Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7106/19.0T9LSB.L1-5
Relator: SANDRA OLIVEIRA PINTO
Descritores: OFENSA A PESSOA COLECTIVA
FACTOS
JUÍZO DE VALOR
DIREITO AO BOM NOME
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
INTERESSE PÚBLICO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/22/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I- O preenchimento do tipo do crime de ofensa a pessoa coletiva exige a afirmação ou propalação de factos (não juízos de valor), inverídicos (inveracidade que, constituindo elemento do tipo, cabe ao acusador demonstrar), que sejam idóneos a ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança que se mostrem devidos a organismo ou serviço que exerçam autoridade pública, pessoa coletiva, instituição ou corporação, e que o agente não tenha fundamento para, em boa fé, reputar inverídicos esses factos.
II- No conteúdo de uma entrevista a órgão de comunicação social, além do potencial dano a pessoa coletiva ou instituição visada, está também em causa o exercício da liberdade de expressão.
III- O TEDH vem consistentemente interpretando o artigo 10º da CEDH no sentido de que a liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática e uma das condições primordiais do seu progresso e realização de cada um. Sem prejuízo do n.º 2, ela é válida não apenas para as «informações» ou «ideias» acolhidas favoravelmente ou consideradas como inofensivas ou indiferentes, mas também para as que ferem, chocam ou causam inquietação. Assim o exigem o pluralismo, a tolerância e o espírito de abertura sem os quais não há «sociedade democrática».
IV- Em face do que se dispõe no artigo 18º, nos 2 e 3, da Constituição da República, as restrições a direitos fundamentais, feitas por lei ou com base na lei, designadamente por decisão jurisdicional, devem limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos da mesma natureza ou interesses objetivos constitucionalmente garantidos. Quer isto dizer que tais restrições devem respeitar o princípio da proporcionalidade em sentido amplo, isto é, têm de ser adequadas (aptas), necessárias (exigíveis) e proporcionais (na justa medida) à proteção de outros direitos ou interesses constitucionais. Não podendo, em caso algum, diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais consagradores dos direitos atingidos.
V- Como enfatizou o TEDH, no caso Novaya Gazeta e Milashina c. Rússia, de 03.10.2017 (Queixa nº 45083/06), é dever da imprensa divulgar informação sobre todos os assuntos de interesse público (de modo consistente com as suas obrigações e responsabilidades), assistindo ao público em geral, por outro lado, o direito a ser informado sobre tais assuntos. Paralelamente, os limites da crítica aceitável serão necessariamente mais estreitos relativamente aos sujeitos privados do que no que se refere a entidades públicas ou a atuar no espaço público, das quais se espera uma maior tolerância à crítica.
VI- Tais considerações aplicam-se não apenas ao texto jornalístico tout court, como à divulgação, na imprensa, da opinião colhida junto de personalidades que desempenhem, ou tenham desempenhado, funções de relevante interesse público. O debate sobre tais matérias deve ser aberto e plural, como é apanágio de uma sociedade democrática, assente no respeito pela diversidade de opiniões.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório
No processo nº 7106/19.0T9LSB do Tribunal Central de Instrução Criminal (Juiz 9), o assistente Comité Olímpico de Portugal, pessoa coletiva nº …, com sede em …, deduziu acusação particular contra o arguido RJ, …, a quem imputa a prática de um crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva, previsto e punido pelos artigos 187º e 183º, nos 1, alínea b) e 2, ambos do Código Penal, que o Ministério Público não acompanhou.
Requerida, pelo arguido, a abertura de instrução, foi proferida, em 30.06.2022, decisão instrutória que concluiu pela não pronúncia daquele, determinando, em consequência, o arquivamento dos autos.
Inconformado, veio o assistente Comité Olímpico de Portugal interpor recurso desta decisão, formulando as seguintes conclusões:
“VII.1 - As afirmações sub judice do arguido, RJ, reproduzidas supra em II.2 e II.3, constituem facto absolutamente não contestado e assente: tais afirmações foram inequivocamente proferidas e propaladas pelo arguido e nunca por ele foram corrigidas ou desmentidas; bem pelo contrário, ele assume-as como efetivamente feitas por si e com o teor supra reproduzido.
VII.2 - Como se disse supra em II.5, II.6 e II.7, importa distinguir rigorosamente nestas afirmações do arguido dois momentos/núcleos distintos:
a) Um primeiro momento/núcleo, em que o arguido se lamenta por não ter sido reconduzido na presidência da ADoP e procura explicar isso com pressões (que atribui essencialmente ao Presidente da Comissão Executiva do Comité Olímpico de Portugal) junto do Membro do Governo responsável em Portugal pela área do Desporto; trata-se de um momento/núcleo excluído do presente processo, pois trata-se, por parte do arguido, do expressar livremente de uma opinião pessoal (ainda que com desvios face à verdade), procurando publicamente fazer inculcar justificações  para a sua não recondução na presidência da ADoP alheias ao seu próprio desempenho nesse cargo.
b) Um segundo momento/núcleo, em que o arguido afirma e propala, sem quaisquer hesitações e de modo inequívoco, não ter sido reconduzido na presidência da ADoP porque o Comité Olímpico de Portugal quer é medalhas ainda que medalhas “sujas” por doping; trata-se, este sim, do momento/núcleo com o qual o presente processo tem, exclusiva e objetivamente, a ver.
VII.3 - O Despacho Final do Inquérito só concluiu por que “a conduta denunciada é penalmente atípica” na medida em que, segundo o mesmo, as afirmações do arguido  visariam apenas certas pessoas singulares, sendo “incapazes de beliscar o núcleo essencial do direito ao bom nome do Comité Olímpico de Portugal”- visto que tal Despacho (cfr. supra III.1 a III.5) cometeu o erro de incidir sobre aquele primeiro momento/núcleo das afirmações  do arguido completamente excluído do presente processo, abstraindo-se totalmente das afirmações do arguido constituintes daquele outro segundo momento/núcleo, este “o” objeto do presente processo.
VII.4 - Porventura por ter tomado consciência dessa fragilidade do Despacho Final do Inquérito, a Decisão Instrutória de não pronúncia do arguido procurou compensar uma tal fragilidade, seja reconhecendo expressamente que as afirmações sub judice do arguido efetivamente não deixam de repercutir-se sobre o próprio Comité Olímpico de Portugal, seja apelando à liberdade de expressão do arguido (cfr. supra IV).
VII.5 - Como se detalhou (cfr. supra V), naquele segundo momento/núcleo das suas afirmações, em si mesmas consideradas e/ou na conjugação entre elas - o objeto do  presente processo -, o arguido propala publicamente, com estonteante leveza e sem  qualquer comprovação, a inequívoca imputação factual de que o Comité Olímpico de Portugal quer é medalhas ainda que medalhas “sujas” por doping, como as medalhas obtidas pelos Atletas portugueses em Minsk (quando esses Atletas, sublinhe-se, à semelhança de todos os demais que têm integrado as missões do Comité Olímpico de Portugal, não registaram qualquer caso de doping); sendo afirmações propaladas pelo arguido que visam e atingem muito ofensivamente, efetivamente, gravemente e diretamente o próprio Comité Olímpico de Portugal e que, como é óbvio, porque corroem o mais sagrado e superlativo dos seus cânones éticos, são objetivamente capazes de ofender - como efetivamente ofenderam - a credibilidade, o prestígio e a confiança  que são devidos ao Comité Olímpico de Portugal
VII.6 - O crime tipificado no artigo 187.º do Código Penal, diferentemente da difamação ou  da injúria, implica a imputação à entidade visada de factos inverídicos ofensivos e não, como na difamação ou na injúria, a mera formulação de juízos ofensivos da honra e consideração da  entidade visada; daí que o elemento subjetivo implicado se baste com a imputação livre,  consciente e voluntária à entidade visada dos factos inverídicos ofensivos, sem que exista fundamento para que o autor de tal imputação possa, em boa fé, reputar verdadeiros esses  factos, não relevando, de todo, o intuito ofensivo que esse autor possa ou não ter; até porque estamos perante um crime de perigo, no sentido de que basta que os factos inverídicos afirmados ou propalados sejam suscetíveis ou capazes de ofender a credibilidade, o prestígio  ou a confiança devidos à entidade coletiva visada, mesmo que tais credibilidade, prestígio ou confiança não sejam efetivamente atingidos, e, sublinhe-se este ponto, mesmo que órgãos  dessa entidade coletiva ou pessoas singulares na qualidade de membros dos mesmos  possam ser visadas por tais factos inverídicos afirmados ou propalados, desde que a dimensão institucional da entidade coletiva, como no presente caso, fique também posta em causa, pois a entidade coletiva atua, por definição, através dos órgãos e pessoas que a servem.
VII. 7 - Em sede de inquérito, o arguido reafirmou “tudo o que disse nas entrevistas em crise, por serem declarações factualmente comprováveis”; embora nada tenha apresentado (porque nada há a apresentar) em prol de uma tal alegada comprovação factual.
VII.8 - Ou seja, o arguido, sem quaisquer constrangimentos ou inibições, de modo totalmente livre consciente e voluntário, afirma e propala a seguinte realidade factual, sem nada demonstrar sobre a respetiva veracidade ou mesmo sobre qualquer fundamento para, na sua boa fé, reputar verdadeira tal realidade factual afirmada e  propalada: um conluio ou uma cumplicidade entre o Governo e o Comité Olímpico de   Portugal com o objetivo de que os Atletas portugueses acedam a mais medalhas ainda que por efeito de substâncias dopantes; chegando ao ponto de comparar vergonhosamente Portugal com a Rússia (referindo-se ao de todos conhecido escândalo internacional de doping) e de escancarar uma absolutamente intolerável ignomínia, através do seu testemunho (mais do que uma insinuação) de que as medalhas obtidas pelos Atletas da missão nacional do Comité Olímpico de Portugal aos Jogos Europeus de Minsk (quando esses Atletas, sublinhe-se uma vez mais, à semelhança de todos os demais que têm integrado as missões do Comité Olímpico de Portugal, não registaram qualquer caso de doping), são já “medalhas sujas”, apelidando um tal cenário, por si próprio inventado e apregoado como verídico, de “promiscuidade”, “corrupção”, “aldrabice”,  “desgraça” e “mentira”.
