Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
14811/22.2T8SNT-A.L1-4
Relator: PAULA SANTOS
Descritores: PROVA PERICIAL
INSPECÇÃO JUDICIAL
DILIGÊNCIA DILATÓRIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/13/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: I – Numa acção em que se discute acerca da existência ou não de um contrato de trabalho, apenas é de admitir a prova pericial ao computador da trabalhadora se os factos alegados demandarem necessariamente conhecimentos especiais para a sua demonstração.
Se assim não for, a prova requerida é dilatória e, portanto, inadmissível.
II – O requerimento para inspecção judicial ao computador deve indicar os factos que pretende ver demonstrados mediante esse meio de prova, e as razões que levam a parte a considerar que o mesmo é apto à sua demonstração ou contraprova.
(Elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa

I – Relatório
Nos autos de acção declarativa, com processo comum, em que é Autora AAA e Ré OUTSPORT, LDA.,  foi proferida decisão singular, pretendendo a Ré que sobre ela recaia acórdão.
Alega, em conclusão, que
1 - A Reclamante não aceita, discordando totalmente, da decisão sumária de fls.___, que antecede a presente.
2 - Tal decisão sumária rejeitou o recurso que incidiu quanto ao despacho saneador, proferido pelo Tribunal de primeira instância, de indeferimento parcial do requerimento probatório de fls.___, não admitindo a requerida prova pericial e por inspecção judicial.
3 - A Reclamante pretende sujeitar à conferência o recurso que improcedeu nos termos constantes na decisão sumária que ora se impugna, de molde a que recaia um acórdão sobre o recurso apresentado.
4 - A prova pericial requerida pela Ré não assume qualquer carácter dilatório, visando demonstrar a existência de um contrato de prestação de serviços.
5 - Com esta prova pretende-se uma apreciação ou juízo valorativo sobre os factos passados, para tanto exigindo-se conhecimentos especiais de um técnico de informática.
6 - Acresce que, para a demonstração dos factos vertidos nos artigos 20º a 22º, 33º, 41º 53º a 55º, 64º, 69º a 71º, 73º, 76º a 78º, 84º e 85º, da contestação, exigem-se conhecimentos especiais para retirar a informação pretendida de um objecto (computador) que, passados todos estes anos, provavelmente não estará facilmente captável, sendo antes necessário efectuar um conjunto de operações de cariz técnico, tal qual o recurso ao seu disco rígido, para que seja possível obter tal documentação ou informação.
7 - Nem o Tribunal nem as testemunhas conseguem, de forma precisa, retirar de um computador o conteúdo nele contido, pois que excede os critérios de experiência e conhecimento comum.
8 - A análise do computador e do seu disco rígido constituiu uma verdadeira perícia, porquanto a perceção e/ou apreciação do conteúdo da informação depositada nos mesmos só é alcançável por quem detém especiais conhecimentos técnicos e científicos na área informática, razão pela qual o Tribunal deve socorrer-se desse meio de prova, o qual é, nesta parte, preferencial em relação aos demais meios probatórios apresentados.
9 - A essencialidade e relevância da perícia demonstra-se quando, através da mesma, existe o propósito de apurar factos que não é possível obter de outra forma.
10 - Além do mais, pretende-se estabelecer o nexo causal entre a actividade da Autora e o contrato de prestação de serviços celebrado, em oposição ao contrato de trabalho invocado na petição inicial.
11 - A segunda parte do artigo 33.º da contestação não inculca qualquer matéria conclusiva e o artigo 44º do mesmo articulado, ainda que conclusivo, decorre dos demais factos essenciais alegados e, por isso, é instrumental e sujeito a devida comprovação.
12 - Dos quesitos constantes das alíneas d), e), f), g) e h), do requerimento probatório, resulta expressamente que tal prova deve obrigatoriamente incidir sobre o computador.
13 - Para determinação do suposto exercício da actividade laboral através de um instrumento de trabalho (cfr. artigos 37º, 65º, 68º e 73º, todos da p.i.), sempre será relevante e determinante saber em que medida e sentido o mesmo foi usado em prol dessa atividade. E sendo esse alegado instrumento um meio informático (computador), as questões que urgem apurar sempre necessitam, para serem cabalmente esclarecidas, de conhecimentos especiais, que desencadeiem juízos valorativos distinto da realidade (total ou parcial) que tenha sido presenciada pelas testemunhas.
