pelo referido D.L. n.º 34/2008, de 26 de fevereiro veio-se estatuir que “estão isentos de custas (…) qualquer pessoa, fundação ou associação quando exerça o direito de ação popular nos termos do n.º 3 do artigo 52.º da Constituição da República Portuguesa e da legislação ordinária que preveja ou regulamente o exercício da ação popular”. No Acórdão do STJ de 12-11-2020 (Pº 7617/15.7T8PRT.S2, rel. MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA) concluiu-se que: “O artigo 20.º da Lei n.º 83/95 encontra-se revogado pelo Regulamento das Custas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro; da al. b) do n.º 1 do respectivo artigo 4.º, conjugado com o n.º 5, resulta que a parte que exerça o seu direito de acção popular está isenta de custas, salvo se o pedido for julgado “manifestamente improcedente”, caso em que é responsável “nos termos gerais”.”. Deve, pois, considerar-se que só no caso em que seja julgado manifestamente improcedente a pretensão deduzida na ação popular, o correspondente processo passe a estar sujeito ao regime geral - cfr. artigos 1.º, n.ºs. 1 e 2, 6.º, n.º 2, 7.º, n.º 2, 13.º, n.º 1 e 14.º, n.º 1, do RCP - (cfr., neste sentido, João Alves; “Ação popular: a intervenção acessória do Ministério Público na jurisdição cível”, in Revista do Ministério Público, Ano 40, n.º 160, Out.-Dez. 2019, p. 139 e, o mesmo Autor, “Ação popular: manifesta improcedência do pedido – parecer do Ministério Público”, in Revista do Ministério Público, ano 37, n.º 148, p. 143). No caso em apreço, conforme resulta da decisão recorrida concluiu-se pela improcedência da pretensão deduzida pelos autores, ora recorrentes, o que motivou o indeferimento liminar da petição apresentada com fundamento no artigo 13.º da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto. Sucede que, este juízo foi revertido por este Tribunal da Relação, pelo que se mostra insubsistente a condenação em custas dos autores. Procede, igualmente, nesta parte, o recurso. * III) Do pedido de reenvio prejudicial: * E) Se deve ter lugar reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia, nos termos do artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, para interpretação dos artigos 10 (1), 11, 13(1)(2) e 14(1)(2) da Diretiva (EU) 2019/771? No §7 – com o título “Violação do dever de reenvio prejudicial” – das alegações de recurso, os apelantes invocam, nomeadamente, o seguinte: “(…) O comportamento da ré, ora recorrida, nos presentes autos implica a interpretação dos artigos 10 (1), 11, 13(1)(2) e 14(1)(2) da diretiva (EU) 2019/771. É consabido que uma diretiva é um instrumento que vincula os Estados-Membros destinatários (um, vários ou o conjunto dos mesmos) quanto ao resultado a alcançar, mas deixa às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios. O legislador nacional deve adotar um ato de transposição ou uma “medida nacional de execução” para o direito interno, que adapte o direito nacional aos objetivos fixados na diretiva. Claro que se sabe que o cidadão só adquire direitos e obrigações depois de adotado o ato de transposição. Os Estados-Membros dispõem, para a transposição, de uma margem de manobra que lhes permite ter em conta as especificidades nacionais. A transposição deve ser efetuada dentro do prazo fixado na diretiva. Ao transpor as diretivas, os Estados-Membros têm de assegurar o efeito útil do direito da União Europeia, segundo o princípio de cooperação leal consagrado no artigo 4 (3) do TFUE. É certo que, em princípio, as diretivas não são diretamente aplicáveis, mas o TJUE decidiu que determinadas disposições podiam, a título excecional, produzir efeitos diretos num Estado-Membro mesmo que este não tenha adotado um ato de transposição, sempre que: a. a transposição para o direito interno não tenha sido efetuada ou o tenha sido incorretamente; b. as disposições da diretiva sejam imperativas e suficientemente claras e precisas; e c. as disposições da diretiva confiram direitos aos particulares. Sempre que estiverem reunidas estas condições, os particulares podem invocar as disposições em causa junto das autoridades públicas. Mesmo que o disposto na diretiva em questão não confira direitos aos particulares e que, em consequência, apenas estejam reunidas a primeira e segunda condições, as autoridades dos Estados-Membros têm de ter em conta as disposições da diretiva não transposta. A jurisprudência do TJUE apoia- se sobretudo nos argumentos do efeito útil, da repressão dos comportamentos contrários ao TUE e da proteção jurisdicional. Em contrapartida, um particular não pode invocar contra outro particular (efeito dito “horizontal”) o efeito direto de uma diretiva não transposta (vide Faccini Dori, Processo 91/92, Coletânea da Jurisprudência, p. I-3325 e seguintes, ponto 25). Segundo a jurisprudência do TJUE (vide processo Francovich, processos apensos 6/90 e 9/90), um particular tem o direito de exigir a reparação de um dano sofrido num Estado-Membro que não respeite o direito da União Europeia. Sempre que se tratar de uma diretiva não transposta ou insuficientemente transposta, é possível interpor recurso desde que: a. a diretiva vise conferir direitos aos particulares; b. o conteúdo dos direitos possa ser identificado com base nas disposições da diretiva; e c. exista um nexo de causalidade entre o não respeito da obrigação de transposição da diretiva que incumbe ao Estado-Membro e o prejuízo sofrido pelo lesado. Ora, é certo que o artigo 24 da diretiva (EU) 2019/771 obriga a que os Estados-Membros adotem e publiquem as disposições necessárias para dar cumprimento à diretiva até 01.06.2021 (aplicável no caso concreto) e apliquem as suas disposições a partir de 01.01.20222. A data da entrada em vigor da diretiva (EU) 2019/771, está definida no seu artigo 26, o que faz com que a mesma esteja em vigor desde 22.05.2019. Ou seja, estavam reunidas as condições supra referidas, para que os autores populares pudessem invocar as disposições em causa da diretiva (EU) 2019/771, neste caso concreto. Sem prejuízo, caso assim não se entendesse, era obrigação do tribunal a quo, aplicar a diretiva 199/44/CE, revogada pela diretiva (EU) 2019/771. Pois o facto de os autores populares invocarem a diretiva errada, não obsta a que o tribunal corrija e aplica o direito da União Europeia correto, tal como tem vindo a ser defendido na jurisprudência do TJUE. Como é sabido, o TFUE dispõe no seu artigo 267 (b), § 1, que o Tribunal de Justiça da União Europeia é competente para decidir, a título prejudicial (...) sobre a validade e a interpretação dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União. O TJUE será assim, o tribunal competente para esclarecer o sentido material das disposições do direito da União Europeia, sempre que uma questão desta natureza seja suscitada por um órgão de jurisdicional de um dos Estados-Membros. Os recursos ordinários, face à dupla conforme, caso a mesma se verifique no presente caso, ficarão esgotados, portanto ficarão, aqui, as instâncias em termos ordinários. Destarte, à luz do artigo 267 § 3, do TFUE, existe uma obrigação do tribunal, de suscitar questões prejudiciais ao TJUE - uma vez afastada, que está, a doutrina do acte éclairé - a qual trataremos quase já de seguida. E é, em todo o caso, de absoluta importância e particularmente útil que o pedido seja imediatamente formulado por se tratar de uma questão de interpretação nova que apresenta um interesse geral para a aplicação uniforme do direito da União Europeia O reenvio prejudicial é um processo exercido perante o TJUE que permite a uma jurisdição nacional interrogar o TJUE sobre a interpretação ou a validade do direito da União Europeia, garantido a segurança jurídica através de uma aplicação uniforme desse direito. O reenvio prejudicial favorece a cooperação ativa entre as jurisdições nacionais e o TJUE e a aplicação uniforme do direito comunitário em toda a União Europeia, sendo que, apesar de ser um pedido de Juiz para Juiz (from judge to judge), poderá ser solicitado por uma das partes no pleito que, neste caso, são os autores populares. Assim, é crucial que o tribunal ad quem proceda a tal reenvio para interpretação prejudicial a propósito de saber qual será a melhor interpretação, à luz das disposições de direito da União Europeia supra referidas e das questões de direito que aqui há a resolver. O artigo 267 §3 do TFUE especifica que um tribunal de última instância (o que poderá ser aqui o caso, a verificar-se dupla conforme) é obrigado a remeter ao TJUE questões preliminares relacionadas com a interpretação ou validade do direito da União. A jurisprudência do TJUE circunstância esta obrigação no seguinte: 1. o tribunal é de última instância [cf. Roland Lyckeskog (C-99/00, §14)]; 2. o caso está relacionado com a interpretação de um ato da UE, ver pontos seguintes (3-5); 3. a interpretação da legislação da União Europeia é relevante para resolver o caso [cf Contrario sensu - Foglia (C-244/80, § 18)]; 4. não diz respeito a um acte éclairé [cf. CILFIT (C-283/81, §16)] que a exceção da obrigação de remessa nos termos do artigo 267 do TFUE surge quando o texto em questão o é claro que não há nada a interpretar sobre isso. Isso significa que os juízes devem ser convencidos que o texto é tão claro e literal que nenhum outro tribunal da UE iria encaminhar a sua interpretação para o TJUE [cf. Transportes intermodais, (C-495/03, §33) e Roland Lyckeskog (C-99/00, §15)]; 5. não se refere a um acte éclairé [cf. - contrario sensu - Da Costa, (C-28- 30/62)] - mesmo que os casos sejam idênticos, o que importa é que a questão seja materialmente idêntica. Quanto ao ponto 1, as instâncias ordinárias ficarão esgotados, se a dupla conforme se verificar, pelo que o primeiro requisito será assim preenchido, pelo que o reenvio para interpretação prejudicial passar a ser obrigatório no tribunal ad quem. Quanto ao ponto 2, o mesmo é resolvido por via do artigo do artigo 267 § 3 do TFUE em conjugação com o artigo 47 CDFUE, aplicável ex vi artigo 51 da CDFUE, em conjugação com o artigo 2 do TUE e em conjugação com a diretiva supra referida nas várias dimensões em que é enquadrada na petição inicial e no capítulo seguinte. Já o muito recente acórdão do TJUE (Terceira Secção) de 29.04.2021, C-504/19, veio trazer clareza ao princípio da proteção jurisdicional efetiva e da segurança jurídica, o que se aplica, mutatis mutandis, a este caso, por força do artigo 47 §1 da CDFUE, aplicável ex vi artigo 51 da CDFUE, quando conjugado com o artigo 2 do TUE e o artigo 267 do TFUE, o qual se chama à colação para interpretação pelo TJUE. Pois, o presente caso baseia-se, nomeadamente, num direito garantido pelo direito da União Europeia, em conformidade com o artigo 47 §2, da