VII.9 - Trata-se de afirmações certamente gravíssimas e, obviamente, capazes de ofender - como efetivamente ofenderam - a credibilidade, o prestígio e a confiança devidos ao Comité Olímpico de Portugal; e são afirmações certamente gravíssimas pelo conteúdo hediondo e ignóbil da objetiva imputação factual inverídica que é feita, mas também porque vêm de quem vêm e se dirigem a quem se dirigem, o que torna inevitável e indelével a sua capacidade ou suscetibilidade de ofender a credibilidade, o prestígio e a confiança devidos ao Comité Olímpico de Portugal
VII.10 - Na verdade, o arguido proferiu as afirmações sub judice na qualidade de recente ex-presidente da ADoP, o que só por si contribuiu para fazer inculcar no público a ideia de que   sabia do que falava e, simultaneamente, a ideia da veracidade dos factos que imputava ao  Comité Olímpico de Portugal, sendo que o arguido sabia bem (e, em qualquer caso, não podia deixar de saber) que tais suas afirmações eram também dolosamente caluniosas, porque ele sempre soube tratar-se de declarações objetivamente inverídicas; vindas de uma pessoa como o arguido, perfeitamente conhecedor da realidade desportiva, nacional e internacional, da problemática do doping e da posição institucional do Comité Olímpico de Portugal e bem ciente da repercussão pública das mesmas em resultado da sua recentíssima posição funcional, tais afirmações inverídicas, por si congeminadas, proferidas e propaladas, de forma perfeitamente livre, consciente e voluntária, revelam uma elevadíssima intensidade dolosa,  seja quanto ao querer dizer o que efetivamente disse, seja quanto à ofensa que, precisamente  com o que quis dizer e efetivamente disse, objetivamente infligiu à credibilidade, ao prestígio e à confiança devidos ao Comité Olímpico de Portugal.
VII.11 - E, se não pode esquecer-se aquela particular posição funcional/institucional do arguido, que qualifica a sua responsabilidade no que falsamente afirmou e propalou, não pode igualmente esquecer-se a posição institucional do Comité Olímpico de Portugal e a missão que lhe está cometida de garante em Portugal da observância da Carta Olímpica e da boa  imagem do Olimpismo, pois é, desde 2012, a instituição encarregada, com reconhecimento  formal da sua utilidade pública, de representar em Portugal o Movimento Olímpico e de, em conformidade com a Carta Olímpica, personificar, promover, proteger e defender entre nós os valores do Olimpismo, particularmente no desporto e na educação, com particularíssimo destaque para a verdade desportiva e para o combate à corrupção dos resultados desportivos e  ao doping.
VII.12 - Em suma, dirigidas como foram ao Comité Olímpico de Portugal, as  imputações factuais inverídicas constantes das afirmações sub judice do arguido,   afirmadas livre, consciente e voluntariamente e propaladas publicamente aos sete ventos, de forma absolutamente gratuita e sem o mínimo intuito de comprovação da sua veracidade, são de uma gravidade ofensiva inaudita, pois são capazes ferir profundamente a credibilidade, o prestígio e a confiança devidos ao Comité Olímpico de Portugal, causando indelével prejuízo à imagem de uma instituição precisamente  encarregada de garantir em Portugal os valores supremos do Olimpismo, constituindo uma calúnia monstruosa, insuportável e imerecida, profundamente corrosiva do mais   sagrado e superlativo dos seus cânones éticos.
VII.13 - Por outro lado, estamos perante afirmações que, precisamente por serem factualmente inverídicas e vindas de alguém que sabe bem não as poder comprovar e  nem mesmo, em boa fé, as reputar verdadeiras, limitando-se, de forma totalmente   gratuita e pública, a lançar lama sobre o Comité Olímpico de Portugal quanto ao mais  sagrado e superlativo dos seus cânones éticos, não podem tais afirmações obter qualquer  abrigo na liberdade de expressão, por mais benevolentemente que concebamos esta.
VII.14 - Sem se pretender entrar numa dissertação doutrinário-jurisprudencial sobre a questão do diálogo entre a proteção jurídica da credibilidade, do prestígio e da confiança devidos às entidades coletivas e a proteção jurídica da liberdade de expressão, importa assinalar que a Constituição protege, em ambos os casos como direitos, liberdades e garantias pessoais e com a força jurídica prevista no seu artigo 18.º, os bens jurídicos da honra (bom nome e reputação) e da liberdade de expressão, sendo momentos constitucionais que frequentemente conflituam concretamente, reclamando ponderações prudenciais sobre a harmonização que, em cada caso, melhor permita preservar a maior amplitude de cada um deles; até porque a Constituição não aponta abstratamente para a prevalência de um desses bens sobre o outro, mas sem poder esquecer-se que o seu artigo 37.º, n.º 3, consagra que as  infrações cometidas no exercício dos direitos de expressão e de informação “ficam  submetidas aos princípios gerais de direito criminal ou do ilícito de mera ordenação social”.
VII.15 - O n.º 2 do artigo 10º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos comporta limites imanentes à liberdade de expressão; razão por que é acertada a conclusão assumida pelo Supremo Tribunal de Justiça de que o caminho argumentativo-jurídico consistente não está “em partir da tutela do direito à honra e considerar os casos de eventuais ressalvas, mas em partir do direito à livre expressão e averiguar se têm lugar algumas das exceções deste n.º 2”.
VII.16 - Não pode, pois, duvidar-se, como lapidarmente afirmado pelo Supremo Tribunal  Administrativo, de que a liberdade de expressão não constitui um direito absoluto,  insuscetível de ser restringido, tal como não pode duvidar-se de que um dos limites que se impõe à liberdade de expressão é precisamente o do ilícito criminal, designadamente a difamação, a injúria ou ofensa a pessoa coletiva tipificada no artigo 187º do Código Penal: a liberdade de expressão não abrange o direito a cometer tais crimes. Por assim ser, não pode um político, ainda que em debate eleitoral televisionado, expor uma família de um bairro   problemático caracterizando-a como “bandidos”.
 VII.17 - Se a proteção criminal prevista no artigo 187.º do Código Penal se assume como um  limite imanente da liberdade de expressão, a concreta e circunstancial verificação do espaço de uma tal proteção implica o diálogo entre a proteção jurídica da ofensa aí em causa e a proteção jurídica da liberdade de expressão, numa perspetiva de conflito/colisão/confronto entre dois momentos/bens/valores constitucionalmente consagrados, qualquer deles não absoluto e entre si sem prevalência aprioristicamente determinada; valendo, pois, uma ponderação de concreta hierarquização (na lógica do artigo 335.º, n.º 1, do Código Civil), assim expressa, de forma feliz, pelo Supremo Tribunal de Justiça: “para se obter uma solução  justa para a colisão de direitos haverá que proceder a uma ponderação de bens, seguindo-se  uma metodologia de balanceamento adaptada à especificidade do caso”, razão por que “a  resolução do conflito não poderá deixar de assumir uma natureza concreta, esgotando-se em cada caso que resolve
VII.18 - Reclama-se, pois, uma compatibilização concreta e circunstancial, através da busca de uma concordância prática entre os direitos em confronto, de modo a salvaguardar o  conteúdo essencial de cada um (sendo que na situação sub judice não estamos verdadeiramente perante a liberdade de imprensa/de informação, mas imediatamente perante uma genérica liberdade de expressão); mas a busca dessa concordância prática, não é - não pode ser - um processo metodológico-jurídico desprovido de critério e, assim, tautológico ou indiferente; pelo contrário, para que possa ser criteriosa e não indiferente, a concordância  prática a obter face ao circunstancialismo concreto em presença tem de assentar em cânones  argumentativo-jurídicos minimamente estabilizados doutrinalmente e tendo obviamente por  matriz o princípio da proporcionalidade.
 VII.19 - Ora, neste ponto, pode dizer-se que, muito na senda da reflexão de Costa Andrade, acolhida seguramente pela nossa jurisprudência, afirma-se a atipicidade (injuriosa ou  difamatória) da crítica objetiva (aquela que incide, não sobre a pessoa do visado, mas sobre a  sua ação, a sua prestação, a sua realização, a sua obra ou, mesmo, acrescentamos nós, as suas posições publicamente manifestadas); mas afirma-se uma tal atipicidade desde que a crítica se suporte numa qualquer base factual que a legitime, pois, como sublinhado pelo Supremo Tribunal Administrativo, “a liberdade de expressão e de informação não protege (...) imputações, quando as mesmas não consubstanciam factos provados em juízo, ou objetivamente verificáveis, pois aquelas liberdades não são absolutas e têm de sofrer as  restrições necessárias à salvaguarda de outros direitos fundamentais”. Ou seja: atipicidade da crítica objetiva, sim; mas desde que adequada aos pertinentes dados de facto, “dados de facto” estes que, aliás, constituem precisamente o âmago do tipo criminal do artigo 187.º do Código Penal.
VII.20 - Conforme o Supremo Tribunal de Justiça já afirmou, não são, pois, admissíveis imputações sem qualquer relação factual com a matéria objetiva escrutinada ou em que esta serve apenas de pretexto para a ofensa, pois se isso fosse admissível converter-se-ia a crítica numa mera imputação caluniosa ou exclusivamente motivada pelo propósito de rebaixar, humilhar ou agredir a pessoa ou entidade visada.
VII.21 - E esta relevância da objetividade/factualidade é precisamente considerada no próprio tipo do artigo 187.º do Código Penal, pois que (só) não haverá ilicitude se houver  comprovação, seja da veracidade dos factos afirmados ou propalados, seja dos fundamentos para, em boa fé, poderem tais factos ser reputados verdadeiros; algo que o arguido não trouxe, de todo, ao presente processo, porque inexiste qualquer realidade que permita suportar factualmente o que ele afirmou e propalou ou, sequer, para que ele, em boa fé, o possa reputar verdadeiro.
VII.22 - Sendo que, para mais, repete-se, não pode esquecer-se que o arguido não afirmou o  que afirmou como mero comentador de café, mas antes com o múnus inerente à dimensão  institucional de recente ex-presidente da ADoP, que inevitavelmente lhe era reconhecida e que lhe impunha uma particular exigência de busca da verdade do que afirmava e propalava;  pois, como sublinhado pelo Tribunal da Relação do Porto, para que possa haver “uma crença justificada na verdade dos factos e boa-fé é necessário que a convicção do agente decorra de uma busca de provas minimamente objetiva (...) para, de acordo com as regras da experiência comum, ficar convencido da verdade (...)”