14 - Sendo que o email da Autora está, ou deverá estar, nesse computador. Só caso tal não se verifique, então haverá então que ampliar o objecto da perícia ou aperfeiçoar o requerimento probatório.
15 - A Ré discriminou os factos que deveriam ser objecto de prova pericial, tendo indicado os quesitos a responder.
16 - Cabe ao Tribunal definir o objecto da perícia e os quesitos a responder, em face do requerido e sem prejuízo de previamente dever obter os esclarecimentos necessários para o efeito.
17 - A prova por inspecção não pode ser indeferida com base em depoimentos de testemunhas que vierem a ser prestados.
18 - Que, necessariamente, teria sempre de ser posterior à produção dos respectivos depoimentos.
19 - Ao Tribunal incumbia o aperfeiçoamento ou sanação dos quesitos indicados pela Ré quanto à prova por inspecção judicial, sendo certo que foram indicados precisamente os quesitos a responder.
20 - Sem prejuízo de caber ao tribunal definir o objecto e amplitude das questões.
21 - A decisão judicial reclamada viola, desta forma, o disposto nos artigos 6º, 7º, nº 1, 410º, 411º, 413º, 467º e seguintes, 475º, 476º, 483º, nºs 1 e 3, 490º, e 607º, nºs 3 a 5, todos do C.P.C., e os artigos 341º, 342º, 388º, 389º, 390º, e 391º, todos do Código Civil, pelo que deve ser revogada e substituída por outra que admita a requerida prova pericial e por inspecção judicial, com as legais consequências.
Termos em que, Deverá ter provimento a presente Reclamação, revogando-se a decisão sumária de fls.___, a fim de se fazer a TÃO COSTUMADA JUSTIÇA.”
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Os Autores, notificados, não exerceram o contraditório.
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A Autora peticiona, nos presentes autos, a condenação da Ré a
“a) ser reconhecida e declarada a existência de um contrato de trabalho entre a R. e a trabalhadora A., fixando-se a data do seu início em 2 de dezembro de 2019 e término a 13 de setembro de 2021 e respectivos efeitos legais daí decorrentes;
Consequentemente,
b) ser a R. condenada ao pagamento à A. do valor integral da remuneração base e isenção de horário de trabalho referente aos meses de abril de 2020 a agosto de 2020, inclusive, e de janeiro a março de 2021;
c) ser reconhecido o direito à A. ao pagamento pela R. dos seguintes montantes:
/'. de €43.428,74 (quarenta e três mil quatrocentos e vinte e oito euros e setenta e quatro cêntimos), referentes a remuneração base, isenção de horário de trabalho, ajudas de custo, prémios/comissões, férias não gozadas (de 2019), subsídio de férias e subsídio de Natal referente ao período de 2 de dezembro de 2019 a 13 de setembro de 2021;
ii. de €4.892,62 (quatro mil oitocentos e noventa e dois euros e sessenta e dois cêntimos), a título de créditos emergentes da cessação do contrato de trabalho (proporcional de subsídio de férias, retribuição de férias, férias não gozadas e proporcional de subsídio de Natal) e
iii. €512,98 (quinhentos e doze euros e noventa e oito cêntimos), a título de créditos de formação referentes ao período de 2 de dezembro de 2019 a 13 de setembro de 2021);
d) Ser a R. condenada ao pagamento à A. do montante ilíquido de €25.084,34 (vinte cinco mil e oitenta e quatro euros e trinta e quatro cêntimos), a que corresponde a diferença entre o crédito da A. no montante total ilíquido de €48.834,34 e o pagamento feito pela R., na quantia de €23.750,00, valor a que acrescerão juros de mora, à taxa legal em vigor, vencidos e vincendos, desde a data do seu vencimento até ao seu integral e efetivo pagamento, cuja imputação deverá ser feita nos termos do disposto no art. 785.g do Código Civil. "
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A Ré contestou, concluindo pela improcedência da acção.