CDFUE e os princípios basilares do primado, da equivalência, da efetividade e da lealdade da União Europeia. Quanto ao ponto 3, in casu, o que é relevante saber é se as questões ínsitas no pedido de interpretação para reenvio prejudicial e as a extrair das normas ali citadas, em conjugação com a factualidade assente, designadamente atento aos factos que integram a violação da legislação da União Europeia, são relevantes para o caso concreto, o que já se percebeu ser, pois recaem sobre o direito dos consumidores à “garantia”. Tal como as fundamentações de direito foram configuradas pelos aqui autores populares, é isento de dúvidas que a interpretação da legislação da União Europeia é relevante para resolver o presente caso, nas vertentes supra mencionadas, pois é da resolução dessas questões que depende o direito a julgamento com processo equitativo, a segurança jurídica e o Estado de direito. Relativamente aos pontos 4 e 5, relativamente à teoria interpretativa do acte éclairé, de facto, o tribunal nacional podia abster-se de promover o reenvio para pedido de decisão prejudicial pelo TJUE, mesmo quando em última instância ordinária, e ficar então responsável (com todas as suas consequências) por resolver o problema de interpretação suscitado [cf. CILFIT (C-283/81, §16)]. No entanto a interpretação por via do acte éclairé não é deixada ao acaso daquilo que cada tribunal se considera capaz de interpretar (o que sempre estaria sujeito a grande subjetividade e discricionariedade), mas sim perante a verificação de determinados requisitos que são pacientemente vertidos nos § 16 a § 20 do aludido C-283/81 e acompanhado no também já referido C-99/00, no sentido de que o tribunal nacional deve adotar especial prudência antes de excluir a existência de qualquer dúvida razoável. Destarte, tendo em conta que as consequências jurídicas de um tribunal nacional não cumprir a sua obrigação de reenvio para interpretação prejudicial é o de afetar a validade de uma decisão nacional, pelo que para além da obrigação de pagar uma indeminização, existe, pois, o dever de reabrir os autos se for verificado que o tribunal cometeu um erro no que respeito pelo direito da União Europeia (Broberg & Fenger, 2021 ), pelo que se mostra importante atender à já razoavelmente sedimentada jurisprudência do TJUE relativamente à interpretação do conceito e aplicação da teoria do acte éclairé. (…) a obrigação de remessa prevista no artigo 267 § 3, do TFUE, refere-se ao juiz de última instância, que ocupa uma posição de destaque nos ordenamentos jurídicos nacionais e cujas decisões não podem ser objeto de recurso judicial. A razão de ser desta correlação direta entre obrigação e juízes de última instância é evidentemente evitar a consolidação de uma jurisprudência nacional num Estado-Membro que entre em conflito com o direito da União Europeia. Os escassos indícios de direito positivo no pedido de decisão prejudicial exigiram uma intensa atividade interpretativa por parte do TJUE, que procurou conciliar duas exigências opostas: por um lado, permitir aos juízes dos Estados-Membros terem à sua disposição um instrumento flexível e, por outro lado, evitar discricionariedade excessiva por parte desses órgãos nacionais. Quanto ao primeiro requisito, o Tribunal de Justiça valorizou a sua relação de cooperação, e não de superordenação, com o juiz nacional, demonstrando, por assim dizer, certa indulgência quanto à letra e ao espírito do artigo 267 §3, TFUE. Nesse sentido, afirmou-se que não é absoluto, uma vez que pode falhar em determinadas condições, identificadas de acordo com as características específicas do direito da União Europeia, as dificuldades particulares que a sua interpretação apresenta e o risco de divergência de orientações na jurisprudência dentro do a União Europeia. O acórdão Cilfit atribuiu um papel ativo ao juiz nacional - este pode decidir abster-se de submeter um pedido prejudicial. não estamos perante um qualquer acte éclairé. desconhece-se decisão do TJUE idêntico às questões.O não reenvio para interpretação prejudicial pelo TJUE, quando o mesmo é obrigatório, consubstancia num inafastável erro judiciário - o que certamente não será cometido por este alto tribunal (…)”. Concluem os apelantes requerendo o “reenvio para interpretação prejudicial pelo TJUE para interpretação dos artigos 10 (1), 11, 13(1)(2) e 14(1)(2) da Diretiva (EU) 2019/771 à luz da factualidade apresentada”, requerendo a suspensão da instância até que o TJUE se pronuncie. Vejamos: Estabelece o artigo 267.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE) que: “O Tribunal de Justiça da União Europeia é competente para decidir, a título prejudicial: a) Sobre a interpretação dos Tratados; b) Sobre a validade e a interpretação dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União. Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada perante qualquer órgão jurisdicional de um dos Estados-Membros, esse órgão pode, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, pedir ao Tribunal que sobre ela se pronuncie. Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal. Se uma questão desta natureza for suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional relativamente a uma pessoa que se encontre detida, o Tribunal pronunciar-se-á com a maior brevidade possível”. A respeito do reenvio prejudicial, o Tribunal de Justiça da União Europeia formulou determinadas “Recomendações à atenção dos órgãos jurisdicionais nacionais, relativas à apresentação de processos prejudiciais” (Recomendações 2018/C 257/01, in Jornal Oficial da União Europeia C 257, de 20.07.2018, pp. 1 e ss., texto disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=uriserv:OJ.C_.2018.257.01.0001.01.POR&toc=OJ:C:2018:257:TOC ), ali se referindo, nomeadamente, o seguinte: “(…) 3. A competência do Tribunal de Justiça para se pronunciar, a título prejudicial, sobre a interpretação ou a validade do direito da União é exercida por iniciativa exclusiva dos órgãos jurisdicionais nacionais, independentemente de as partes no processo principal terem ou não exprimido a intenção de submeterem uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça. Uma vez que é chamado a assumir a responsabilidade pela futura decisão judicial, é na verdade ao órgão jurisdicional nacional chamado a pronunciar-se sobre um litígio — e a ele apenas — que cabe apreciar, atendendo às particularidades de cada processo, quer a necessidade de um pedido de decisão prejudicial para o julgamento da causa quer a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça. 4. A qualidade de órgão jurisdicional é interpretada pelo Tribunal de Justiça como um conceito autónomo do direito da União, tomando em consideração, a este respeito, um conjunto de fatores, como a origem legal do órgão que lhe submeteu o pedido, a sua permanência, o caráter obrigatório da sua jurisdição, a natureza contraditória do processo, a aplicação, por esse órgão, das regras de direito, bem como a sua independência. 5. Os órgãos jurisdicionais dos Estados-Membros podem submeter uma questão ao Tribunal de Justiça sobre a interpretação ou a validade do direito da União se considerarem que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa (ver artigo 267.°, segundo parágrafo, do TFUE). Um reenvio prejudicial pode revelar-se particularmente útil nomeadamente quando for suscitada perante o órgão jurisdicional nacional uma questão de interpretação nova que tenha um interesse geral para a aplicação uniforme do direito da União ou quando a jurisprudência existente não dê o necessário esclarecimento num quadro jurídico ou factual inédito. 6. Quando for suscitada uma questão no âmbito de um processo pendente perante um órgão jurisdicional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão jurisdicional é no entanto obrigado a submeter um pedido de decisão prejudicial ao Tribunal de Justiça (ver artigo 267.° terceiro parágrafo, do TFUE), exceto quando já existir uma jurisprudência bem assente na matéria ou quando a forma correta de interpretar a regra de direito em causa não dê origem a nenhuma dúvida razoável (…) 8. O pedido de decisão prejudicial deve ter por objeto a interpretação ou a validade do direito da União, e não a interpretação das regras de direito nacional ou questões de facto suscitadas no litígio no processo principal. 9. O Tribunal de Justiça só se pode pronunciar sobre o pedido de decisão prejudicial se o direito da União for aplicável ao processo principal. A este respeito, é indispensável que o órgão jurisdicional de reenvio exponha todos os elementos pertinentes, de facto e de direito, que o levam a considerar que há disposições do direito da União suscetíveis de ser aplicáveis (…). 12. Um órgão jurisdicional nacional pode apresentar ao Tribunal de Justiça um pedido de decisão prejudicial a partir do momento em que considera que uma decisão sobre a interpretação ou a validade do direito da União é necessária para proferir a sua decisão. É com efeito esse órgão jurisdicional que está mais bem colocado para apreciar em que fase do processo deve apresentar tal pedido. 13. Contudo, na medida em que este pedido vai servir de fundamento ao processo perante o Tribunal de Justiça e em que este último deve dispor de todos os elementos que lhe permitam verificar a sua competência para responder às questões submetidas e, na afirmativa, dar uma resposta útil a essas questões, é necessário que a decisão de efetuar um reenvio prejudicial seja tomada numa fase do processo em que o órgão jurisdicional de reenvio esteja em condições de definir, com precisão suficiente, o quadro jurídico e factual do processo principal, bem como as questões jurídicas que este suscita. No interesse de uma boa administração da justiça, é igualmente desejável proceder ao reenvio na sequência de um debate contraditório (…).”