VII.23 - Resulta, aliás de forma lapidar e exemplar, que existem suficientes indícios de uma possibilidade mais do que razoável de que, em sede de julgamento, venha o arguido, RJ, a ser sancionado pelo cometimento doloso do crime previsto e punido no artigo 187.º, n.º 1, do Código Penal, verificando-se, inclusivamente, quer a  elevação da moldura penal prevista no artigo 183.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, do Código Penal,  quer o efeito previsto no artigo 189.º do Código Penal; razão pela qual se vê o assistente,  Comité Olímpico de Portugal, na obrigação institucional de recorrer da Decisão Instrutória de não pronúncia sub judice, pois está convicto, fundamentadamente, de que a mesma não atentou devidamente em todos os contornos da situação sub judice, errando por isso quando considerou conclusivamente “que em julgamento se afigura como mais provável a absolvição do arguido do que a sua condenação pela prática dos factos e crime de que vem acusado.”
À luz destes fundamentos, e daqueles que, faltando, serão certamente objeto do sábio suprimento de Vossas Excelências, Venerandos Desembargadores, deve o presente Recurso proceder, com a consequente determinação da pronúncia do arguido, RJ, pela prática do crime de ofensa a pessoa coletiva com publicidade e calúnia, à luz dos artigos 187.º , n.ºs 1 e 2, e  183.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, do Código Penal, POR ASSIM SER DE INTEIRA JUSTIÇA E POR ASSIM SE PERMITIR A REALIZAÇÃO DA JUSTIÇA.”
*
O recurso foi admitido, com subida imediata, nos autos, e efeito suspensivo.
O Ministério Público apresentou resposta, pugnando pela manutenção do decidido, formulando as seguintes conclusões:
“1. O objeto do presente recurso prende-se com a questão de saber se as afirmações proferidas pelo arguido RJ são (ou não) subsumíveis ao tipo de crime de do crime de ofensa a pessoa coletiva, p. e p. pelas disposições combinadas dos art.ºs 187.º, nºs 1 e 2, e 183.º, nº 1, alínea b), e nº2, do Código Penal.
2. Os autos foram instaurados na sequência de denúncia apresentada pelo Comité Olímpico de Portugal contra RJ, por factos que, na sua perspetiva, seriam suscetíveis de integrar o crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva agravado, p. e p. pelo art.º 187.º, nºs 1 e 2, alínea a), com referência ao art.º 183.º, nº 2, do Código Penal.
3. Os factos denunciados prendem-se com o teor das declarações proferidas pelo arguido nas entrevistas publicadas na edição do jornal Correio da Manhã a 6 de julho de 2019 e na edição do jornal Record de 20 de julho de 2019, que o assistente considera serem falsas e atentatórias da credibilidade, prestígio e confiança que lhe são devidos.
4. Findo o inquérito, o assistente Comité Olímpico de Portugal deduziu acusação particular, imputando ao arguido RJ a prática de um crime p. e p. pelos art.ºs 187.º, nºs 1 e 2, e 183.º, nº 1, alínea b), e nº2, do Código Penal.
5. O Ministério Público não acompanhou a acusação particular, por ter entendido que dos autos não resultavam indícios suficientes da prática do ilícito denunciado.
6. O arguido, por discordar da acusação que contra si foi deduzida, requereu a abertura de instrução, negando a prática do crime de que era acusado e pugnando pela prolação de despacho de não pronúncia.
7. Realizado debate instrutório foi proferida decisão de não pronuncia, atendendo á inexistência de elementos probatórios suscetíveis de integrar a tipicidade objetiva e subjetiva do crime imputado ao arguido.
8. Com efeito, analisando o teor das declarações do arguido e, em especial, as que se encontram transcritas na decisão instrutória, dificilmente se aceita que as mesmas tenham a virtualidade de colocar em crise o bom nome, prestígio e confiança devidos ao assistente Comité Olímpico de Portugal.
Nesta conformidade, a decisão da Mma. Juíza a quo não merece qualquer reparo, sendo que procedeu a uma correta Interpretação e aplicação das normas atenientes ao caso ora em apreço.
Termos em que, negando provimento ao recurso e mantendo a decisão recorrida farão V.Exas. JUSTIÇA”
Também o arguido RJ apresentou resposta, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões:
“1. A decisão proferida em fase de instrução deve ser mantida, porquanto é cumpridora dos ditames legais, está fundamentada, não contendo qualquer invalidade;
2. Os argumentos invocados pelo Assistente para motivar a revogação da decisão não são procedentes;
3. Desde logo, o Assistente não impugna nenhum dos factos provados ou não provados na decisão instrutória, limitando-se a apresentar construções jurídicas, as quais, como se disse, não procedem;
4. Não impugnando, conformou-se, devendo dai serem retiradas as devidas consequências;
5. As afirmações do arguido não são aptas a preencher o tipo ilícito invocado pelo Assistente;
6. O direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere susceptibilidades do visado;
7. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros;
8. E tal não aconteceu;
9. Não estamos perante a verificação de um facto ilícito, típico, culposo e punível;
10. E não estamos porque os tipos penais não podem ser lidos literalmente, merecendo, ao invés, uma interpretação restritiva, conjugada com vários preceitos constitucionais;
11. E não estamos porque vigora no ordenamento jurídico português o princípio da subsidiariedade, o que faz o direito penal uma ultima ratio de tutela, precisamente pela gravidade que comporta.
12.Pelo que deve manter-se a decisão instrutória de não pronúncia.
Nestes termos e nos mais de Direito, o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa mantendo a decisão proferida fará a costumada JUSTIÇA”

Uma vez remetido a este Tribunal, a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta deu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Cumprido o artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta.
Proferido despacho liminar e colhidos os “vistos”, teve lugar a conferência.
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II – Objeto do recurso
De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do Supremo Tribunal de Justiça de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência dos vícios indicados no nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal.
No caso, a questão trazida à apreciação deste Tribunal prende-se com a apreciação da idoneidade dos factos descritos na acusação particular para preencherem o crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva, previsto e punido pelos artigos 187º e 183º, nos 1, alínea b) e 2, ambos do Código Penal – e se, em face dessa apreciação, deve o arguido ser pronunciado pela prática de tal crime.
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III – Decisão recorrida
É do seguinte teor a decisão recorrida (transcrevemos):
“Decisão Instrutória
Nos presentes autos o Ministério Público procedeu a inquérito, tendo no fim deste pelo Assistente Comité Olímpico de Portugal, sido deduzida acusação particular na qual imputa ao arguido RJ da prática de um crime p. e p. pelo art.ºs 187º, nºs 1 e 2 e 183º, nº 1 al. b) e nº 2 do Código Penal.
O Ministério Público não acompanhou a acusação particular nos autos deduzida conforme resulta de fls. 300 dos autos.
O arguido RJ por discordar da acusação que contra si foi deduzida veio requerer a abertura da instrução conforme resulta de fls. 317 e seguintes dos autos, negando a prática do crime de que está acusado e pedindo que seja proferido despacho de não pronuncia.
Procedeu-se à realização do debate instrutório com observância das formalidades legais.
cumpre decidir:
O Tribunal é competente.
O Ministério Público tem legitimidade para exercer a ação penal.
Não existem nulidades, exceções ou questões prévias de que cumpra conhecer e que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
Conforme resulta do art.º 286º do CPP a instrução tem como fim a comprovação judicial de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito com vista a submeter ou não os factos a julgamento.
No caso dos autos a instrução visa a comprovação judicial de acusar o arguido, ou seja, pretende-se que se afira da existência ou não de indícios dos quais resulte a possibilidade razoável de em julgamento vir a ser aplicada ao arguido uma pena, pela prática dos factos e crime que lhe são imputados na acusação particular deduzida pelo Assistente nos autos.
Dispõe o art.º 308º nº 1 do CPP que se até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o Juiz, por despacho pronuncia o arguido pelos respetivos factos, caso contrário, profere despacho de não-pronúncia.
Resulta por outro lado do art.º 283º nº 2 do CPP, para onde remete o art.º 308º nº 2 do mesmo diploma legal, que os indícios são suficientes sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento uma pena ou uma medida de segurança.
O despacho de não pronúncia deverá ser proferido sempre que, perante o material probatório constante dos autos, não se indicie que o arguido, se vier a ser julgado, venha provavelmente a ser condenado, sendo tal probabilidade um pressuposto indispensável da submissão do feito a julgamento - v. G. Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 1994, 205-.
Para ser proferido despacho de pronúncia embora não seja preciso uma certeza da infração é necessário que os factos indiciários sejam suficientes e bastantes, para que logicamente relacionados e conjugados, formem um todo persuasivo da culpa dos arguidos.
O arguido vem acusado da prática de um crime p. e p. pelo artº 187º, nºs 1 e 2 e 183º, nº 1 al. b) e nº 2 do Código Penal
Pratica o crime p. e. p. pelo art.º 187º do Cód. Penal, que tem como epigrafe, “ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva” quem sem ter fundamento para, em boa fé, os reputar verdadeiros afirmar ou propalar factos inverídicos, capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança que sejam devidos a organismos ou serviço que exerçam autoridade pública, pessoa coletiva, instituição ou corporação, é punido…”.
O bem jurídico protegido com esta norma legal é o bom nome da pessoa coletiva, consubstanciado no prestígio, credibilidade e confiança dessa entidade. Como refere o Ministério Público no despacho nos autos proferido a fls. 269 e seguintes, são três os elementos objetivos do tipo, a saber:
“a) a afirmação ou propalação de factos inverídicos;
b) que esses mesmos factos sejam suscetíveis de ofender a credibilidade, prestígio ou a confiança da entidade vítima;
c) que o agente ativo não tenha fundamento para, de boa fé, reputar tais factos como verdadeiros.”
Importa assim aferir se nos autos se indicia a prática de factos pelo arguido suscetíveis de integrar o preenchimento da tipicidade objetiva e subjetiva do crime que o Assistente lhe imputa na acusação particular deduzida nos autos.