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Na contestação formulou os seguintes requerimentos probatórios "VI - Prova Pericial: - Nos termos dos artigos 467º e seguintes do C.P.C., requer-se que seja ordenada a realização de uma perícia ao computador portátil da Autora, fixando-se como objecto, ao abrigo do artigo 475º do C.P.C., os factos vertidos nos artigos 20º a 22º, 33º, 41º, 53º a 55º, 64º, 65º a 71º, 73º, 76º a 78º, 84º e 85º, todos do presente articulado, especificando-se adicionalmente como quesitos a responder, sem prejuízo de outros que o Tribunal entenda convenientes e pertinentes, os seguintes:
a) Por conta e em nome da Ré, quantos emails é que a Autora enviou para terceiras entidades?
 b) Em que datas e horas foram enviados esses emails?
c) Qual o período médio estimado de elaboração e envio desses emails?
d) Em quantas ocasiões, indicando-se dias e horas (de início e fim), o computador da Autora esteve ligado à Internet da sua habitação?
e) Em quantas ocasiões, indicando-se dias e horas (de início e fim), o computador da Autora esteve ligado à internet da Ré?
f) Em quantas ocasiões, indicando-se dias e horas (de início e fim), o computador da Autora esteve ligado ao servidor da Ré?
g) O computador e email apenas foi utilizado para actividade da Ré, ou contem igualmente outra actividade profissional?
h) Existe alguma assinatura electrónica e/ou digital da Autora? Para o efeito, ao abrigo do disposto nos artigos 467º e 468º, nº 1, ambos do C.P.C., requer que a perícia seja singular, para tanto devendo ser indicado perito que conste da lista oficial dos Tribunais.
Mais se requer, nos termos e para os efeitos dos artigos 411º, 416º, 417º e 480º, todos do C.P.C., que o Tribunal ordene que a Autora efectue a entrega, no Tribunal, do seu computador portátil da marca "Asus".
VII - Prova Por Inspecção Judicial:
Nos termos dos artigos 490º e seguintes do C.P.C., para prova dos artigos llº a 183º, do presente articulado de contestação, e para contraprova dos artigos lº a 92º da petição inicial, requer-se que seja ordenada uma inspecção, com reconstituição de factos, ao computador portátil da Autora, designadamente quanto às alíneas a) a h) do ponto VI antecedente, sem prejuízo de outros pontos que o Tribunal entenda convenientes e pertinentes.
Mais se requer, nos termos e para os efeitos dos artigos 411º, 416º e 417º, todos do C.P.C., que o Tribunal ordene que a Autora efectue a entrega, no Tribunal, do seu computador portátil da marca "Asus".
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Foi proferido o seguinte despacho
"Da prova pericial e da prova por inspeção judicial
Estando em causa a caracterização do contrato celebrado entre as partes como contrato de trabalho, o ónus da prova recai sobre a Autora, competindo à Ré, querendo, fazer a prova da inexistência do referido contrato.
Afigura-se-nos, contudo, que a contraprova é possível e alcançável mediante o depoimento das 17 testemunhas arroladas e das dezenas de documentos juntos aos autos, incluindo aqueles que serão ainda apresentados, sendo por isso a prova pericial e a prova por inspeção desnecessárias, dispensáveis e dilatórias - admitindo que do computador da Autora não foram apagados emails certamente que a verificação desses e-mails nos termos requeridos pela Ré seria tarefa muito morosa.
Nestes termos, indefere-se a requerida prova pericial e por inspeção judicial."
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Inconformada, a Ré interpôs recurso, concluindo nas suas alegações, que
"lº - O presente recurso vem interposto do douto despacho saneador de fls._______ , de 5 de Janeiro de 2023 (referência 141656037), e vem dele interpor recurso de Apelação, nos termos dos artigos 79º-A, nº 2, alínea d), 80º, nº 2, 81º, ng 1, 83º, nº 1, e 83º-A, nº 2, todos do C.P.T., uma vez que a Ré com ele não se conforma, versando o presente sobre toda a parte decisória constante do mesmo, o qual rejeitou os meios de prova refentes à prova pericial e por inspecção judicial por esta apresentada em sede de articulado de contestação.
2º - O fundamento específico da recorribilidade incide sobre o indeferimento da prova pericial e por inspecção judicial que a Ré requereu em sede de articulado de contestação, a qual consubstancia uma rejeição de meio de prova nos termos do artigo 79º-A, nº 2, alínea d), do C.P.T., o que tudo se consigna para os efeitos previstos no artigo 81º, nº 1, do C.P.T..