. Conforme se referiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-03-2016 (Pº 588/13.6TVPRT.P1.S1, rel. ANA PAULA BOULAROT), “o reenvio prejudicial para o TJUE é, em princípio facultativo, dependendo exclusivamente do poder discricionário do Tribunal nacional, sendo certo que existem alguns casos em que o mesmo se torna obrigatório. A aparente obrigatoriedade decorrente de um pedido de reenvio ter sido feita a um Órgão jurisdicional cujas decisões, que à luz do direito interno, sejam insusceptíveis de recurso ordinário, veio a ser resolvida pelo caso Cilfit de 6 de Outubro de 1982, onde se conclui que a convocação das instâncias comunitárias só se justificará, quando as instâncias nacionais considerem que o recurso àquelas é necessário para a solução do pleito e mais, que haja sido suscitada uma dúvida quanto à interpretação desse direito. O aludido «dever» de reenvio, não se afirma com um carácter absoluto, perdendo tal significância, quando a questão suscitada for idêntica a outra já suscitada em processo idêntico e assim decidida a titulo prejudicial, reconhecendo assim que a «correcta aplicação do direito comunitário pode impor-se com tal evidência que não dê lugar a qualquer dúvida razoável quanto à solução a dar à questão suscitada», doutrina do «acto claro» em contraposição à teoria do «acto aclarado», com a finalidade de evitar que os Órgãos Judiciais da UE sejam chamados a intervir quando já haja antecedentes decisórios quanto às mesmas questões e/ou em casos paralelos, apresentando-se os Acórdãos do Tribunal de Justiça como um misto de Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, na sua faceta de apreciação abstracta típica e a concreção da regra do precedente”. No recente Acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 16-03-2023, (Pº 6699/09.5TVLSB.L1, ARLINDO CRUA, em tribunal coletivo que o ora relator integrou como adjunto) apreciaram-se, detidamente, os contornos deste instituto jurídico e as exceções à obrigação de reenvio, sendo de transcrever as principais considerações então expendidas: “O presente mecanismo tem, fundamentalmente, dois objectivos principais: “assegurar a uniforme aplicação e interpretação do direito da União Europeia nos diversos Estados-Membros, reforçar a protecção jurídica subjectiva dos particulares e, igualmente não despiciendo, contribuir - para um aperfeiçoamento e desenvolvimento progressivo da jurisprudência do Tribunal de Justiça”. O que é concretizado através de um “trabalho conjunto entre tribunais nacionais e Tribunal de Justiça” e, apesar de ao TJUE caberem aquelas funções de decisão sobre questões de interpretação e validade do direito da União, “cabe aos tribunais nacionais julgar da conformidade do direito nacional com o direito da União Europeia”. Tal mecanismo existe, assim, para protecção dos “direitos atribuídos ao indivíduo por uma norma substantiva de direito da União Europeia que seriam, naturalmente, violados por interpretações erradas ou através de desaplicação por invalidade por quem não dispõe da competência para a declarar” – Idem, pág. 902, 903, 906 e 907. Não possuindo os tribunais nacionais competência de controlo e de rejeição do direito da União Europeia, caso existam dúvidas sobre a validade e interpretação deste, devem aqueles “proceder ao reenvio para o TJUE, nos termos do artigo 267.° TFUE”, a quem pertence a competência de interpretação e rejeição do direito da União Europeia. Uma conduta do poder judicial que pode originar a responsabilidade de um Estado membro “diz precisamente respeito à violação do dever de reenvio prejudicial para o TJUE que impende sobre os tribunais nacionais”, pois neste caso também se está perante uma “errónea interpretação e aplicação das normas jurídicas” (sublinhado nosso). Todavia, a questão não é tão liminar, pois “a facultatividade ou a obrigatoriedade do reenvio são meramente tendenciais”. Efectivamente, mesmo nas situações em que o reenvio é obrigatório – questão suscitada em processo pendente perante tribunal a decidir em última instância -, pode este ser dispensado “sempre que a questão seja considerada irrelevante para a resolução do caso concreto, ou que não exista uma dúvida razoável sobre o modo como ela deve ser resolvida ou exista uma definição clara da questão através de uma jurisprudência do TJUE claramente estabelecida” (sublinhado nosso). O que consubstancia a adopção das “doutrinas do ato claro (acte claire) e do ato clarificado (acte eclairé)”, ou seja, que “o tribunal nacional não deve proceder ao reenvio se não existir dúvida razoável sobre a validade e a interpretação do Direito da UE e se estiver convencido de que a questão é igualmente evidente para os tribunais dos outros Estados membros e o TJUE”. Porém, pode acontecer a situação do tribunal nacional não proceder ao reenvio de interpretação em virtude de entender, ainda que erroneamente, “que a resposta à questão se encontra definida numa orientação jurisprudencial do TJUE devidamente estabelecida ou que, ainda que não exista jurisprudência anterior, a mesma é suficientemente clara, para além de qualquer dúvida razoável”, isto é, pode o tribunal nacional qualificar erroneamente uma determinada questão jurídica como um acto claro ou um acto clarificado. Neste caso, a qualificação, ainda que errada, de uma norma como acto claro, pode “não ser suficiente para desencadear a responsabilidade, na medida que um erro judiciário não configura ipso facto uma violação suficientemente caracterizada de direito da UE, já que pode ser desculpável em função das circunstâncias pertinentes” (sublinhado nosso). Ainda que, em caso de dúvida, se deva operacionalizar o reenvio prejudicial, de forma a eximir a responsabilidade do Estado. Ora, apesar de não ser extraível do 3º§ do transcrito artº. 267º, do TFUE, um direito subjectivo ao reenvio na disponibilidade dos particulares, “uma vez suscitada a questão de interpretação ou validade de uma norma de direito da UE relevante para o desfecho do caso concreto, e não dispondo os tribunais nacionais de competência para decidir sobre ela, existe claramente um dever de reenvio (…)”. Ademais, no âmbito do direito internacional dos direitos do homem, “a omissão do dever de reenvio configura uma violação do direito a um julgamento justo, com um processo equitativo e um tribunal estabelecido pela lei (due process and fair trial), tal como consagrado no artigo 6.°/1 da CEDH”, o que pode abrir portas à responsabilidade internacional do Estado, de acordo com a Convenção Europeia dos Direitos do Homem - Jónatas E. M. Machado, ob. cit., pág. 263 a 265. No que concerne aos pressupostos da obrigação de reenvio, referencia Inês Quadros – ob. cit., pág. 46 a 57 – que para se configurar uma obrigação de reenviar é necessário “em primeiro lugar, que, no âmbito da resolução de um caso, o juiz se depare com uma dúvida sobre a validade ou o alcance dessa norma ; em segundo lugar, que a resolução dessa dúvida seja essencial para a resolução do caso, e não meramente acessória ; por fim, em terceiro lugar, que o juiz nacional se encontre perante um caso do qual já não cabe recurso” . Relativamente às causas de dispensa da obrigação de reenvio, alude, em 1º lugar, à “autoridade material das decisões anteriores do Tribunal de Justiça”, reportando-se a situações em que a questão colocada é materialmente idêntica a uma questão que já foi objecto de uma decisão a título prejudicial, em caso análogo. Nesta situação, a norma comunitária interpretada naquilo a que se pode “chamar o acto clarificado: tendo servido como objecto de uma outra questão prejudicial idêntica, já foi alvo de interpretação pelo Tribunal de Justiça, encontrando-se assegurada a intervenção deste. Neste caso, a obrigação de reenvio transforma-se em obrigação de seguir o acórdão prejudicial do Tribunal de Justiça, que não se encontra prevista no artº. 234º, mas que decorre da natureza do reenvio prejudicial enquanto manifestação do princípio da cooperação” (sublinhado nosso). Acrescenta que esta solução é coerente “com a posição manifestada no Ac. Da Costa en Schaake, e que está prevista no art. 104. °, n.º 3 do Regulamento de Processo do Tribunal”, dispondo este, na redacção então vigente, que: “3. Quando uma questão prejudicial for manifestamente idêntica a uma questão que o Tribunal de Justiça já tenha decidido, este pode, depois de informar o órgão jurisdicional de reenvio, de ouvir as alegações ou observações dos interessados referidos nos artigos 20º do Estatuto CEE, 21 º do Estatuto CEEA e 103 º, nº 3 , do presente regulamento, e de ouvir o advogado-geral, decidir por meio de despacho fundamentado, no qual fará referência ao acórdão anterior” - publicado no Jornal Oficial das Comunidades Europeias, L 176, 34º Ano, de 04/07/1991. Defende, ainda, deverem beneficiar os acórdãos prejudiciais de uma “autoridade geral”, pelo que, todos os tribunais que venham, “no futuro, a julgar casos idênticos devem considerar-se vinculados pela decisão do Tribunal proferida a título prejudicial naquela matéria, quer ela seja interpretativa, quer declare a invalidade da norma”. Assim, “para os tribunais que julguem sem recurso, os únicos que estão obrigados a efectuar o reenvio de interpretação, a opção está em seguir a orientação do Tribunal ou efectuar novo recurso”, sendo que, “para prevenir abusos por parte dos tribunais nacionais, o Tribunal de Justiça delimitou o conteúdo desta dispensa de reenvio, declarando que ela deixará de existir se: (a) o juiz nacional permanecer com dúvidas sobre o sentido e alcance daquela norma; (b) se constatar que existem novos argumentos, alterações legislativas ou posições assumidas pelo Tribunal de Justiça em casos diferentes mas com relevância para a questão ; ou (c) se o juiz nacional quiser que o Tribunal de Justiça modifique o seu entendimento". A 2ª causa de dispensa da obrigação de reenvio, reporta-se à da “clareza objectiva do acto”. De acordo com o afirmado pelo Tribunal de Justiça no Acórdão Cilfit, “a obrigação de reenvio cessa quando o juiz nacional constata que a aplicação correcta do direito comunitário se impõe com uma tal evidência que não deixa margem a nenhuma dúvida razoável. Dito de outra forma, o reenvio deixará de ser obrigatório se a norma se apresentar como verdadeiramente clara no espírito do julgador”. Referenciando que o Tribunal de Justiça acabou por acolher, de forma mitigada, a teoria do acto claro, e procedendo à sua análise crítica, referenciou que, “no nosso entender a clareza do acto não é uma verdadeira excepção ao dever de reenvio, uma vez que só é descortinável depois de efectuada a interpretação da norma, que era precisamente o que se pretendia atribuir com carácter exclusivo ao Tribunal de Justiça”. Assim, confrontado o juiz com a norma comunitária, podem surgir duas hipóteses: “- ou o juiz rconhece a existência de uma dúvida na interpretação ou na validade daquela norma, nascendo nesse momento a obrigação de reenviar a questão para o Tribunal de Justiça, que, atra¬vés da sua interpretação, transformará a norma num acto claro; - ou não chega, sequer, a configurar-se nenhuma questão de Direito Comunitário na acepção do art.° 234.