Em causa nos autos estão duas entrevistas concedidas pelo arguido RJ, “na sua qualidade de (então) não reconduzido presidente da Autoridade Antidopagem de Portugal,” ao Jornal Correio da Manhã, publicadas na edição do dia 6/7/2019 e ao Jornal Record, publicada no dia 20/7/2019.
No que respeita à entrevista concedida ao jornal Correio da Manhã, como refere o Ministério Público resulta:
Pergunta: “Disse nas suas intervenções públicas que o COP meteu na ADoP além da sua confiança?
Resposta de RJ: “Isso é inegável. Aliás, o C… veio dizer após esta nomeação que se o Governo não me reconduziu é porque eu teria feito um mau trabalho. Esqueceu-se de dizer que o controlo antidoping nunca tinha disso tão eficaz em Portugal. Basta analisar as estatísticas. Pode ser que assim o C… consiga ganhar as medalhas que não conseguiu nos últimos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. Sabe que esta gente quer é medalhas, não interessa se são sujas ou limpas. Quando o Governo tem alguém na Secretaria de Estado do Desporto que permite esta promiscuidade, parece revelar a mesma vontade.
Pergunta: “Estamos perante corrupção?
Resposta de RJ: “Disseram como é possível o Governo dizer que combate a corrupção e depois permitir esta promiscuidade. Afinal é tudo aldrabice. Sabe o que digo aos portugueses? A nossa sorte é o facto de os atletas portugueses serem na maioria honestos e quererem ganhar de forma limpa. Se assim não fosse, isto era uma desgraça. Mas não tenho dúvidas de que vão existir mais medalhas, tal como já está a acontecer.
Quanto à entrevista dada ao jornal Record como refere o Ministério Público resulta:
Pergunta: “Em entrevista anterior referiu que o Comité Olímpico Português (COP) tentaria meter alguém no seu lugar, alguém que eventualmente pudesse controlar... Curiosamente, foi nomeado alguém que veio da área do COP.
Resposta de RJ: “Pois... É verdade. Esta promiscuidade entre o secretário de Estado, o COP e esta ADoP faz-me recordar o escândalo de doping na Rússia, que levou à proibição dos atletas russos de competirem internacionalmente. Isto não é só o que é, mas também o que parece. Esta promiscuidade é muito grave para o desporto português. Por isso é que toda a gente diz que o desporto português é só corrupção.
Pergunta: “Mas existem, na sua ótica e com base na experiência que já teve, indícios de corrupção?
Resposta de RJ: “E só ver esta promiscuidade. A resposta é simples. Deixe-me que lhe diga que já fui abordado por anónimos que me disseram: «Como é possível o Governo dizer que combate a corrupção e depois permite esta promiscuidade. Afinal, é tudo uma mentira». Sabe o que digo aos portugueses? Felizmente, 90 por cento dos nossos atletas são honestos. Mas já estamos a ganhar mais medalhas, veja-se o caso de Minsk. Como alvitrei publicamente, tinha razão.
Pergunta: “Reafirma, então, que o Governo não quer isenção no doping?
Resposta de RJ: “(...) É como o presidente da ADoP. Trata-se de uma autoridade fiscalizadora e a promiscuidade atual facilita a corrupção e a utilização do doping. Mas o secretário de Estado, se pensasse assim, não teria nomeado alguém da COP e ter-me-ia reconduzido. E, infelizmente, o ónus cai em cima do novo presidente da ADoP, que eu acho que pode não ter culpa nenhuma desta situação. Com quase 70 anos de idade, só quis servir os seus amigos C…, secretário de Estado e ministro da Educação.
Pergunta: “Mas, afinal, no meio de tantas críticas, porque é que acha que não foi reconduzido?
Resposta de RJ: “Porque o secretário de Estado acatou a recomendação do JC (presidente do Comité Olímpico de Portugal e dos amigos, pelo facto de me acharem 'persona non grata', em função da eficácia demonstrada no combate ao doping, que pode ser confirmada pela análise dos números desde que presidi à ADoP. É só verem as estatísticas. Competência e sucesso no combate ao doping são coisas que algumas pessoas não querem. E o que o Governo quer são medalhas como as de Minsk e não a 'chatice' do combate ao doping. E hoje não, porque ainda tenho muito para contar e isto deve ser bem digerido, mas na altura certa direito porque é que o COP tem a Secretaria de Estado do Desporto na mão...
Nos autos resulta indiciado que o arguido deu as entrevistas supramencionadas fazendo parte daquelas os conteúdos acima transcritos.
Considerando o conteúdo objetivo das entrevistas em causa entende-se que o mesmo não é suscetível de atingir e ofender a credibilidade, prestígio ou a confiança devida ao Assistente.
O arguido dá a sua opinião sobre uma situação no exercício do seu direito de liberdade de expressão.
Nas entrevistas em causa o mesmo não se refere ao Assistente Comité Olímpico de Portugal, embora se refira a pessoas e entidades com o mesmo relacionadas.
Embora o conteúdo das entrevistas dadas e o referido pelo arguido possa ser desconfortável e não ser agradável para o Assistente o certo é que o mesmo não é de molde a atingir a sua credibilidade, prestígio ou a colocar em causa a confiança que no Assistente se deve depositar.
Face ao exposto e após análise crítica de todos os elementos que dos autos constam, considero que não se indicia a prática de factos pelo arguido que sejam suscetíveis pelas circunstâncias referidas de integrar a tipicidade objetiva e subjetiva do crime que o Assistente lhe imputa no requerimento de abertura da instrução.
Tendo em conta o referido objetivamente pelo arguido, o contexto em que o fez, bem como os preceitos legais referidos e fazendo um juízo de prognose considero que em julgamento se afigura como mais provável a absolvição do arguido do que a sua condenação pela pratica dos factos e crime de que vem acusado.
Face ao exposto não será o arguido pronunciado pela prática dos factos e ilícito de que vem acusado - cf. Art.º 283º nº 2 ex vi artº 308º nº2 do Cód. Proc. Penal.
DECISÃO
Tendo em conta o exposto as considerações expendidas e disposições legais citadas não pronuncio o arguido RJ, pela prática de um crime p. e p. pelo art.º 187º, nºs 1 e 2 e 183º, nº 1 al. b) e nº 2 do Código Penal, que lhe é imputado pelo Assistente na acusação particular deduzida, pelo que e consequentemente determino o arquivamento dos autos.”
IV – Da acusação particular deduzida pelo assistente
Dada a sua relevância para a decisão a proferir, em face da definição do objeto do processo, recuperamos os excertos da acusação particular suscetíveis de traduzir a incriminação proposta pelo assistente:
“Artigo 3.º
(…) RJ, na sua qualidade de (então) recentemente não reconduzido presidente da Autoridade Antidopagem de Portugal (ADoP) [deu duas entrevistas]:
a) A primeira entrevista foi dada ao Jornal Correio da Manhã e publicada na sua edição de 6 de julho de 2019, a páginas 2 e 3, com chamada à primeira página, (…);
b) A segunda entrevista foi dada ao Jornal Record e publicada na sua edição de 20 de julho de 2019, a páginas 20 a 23, também com chamada à primeira página, (…).
Artigo 4.º
Na referida entrevista ao Jornal Correio da Manhã, na página 3, numa caixa autónoma com a fotografia de meio corpo de RJ e sob o título “PODE SER QUE C… GANHE AS MEDALHAS QUE FALTARAM NO RIO”, surgem as seguintes perguntas do jornalista e as seguintes respetivas respostas de RJ:
Pergunta: Disse numa das suas intervenções públicas que o COP meteu na ADoP alguém da sua confiança?
Resposta de RJ: Isso é inegável. Aliás, o C… veio dizer após esta nomeação que se o Governo não me reconduziu é porque eu teria feito um mau trabalho. Esqueceu-se de dizer que o controlo antidoping nunca tinha sido tão eficaz em Portugal. Basta analisar as estatísticas. Pode ser que assim o C… consiga ganhar as medalhas que não conseguiu nos últimos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. Sabe que esta gente quer é medalhas, não interessa se são sujas ou limpas. Quando o Governo tem alguém na Secretaria de Estado do Desporto que permite esta promiscuidade, parece revelar a mesma vontade. 
Pergunta: Estamos perante corrupção?
Resposta de RJ: Disseram como é possível o Governo dizer que combate a corrupção e depois permitir esta promiscuidade. Afinal é tudo aldrabice. Sabe o que digo aos portugueses? A nossa sorte é o facto de os atletas portugueses serem na maioria honestos e quererem ganhar de forma limpa. Se assim não fosse, isto era a desgraça. Mas não tenho dúvidas de que vão existir mais medalhas, tal como já está a acontecer.
Naquela outra entrevista ao Jornal Record, na página 20, surgem as seguintes perguntas do jornalista e as seguintes respetivas respostas de RJ:
Pergunta: Em entrevista anterior referiu que o Comité Olímpico Português (COP) tentaria meter alguém no seu lugar, alguém que eventualmente pudesse controlar. Curiosamente, foi nomeado alguém que veio da área do COP.
Resposta de RJ: Pois.... É verdade. Esta promiscuidade entre o secretário de Estado, o COP e esta ADoP faz-me recordar o escândalo de doping na Rússia, que levou à proibição dos atletas russos de competirem internacionalmente. Isto não é só o que é, mas também o que parece. Esta promiscuidade é muito grave para o desporto português. Por isso é que toda a gente diz que o desporto português é só corrupção.
Pergunta: Mas existem, na sua ótica e com base na experiência que já teve, indícios de corrupção?
Resposta de RJ: É só ver esta promiscuidade. A resposta é simples. Deixe-me que lhe diga que já fui abordado por anónimos que me disseram: “Como é possível o Governo dizer que combate a corrupção e depois permite esta promiscuidade. Afinal, é tudo uma mentira.” Sabe o que digo aos portugueses? Felizmente, 90 por cento dos nossos atletas são honestos. Mas já estamos a ganhar mais medalhas, veja-se o caso de Minsk. Como alvitrei publicamente, tinha razão.
Na mesma entrevista ao Jornal Record, agora na página 21, surge a seguinte pergunta do jornalista e a seguinte respetiva resposta de RJ:
Pergunta: Reafirma, então, que o Governo não quer isenção no doping?