3º - Com relevância factual para a decisão do caso em apreço, devem ser considerados os pontos (i) a (v) supra reproduzidos, que assim se dão por assentes para os devidos efeitos.
4º - Na petição inicial apresentada, a Autora deduz, como causa de pedir, a existência de um contrato de trabalho celebrado entre a Autora e a Ré (artigos lº a 43º), invocando para tal, de forma subsequente, o pagamento dos créditos referentes à alegada existência daquela relação contratual (artigos 44º a 64º).
- Em sede de contestação a Ré, defendendo-se por impugnação, negou a existência de qualquer contrato de trabalho, tendo ainda alegado as circunstâncias factuais que, no seu entendimento, permitem que seja demonstrada a existência de um contrato de prestação de serviços (artigos lº a 159º).
- O Tribunal "a quo" não fixou nem o objecto do litígio nem os temas da prova.
7º - É sobre os factos controvertidos que os elementos de prova têm que incidir, com vista "ao apuramento da verdade", sempre, pois, "quanto aos factos" alegados (cfr. artigos 411º e seguintes do C.P.C., e artigo 34 lº do Código Civil).
- A prova pericial destina-se, entre outras, à percepção indiciaria de factos por inspeção de coisas, móveis ou imóveis.
9º - Do preceito do artigo 476º, nº 1, do C.P.C., resulta que o juiz deve indeferir a diligência probatória, rejeitando o meio de prova (perícia), se entender que tal diligência é "impertinente" ou "dilatória".
10º - Por força do artigo 20º da C.R.P. devem ser admitidos os meios de prova requeridos pelas partes que se apresentem como podendo ter relevância para o apuramento da verdade e a justa composição do litígio, relevância esta que se determina pela possibilidade de os mesmos importarem para a formação da convicção do julgador relativamente aos factos que careçam de prova.
llº - Carecem de instrução todos os factos relevantes, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, e não apenas aos factos que suportam a solução da questão de direito que o juiz considera aplicável.
12º - Acresce que, em processo civil vigora o princípio da aquisição processual, devendo o Tribunal considerar todas as provas produzidas (artigo 413º do C.P.C.).
13º - A produção dos meios de prova deve incidir não apenas sobre os factos essenciais que, directa e nuclearmente se reportem ao objecto do processo, mas também sobre factos que são necessários ou instrumentais para a prova daqueles primeiros e para o apuramento da verdade material.
14º - a requerida prova pericial deve ser produzida nos presentes autos, pois constitui um relevante auxilio ao julgador.
15º - O Tribunal "a quo" entendeu que a mesma (assim como a prova por inspecção judicial) é desnecessária, dispensável e dilatória, com base nos documentos juntos e nas testemunhas indicadas, sendo que tal meio de prova corresponde, segundo a mesma decisão recorrida, a uma "tarefa muito morosa". Contudo, tais motivos não são legalmente aceitáveis.
16º - Faltando ainda quatro meses até ao julgamento, significa que até aquela data a prova pericial estaria concluída, pois que o prazo legal para a emissão de relatório cifra-se em trinta dias, prorrogável por igual período e por uma única vez, sendo certo que a relevância da prova sempre justificaria um eventual adiamento.
17º - Nada na lei permite ao Tribunal aceitar antecipadamente o sentido de determinados depoimentos e muito menos deduzir o conteúdo das declarações que venham a ser prestadas em sede de julgamento; quanto à prova documental não se alcança em que medida os documentos juntos satisfazem a demonstração dos quesitos formulados quanto à perícia.
18º - A decisão recorrida entendeu que a prova pericial seria dilatória, entende-se esta como um expediente desonestamente usado pela parte, sem intuito sério ou construtivo, sem cabimento processual, que visa apenas torpedear e retardar o prosseguimento da ação, entorpecer a sua normal tramitação e a realização da justiça, por não estarem em causa conhecimentos especiais que a mesma pressupõe.