°, já que no espírito do julgador não surge qualquer interrogação sob o alcance da norma. Dito de outra forma, ou nunca chega a nascer uma obrigação de reenvio que possa ser dispensada, porque a clareza da norma se impôs ab initio quando o julgador se colocou perante a norma, ou se depois deste momento existe uma dúvida efectiva, existe a obrigação, que não pode já ser dispensada, e a clareza será conferida pela própria interpretação levada a cabo pelo Tribunal de Justiça: "a função da interpretação consiste precisamente em distinguir aquilo que é claro daquilo que não é"”. Pelo que, concluindo pela inutilidade da teoria do acto claro, e que a dispensa da obrigação de reenvio só surge, logicamente, posteriormente à constatação de tal obrigação, acrescenta que o juiz, no seu raciocínio, segue os seguintes momentos lógicos: “em primeiro lugar, fixará a norma comunitária relevante para o caso; num segundo momento, interpretará essa norma, procurando determinar o seu conteúdo e alcance; em terceiro lugar, dar-se-á o resultado da interpretação: se a norma for clara, o juiz aplicá-la-á ao caso concreto; se, pelo contrário, não for clara, estaremos então perante uma verdadeira dúvida de interpretação (ou de validade), verdadeiro fundamento da obrigação de reenvio. Se assim for, haverá ainda um quarto momento neste processo de raciocínio, no qual o juiz indagará da existência de alguma causa de dispensa do reenvio (nomeadamente, como vimos, a existência de jurisprudência anterior do Tribunal de Justiça naquela matéria). Não a havendo, só num quinto momento, quando o Tribunal de Justiça devolver a norma já interpretada ao juiz, é que este poderá afirmar que a norma é, agora, clara”. Adrede, enuncia, ainda, que a impertinência ou irrelevância da questão não trata de caso de dispensa de reenvio, pois, “se a questão não for relevante, não chega a haver obrigação de reenviar, já que a questão não se revela como verdadeiramente prejudicial”. Donde, conclui a mesma Autora, “nenhum destes casos se nos afigura como verdadeira possibilidade de dispensa de reenvio, já que a sua existência impede o nascimento da própria questão prejudicial. Assim, e a questão for clara, não há verdadeira dúvida, e se a questão não for pertinente, ela também não será prejudicial. Por fim, a existência de jurisprudência anterior do Tribunal de Justiça também não é fundamento de dispensa de reenvio, uma vez que ele continua a ser obrigatório se permanecer a dúvida do juiz, pejo que nada acrescenta à regra geral”. Identifica, por fim, que a “discricionariedade do juiz manifesta-se quanto à análise da verificação dos pressupostos de que depende aquele dever, e não quanto à decisão do reenvio em si. Sucede, porém, que essa análise passa pela interpretação de vários conceitos indeterminados, que acabam por permitir uma flexibilização excessiva do conteúdo da obrigação. Na verdade, a questão de Direito Comunitário, ou a dúvida sobre a validade ou interpretação, ou a pertinência da questão, ou a indagação da clareza do acto, são conceitos indeterminados, cujo preenchimento cabe, de forma livre, ao próprio juiz nacional obrigado ao reenvio. Assim, é o julgador do caso concreto que estabelece as condições em que as próprias causas de dispensa se verificam (…)” (sublinhado nosso), ainda que aquela apreciação discricionária do julgador surja limitada no caso de serem as partes a requererem a submissão da questão ao Tribunal de Justiça. Por outro lado, sendo a uniformidade na aplicação um dos principais objectivos que o direito da União deseja alcançar, no sentido de que este “deverá aplicar-se da mesma forma e com o mesmo sentido em qualquer Estado membro, ainda que as realidades jurídicas e económicas nacionais se apresentem diversas”, é através deste mecanismo do reenvio prejudicial ou das questões processuais que tal princípio se afirma. Tal uniformidade é obtida e assegurada por dois distintos meios. Num primeiro, “pela força de irradiação ou de precedente de facto que habitualmente resulta das pronúncias do Tribunal de Justiça e que leva os outros tribunais (mesmo de diferentes países) a seguirem a apreciação feita pelo Tribunal de Justiça num determinado processo”. Num segundo, “por o próprio sistema das questões prejudiciais prever, como sua componente central, que, se uma questão de direito da União Europeia surgir perante um órgão jurisdicional nacional que vai decidir em última instância, este está obrigado a reenviar, pelo que, em último termo e em todo e qualquer processo, o Tribunal de Justiça pode ser chamado a interpretar ou a apreciar a validade de uma norma da União, assegurando, assim, caso seja necessário, a uniformidade na aplicação do direito da União” - Miguel Gorjão-Henriques, ob. cit., pág. 395 e 396. A propósito do instituto do reenvio prejudicial, cumpre referenciar o Acórdão do Tribunal de Justiça de 06/10/1982 - Processo 283/81, entre Srl Cilfit – Em Liquidação e outras 54 sociedades e Lanificio di Gavardo SpA versus Ministério da Saúde -, identificado como caso ou Acórdão Cilfit (o qual apenas conseguimos consultar na versão da língua espanhola). Neste referenciou-se, basicamente, o seguinte: - o reconhecimento que o mecanismo do reenvio prejudicial, nomeadamente obrigatório, instituído no Tratado, tem por desiderato evitar que se estabeleçam divergências jurisprudenciais no interior da Comunidade a propósito de questões de Direito Comunitário - § 7; - o reconhecimento da inexistência de obrigação de reenvio quando a questão de interpretação de Direito Comunitário suscitada não é pertinente, ou seja, que a resposta conferida a tal questão, qualquer que fosse, nunca teria qualquer relevância ou incidência na solução do litígio - § 10 ; - a obrigação de reenvio legalmente imposta no Tratado não se afirma de forma ilimitada, podendo-se configurar várias excepções à obrigatoriedade de reenvio por órgão jurisdicional que decide em última instância - § 12 ; - a 1ª excepção ocorre quando a questão a colocar ao Tribunal de Justiça é materialmente idêntica a uma outra que já foi objecto de decisão, com carácter prejudicial, em assunto análogo - § 13 ; - a 2ª excepção traduz-se na existência de jurisprudência assente do Tribunal de Justiça acerca da questão de direito em causa, apesar de ressalvar-se a plena liberdade dos órgãos jurisdicionais nacionais, mesmo nesse situação, de submeterem a questão ao Tribunal de Justiça, caso o considerem oportuno - § 14 e 15 ; - ocorre a 3ª excepção quando a correcta aplicação do direito comunitário em causa impõe-se com evidência, inexistindo dúvida razoável acerca da solução a conferir à questão concreta. Nesta situação, deve o órgão jurisdicional nacional, antes de considerar verificada tal excepção, concluir que a mesma evidência impor-se-ia igualmente aos demais órgãos jurisdicionais nacionais dos diferenciados Estados membros, bem como ao próprio Tribunal de Justiça - § 16 ; - apenas caso se considerem preenchidas tais condições, é que o órgão jurisdicional nacional, a decidir em última instância, pode deixar de cumprir a obrigação de submeter a questão de interpretação ao Tribunal de Justiça ; - ainda assim, na aferição de tal possibilidade deve o órgão jurisdicional nacional ter em atenção as características do direito comunitário e as particulares dificuldades da sua interpretação, nomeadamente: 1.o facto dos textos de direito comunitário estarem redigidos em várias línguas, sendo igualmente autênticas todas as versões linguísticas, o que implica que a interpretação de uma disposição de direito comunitário seja feita por comparação entre as várias versões linguísticas; 2.mesmo existindo concordância entre mas versões linguísticas, deve atender-se a que o direito comunitário utiliza uma terminologia própria, e que os conceitos jurídicos não têm necessariamente o mesmo significado no direito comunitário e nos vários direitos nacionais ; 3.por fim, atender que cada norma do direito comunitário deve ser entendida no seu contexto e interpretada à luz do conjunto dos dispositivos desse direito, das suas finalidades e grau de evolução - § 17 a 20. Acerca da evidência enunciada na 3ª excepção, refere Abel Laureano – Quando é o Juiz Nacional obrigado a suscitar uma Questão Prejudicial ao Tribunal das Comunidades Europeias?, Elcla Editora, Porto, 1994, pág. 166 e 167 – que o juiz comunitário veio, em síntese, afirmar “que não há obrigação de suscitação se o texto objecto de interpretação se apresentar como evidente para o juiz nacional, para os dos outros Estados-membros e para o Tribunal das Comunidades”. Acrescentou-se, todavia, que tal evidência “só se verifica quando «não deixa lugar a qualquer dúvida razoável». E que, seja como for, só pode surgir no terminus de um caminho, percorrido pelo juiz nacional, onde este tem de atender: quanto ao elemento literal da interpretação, às várias versões linguísticas dos textos comunitários, à terminologia específica do Direito Comunitário; e, no tocante aos elementos extra-literais da interpretação, a um particular destaque a dar ao elemento sistemático, ao teleológico e ao próprio «estado da evolução» do sistema jurídico comunitário à data da interpretação/aplicação” (sublinhado nosso). Assim, aduz, esta posição expressa no Acórdão Cilfit afasta-se da teoria ortodoxa do acto claro (que o Anotador qualifica de “pouco defensável” e “logico-juridicamente insustentável” – cf., fls. 171 e 172), pois o Tribunal de Justiça só “aceita a evidência dum texto após, inter alia, o decurso de todo o processo interpretativo”, ou seja, “o texto legal só pode ser considerado claro, evidente, após um denso labor de interpretação (e até de investigação comparada)”. E este, passa pela não prescindibilidade, por parte do juiz comunitário, “da exigência do recurso a todos os elementos da hermenêutica, com implícita referência até a facetas desses elementos específicas da sua própria tradição jurisprudencial de interpretação do Direito Comunitário (v.g., o princípio operativo do efeito útil e o jogo regra/excepção)”. No que concerne à identidade material da questão, enunciada na 1ª excepção, enuncia o mesmo Autor exigir-se para a sua ocorrência a verificação da “mesma razão de decidir, por estarem em jogo os mesmos elementos de Direito. Vale dizer que, independentemente da situação factual concreta subjacente (ou melhor, para além dela), terá de fazer-se apelo à mesma realidade jurídica”. Reconhecendo ser a hipótese de menor risco, realça a faculdade desde logo consignada da possibilidade de consultar o Tribunal sobre a questão de interpretação, o que salvaguarda a eventual necessidade do pronunciamento ser aperfeiçoado e evita um qualquer imobilismo jurisprudencial – Idem, pág. 175. Enunciemos, ainda, um aresto mais recente, nomeadamente o Acórdão do TJUE de 15/03/2017 - Processo C-3/16, entre Lucio Cesare Aquino versus Belgische Staat -, identificado como caso ou Acórdão Aquino. Nesta decisão realçou-se, fundamentalmente, a necessidade das ordens jurídicas internas nacionais, no estabelecimento das modalidades processuais de recurso à justiça para salvaguarda dos direitos dos particulares, respeitarem os princípios da equivalência e