Resposta de RJ: (...) É como o presidente da ADoP. Trata-se de uma autoridade fiscalizadora e a promiscuidade atual facilita a corrupção e a utilização do doping. Mas o secretário de Estado, se pensasse assim, não teria nomeado alguém do COP e ter-me-ia reconduzido. E, infelizmente, o ónus cai em cima do novo presidente da ADoP, que eu acho que pode não ter culpa nenhuma desta situação. Com quase 70 anos de idade, só quis servir os seus amigos C…, secretário de Estado e ministro da Educação.
Por fim, ainda na mesma entrevista ao Jornal Record, agora na página 22, surge a seguinte pergunta do jornalista e a seguinte respetiva resposta de RJ:
Pergunta: Mas, afinal, no meio de tantas críticas, por que é que acha que não foi reconduzido?
Resposta de RJ: Porque o secretário de Estado acatou a recomendação do JC (presidente do Comité Olímpico de Portugal) e dos amigos, pelo facto de me acharem ‘persona non grata’, em função da eficácia demonstrada no combate ao doping, que pode ser confirmada pela análise dos números desde que presidi à ADoP. É só verem as estatísticas. Competência e sucesso no combate ao doping são coisas que algumas pessoas não querem. E o que o Governo quer são medalhas como as de Minsk e não a ‘chatice’ do combate ao doping. E hoje não, tem a Secretaria de Estado do Desporto na mão...
Artigo 5.º
Todas estas declarações foram inequivocamente proferidas por RJ e nunca por ele foram corrigidas ou desmentidas (…).
[…]
Artigo 8.º
É certo - e isso mesmo foi público - que o COP teve muitas críticas à forma como RJ geriu os destinos da ADoP e é também certo que tal visão crítica do COP foi, por diversas vezes, comunicada ao Senhor Secretário de Estado da Juventude e do Desporto; mas já não pode, de todo, dizer-se que é certo que essa visão crítica do COP tenha constituído a causa para que RJ não tenha sido reconduzido, num novo mandato, na presidência da ADoP, visto que uma tal decisão é, como bem se sabe e não poderia deixar de ser, exclusivamente da livre ponderação c opção do Governo.
Artigo 9.º
O ponto é (como se disse na Queixa do COP) que pouco importa ao COP o que RJ “afirma sobre o nome que o substituiu na presidência da ADoP ou sobre as causas de tal substituição e o modo como a mesma se processou”; trata-se, da parte de RJ, do publicitar de uma opinião pessoal (ainda que com desvios face à verdade), procurando publicamente fazer inculcar justificações para a sua não recondução na presidência da ADoP alheias ao seu próprio desempenho nesse cargo.
[…]
Artigo 13.º
Na verdade, RJ pode emitir as opiniões que entender sobre a sua não recondução na presidência da ADoP e sobre o que entende por pressões nesse sentido; o que RJ não pode, e não pode de todo, é propalar publicamente, com estonteante leveza e sem qualquer fundamento factual, que o que o COP quer é medalhas ainda que medalhas “sujas” por doping.
E, em substância, isto é efetivamente dito por RJ nas entrevistas sub judice.
Artigo 14.º
(…)
Não se ignora que surge aqui uma referência a “C…”; mas a resposta surge no seguimento de uma pergunta sobre o COP e logo depois passa a referir-se “esta gente”, tornando objetivamente evidente uma imputação de caráter genérico ao COP, até porque o “C…” em causa é, também objetivamente, o Presidente da Comissão Executiva do COP, sendo a referência a “C…” uma referência imediata e objetivamente imputável ao COP, enquanto tal, por qualquer destinatário mediamente informado e atento.
(…)
Ao dizer isto, RJ está objetivamente a dizer que há “promiscuidade” entre o COP e o Governo tornando numa “aldrabice” o combate à “corrupção” desportiva relacionada com o doping. Ao ponto de a “nossa sorte” nesta matéria - sublinha - só poder contar com a maioria dos atletas que “quererem ganhar de forma limpa”, pois se assim não fosse - ou seja, se contássemos só com o COP (e com o Governo e a tal alegada promiscuidade entre ambos) - “isto era uma desgraça”. E prognostica até - certamente por causa de tal “desgraça” e num segundo sublinhado que faz - não ter dúvidas “de que vão existir mais medalhas, tal como já está a acontecer”, intuindo-se imediatamente que a “medalhas sujas” se refere.
(…)
Nada podia ser mais claro com estas afirmações: para RJ, que é quem as profere e propala, existe objetivamente/factualmente uma promiscuidade entre o COP (sublinhe-se, “o COP”), o Secretário de Estado da Juventude e do Desporto e a ADoP que lhe faz “recordar o escândalo de doping na Rússia, que levou à proibição dos atletas russos de competirem internacionalmente”, numa referência direta ao escândalo sobejamente conhecido do doping promovido junto dos atletas pelas entidades oficiais russas. E RJ faz, adicionalmente, questão em sublinhar que isto é “o que parece” e é “o que é”; logo associando a isto “que parece” e “que é” a “corrupção” de que todos falam.
(…)
Ou seja, à luz da pergunta feita - que pretendeu confirmar, uma vez mais, se podia mesmo falar-se de falta de “isenção no doping” -, RJ é imediato a assumir tal confirmação, bastando-se para tal com a “promiscuidade” já antes por si propalada: a “promiscuidade entre o secretário de Estado, o COP e esta ADoP”.
(…)
Seja-se muito claro, à luz da pergunta feita, que pretendeu confirmar, pela terceira vez, o teor das afirmações de RJ, este não hesitou minimamente em - para além de lançar óbvia ameaça ao COP, a concretizar por si no futuro -, reincidindo na associação perversa/“promiscuidade” entre o Governo/Secretaria de Estado do Desporto e o COP, deixar escrito na pedra e de forma muito nítida aquela sua afirmação de que o que tais entidades buscam “são medalhas como as de Minsk” (entenda-se as “medalhas sujas”) “e não a ‘chatice’ do combate ao doping”.
Artigo 15.º
(…) com estas declarações/afirmações, em si mesmas consideradas e/ou na conjugação entre elas, o Arguido RJ propala publicamente, com estonteante leveza e sem qualquer fundamento factual, a seguinte inequívoca ideia:
- Que o que o COP quer é medalhas ainda que medalhas “sujas” por doping, como as medalhas obtidas pelos atletas portugueses em Minsk.
[…]
Artigo 17.º
RJ, com tais dissecadas declarações, congemina, afirma e propala um conluio ou uma cumplicidade entre o Governo e o COP com o objetivo (…) de que os atletas portugueses acedam a mais medalhas ainda que por efeito de substâncias dopantes; chegando ao ponto de comparar vergonhosamente Portugal com a Rússia (referindo-se ao de todos conhecido escândalo internacional de doping) e de escancarar uma absolutamente intolerável ignomínia, através do seu testemunho (mais do que uma insinuação) de que as medalhas obtidas pelos atletas da missão nacional do COP aos Jogos Europeus de Minsk, de junho de 2019, são já “medalhas sujas”, apelidando um tal cenário, por si próprio inventado e apregoado como verídico, de “promiscuidade”, “corrupção”, “aldrabice”, “desgraça” e “mentira”.
Artigo 18.º
RJ fá-lo sem quaisquer constrangimentos ou inibições; fá-lo de modo totalmente livre; fá-lo de modo totalmente consciente; fá-lo de modo totalmente voluntário.
[…]
Artigo 20.º
O COP não pode, e não pode de todo, admitir a ostensiva ofensa - capaz de o ferir determinantemente, profundamente e gravemente - que lhe é gratuitamente desferida por RJ, ao afirmar aos sete ventos, sem rodeios e sem qualquer base factual, que o COP é promíscuo e corrupto por admitir e até promover a obtenção de resultados desportivos baseados, se necessário, na adição de substâncias dopantes por parte dos atletas que representam Portugal.
Artigo 21.º
São declarações/afirmações falsas, hediondas e ignóbeis, gravemente prejudiciais para o COP, na sua honra, consideração e reputação, que ofendem, notoriamente, a credibilidade, o prestígio e a confiança devidos ao COP, causando indelével corrosão na imagem de uma instituição encarregada de representar em Portugal os valores do Olimpismo, encarnando-os, promovendo-os e defendendo-os.
[…]
Artigo 23.º
Mais ainda, RJ sabe (e, em qualquer caso, não podia deixar de saber) que tais suas declarações são também dolosamente caluniosas, porque ele sempre soube tratar-se de declarações objetivamente inverídicas, mesmo falsas:
- Já que era precisamente ele o responsável, enquanto presidente da ADoP, pelo controlo antidoping em Portugal;
- E já que, como ele não podia deixar uma vez mais de saber, os atletas medalhados que representaram Portugal na missão do COP aos Jogos Europeus de Minsk, de junho de 2019, foram sujeitos aos vários controlos obrigatórios antidoping, de acordo com as regras pré-estabelecidas e aplicadas transversalmente, sem a mínima possibilidade de intervenção ou influência do COP.
Artigo 24.º
Resulta óbvio que RJ sabe muito bem não ter o mínimo fundamento para, em boa fé, reputar como verdadeiros os factos relativos ao COP que propala publicamente nas declarações/afirmações subjudice.
Artigo 25.º
Mas mais: vindas de uma pessoa como RJ, recente ex- presidente da ADoP, perfeitamente conhecedor da realidade desportiva, nacional e internacional, da problemática do doping e da posição institucional do COP e bem ciente da repercussão pública das mesmas em resultado da sua recentíssima posição funcional, tais declarações/afirmações, por si congeminadas, proferidas e propaladas de forma perfeitamente livre, consciente e voluntária, revelam uma elevadíssima intensidade dolosa, seja quanto ao querer dizer o que efetivamente disse, seja quanto à ofensa que, precisamente com o que quis dizer e efetivamente disse, objetivamente inflige ao COP quanto (não é demais voltar a sublinhá-lo) ao mais sagrado e superlativo dos seus cânones éticos.
Artigo 26.º
E, se não pode esquecer-se aquela particular posição funcional/institucional de RJ, que qualifica a sua responsabilidade no que afirmou, não pode igualmente esquecer-se a posição institucional do COP e a missão que lhe está cometida.
Artigo 27.º
O COP é a instituição encarregada de representar em Portugal os valores do Olimpismo, encarnando-os, promovendo-os e defendendo-os, com particularíssimo destaque para o valor da verdade desportiva e do combate à corrupção dos resultados desportivos e ao doping; pelo que, dirigidas ao COP, as afirmações, absolutamente gratuitas e sem base factual, de RJ são de uma gravidade ofensiva inaudita.