19º - Não pode validamente pôr-se em dúvida que o requerimento em causa respeita ao objecto do processo, não sendo, por isso, impertinente ao mesmo, pois que pretende-se saber - do ponto de vista quantitativo e qualitativo - os termos em que a Autora desempenhou a sua actividade. Pelo que se não poderá, ainda, duvidar da pertinência/utilidade da diligência requerida.
20º - E também nada no requerimento permite a qualificação de meramente dilatório, contrariamente ao sustentado na decisão recorrida. Importa, pois, ter em atenção que o objecto dos autos consiste na determinação da relação contratual em vigor entre as partes (contrato de trabalho ou contrato de prestação de serviços).
21º - E, se é verdade que se trata aqui de matéria que pode ser objecto quer de prova testemunhal, quer documental, como se escreveu no despacho recorrido, não é menos certo que a Ré/Requerente da perícia pode não dispor nem de testemunhas, nem de documentos, para oferecer sobre os temas/quesitos.
22º - Para determinação do suposto exercício da actividade laborai através de um instrumento de trabalho (cfr. artigos 37º, 65º, 68º e 73º, todos da p.i.), sempre será relevante e determinante saber em que medida e sentido o mesmo foi usado em prol dessa atividade. E sendo esse alegado instrumento um meio informático (computador), as questões que urgem apurar sempre necessitam, para serem cabalmente esclarecidas, de conhecimentos especiais, que desencadeiem juízos valorativos distinto da realidade (total ou parcial) que tenha sido presenciada pelas testemunhas.
23º - A prova por inspecção tem por fim a percepção directa de factos pelo Tribunal, sendo o seu resultado livremente apreciado pelo julgador (cfr. artigos 390º e 391º do Código Civil).
24º - A prova por inspecção caracteriza-se ainda pela sua oficiosidade (artigo 490g C.P.C.), sendo um poder-dever do Tribunal.
25º - Acontece que do conjunto dos números dos artigos dos articulados em que a Ré requereu a inspecção ao computador, tratam de pontos factuais para os quais a prova por inspecção, assente na percepção directa dos factos pelo próprio Tribunal, se mostra útil, sendo que os mesmos não lograram, ainda, respostas positivas.
26º - É neste tipo de acções que a inspecção ao computador pode ser pertinente, já que se destina a examinar coisas in loco, facultando elementos muitas vezes imprescindíveis para o esclarecimento dos factos e que outros meios de prova não logram conseguir, e que neste caso se mostra indispensável ao apuramento da verdade.
27º - Ao não efetuá-lo o Tribunal "a quo" retirou, desde logo, à Ré a produção de um meio de prova que poderia contraditar a sua convicção e levá-la a decidir aqueles pontos factuais de forma diversa
28º - Antes se impunha ao Tribunal "a quo" que, ao não se mostrar de todo desnecessária nem inútil para a descoberta da verdade, a realização daquela inspecção ao computador, a deferisse.
29º - O que idem se diga se se aquilatar a questão à luz do também invocado princípio do inquisitório (artigo 411º do C.P.C.).
30º - Tratando-se de um vício gerador de nulidade processual (artigo 195º do C.P.C.).
31º - Por força da decisão recorrida o Tribunal "a quo" violou o disposto nos artigos 6º, 7º, nº 1, 410º, 411º, 413º, 467º e seguintes, 475º, 476º, 483º, nºs 1 e 3, 490º, e 607º, nºs 3 a 5, todos do C.P.C., e os artigos 341º, 342º, 388º, 389º, 390º, e 391º, todos do Código Civil, pelo que não lhes foi conferida a devida interpretação e aplicação, conforme acabado de explanar nas presentes alegações.
Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 646º do C.P.C., aplicável por remissão do disposto no artigo lº, nº 2, alínea a), do C.P.T., consigna-se que a Ré pretende certidão, para efeitos de instrução do presente recurso, de: a) petição inicial de fIs.___________________________ , de 7 de Setembro de 2022 e documentos com a mesma juntos; b) contestação de fls.____________ , de 24 de Outubro de 2022 e documentos com a mesma juntos (que constam do próprio articulado e dos requerimentos apresentados na mesma data); e c) despacho saneador de fls._____________________ , de 5 de Janeiro de 2023 (referência 141656037).
Termos em que,
Deverá ter provimento o presente recurso.
Revogando-se o douto despacho saneador de fls._____ , ora recorrido, em toda a sua parte dispositiva, a fim de se fazer a tão costumada JUSTIÇA."