da efectividade, bem como a ponderação do requisito da relevância da questão a submeter. Concretamente, consignou-se que: - a obrigação de submeter questão prejudicial ao Tribunal de Justiça, em observância do 3º §, do artº. 267º, do TFUE, tem por desiderato garantir a uniforme e correcta aplicação e interpretação do direito da União nos Estados membros, assim se evitando, que em qualquer destes Estados, se estabeleça jurisprudência nacional em dicotomia com as regras do direito da União - § 32 e 33 ; - resulta da conjugação dos 2º e 3º § do artigo 267º, do TFUE, que os órgãos jurisdicionais nacionais aí enunciados, estejam ou não sujeitos à obrigação de questionar o Tribunal de Justiça, gozam do mesmo poder de apreciação relativamente ao aferir e ponderar se “uma decisão sobre uma questão de direito da União é necessária para lhes permitir proferir a sua decisão” ; - donde decorre que tais órgãos jurisdicionais não são obrigados a cumprir o dever de reenvio de uma questão de interpretação do direito da União, que lhes seja submetida, quando tal questão não seja relevante, isto é, quando a mesma não tenha qualquer pertinência para a resolução da questão em litígio - § 42 e 43 ; - as regras processuais nacionais de cada Estado, no que concerne ao recurso ao direito de acção na salvaguarda dos direitos dos particulares, são efetivamente aplicáveis, à míngua de regras próprias emanadas do direito da União, não podendo, todavia: 1. ser menos favoráveis do que as regulam situações semelhantes sujeitas ao direito interno – princípio da equivalência; 2. tornar impossível, na prática, ou excessivamente difícil ou oneroso, o exercício dos direitos conferidos pelo direito da União – princípio da efectividade - § 48 a 50. No campo jurisprudencial interno, enunciemos, exemplificativamente, e na adopção da teoria do acto claro, o exarado no douto Acórdão da RC de 16/01/2008 – Relator: Inácio Monteiro, CJ, Ano XXXIII, Tomo I/2008, pág. 46 -, no sentido do reenvio prejudicial, uma vez requerido, não dever “ser obrigatório e deferido de forma automática, pois o juiz nacional deve ponderar se estão reunidos os requisitos para chamar a intervir tão alta instância como é o TJUE e respeitar as competências deste”. Assim, não deve o juiz nacional ficar limitado” na apreciação dos factos e no enquadramento jurídico dos mesmos pelo simples facto da norma de direito interno ser transposição de norma de direito comunitário, pois deve decidir com os mesmos critérios e só deve suscitar o reenvio prejudicial se em consciência e de boa fé processual concluir que a norma suscita dificuldades de interpretação e aplicação no ordenamento interno”. Pelo que, “não existindo dúvidas razoáveis quanto à solução a dar à questão de direito comunitário suscitada perante este tribunal de recurso, ainda que decidindo em última instância, é de rejeitar o reenvio prejudicial” (sublinhado nosso). Mencionemos, ainda, a propósito do conceito de questão prejudicial e sobre a necessidade e oportunidade do reenvio prejudicial, o douto Acórdão do STJ de 17/03/2016 – Processo nº. 588/13.6TVPRT.P1.S1, Relatora: Ana Paula Boularot, in www.dgsi.pt -, no qual se sumariou que questão prejudicial “ é aquela que um órgão jurisdicional nacional de um qualquer Estado-Membro considera necessária para a resolução de um litígio pendente perante si, e é relativa à interpretação, ou à apreciação de validade, do Direito da União (com excepção da apreciação de validade dos Tratados)”. Acrescenta-se que esta competência prejudicial, assente no instituto do reenvio prejudicial, “constitui um mecanismo de cooperação judicial, que visa a garantia da efectividade do direito comunitário e a sua prevalência sobre o direito nacional, permitindo assim um controlo concreto da validade do direito secundário da EU, ao mesmo tempo que proporciona a uniformidade na interpretação e aplicação das respectivas normas”. Enuncia-se, ainda, que a “aparente obrigatoriedade decorrente de um pedido de reenvio ter sido feita a um Órgão jurisdicional cujas decisões, que à luz do direito interno, sejam insusceptíveis de recurso ordinário, veio a ser resolvida pelo caso Cilfit de 6 de Outubro de 1982, onde se conclui que a convocação das instâncias comunitárias só se justificará, quando as instâncias nacionais considerem que o recurso àquelas é necessário para a solução do pleito e mais, que haja sido suscitada uma dúvida quanto à interpretação desse direito”. Desta forma, o “aludido «dever» de reenvio, não se afirma com um carácter absoluto, perdendo tal significância, quando a questão suscitada for idêntica a outra já suscitada em processo idêntico e assim decidida a titulo prejudicial, reconhecendo assim que a «correcta aplicação do direito comunitário pode impor-se com tal evidência que não dê lugar a qualquer dúvida razoável quanto à solução a dar à questão suscitada», doutrina do «acto claro» em contraposição à teoria do «acto aclarado», com a finalidade de evitar que os Órgãos Judiciais da UE sejam chamados a intervir quando já haja antecedentes decisórios quanto às mesmas questões e/ou em casos paralelos, apresentando-se os Acórdãos do Tribunal de Justiça como um misto de Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, na sua faceta de apreciação abstracta típica e a concreção da regra do precedente” (sublinhado nosso). Ora, na obrigação de submissão de questão prejudicial, há-de estar-se (i) perante um tribunal que decide em última instância e que (ii) se depara com uma questão controversa de interpretação e aplicação do direito da União Europeia. Relativamente às causas de dispensa, acresce não devermos estar perante uma situação tradutora de acto claro - “situações em que a resposta é de tal sorte unívoca e óbvia que não deixa dúvidas razoáveis e o tribunal convenceu-se que ela igualmente assim se afigura (como clara) para os tribunais dos outros Estados-Membros e para o próprio Tribunal de Justiça -, nem de acto clarificado – existência de “jurisprudência consolidada e coerente do TJ que já forneceu a devida interpretação, resolvendo, assim, a dúvida do tribunal nacional”. Por outro lado, funciona, ainda, como causa de dispensa o facto da “questão de direito da União levantada ser irrelevante ou impertinente para a resolução do caso concreto que compete ao juiz decidir”. Donde, “estando o tribunal nacional a pensar desviar-se da jurisprudência do Tribunal de Justiça, não tendo sido a concreta questão já por este esclarecida, ou se estiver necessitado de esclarecimentos adicionais relevantes, o juiz nacional que decide em última instância só dispõe de uma solução e essa é a de submeter as suas dúvidas à apreciação do TJ”. Exemplificativamente, ocorre violação processual (que pode vir a traduzir-se em violação substantiva) da obrigação de submissão de questão prejudicial quando: •o tribunal nacional ignore “que se colocam questões de interpretação e validade do direito da União Europeia”; •o tribunal nacional avalie “erradamente as causas justificativas de dispensa de obrigação da questão prejudicial” ; •o tribunal nacional assume a tarefa, “que não lhe compete, de decidir sobre o sentido a dar a disposições controvertidas ou sobre a validade de determinada disposição” – Luís Heleno Terrinha, ob. cit., pág. 904 a 906 . De forma mais concludente, ainda que aparentemente não pacífica, referencia Abel Laureano – ob. cit., pág. 164 -, após constatar a então não familiarização dos juízes com o Direito Comunitário, que “se for arguida a não linearidade do Direito Comunitário, sob a forma duma divergência de interpretação entre as partes no processo principal, haverá que partir do princípio do bem fundado de tal arguição; será vedado ao juiz nacional, em tal caso, recusar submeter tal divergência à decisão do Tribunal das Comunidades, sob pretexto de que afinal o(s) facto(s) normativo(s) em apreço é(são) claro(s)”. Acrescenta, a propósito da teoria do acto claro, citando Maria Luísa Duarte – A Teoria do Acto Claro e o artº. 177º do Tratado CEE, pág. 231 -, serem “muito diferentes o método, e sobretudo o desígnio interpretativo do TJ e dos tribunais nacionais e, por isso, ainda que a norma pareça clara e evidente ao juiz nacional não se deve recusar ao juiz comunitário o ensejo de sobre ela se pronunciar, imbuído de um espírito muito especial, alicerçado no objectivo omnicompreensivo da construção dinâmica e evolutiva do mercado comum” (sublinhado nosso). Assim, na repartição de competências legalmente enunciada entre o TJ e os tribunais nacionais, “se o juiz nacional chamar a si a decisão de afirmar que o Direito Comunitário é claro, em casos em que este é controvertido, prescindindo de deferir a sua interpretação ao juiz comunitário, esse juiz nacional estará ipso facto a adulterar o mapa de competências exarado no Tratado”, ou seja, “se o juiz nacional «invadir» a área reservada ao juiz comunitário, estará a subverter o equilíbrio institucional consagrado na «constituição» da Comunidade” – Abel Laureano, ob. cit., pág. 165. Entende Alessandra Silveira – Da……ob. cit., pág. 794 a 796 – que desde há muito que a “doutrina do acto claro tem sido ilegitimamente utilizada para esvaziar de sentido a obrigação de reenvio plasmada no art. 267.°, 3.° §, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia — e já é tempo de esclarecer que a aplicação uniforme do Direito da União e a protecção efectiva dos particulares aponta decididamente noutro sentido”. Assim, apesar de no Acórdão Cilfit o Tribunal de Justiça ter acolhido a doutrina do acto claro, cercou-a de inúmeras cautelas, “precisamente porque se estava a contornar uma obrigação incondicionalmente expressa nos Tratados e que não deve estar sujeita à discricionariedade do julgador”. Pelo que, segundo tal Acórdão, “para que o juiz possa abster-se de reenviar ao Tribunal de Justiça, deve obrigatoriamente cumprir os seguintes requisitos: 1) estar convicto de que a mesma evidência se impõe aos órgãos jurisdicionais de outros Estados-Membros e ao Tribunal de Justiça; 2) comparar todas as versões linguísticas da disposição normativa a fim de bem interpretá-la; 3) considerar que os conceitos jurídicos não têm necessariamente o mesmo conteúdo no Direito da União e nos diferentes direitos nacionais; 4) considerar que cada disposição do Direito da União deve ser contextualizada e interpretada à luz do conjunto das suas disposições, das suas finalidades e do seu grau de evolução”. Donde, entende que o aí defendido, se devidamente aplicado, “neutraliza qualquer pretensão de esvaziamento da obrigatoriedade do reenvio”, impedindo, ainda, “que se tente camuflar a violação suficientemente caracterizada necessária ao reconhecimento da responsabilidade do Estado-juiz”. Pelo que, caso o julgador se pretenda eximir da obrigação de reenvio, com fundamento da jurisprudência Cilfit, deverá demonstrar que a resolução da questão de direito em causa: “1) resulta de uma jurisprudência assente do Tribunal de Justiça; ou 2) não deixa margem para qualquer dúvida razoável, segundo os critérios da jurisprudência CILFIT — como ressaltou o Tribunal de Justiça no n.