Artigo 28.º
Tendo sido afirmadas livre, consciente e voluntariamente, e tendo sido propaladas publicamente, por quem foram e como foram, são afirmações certamente capazes, com particularíssima força e carga ofensiva, de macular gravemente a honra, a consideração e a reputação do COP, e de ferir profundamente a credibilidade, o prestígio e a confiança que lhe são devidos, causando assim indelével prejuízo à imagem de uma instituição precisamente encarregada de garantir em Portugal os valores sagrados e superlativos do Olimpismo.
[…]
Artigo 33.º
Ora, com base em todos os fundamentos que vêm de apresentar-se na presente Acusação Particular, resulta - e resulta, aliás, de forma lapidar e exemplar - que o Arguido RJ cometeu dolosamente o crime previsto e punido no artigo 187.º, n.º 1, do Código Penal, verificando-se. inclusivamente:
a) Quer a elevação da moldura penal prevista no artigo 183.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, do Código Penal;
b) Quer o efeito, que desde já se requer seja ordenado, previsto no artigo 189.º do Código Penal.
[…]”
*
V – FUNDAMENTAÇÃO
Como acima se referiu, o presente recurso tem como único objeto a apreciação da decisão de não pronúncia proferida pelo Tribunal a quo, face à acusação particular dirigida pelo assistente contra o arguido.
Prevê o artigo 308º, nº 1 do Código de Processo Penal que “se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respetivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”.
O artigo 283º, nº 2 do mesmo diploma esclarece que se consideram suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.
Assim, está em causa a apreciação de todos os elementos de prova (indiciária) produzidos no inquérito e na instrução e a respetiva integração e enquadramento jurídico, em ordem a aferir da sua suficiência ou não para fundamentar a sujeição do arguido a julgamento pelo crime que o assistente lhe imputa.
E nessa aferição o tribunal aprecia a prova segundo as regras da experiência e a sua livre convicção (artigo 127º do Código de Processo Penal).
De acordo com Figueiredo Dias[1], «os indícios só serão suficientes, e a prova bastante, quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado ou quando esta seja mais provável do que a absolvição.» E adianta: «tem, pois, razão Castanheira Neves quando ensina que na suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final, só que a instrução preparatória (e até a contraditória) não mobiliza os mesmos elementos probatórios que estarão ao dispor do juiz na fase do julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação».
Concretizando, o conceito de indícios suficientes “liga-se o referente retrospectivo da prova indiciária coligida ao referente prospectivo da condenação, no ponto de convergência da “possibilidade razoável” desta, por força daqueles indícios e não de outros”[2].
A instrução, sendo jurisdicionalizada no sentido orgânico, uma vez que é da competência de um juiz, é também materialmente jurisdicional. Nas palavras de Pedro Soares de Albergaria[3], “com ela não se visa o escrutínio de toda a atuação do MP ao longo do inquérito, mas apenas da decisão que o magistrado respetivo (ou o assistente, no caso de acusação particular) prolatar no final dele em ordem a submeter (acusação) ou não (arquivamento) o feito a juízo. (…) Em todo o caso, a sindicância da atuação do MP só é levada a efeito de modo mediato, indireto, na medida em que se projete na decisão (de acusação – do MP ou do assistente; ou de arquivamento – do MP) que puser termo ao inquérito: esta, a decisão, é que é o objeto imediato de apreciação e só dentro destes limites se mostra legítimo o controlo respetivo, em homenagem à autonomia constitucionalmente reconhecida à magistratura do MP (art. 219.º/2 CRP) e à estrutura acusatória do processo penal pátrio (art.º 32.º/5 CRP).”[4]
Na perspetiva das garantias de defesa, a abertura da instrução corresponde, assim, ao exercício de uma faculdade, tendente a obter uma averiguação jurisdicional sobre a existência de indícios suficientes para promover o julgamento (indícios de que resulte uma possibilidade razoável de ao arguido ser aplicada pena ou medida de segurança), que fundamentam o despacho de acusação, nos termos do artigo 283º, nos 1 e 2, do Código de Processo Penal).
A instrução configura-se, pois, como uma fase processual facultativa e tematicamente vinculada, sendo que, quando requerida pelo arguido, tem necessariamente como objeto a acusação contra o mesmo deduzida.
No caso, como se disse, o assistente imputou ao arguido a prática de um crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva, previsto e punido pelo artigo 187º do Código Penal, com as agravantes previstas no artigo 183º, nº 1, alíneas a) e b) e nº 2 do mesmo diploma legal (publicidade e calúnia, sendo os factos cometidos através da comunicação social). E fez assentar factualmente essa sua imputação no teor das duas entrevistas concedidas pelo arguido em julho de 2019, aos jornais Correio da Manhã e Record, cujo teor se mostra reproduzido nos autos.
Não se discute nos autos – e não é refutado pelo arguido – que tenha dado as mencionadas entrevistas, nem que as respostas que então deu não correspondam ao que foi publicado naqueles jornais.
A questão controversa é, pois, a de saber se aquilo que foi pelo arguido afirmado nas mencionadas entrevistas – e que veio a ser publicado nos dois jornais referidos – é bastante para que se considere preenchido o crime que lhe foi imputado, em termos de se concluir que, se vier a ser submetido a julgamento pela prática de tais factos, é altamente provável que venha a ser condenado.
Dispõe o artigo 187º do Código Penal, na redação dada pelo Decreto-Lei nº 59/2007, de 04 de setembro, que comete o crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva, “1 -Quem, sem ter fundamento para, em boa fé, os reputar verdadeiros, afirmar ou propalar factos inverídicos, capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança que sejam devidos a organismo ou serviço que exerçam autoridade pública, pessoa coletiva, instituição ou corporação (…).”
São, por isso, elementos do tipo objetivo de ilícito: a) a afirmação ou propalação de factos inverídicos; b) que estes sejam suscetíveis de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança da pessoa coletiva, corporação, organismo ou serviço; c) não tendo o agente fundamento para, em boa fé, reputar tais factos de verdadeiros.
 Como se apontou, entre outros, no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12.05.2010[5], “Ao invés do que sucede nos crimes de difamação e de injúria – em que o tipo legal abrange não só a imputação de factos, mas também a formulação de juízos ofensivos da honra ou consideração – o crime de ofensa a pessoa colectiva, organismo ou serviço, apenas contempla a afirmação ou propalação de factos inverídicos.
Conforme elucida Faria Costa “Utilizando uma linguagem analítica poder-se-á dizer que a noção de facto se traduz naquilo que é ou acontece, na medida em que se considera como um dado real da experiência. Assume-se, por conseguinte, como um juízo de afirmação sobre a realidade exterior, como um juízo de existência. (…) Um facto é, pois, um elemento da realidade, traduzível na alteração dessa mesma realidade, cuja existência é incontestável, que tem um tempo e um espaço precisos, distinguindo-se, neste sentido, dos acontecimentos, que são também factos, mas que se expressam por conjuntos de acções (com unidade) que se protelam no tempo. De forma simples: um facto é um juízo de existência ou de realidade.[6]”.
Pelo contrário, o juízo “deve ser percebido, neste contexto, não como a apreciação relativa à existência de uma ideia ou de uma coisa, mas ao seu valor. O que é o mesmo que dizer: deve ser entendido relativamente ao grau de consecução dessa ideia, coisa ou facto, se valorado em função do fim prosseguido (a verdade, a beleza, a moral, a justiça, etc.).[7]
Nos crimes de difamação e injúria o legislador optou por equiparar a imputação desonrosa de um facto e a formulação de um juízo desonroso. Porém, tal equiparação já não foi feita no crime de ofensa a pessoa colectiva, organismo ou serviço. Por outro lado, tem que se tratar de factos inverídicos.
O segundo elemento que a lei exige é que se esteja perante factos idóneos – que tenham capacidade para – ofenderem a credibilidade, o prestígio ou a confiança. Esta idoneidade ou capacidade para ofender a credibilidade, prestígio ou confiança deve ser aferida tendo em conta “a compreensão que um normal e diligente homem comum tenha da problemática”.
Segundo Faria Costa uma instituição é credível quando “pela actuação dos seus órgãos ou membros, se mostra cumpridora das regras, actua em tempo e de forma diligente e, sobretudo, quando a sua prática corrente se mostra séria e imparcial”, tem prestígio quando, “pelos comportamentos dos seus órgãos ou membros, ela se impõe no domínio específico da sua actuação, perante instituições congéneres e, por isso mesmo, perante a própria comunidade que serve e que a envolve” e é digna de confiança “quando pela sua génese e actuações posteriores se apresenta, paradigmaticamente, como entidade depositária daquele mínimo de solidez de uma moral social que faz com que a comunidade a veja como entidade em quem se pode confiar”.[8]
No artigo 187º, nº 1 do Código Penal o bem jurídico protegido “não é a honra, enquanto interesse essencialmente intrínseco e inerente à dignidade da pessoa, mas antes a credibilidade” (cfr. Acórdão da Relação de Guimarães de 04.07.2005, www.dgsi.pt) dos entes aí previstos.
Em terceiro lugar, é necessário que o agente ao afirmar ou propalar factos inverídicos o faça sem ter fundamento para, em boa fé, os reputar de verdadeiros.
Não é necessário, para que se verifique preenchido este elemento típico, que o agente tenha conhecimento do carácter não verídico dos factos; basta que não tenha fundamento para em boa fé os reputar de verdadeiros.”
Porém, como também se diz no aresto referido, citando Oliveira Mendes[9], «não basta afirmar ou propalar factos inverídicos. Conquanto se não exija o conhecimento da inveracidade da imputação, o qual a existir agravará o crime – art.ºs 187, nº 2 e 183, nº 1 al. a) -, impõe-se, no entanto, que o agente actue sem fundamento para, em boa fé, a reputar verdadeira, isto é, que não tenha razões sérias para aceitar o facto ou factos imputados como verdadeiros”.
(…)
A inveracidade dos factos propalados, assim como a ausência da boa fé, são elementos constitutivos do crime e cuja prova compete a quem acusa.
Refere o Cons. O. Mendes na ob. Cit. Pág. 116, que “é evidente que não cabe aqui ao agente fazer prova da existência da «boa fé», uma vez que a inexistência desta é elemento constitutivo do crime”.»