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A relatora proferiu a seguinte decisão sumária
II - Objecto
Considerando as conclusões de recurso apresentadas, que delimitam o seu objecto, cumpre decidir se o tribunal a quo errou ao não admitir a requerida prova pericial e por inspecção judicial à matéria factual indicada.
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III- Fundamentação de Facto
Os factos com interesse para a decisão são os que resultam do relatório que antecede.
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IV- Apreciação do Recurso
Pretende a Ré que o computador que foi usado pela Autora seja objecto de uma perícia.
Na presente acção discute-se acerca da existência ou não de um contrato de trabalho entre Autora e Ré.
A Autora alega factos tendentes a demonstrar a existência desse contrato, e a Ré alega factos tendentes a demonstrar que o que vigorava entre elas era um contrato de prestação de serviços.
Resulta do disposto no artigo 341º do C.C. que as "provas têm por objecto a demonstração da realidade dos factos". E o artigo 410º do CPC estabelece que a "instrução tem por objecto os temas da prova enunciados ou, quando não tenha de haver lugar a esta enunciação, os factos necessitados de prova".
Portanto, as "partes podem oferecer ou requerer quaisquer provas (licitas) que entendam necessárias para provar os factos que alegam em sustentação dos direitos afirmados, ou para contraprova dos factos aduzidos pela contraparte que ponham em crise tais direitos. (...)
Porém, tal não significa que todas as diligências requeridas devam ser deferidas, porque apenas o deverão ser desde que legalmente admissíveis, pertinentes e não tenham cariz dilatório."[1]
De acordo com o disposto no artigo 388º do C.Civil, "A prova pericial tem por fim a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objecto de inspecção judicial."
Como afirma Alberto dos Reis, "0 verdadeiro papel do perito é captar e recolher o facto para o apreciar como técnico, para emitir sobre ele o juízo de valor que a sua cultura especial e a sua experiência qualificada lhe ditarem"[2]
Determina, por sua vez, o artigo 475º do CPC que, "[Ajo requerer a perícia, a parte indica logo, sob pena de rejeição, o respectivo objecto, enunciando as questões que pretende ver esclarecidas através da diligência" (nº 1), podendo a perícia "reportar-se, quer aos factos articulados pelo requerente, quer aos alegados pela parte contrária" (nº 2).
Nos termos do disposto no artigo 476º nº1 do CPC, "Se entender que a diligência não é impertinente nem dilatória, o juiz ouve a parte contrária sobre o objecto proposto, facultando-lhe aderir a este ou propor a sua ampliação ou restrição." E incumbe "ao juiz, no despacho em que ordene a realização da diligência, determinar o respectivo objecto, indeferindo as questões suscitadas pelas partes que considere inadmissíveis ou irrelevantes ou ampliando-o a outras que considere necessárias ao apuramento da verdade." (nº2) Portanto, e desde logo, a perícia será admitida se não for impertinente ou dilatória.
No presente caso, a Ré pretende fazer incidir tal prova sob o alegado sob os artigos 20ºa 22º, 33º, 41º, 53º a 55º, 64º, 69º a 71º, 73º, 76º a 78º, 84º e 85º da contestação, pretendendo ainda sejam respondidos os seguintes quesitos
a) Por conta e em nome da Ré, quantos emails é que a Autora enviou para terceiras entidades?
b) Em que datas e horas foram enviados esses emails?
c) Qual o período médio estimado de elaboração e envio desses emails?
d) Em quantas ocasiões, indicando-se dias e horas (de início e fim), o computador da Autora esteve ligado à Internet da sua habitação?
e) Em quantas ocasiões, indicando-se dias e horas (de início e fim), o computador da Autora esteve ligado à internet da Ré?
f) Em quantas ocasiões, indicando-se dias e horas (de início e fim), o computador da Autora esteve ligado ao servidor da Ré?
g) O computador e email apenas foi utilizado para actividade da Ré, ou contem igualmente outra actividade profissional?
h) Existe alguma assinatura electrónica e/ou digital da Autora?
Para o efeito, ao abrigo do disposto nos artigos 467º e 468º, nº 1, ambos do C.P.C., requer que a perícia seja singular, para tanto devendo ser indicado perito que conste da lista oficial dos Tribunais.