° 118 do Acórdão Kõbler —, caso contrário incorre em Responsabilidade”. Tal jurisprudência foi reafirmada pelo Tribunal de Justiça no Acórdão Intermodal de 15/09/2005 – Processo C-495/03 -, “no qual o Tribunal de Justiça acrescentou que o conceito de dúvida interpretativa razoável deve ser apreciado pelo tribunal nacional em função 1) das características próprias do Direito da União, 2) das dificuldades da sua interpretação, e 3) do risco de se criarem divergências jurisprudenciais na União”, acrescentando-se estar subjacente a “a ideia defendida pela Advogada-Geral Stix Hackl no Processo Intermodal, segundo a qual os critérios CILFIT servem para levar o tribunal nacional a tomar consciência das especificidades do Direito da União, prevenir conclusões precipitadas e unilaterais, e concluir por uma evidência reflectida (n.° 102 das Conclusões), pois disposições europeias que possam parecer evidentes, se bem escrutinadas, deixam de o ser”. Conclui, argumentando que, para além dos critérios Cilfit, em circunstâncias ideais, “bastava que o tribunal nacional se indagasse, antes de recusar o reenvio, se não está a introduzir o gérmen da divergência jurisprudencial, capaz de afectar gravemente a uniformidade da interpretação/aplicação do Direito da União”. Por outro lado, dever-se-á ainda ponderar “se o juiz demonstrou esforço para lidar com o problema: por exemplo, se procurou ver como ele se resolvia noutro Estado-Membro e se comparou diferentes versões linguísticas da mesma disposição normativa controvertida para se ter convencido de que o próprio TJ e tribunais de outros Estados-Membros consideram a questão clara e evidente”. Em nota de rodapé, e citando-se diferenciado Autor, acrescenta-se existirem três situações em que não é desculpável a não submissão ou colocação de questão prejudicial: 1.“o tribunal nacional ter dúvidas interpretativas e não as submeter a título prejudicial; 2.o não haver orientação definida da parte do TJ; 3.e o tribunal nacional abster-se deliberadamente de levantar questões de direito da União Europeia ou ignorar a jurisprudência estabelecida do TJ” – Luís Heleno Terrinha, ob. cit., pág. 914 a 919 (…)”. Assim, a obrigação de submissão de questão prejudicial, surge quando, se está perante um tribunal que decide em última instância e este se depara com uma questão controversa de interpretação e aplicação do direito da União Europeia, mas, conforme resulta das considerações precedentes e como se assinalou no Acórdão do STJ de 26-11-2020 (Pº 30060/15.3T8LSB.L3.S1, rel. CATARINA SERRA), “[d]esde o Acórdão Cilfit que o TJUE vem admitindo a dispensa do dever de suscitar a questão prejudicial por insusceptibilidade de recurso em certas situações, designadamente quando já se tenha pronunciado, de forma firme, sobre a questão a reenviar em caso análogo, em sede de reenvio ou outro meio processual, atento o efeito erga omnes das suas decisões”. A dispensa do dever de reenvio prejudicial, instituto a que se refere o artigo 267.º do TFUE, no caso de ser insuscetível o recurso, é admitida em determinadas situações, a saber: 1.ª) Quando a questão de direito da União Europeia suscitada for impertinente ou desnecessária para a resolução do litígio concreto; 2.ª) Quando inexista dúvida razoável acerca do modo como deve ser interpretado o direito da União Europeia por referência à concreta questão suscitada – doutrina do acto claro: O Tribunal nacional considera que as normas da União Europeia aplicáveis não suscitam dúvidas interpretativas ou são suficientemente claras e determinadas, sendo aptas para serem aplicadas imediatamente, resultando a “clareza” das normas aplicáveis da sua interpretação teleológica e sistemática e da referência ao contexto histórico, social e económico em que foram adoptadas; 3.ª) Quando a questão esteja claramente estabelecida ou definida pela jurisprudência do TJUE, atento o efeito erga omnes das suas decisões – doutrina do acto clarificado; 4.ª) Quando a colocar ao TJUE seja materialmente idêntica a uma outra que já foi objecto de decisão, com carácter prejudicial, em assunto análogo. Este entendimento tem sido afirmado em diversos Acórdãos do TJUE (entre outros, vd.: Acórdãos do TJUE de: 18.10.2011, C‑128/09 a C‑131/09, C‑134/09 e C‑135/09; de 9.09.2015, C‑160/14; de 1.10.2015, C‑452/14; de 28.07.2016, C‑379/15); de 4.10.2018, C‑416/17; e de 30.01.2019, C‑587/17 P) e também reafirmado em diversas decisões do STJ (cfr., v.g., o Acórdão de 02-02-2022, Pº 22640/18.1T8LSB.L1.S1, rel. MARIA CLARA SOTTOMAYOR e o citado acórdão de 26-11-2020 e a jurisprudência nele referida). No caso, entendem os apelantes reiterando a pretensão que formularam na petição inicial, que o comportamento da ré “nos presentes autos implica a interpretação dos artigos 10 (1), 11, 13(1)(2) e 14(1)(2) da diretiva (EU) 2019/771”, considerando “de absoluta importância e particularmente útil que o pedido seja imediatamente formulado por se tratar de uma questão de interpretação nova que apresenta um interesse geral para a aplicação uniforme do direito da União Europeia saber qual será a melhor interpretação, à luz das disposições de direito da União Europeia supra referidas e das questões de direito que aqui há a resolver”, concluindo que, “a interpretação da legislação da União Europeia é relevante para resolver o presente caso, nas vertentes supra mencionadas, pois é da resolução dessas questões que depende o direito a julgamento com processo equitativo, a segurança jurídica e o Estado de direito”. Em nosso entender, contudo, o reenvio prejudicial não tem, neste momento, justificação, não se afigurando, alguma pertinência ou necessidade na colocação de questão prejudicial junto do TJUE, em suma, pela seguinte ordem de razões: 1ª) Atenta a procedência da apelação, determinando o prosseguimento dos autos, verifica-se que a presente decisão, de caráter interlocutório, não decide, em última instância, o pleito, pelo que, inexistindo dupla conforme, não se alcança obrigatoriedade na submissão de questão prejudicial junto do TJUE; 2ª) Encontrando-se o presente processo numa fase preliminar (e sabendo-se que, idealmente, a colocação de questão prejudicial deve ser “tomada numa fase do processo em que o órgão jurisdicional de reenvio esteja em condições de definir, com precisão suficiente, o quadro jurídico e factual do processo principal, bem como as questões jurídicas que este suscita”, sendo desejável que o reenvio tenha lugar “na sequência de um debate contraditório” – cfr. ponto 13, das Recomendações do Tribunal de Justiça da União Europeia à atenção dos órgãos jurisdicionais nacionais, relativas à apresentação de processos prejudiciais (2018/C 257/01, publ. no JOUE, C 257, de 20-07-2018) não se mostra, por ora, pertinente ou relevante, o reenvio prejudicial; 3ª) Na prolação da decisão em apreço, não se mostra convocada, de algum modo, a interpretação de normas da Diretiva (UE) 2019/771, não tendo, também nesta perspetiva, pertinência ou utilidade, a submissão de questão prejudicial junto do TJUE; 4ª) Não se alcança existir dúvida de interpretação das disposições da Diretiva (UE) 2019/771 (ou de quaisquer outras normas de direito da União Europeia) em face das questões suscitadas nesta sede (sendo certo que, mesmo na petição inicial, os autores aludem a uma contraditoriedade do “comportamento da ré” com as disposições dos “artigos 8 e 9 da diretiva 2005/29/CE, da diretiva (EU) 2019/771, dos artigos 3 (a) (d) (e) (f) e 4 da lei 24/96, dos artigos 5, 6 (a, b), 7 (1, a, b) (2), 12 (1), 15 (1, a), 18 (1) (2) (5 – por interpretação extensiva), 40 (1) e 43 (1) do decreto-lei 84/2021 e do decreto-lei 446/85” (cfr. artigos 8.º, 165.º e 198.º da p.i.), mas, em si mesmo, não se alcança, da alegação efetuada, algum dissídio interpretativo face a qualquer texto normativo (sendo certo que, quanto ao autor 2, relativamente a quem é identificada a data de aquisição do bem à ré, - cfr. artigo 15.º da p.i. - a referida Diretiva 2019/771, não tem aplicação – cfr. artigo 24.º, n.º 2, da Diretiva). Não se vislumbrando existir obrigatoriedade no reenvio prejudicial, nem, por outro modo, se mostrando que o mesmo possa ter, no presente momento, alguma utilidade ou relevância, deve responder-se negativamente à questão em apreço. * A apelação procederá em conformidade com o exposto, com revogação da decisão recorrida e sua substituição por outra que determine que os autos voltem à 1.ª instância, para a ação prosseguir os seus ulteriores termos. * Nos termos do disposto no artigo 527.º, n.º 1 do CPC, “a decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito.” Conforme se deu conta no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11-10-2022 (Pº 2075/18.7T8LSB.L1-7, rel. DIOGO RAVARA), “[a] interpretação desta disposição legal, no contexto dos recursos, deve atender ao elemento sistemático da interpretação. Com efeito, o conceito de custas comporta um sentido amplo e um sentido restrito. No sentido amplo, as custas tal conceito inclui a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte (cf. arts. 529º, nº1, do CPC e 3º, nº1, do RCP). Já sentido restrito, as custas são sinónimo de taxa de justiça, sendo esta devida pelo impulso do processo, seja em que instância for (arts. 529º, nº 2 e 642º, do CPC e 1º, nº 1, e 6º, nºs 2, 5 e 6 do RCP). O pagamento da taxa de justiça não se correlaciona com o decaimento da parte, mas sim com o impulso do processo (vd. arts. 529º, nº 2, e 530º, nº 1, do CPC). Por isso é devido quer na 1ª instância, quer na Relação, quer no STJ. Assim sendo, a condenação em custas a que se reportam os arts. 527º, 607º, nº 6, e 663º, nº 2, do CPC, só respeita aos encargos, quando devidos (arts. 532º do CPC e 16º, 20º e 24º, nº 2, do RCP), e às custas de parte (arts. 533º do CPC e 25º e 26º do RCP)”. De acordo com o estatuído no n.º 2 do artigo 527.º do CPC, o critério de distribuição da responsabilidade pelas custas assenta no princípio da causalidade e, apenas subsidiariamente, no da vantagem ou proveito processual. Entende-se que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for. Conforme se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-12-2017 (Pº 1509/13.1TVLSB.L1.S1, rel. TOMÉ GOMES), cujo entendimento se subscreve: “O juízo de procedência ou improcedência da pretensão recursória não é aferível em função do decaimento ou vencimento parcelar respeitante a cada um dos seus fundamentos, mas da respetiva repercussão na solução jurídica dada em sede do dispositivo final sobre essa pretensão”. A condenação em custas rege-se pelos aludidos princípios da causalidade e da sucumbência, temperados pelo princípio da proporcionalidade, na vertente da proibição de excesso e da justa medida (cfr. Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Volume II, 2015, p. 359). “Dá causa à acção, incidente ou recurso quem perde. Quanto à acção, perde-a o réu quando é condenado no pedido; perde-a o autor quando o réu é absolvido do pedido ou da instância. Quanto aos incidentes, paralelamente, é parte vencida aquela contra a qual a decisão é proferida: se o incidente for julgado procedente, paga as custas o requerido; se for rejeitado ou julgado improcedente, paga-as o requerente. No caso dos recursos, as custas ficam por conta do recorrido ou do recorrente, conforme o recurso obtenha ou não provimento (…)” (cfr. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre; Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, 3.ª ed., p. 419). Assim, deve pagar as custas a parte que não tem razão, litiga sem fundamento ou exerce no processo uma actividade injustificada, pelo que interessa apurar o teor do dispositivo da decisão em confronto com a posição assumida por cada um dos litigantes. O princípio da causalidade continua a funcionar em sede de recurso, devendo a parte neste vencida ser condenada no pagamento das custas, ainda que não tenha contra-alegado, tendo presente, contudo, a especificidade quanto à constituição da obrigação de pagamento da taxa de justiça, pelo que tal condenação envolve apenas as custas de parte e, em alguns casos, os encargos. Nos casos em que não haja vencedor nem vencido, onde, por isso, não pode funcionar o princípio da causalidade consubstanciado no princípio da sucumbência, rege o princípio subsidiário do proveito processual, de acordo com o qual pagará as custas do processo quem deste beneficiou. Como tal, sempre que haja um vencido, com perda de causa, é sobre ele que deve recair, na precisa medida desse decaimento, a responsabilidade pela dívida de custas. Fica vencido quem na causa não viu os seus interesses satisfeitos; se tais interesses ficam totalmente postergados, o vencimento é total; se os interesses são parcialmente satisfeitos, o vencimento é parcial. “"Vencidos" são todos os que não obtenham na causa satisfação total ou parcial dos seus interesses, ficando, pois, a seu cargo, a responsabilidade total ou parcial pelas custas” (assim, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08-10-1997, P.º 97S079, rel. MATOS CANAS). Quando não haja uma parte vencida, se também não existir uma outra vencedora, será responsável pelas custas aquele (ou aqueles) cuja esfera se mostrar favorecida, e também na sua exacta medida, em face do teor da decisão. Conforme se referiu no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22-01-2019 (P.º Proc. 45824/18.8YIPRT-A.L1 7ª Secção, rel. MICAELA SOUSA), “existindo um vencedor, por princípio e natureza, não lhe pode ser imputada a responsabilidade pela obrigação do pagamento das custas por ser de afastar, naturalmente, a causalidade. Ou seja, por regra, o vencedor é aquele que obteve ganho de causa. Ainda que este ganho de causa implique necessariamente um proveito, não é este proveito que releva quando se recorre ao respectivo princípio subsidiário, pois que, tal como resulta do n.° 1 do art. 527°, n.° 1 do CPC, apenas não havendo vencimento é que funciona o critério subsidiário do proveito. Mas havendo um vencedor e não se encontrando uma parte vencida, esta não pode ser condenada no pagamento de custas porque não se verifica a causalidade (não deu causa à acção ou ao recurso), mas também aquele não o pode ser precisamente por ter havido vencimento (o que afasta o critério do proveito). Nestas situações, impõe-se encontrar uma outra solução. Será apenas quando perante a resolução do litígio não se descortine nem um vencido, nem um vencedor, que a responsabilidade tributária terá de assentar então no critério do proveito, isto é, em função das vantagens obtidas”. No caso dos autos, os autores populares/apelantes obterão “ganho de causa”, relativamente à pretensão recursória que trouxeram a juízo, ou seja, lograrão obter a revogação da decisão que indeferiu liminarmente a petição. Contudo, a ré/apelada, não deu causa ao recurso (sendo que, à data de interposição do mesmo ainda não se encontrava, sequer, citada), não tendo tido vencimento. A apelada é alheia à sorte do recurso, não lhe podendo ser oposto o critério da causalidade. Assim, de acordo com o exposto, o critério da causalidade, não se mostra operante relativamente a qualquer das partes. Mas, então, dever-se-á lançar mão do critério da vantagem ou proveito processual? Salvador da Costa, aponta um caminho (no texto “Segmento decisório “sem custas” - Acórdão da Relação de Guimarães de 31.10.2018, no texto “Dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça na globalidade do processo - Acórdão da Relação de Évora de 14.03.2019 (Jurisprudência 2019 (56))”, disponíveis no Blog do Instituto Português do Processo Civil – IPPC, em https://blogippc.blogspot.com/), relativamente a situação semelhante, embora no âmbito de procedimento cautelar de arresto – decidido sem audiência da parte contrária – em que a requerida não teve intervenção nem no procedimento, nem no recurso do despacho que indeferiu liminarmente a petição cautelar, concluindo o seguinte: “(…) recebido pela secretaria o requerimento da sociedade A para a implementação do procedimento cautelar de arresto contra B, a instância iniciou-se, mas não produziu efeitos em relação à última, porque para aquele procedimento não foi citada, visto que a pretensão da primeira foi liminarmente indeferida, a que logo se seguiu o processado do recurso. Em consequência, a sociedade B não pôde intervir no procedimento cautelar de arresto, nem antes ou depois da prolação do despacho de indeferimento liminar da petição inicial, nem na face do recurso de apelação daquele despacho. Os critérios de fixação da responsabilidade das partes e dos sujeitos processuais pelo pagamento das custas processuais constam essencialmente do disposto no artigo 527.º do mencionado Código. O seu n.º 1 estabelece, além do mais que aqui não releva, que na decisão que julgue o recurso deve condenar-se no pagamento das custas a parte que lhes tiver dado causa ou, não havendo vencimento, a parte que dela tirou proveito. Em conexão face ao disposto no n.º 1 daquele artigo, estabelece o seu n.º 2, em jeito de presunção, dever entender-se ter dado causa às custas processuais a parte vencida, na respetiva proporção. Decorre destas normas que a responsabilidade pelo pagamento das custas processuais assenta em dois princípios fundamentais: o da causalidade, que é o principal, e o do proveito, este de função subsidiária. As referidas normas de responsabilidade pelo pagamento de custas estão conexionadas com o disposto no n.º 6 do artigo 607.º do mesmo Código, do qual decorre que, no final do acórdão, o coletivo de juízes do tribunal ad quem deve condenar os responsáveis no pagamento das custas processuais, estabelecendo a proporção da concernente responsabilidade, naturalmente se for caso disso. Uma vez que a sociedade B não interveio na instância do procedimento cautelar, incluindo a fase de recurso, neste não podia ser considerada parte vencida, pelo que nele não podia ser condenada no pagamento das custas. Com efeito, como a sociedade A teve êxito no recurso da decisão de indeferimento liminar do requerimento de implementação do procedimento cautelar de arresto, não pode funcionar o princípio da causalidade, pressuposto da condenação da parte vencida no pagamento de custas, a que se reportam os n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º daquele Código. Temos, pois, que, no recurso ajuizado não há parte vencida, seja do lado ativo, seja do lado passivo, mas há uma parte, a sociedade A, que do recurso tirou proveito, na medida em que, por virtude da sua procedência, logrou o prosseguimento dos termos normais do procedimento cautelar de arresto. Em consequência, ex vi do referido princípio do proveito, a que se reporta o n.º 1 do artigo 527.º daquele Código, a responsabilidade pelo pagamento de custas do recurso impende sobre a sociedade A, se, porventura, não houver razões de facto e ou de direito que a isso obstem. Reitera-se que o conceito de custas em sentido amplo envolve as vertentes da taxa de justiça, dos encargos e das custas de parte, conforme decorre do n.º 1 do artigo 529.º do aludido Código. Mas a sociedade A procedeu ao pagamento da taxa de justiça relativa ao recurso aquando da apresentação em juízo do requerimento para a sua implementação, com as respetivas alegações, nos termos dos artigos 529.º, n.º 2, 530.º, n.º 1, daquele Código, e 7.º, n.º 2, e 14.º, n.º 1, do Regulamento das Custas Processuais. Isso significa que a sociedade A já cumpriu a sua obrigação de pagamento da taxa de justiça relativa ao recurso, pelo que não há fundamento legal para a condenar no seu pagamento nessa sede. Quanto aos encargos, segunda vertente do conceito de custas lato sensu, resulta do n.º 3 do artigo 529.º do referido Código que os do processo envolvem as despesas atinentes a diligências requeridas pelas partes ou ordenadas pelo juiz, ou pelo coletivo de juízes, conforme os casos. Ora, decorre da fase processual do recurso em causa que neste não foram realizadas diligências que tivessem implicado a realização de alguma despesa suscetível de qualificação como encargo processual. Em consequência, inexiste fundamento legal para a condenação da sociedade A, no recurso, no pagamento de qualquer quantia a título de encargos. Resta a análise da terceira vertente do conceito de custas lato sensu, ou seja, as custas de parte que, nos termos do n.º 4 do artigo 529.º daquele Código, compreendem o que cada parte tenha despendido com o processo e tenha direito a ser compensada nos termos dos artigos 25.º e 26.º do Regulamento das Custas Processuais. Conforme resulta do disposto nos artigos 533.º, n.º 2, daquele Código, e 26.º, n.º 3, do mencionado Regulamento, as custas de parte, a crédito da parte vencedora na ação e ou no recurso, e a débito da parte vencida, na respetiva proporção, abrangem as taxas de justiça, os encargos suportados pelas partes e o dispêndio com honorários pagos a mandatário judicial e as despesas por este realizadas. Como a sociedade B não interveio no recurso, não é credora de custas de parte em relação à sociedade A, pelo que esta não é responsável por qualquer pagamento a esse título. (…) Com base no exposto, formulam-se as seguintes conclusões: 1.