A inveracidade dos factos afirmados ou propalados é, assim, essencial ao cometimento do crime, arredando-se a tipicidade dos casos em que os factos sejam verídicos, por mais aptos que sejam a por em causa a credibilidade, o prestígio ou a confiança, devidos à entidade visada.
A propósito da destrinça entre factos e juízos de valor (que, como adiante se verá, é especialmente relevante no caso em apreço), escreve Renato Lopes Militão[10] (em artigo que reúne uma abordagem abrangente do crime em questão, com abundante referência à doutrina e jurisprudência produzidas sobre o tema), que, “Abstrata e resumidamente, pode dizer-se que os juízos de valor representam convicções subjetivas, ao passo que os factos constituem realidades objectivas [11]. Ou seja, os primeiros consubstanciam apreciações críticas, sendo portanto indemonstráveis, enquanto os segundos são elementos da realidade, mostrando-se por isso incontestáveis[12].
Deve, no entanto, sublinhar-se que a formulação de juízos de valor e a imputação de factos não têm, em abstrato, a mesma potencialidade desonrosa. Com efeito, um juízo valorativo representa “tão-só” o pensamento do quem o formula, caraterizando-se, portanto, pela subjetividade e impondo, consequentemente, a sua relativização. Já um facto é algo real e incontornável, pelo que a sua imputação a alguém traduz-se na atribuição a essa pessoa de uma realidade concreta e verdadeira. Deste modo, em abstrato, a formulação de um juízo de valor envolve um potencial lesivo da honra manifestamente inferior ao que compreende a imputação de um facto.
Importa adiantar ainda que a afirmação de factos pressupõe sempre juízos de valor, ainda que implícitos, nomeadamente na seleção do que se afirma ou na decisão de o afirmar. Ademais, como reconhece a generalidade da doutrina, não é possível estabelecer-se uma delimitação clara e segura entre juízos de valor e factos[13].
Deste modo, a doutrina mais avisada vem sustentando que, sendo duvidoso se um conteúdo expressivo se traduz num juízo valorativo ou num facto, deve considerar-se que se trata de um juízo de valor. Ademais, quando na mesma conduta comunicacional, ainda que se trate de uma conduta prolongada (v. g., um discurso, uma entrevista, um debate), o agente formule juízos de valor e afirme factos, por princípio, deve entender-se que se está apenas perante a formulação de juízos valorativos[14]. Somente devendo afastar-se este princípio quando, (i) à luz de um critério objetivo, deva considerar-se que a conduta em causa tem carácter fundamentalmente informativo ou (ii) os factos afirmados não tenham conexão com as apreciações críticas formuladas e hajam sido imputados ao visado com o único e refletido propósito de o rebaixar, humilhar ou caluniar, exagerada, inútil e desnecessariamente.”[15]
Por outro lado, como não passou despercebido a nenhum dos intervenientes no processo, está também em causa o exercício da liberdade de expressão – no caso, por parte do arguido – que, a par do direito à honra, constitui direito fundamental constitucionalmente protegido (cf. artigos 26º e 37º da Constituição da República, sendo que, nos termos do artigo 12º, nº 2 da Lei Fundamental, “As pessoas coletivas gozam dos direitos e estão sujeitas aos deveres compatíveis com a sua natureza”), devendo sublinhar-se que não existe qualquer hierarquia entre os direitos fundamentais. A compressão que cada um deles tenha de sofrer só pode justificar-se pela salvaguarda de outro direito fundamental, no que se convencionou chamar concordância prática, com o fim de assegurar a subsistência do núcleo essencial de ambos os direitos.
“Acresce que a tutela ancorada à liberdade de expressão não depende de quaisquer requisitos do pensamento exteriorizado. Não pressupõe, designadamente, a inteligibilidade, a racionalidade, o interesse social ou a veracidade deste.
Do mesmo passo, a proteção conferida pela liberdade em referência não é condicionada pelo assunto objeto do pensamento manifestado. E tampouco está dependente dos fins visados pelo agente. Com efeito, encontra-se assegurada pela liberdade de expressão a manifestação de juízos de valor relativamente a todas as matérias e quaisquer que sejam as finalidades.”[16]
Adicionalmente, importa ter presente que a proteção da liberdade de expressão não releva apenas perante a manifestação de juízos valorativos inócuos, favoráveis ou consensuais. Como aponta Francisco Teixeira da Mota[17], “Quem precisa de ser protegido pela liberdade de expressão são as pessoas que exprimem opiniões incómodas, desagradáveis, irritantes, minoritárias e, eventualmente, injustas. Não podemos olhar para a liberdade de expressão como garantindo o direito das pessoas dizerem coisas sensatas, verdadeiras e corretas”.
É com este escopo, aliás, que o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) vem, consistentemente, interpretando o artigo 10º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem[18] (CEDH), em termos inicialmente formulados no caso Handyside c. Reino Unido, de 07.12.1976 (Queixa nº 5493/72)[19] (§ 49), no qual o Tribunal reconheceu que as suas funções de supervisão lhe impõem especial atenção aos princípios que caracterizam uma sociedade democrática, e que a liberdade de expressão constitui um pilar essencial de tal sociedade, uma das condições básicas para o seu progresso e para o desenvolvimento de todos. Com salvaguarda do disposto no §2 do artigo 10º, a proteção concedida à liberdade de expressão aplica-se não apenas a informação ou ideias acolhidas favoravelmente ou encaradas como inofensivas ou indiferentes, mas também às que ofendem, chocam ou incomodam o Estado ou qualquer setor da população. Tais são as exigências do pluralismo, tolerância e abertura de espírito, sem os quais não existe uma sociedade democrática. Isto significa, além do mais, que qualquer formalidade, condição, restrição ou penalidade imposta nesta matéria deve mostrar-se proporcional ao fim legítimo prosseguido[20].
O TEDH não deixou de considerar, no entanto, que quem exerce a sua liberdade de expressão, assume deveres e responsabilidades, cujo âmbito depende da sua situação e dos meios usados, não se podendo deixar de averiguar se as restrições ou penalidades impostas se destinaram à proteção de valores, tornada necessária numa sociedade democrática[21].
Isto mesmo foi novamente reafirmado, entre outros, no caso Lopes Gomes da Silva c. Portugal, de 28.09.2000 (Queixa nº 37698/97)[22], em cujo § 30 pode ler-se: “O Tribunal recorda os princípios fundamentais que decorrem da sua jurisprudência relativa ao artigo 10.º:
i. A liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática e uma das condições primordiais do seu progresso e realização de cada um. Sem prejuízo do n.º 2, ela é válida não apenas para as «informações» ou «ideias» acolhidas favoravelmente ou consideradas como inofensivas ou indiferentes, mas também para as que ferem, chocam ou causam inquietação. Assim o exigem o pluralismo, a tolerância e o espírito de abertura sem os quais não há «sociedade democrática». Como especifica o artigo 10.º, o exercício desta liberdade está sujeito a formalidades, condições, restrições e sanções que todavia devem ser estritamente interpretadas, devendo a sua necessidade ser estabelecida de maneira convincente (ver, entre outras, as seguintes sentenças: Janowski c. Polónia [GC], n.º 25716/94, § 30, CEDH 1999-I; Nilsen et Johnsen c. Noruega [GC], n.º 23118/93, § 43, CEDH 1999- VIII).
ii. Estes princípios revestem uma particular importância para a imprensa. Se esta não deve ultrapassar os limites fixados em vista, nomeadamente, «da protecção da reputação de outrem», incumbe-lhe, no entanto, transmitir informações e ideias sobre questões políticas bem como sobre outros temas de interesse geral. Sobre os limites da crítica admissível eles são mais amplos em relação a um homem político, agindo na sua qualidade de personalidade pública, que um simples cidadão. O homem político expõe-se inevitável e conscientemente a um controlo atento dos seus factos e gestos, tanto pelos jornalistas como pela generalidade dos cidadãos, e deve revelar uma maior tolerância sobretudo quando ele próprio profere declarações públicas susceptíveis de crítica. Sem dúvida tem direito a protecção da sua reputação, mesmo fora do âmbito da sua vida privada, mas os imperativos de tal protecção devem ser comparados com os interesses da livre discussão das questões políticas, exigindo as excepções à liberdade de expressão uma interpretação restritiva (ver, nomeadamente, a sentença Oberschlick c. Áustria (n.º 2), de 1 de Julho de 1997, Recueil des arrêts et décisions 1997-IV, pp. 1274-1275, § 29).”
Por outro lado, como já acima se apontou, em face do que se dispõe no artigo 18º, nos 2 e 3, da Constituição da República, as restrições a direitos fundamentais, feitas por lei ou com base na lei, designadamente por decisão jurisdicional, devem limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos da mesma natureza ou interesses objetivos constitucionalmente garantidos. Quer isto dizer que tais restrições devem respeitar o princípio da proporcionalidade em sentido amplo, isto é, têm de ser adequadas (aptas), necessárias (exigíveis) e proporcionais (na justa medida) à proteção de outros direitos ou interesses constitucionais. Não podendo, em caso algum, diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais consagradores dos direitos atingidos.
Impõe-se, por isso, a respetiva concordância prática. “Ou seja, os direitos ou direito e interesse objetivo colidentes devem ser mútua e proporcionalmente restringidos, de modo a que se encontre uma solução ótima, que garanta a convivência equilibrada e harmónica dos bens em presença até onde for possível.
Tal concordância tem de procurar-se fundamentalmente por via da ponderação dos bens colidentes, perante as circunstâncias do caso concreto, o qual pode ser hipotético ou efetivo [23]. Com efeito, é sobretudo através de um adequado balanceamento desses bens, à luz das especificidades do caso em apreço, hipotético ou efetivo, que cumpre determinar-se a medida da progressão/recuo dos mesmos, com vista a garantir-se a sua convivência equilibrada e harmónica até onde for possível[24]. Devendo, nesse processo, respeitar-se os princípios da proporcionalidade em sentido amplo e da salvaguarda do núcleo essencial dos preceitos constitucionais em causa, bem como outros princípios constitucionais que relevem no caso.”[25]
Assim, mantendo presente tudo o que já se deixou dito quanto ao tipo objetivo do crime aqui em causa – que, recordamos, implica a afirmação ou propalação de factos (não juízos de valor), inverídicos (inveracidade que, constituindo elemento do tipo, cabe ao acusador demonstrar), que sejam idóneos a ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança que se mostrem devidos a organismo ou serviço que exerçam autoridade pública, pessoa coletiva, instituição ou corporação, e que o agente não tenha fundamento para, em boa fé, reputar inverídicos esses factos – importa ponderar as circunstâncias do caso concreto, pois só face a estas será possível concluir, por um lado, pela adequação das afirmações produzidas ao preenchimento do tipo em questão, e, por outro lado, avaliar se a concomitante compressão do direito de exprimir livremente uma opinião ou comunicar factos, se mostra necessária à salvaguarda de valores fundamentais à vida numa sociedade democrática.