São os seguintes os factos que a Ré pretende ver demonstrados pela perícia:
20º - Simultaneamente deram um computador portátil e um telemóvel à Autora, para que a mesma mais facilmente conseguisse implementar o seu projecto e utilizasse aquelas ferramentas com essa finalidade.
21º . Como não tinha nenhum email profissional a Autora solicitou, ainda, que lhe fosse disponibilizado um endereço electrónico (vulgo email) por parte da Ré, pois, segundo a própria Autora, teria uma imagem comercial para promover o seu projecto pessoal.
22º - O que foi também foi concedido, sem qualquer limitação.
33º - Pelo que, a Autora actuava com total autonomia no exercício da sua actividade, sendo apenas a mesma quem decidia qual a metodologia que devia prosseguir para concretizar as vendas, bem como a forma de contacto (email, telefone, presencial).
41º . A Autora aceitou prestar à Ré os serviços de vendedora/comissionista de clientela nas condições contratuais acima referidas, que revelam que ambas as partes estavam cientes de que os acordos celebrados eram de mera prestação de serviços, de natureza precária, livremente revogáveis por qualquer das partes, não revestindo a natureza de contrato de trabalho, nem estando a mesma sujeita a qualquer direcção, autoridade e fiscalização da Ré.
53º - Acresce que a Autora desenvolvia a maior parte da sua actividade fora das instalações da Ré, quer seja na sua habitação quer seja junto dos clientes e/ou potenciais clientes que se obrigara a angariar para a Ré.
54º- pelo que, desde Setembro de 2018 a Março de 2022 a Autora esteve nas instalações da Ré não mais do que em sessenta ocasiões, muitas delas igualmente para desenvolver o seu projecto e na sua quase totalidade apenas em parte do dia.
55º - Em muitos meses deste período a Autora não foi às instalações da Ré.
64º - A Autora não devolveu à Ré, até à presente data, o computador e o telemóvel que, como se referiu supra, foram-lhe dados pelos representantes da Ré.
69º - Ao contrário do que a Autora alega o servidor onde está alojado o domínio da Ré não é de sua propriedade mas sim de uma empresa especializada de informática, e apenas regista movimentos, pelo período de 48 horas, com a finalidade exclusiva de detectar ataques informáticos e seu responsável. Findo aquele período, não existindo ataques informáticos o servidor apaga automaticamente todos os movimentos.
70º - Daí que, o servidor não regista qualquer acesso da Autora ao seu email, nem tampouco aos seus conteúdos, e a actividade pela mesma desenvolvida, conforme documento que ora se protesta juntar sob o nº 7.
71º - Por outro lado, a Ré nunca atribuiu à Autora uma assinatura electrónica ou digital.
73º - Não existia qualquer controle do modo de cumprimento da actividade da Autora.
76º - Nem a Ré ou o seu gerente ou qualquer dos seus trabalhadores efectuavam qualquer verificação diária, ou com outra periodicidade, da actividade da Autora ou da sua assiduidade ou pontualidade.
77º - A Autora sempre prestou os serviços contratados com a Ré, em função da sua disponibilidade e conveniência pessoal, a qual organizava livremente 0 seu dia de trabalho e intervalos, e era ela quem única e exclusivamente decidia e organizava as visitas aos clientes, sem estar sujeita a ordens/supervisão directa da Ré.
78º - A Ré não tinha qualquer interferência na definição dos dias e do período de actividade da Autora; era esta que organizava e coordenava directamente e em conjunto com os clientes a respectiva agenda, gerindo livremente o tempo que pretendia despender para a execução das vendas em causa, quer em função do tempo de que dispõe para o efeito, quer em função do número de potenciais clientes que prevê contactar.
84º - E pelas mesmas razões, desconhece a Ré quantas horas a Autora despendia na sua actividade de angariação de clientela, quais os horários que praticava para esse fim, em que dias da semana contactava os clientes, como seleccionava os clientes a contactar, por que meio efectuava esses contactos, pois que não era a Ré que 0 determinava nem exercia qualquer controle sobre os períodos ou os métodos utilizados pela Autora para a execução dos serviços de angariação de clientela, sendo certo que a Ré nunca instruiu ou ordenou à Autora que trabalhasse naqueles ou noutros dias.