ª – O segmento “sem custas”, constante da parte final do acórdão da Relação, está afetado de nulidade por falta absoluta de fundamentação; 2.ª – A responsabilidade das partes pelo pagamento das custas processuais em geral assenta no critério principal da causalidade e, não havendo vencimento, no critério subsidiário do proveito; 3.ª – Como se trata de um recurso do despacho de indeferimento liminar da petição inicial relativa ao procedimento cautelar de arresto, em que a requerida B não pôde intervir, só a recorrente A, com base no critério do proveito, podia ser condenada no pagamento das custas, se a tal nada obstasse. 4.ª – Uma vez que a recorrente A pagou previamente a taxa de justiça relativa ao recurso, e este não envolveu encargos, e a requerida B nele não interveio, a primeira não é responsável pelo pagamento de custas. 5.ª – O segmento do acórdão da Relação “sem custas” corresponde ao derivado dos factos e da lei”. Em textos ulteriores, o mesmo Autor desenvolve semelhante posição (vejam-se, por exemplo, no mesmo local, os textos intitulados “Condenação do pagamento de custas da parte vencida a final - Acórdão do Tribunal Relação da Relação de Évora de 2.10.2018 -(publicado em Jurisprudência 2018 (160))”, “Segmento decisório “sem custas” - Acórdão da Relação de Guimarães de 31.10.2018”, “Custas a final pela parte vencida - Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11.12.2018”, “Custas pela parte vencida a final face aos princípios da causalidade e do proveito - Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10.1.2019 (Publicado em Jurisprudência 2019 (3))” e “Custas do recurso conforme for devido a final - Acórdão da Relação do Porto de 10.1.2019 (publicado em Jurisprudência 2019 (38))”. Considera o referido Autor que o critério do proveito será operante se, porventura, não houver razões de facto e ou de direito que a isso obstem. Ora, não nos parece que a fixação de responsabilidade decorrente do disposto no artigo 527.º do CPC, exigida por via do disposto no artigo 607.º, n.º 4, do CPC, possa resumir-se a uma decisão que verifique uma ausência de responsabilidade (“sem custas”). Se, por exemplo, os autos de recurso tivessem originado, nesta fase – ainda que sem intervenção do autor- encargos, por hipótese, decorrentes de uma perícia oficiosamente determinada pelo Tribunal (v.g. perícia com vista a determinar os elementos que foram submetidos no requerimento inicial, etc.) – a decisão “sem custas” seria incompreensível. Não se pode, de facto, olvidar a prescrição geral de tributação processual – não afastada por qualquer norma de isenção tributária – constante do artigo 1.º, n.º 1, do RCP e do seguinte teor: “Todos os processos estão sujeitos a custas, nos termos fixados pelo presente Regulamento”. Na realidade, não havendo isenção tributária, o recurso em questão está sujeito a tributação, aspecto que é preliminar face à determinação da responsabilidade das partes relativamente a custas. Assim, parece-nos claro que, deve ser apurada a responsabilidade tributária decorrente da instância gerada e do facto de ter desenvolvido actividade jurisdicional relevante para efeitos de custas, dos eventuais encargos assumidos e das custas de parte que poderá ter determinado. Reiterando a necessidade de consideração dos critérios tributários da causalidade e do proveito – em detrimento de uma solução que isente de tributação o recurso – certo é que, no caso, não se compreenderia – verifica-se, como se disse supra, que o critério do vencimento não é prestável e, do mesmo modo, afigura-se que seria patente a injustiça da decisão (assinalando-se que todos os encargos de uma instância recursória ganhadora ficariam, incompreensivelmente, a cargo daquele que ganhou o recurso!) que, sem mais, determinasse que tais eventuais encargos ficassem a cargo dos recorrentes, porque teriam, neste sentido, tirado proveito do recurso. E, tanto mais, que, no caso, tais recorrentes beneficiam de isenção tributária, nos termos sobreditos. E, de semelhante modo, também é patente que o “proveito” do recurso não é, por ora, encontrado na esfera da recorrida, pois, a revogação da decisão não lhe é favorável (implicando o prosseguimento dos autos relativamente à reconvenção deduzida pelo requerido). No caso dos autos, no momento em que é proferida a presente decisão não é possível afirmar que o desfecho da apelação, ainda que determinando a revogação do decidido em 1ª instância, se reflete negativamente na esfera da apelada. A causalidade e o proveito não são, neste concreto ponto, congruentes e, como se viu, não parece que a questão se possa resumir a uma decisão enunciativa de uma não responsabilização tributária de qualquer das partes. Quid iuris? “Não obstante esta situação, seguro é que se impõe a tributação em custas, mesmo num caso como o dos autos, atento o estatuído no art. 1° do RCP e, bem assim, a ausência de qualquer isenção prevista na lei (cf. art. 4° do RCP)” (assim, o citado acórdão Tribunal da Relação de Lisboa de 22-01-2019 (P.º Proc. 45824/18.8YIPRT-A.L1 7ª Secção, rel. MICAELA SOUSA). Como referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, Coimbra, 2018, p. 579, nota 4) “salvo quando exista alguma isenção objetiva (artigo 4.º, nº 2, do RCP), todas as ações (incluindo incidentes ou recursos) implicam o pagamento de custas (art. 1.º do RCP)”. Seria ilegal a decisão que reconhecesse uma isenção tributária não prevista na lei. Na situação em apreço, porque se está perante uma decisão interlocutória – não tendo, como se viu, sentido uma decisão que sublinhe a ausência de responsabilização por custas e, igualmente, sendo, para além de injusto, prematuro, recorrer à situação extrema de responsabilizar a ré (sendo que os autores delas se isentos) pelas custas – e ponderando o sentido do comando normativo constante dos n.ºs. 1 e 2 do artigo 527.º do CPC, afigura-se que a decisão que se impõe é a de relegar a decisão sobre a responsabilidade tributária inerente à instância do presente recurso para aquela que decida sobre a responsabilidade tributária da decisão final. Ou seja: O critério da causalidade (tal como enunciado na previsão contida no n.º 2 do artigo 527.º do CPC) adquirirá, relativamente a esta instância interlocutória, plena operatividade quando for conhecida a parte vencida da causa principal, a parte vencida da decisão nuclear e final do processo, podendo encontrar-se, nesse momento, aquele a quem deva ser imposta a obrigação de custas - no sentido de que se enquadra no iter processual que conduzirá a uma decisão final sobre o mérito do litígio (da acção e, eventualmente, da reconvenção) – e que permite patentear, ainda que em ulterior momento, a quem é imputável a instância recursória julgada. Parece-nos, pois, ter plena aplicação a jurisprudência vertida no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11-01-2011 (processo n.º 277/08.3TBSRQ-F.L1-7, rel. LUÍS LAMEIRAS), onde, em situação similar, se concluiu nos seguintes termos: “(…) [T]odo o processo tem um objectivo primordial, que é o da obtenção de uma regulação jurídica, declarada ou efectiva, de interesses de direito material; e que é o caminho para se lá chegar que tem um custo, em parte representado pelas custas a pagar. Este núcleo duro de custas tem sempre um responsável final; alguém que se volve em sujeito passivo das custas por se reconhecer que, à luz de tudo, deve ser ele a suportar o encargo; seja por ser vencido; seja pelo proveito obtido; seja, em derradeiro critério, por ser aquele que desencadeou o funcionamento da máquina judiciária. Por isso, e em todo o caso, o artigo 659º, nº 3 [correspondendo ao actual artigo 607.º, n.º 3] (…) exige (…) que se defina, com expressividade e clareza, quem são os responsáveis pelas custas e qual a relativa proporção da dívida. Ora, do nosso ponto de vista, faz sentido que, na falta de uma outra referência juridicamente atendível, seja a esta derradeira distribuição que venha a aderir toda a restante responsabilidade a que, entretanto, não houvera oportunidade, ou possibilidade, de encontrar ajustado devedor. A autonomia tributária, que porventura houvesse, cede na parte da repartição de responsabilidade; e a quem seja onerado pelo custo global e final da acção acrescerá, na mesma proporção, por se entender que a essa principal responsabilidade devem ter adesão aquelas outras conexas ou meramente instrumentais, a dívida de custas gerada pelo acto ou termo a que antes se não conseguiu conhecer responsável. A dívida interlocutória de custas adere, nesta óptica, à dívida final, referente à contrapartida global do “pacote” de serviço de justiça prestado; nascendo a respectiva obrigação na esfera daquele que, a final, venha a ser reconhecido como o devedor das principais custas da acção. É o que comummente se chama de dívida de custas pela parte que seja vencida a final (…)”. Sobre casos de condenação das partes no pagamento das custas devidas a final, admitindo a figura, na vigência do RCP, vd., para além do citado acórdão do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11-01-2011, entre outros, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12-04-2010 (proc. 1057/09.4TBVFR-A.P1, rel. ANA PAULA AMORIM), o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18-10-2012 (Processo 2625/11.0TBGDM.P1, rel. TELES DE MENEZES), o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19-03-2015 (Processo 5150/10.2TBVNG-C.P1 rel. LEONEL SERÔDIO), o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 16-12-2015 (Processo 12356/15, rel. CATARINA JARMELA), o acórdão do Tribunal da Relação de Évora (Processo 969/17.6T8PTM.E1, rel. PAULA DO PAÇO) e o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 10-10-2019 (Processo n.º 1582/12.0TBCTX-A.E1, rel. PAULO AMARAL). Conclui-se, pois, que a responsabilidade tributária inerente à instância do presente recurso deverá ser relegada para final, incumbindo à ré, se a mesma ficar vencida a final e na proporção em que o for (cfr. artigo 527.º, n.º 1, do CPC). * 5. Decisão: Pelo exposto, acordam os Juízes que compõem o coletivo desta 2.ª Secção Cível, em julgar procedente a apelação e, consequentemente: 1) Revogar a decisão recorrida, que se substitui pela presente, determinando que os autos voltem à 1.ª instância, para a ação prosseguir os seus ulteriores termos; 2) Revogar a condenação dos autores em custas e determinar que as custas incidam pela ré/recorrida, caso a mesma fique vencida a final; e 3) Julgar inexistir fundamento para proceder ao reenvio prejudicial pretendido pelos recorrentes. Notifique e registe. * Lisboa, 25 de maio de 2023. Carlos Castelo Branco Orlando dos Santos Nascimento João Miguel Mourão Vaz Gomes |