85º - Daí que, nunca a Autora, no período em causa, desenvolveu actividade para a Ré durante 40 horas semanais, seja com horário diário fixo seja em regime de isenção de horário a observar durante os cinco dias úteis da semana.
Vejamos
Artigo 20º da contestação - está assente por acordo que a Ré forneceu um computador portátil e um telemóvel à Autora.
Quanto à 2º parte do alegado, bem como quanto ao alegado nos artigos 21º e 22º, 53º a 55º, 64º, 69º a 71º, 73º, 76º a 78º, 84º e 85º não se vislumbra que sejam necessários conhecimentos especiais para a sua captação, recolha e juízo de valor, com vista à sua demonstração. Donde concluir que a requerida prova pericial é dilatória, quanto a estas matérias.
A matéria alegada nos artigos 33º e 41º é conclusiva, pois comporta em si juízos de valor que deveriam ser extraídos de factos concretos, sendo que apenas estes podem ser objecto de prova.
Quanto aos quesitos apresentados desconhece-se desde logo a que factos pretendem fazer prova, com reporte aos factos alegados, acrescentando-se ainda que o requerido, a ser pertinente, sempre visaria o endereço de e-mail usado pela Autora e não o computador. E tal não foi peticionado.
Improcede, pois, o recurso, nesta parte.
* * *
Pretende ainda a Ré seja ordenada a inspecção judicial ao computador, com reconstituição dos factos, para prova e contraprova dos factos que indica no seu requerimento.
A prova por inspecção "tem por fim a percepçõo directa de factos pelo tribunal" (artigo 390º do C.Civil).
Dispõe ainda o artigo 490º do CPC - Fim da inspecção -"1-O tribunal, sempre que o julgue conveniente, pode, por sua iniciativa ou a requerimento das partes, e com ressalva da intimidade da vida privada e familiar e da dignidade humana, inspecionar coisas ou pessoas, a fim de se esclarecer sobre qualquer facto que interesse à decisão da causa, podendo deslocar-se ao local da questão ou mandar proceder à reconstituição dos factos, quando a entender necessária/'
Este instrumento probatório põe o juiz em "contacto directo e imediato com o próprio facto a provar ."[3]
A Ré pretende que a diligência probatória em causa se destina a prova de praticamente todos os factos constantes da contestação e para contraprova de todos os factos constantes da p.i., sem qualquer critério e sem que se perceba em que é que esse meio de prova é apto para prova e/ou contraprova de cada um desses factos.
São indicados os mesmos quesitos que foram referidos quanto à prova pericial, sem qualquer reporte aos factos alegados.
Ora, nesta fase processual, considerando a totalidade dos factos alegados, e antes de produzida a prova testemunhal, não se vislumbra qualquer necessidade de proceder à requerida inspecção ao computador a que se referem os autos.
E assim sendo, improcede o recurso, também nesta parte.
* * *
V Decisão
Face a todo o exposto, decide-se julgar improcedente o recurso interposto por OUTSPORT, LDA e, em consequência, confirma-se o despacho recorrido.
Custas a cargo da Ré.
Registe.
Notifique.”
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V – Apreciação da Reclamação
Pretende a reclamante que sobre a decisão sumária recaia acórdão, argumentando discordar dessa decisão pelas razões que afirma na reclamação.
Analisada a matéria factual controvertida e os meios de prova pretendidos pela reclamante,  este colectivo decide confirmar a decisão sumária, por a mesma estar em conformidade com as normas legais aplicáveis à questão controvertida.
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VI - Decisão
Face a todo o exposto, acorda-se, em conferência, na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa, em manter a decisão sumária proferida pela relatora.
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Registe e notifique.

Lisboa, 2023-09-13
Paula de Jesus Jorge dos Santos
Albertina Pereira
Leopoldo Soares
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[1]Acórdão da Relação de Coimbra de 26-02-2019 - Processo 780/11.8TBCVL-A.C1.
[2] Código do Processo Civil Anotado Vol. IV, Coimbra Editora, Reimpressão, 1987, pp. 171.
[3] Alberto dos Reis in Código de Processo Civil Anotado, vol IV, pág.306