Porém, como adverte Renato Militão[26], deve “ter-se presente que, acordo com o art. 37º, nº 1, da CRP, o âmbito normativo do direito de informar compreende, à partida e em abstrato, a afirmação e propalação de factos atentatórios da credibilidade, do prestígio e da confiança das entidades coletivas. Deste modo, atento o regime do art. 18º, nº 2, da CRP, somente poderá fazer-se recuar a tutela do direito de informar se se estiver perante a afirmação ou propalação de factos suscetíveis de ofender de forma desproporcionada (excessivamente) algum desses segmentos da honra objetiva ou exterior das entidades coletivas. Sendo certo que a proteção do direito de informar deve ser mais extensa no caso de se estar perante ofensas à honra objetiva ou exterior de pessoas coletivas do que se se estiver perante ofensas à honra lato sensu de indivíduos[27].
Na verdade, desde logo por imperativo constitucional, devem recusar-se compreensões unidimensionais e reducionistas do tipo, que o imunizam à conflitualidade. Devendo, ao invés, assumir-se a estrutura intrinsecamente complexa e pluridimensional do tipo, enquanto expressão positivada de uma decisão do legislador ordinário, atenta tanto ao peso do bem jurídico protegido como dos interesses subjetivos e objetivos colidentes. E se assim é em geral, por maioria de razão terá de sê-lo no que concerne aos crimes comunicacionais, nomeadamente ao crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva[28].
Assim, a resolução dos conflitos entre o direito à honra objetiva ou exterior das entidades coletivas visadas e o direito de informar dos agentes deve ser tentada logo ao nível da averiguação do preenchimento do tipo objetivo do art.º 187º, nº 1, do CP. O que cumpre fazer-se por recurso à metódica da ponderação de bens, ou seja, resumidamente, através de uma adequada pesagem dos bens em conflito, perante o circunstancialismo do caso concreto[29]. Não cabendo aqui o aprofundamento da matéria, deve no entanto adiantar-se que, pelo menos se estiverem em causa questões de elevado interesse público ou forem visadas entidades coletivas que assumam papéis de grande relevo na sociedade, por princípio, a tutela do direito de informar do agente deve avançar face à proteção da honra objetiva ou exterior das entidades coletivas em causa logo ao nível da determinação da tipicidade da conduta comunicacional.”
Desçamos, então, aos factos – na medida em que os mesmos se mostram enunciados na acusação particular, que, como já referimos, define o objeto do processo (no sentido de que tudo o que nela não está contemplado, não pode, agora, ser usado contra o arguido)[30] – devendo referir-se que, independentemente de todas as opiniões formuladas pelas pessoas ouvidas no decurso do inquérito, o que releva para a apreciação do preenchimento do tipo é o que, objetivamente, foi dito pelo arguido e publicado nos dois jornais referenciados.
Ora, do teor das duas entrevistas trazidas a juízo, podem extrair-se as seguintes afirmações factuais, atribuídas ao arguido:
- a pessoa que substituiu o arguido no cargo de presidente da ADoP é proveniente do COP;
- o controlo antidoping nunca tinha sido tão eficaz em Portugal como no período em que o arguido presidiu à ADoP.
Estes factos não são inverídicos (o próprio assistente reconhece que a pessoa que substituiu o arguido na ADoP é proveniente dos seus quadros; e o arguido ofereceu documentação estatística relativa à atividade da ADoP no período em que presidiu àquela entidade, mostrando-se a mesma coligida no inquérito – cf. refª Citius 29449179, documentos apresentados em 03.06.2021).
Tem também conteúdo factual a afirmação de que o Secretário de Estado do Desporto, ao substituir o arguido no cargo de presidente da ADoP por uma pessoa proveniente dos quadros do COP, acatou a indicação vinda do presidente da comissão executiva do COP, JC. Este facto pode, ou não, ser verdadeiro, mas não resulta evidente que o arguido tivesse fundamento para, em boa fé, considerá-lo inverídico.  
Os demais «factos» contra os quais o assistente se insurge são, na verdade, juízos de valor – tal como entendeu a decisão recorrida.
Quando o arguido diz “esta gente quer é medalhas, não interessa se são sujas ou limpas” – afirmação que o assistente assumiu ser-lhe dirigida, porque imediatamente antes o arguido se referira ao presidente da sua comissão executiva – está, manifestamente, a expressar uma opinião. É, evidentemente, uma crítica. Expõe o entendimento do entrevistado, no sentido de que o seu afastamento e substituição por uma pessoa vinda de entidade sujeita a fiscalização por aquela autoridade, denuncia uma vontade de aligeirar essa fiscalização. Mas não deixa de ser a opinião do entrevistado e não é apresentada como outra coisa que não uma opinião.
O mesmo se diga quanto às afirmadas “promiscuidade” e “aldrabice” – que, note-se, na entrevista, são enquadradas como afirmações atribuídas a terceiros que, a propósito, teriam questionado o entrevistado – as mesmas correspondem, ainda assim, a juízos de valor e não a factos. É a visão do entrevistado (ou de terceiros, veiculada pelo entrevistado) que é transmitida, não são descritas circunstâncias factuais, verificáveis.
Mesmo apesar de repetidamente questionado sobre se «estamos perante corrupção», se «há indícios de corrupção», ou se «o Governo não quer isenção no doping», o entrevistado nunca deu uma resposta direta, nem concluiu em sentido afirmativo, antes referiu, “Disseram como é possível o Governo dizer que combate a corrupção e depois permitir esta promiscuidade. Afinal é tudo aldrabice”, e ainda, “É só ver esta promiscuidade. A resposta é simples. Deixe-me que lhe diga que já fui abordado por anónimos que me disseram: «Como é possível o Governo dizer que combate a corrupção e depois permite esta promiscuidade. Afinal, é tudo uma mentira.»”, e “Trata-se de uma autoridade fiscalizadora e a promiscuidade atual facilita a corrupção e a utilização do doping”. De tais afirmações apenas se pode extrair a opinião do entrevistado quanto à sua substituição no cargo de presidente da ADoP e à nomeação para tal cargo de uma pessoa proveniente do COP – é evidente que se mostra desagradado e que entende que a opção tomada pela tutela (a Secretaria de Estado do Desporto) é questionável – mas das palavras que lhe são atribuídas não pode extrair-se qualquer afirmação factual que exponha atos qualificáveis como «corrupção», nem a respetiva atribuição a qualquer sujeito em concreto.
É manifesto do teor das entrevistas que o arguido não tem em boa conta o presidente da comissão executiva do assistente e que está convencido de que o seu afastamento do cargo de presidente da ADoP resulta da influência exercida por este junto do Secretário de Estado do Desporto, a quem cabe a escolha da pessoa que deve desempenhar aquele cargo. A decisão relativa a tal nomeação é – como o próprio assistente reconhece – uma opção política, e não se pode deixar de dizer que é salutar, numa sociedade democrática, que as opções políticas dos titulares de cargos públicos sejam discutidas e debatidas na opinião pública.
Mesmo considerando a especial circunstância de o entrevistado/arguido ser o anterior titular do cargo, não pode ser-lhe recusado o direito a expressar a sua opinião sobre os acontecimentos. E é disso que se trata.
Apesar de a opinião do arguido poder desagradar ao assistente e aos seus dirigentes (maxime ao respetivo presidente), apesar de poder sentir-se ultrajado por ela, ou de não se rever nos juízos formulados, e mesmo que tal opinião seja injusta, ao arguido é constitucionalmente reconhecido o direito a ter e apresentar publicamente tal opinião.
Por outro lado, a formulação de tais juízos de valor – mesmo que pudessem confundir-se com factos – não representa um sacrifício exageradamente desproporcionado do património reputacional do assistente (pode mesmo discutir-se se o bom nome ou prestígio do assistente se mostram efetivamente afetados pelas afirmações do arguido – que, como se deixou exposto, fundamentalmente traduzem a sua opinião sobre as motivações que levaram ao seu afastamento do cargo de presidente da ADoP).
Há que ter presente que o assistente é uma pessoa coletiva de utilidade pública, estatuto atribuído às pessoas coletivas que prossigam fins de interesse geral, regional ou local e que cooperem, nesse âmbito, com a administração central, regional ou local, sendo fins relevantes para o efeito aqueles que se traduzam no benefício da sociedade em geral, ou de uma ou mais categorias de pessoas distintas dos seus associados, fundadores ou cooperadores, ou de pessoas com eles relacionadas, e que se compreendam em algum dos setores especialmente considerados, entre eles o desporto (cf. artigo 4º da Lei-quadro do estatuto de utilidade pública, aprovada pela Lei nº 36/2021, de 14 de junho, que veio substituir o Decreto-Lei nº 460/77, de 07 de novembro). Dada a relevância da missão desempenhada pelo assistente, é justificada a atenção que deve merecer a sua atuação por parte da opinião pública e mais ampla a margem de apreciação quanto a eventuais danos reputacionais que possam ser produzidos pela divulgação de opiniões sobre essa mesma atuação.
Como enfatizou o TEDH, no caso Novaya Gazeta e Milashina c. Rússia, de 03.10.2017 (Queixa nº 45083/06)[31], é dever da imprensa divulgar informação sobre todos os assuntos de interesse público (de modo consistente com as suas obrigações e responsabilidades), assistindo ao público em geral, por outro lado, o direito a ser informado sobre tais assuntos. Paralelamente, os limites da crítica aceitável serão necessariamente mais estreitos relativamente aos sujeitos privados do que no que se refere a entidades públicas ou a atuar no espaço público, das quais se espera uma maior tolerância à crítica[32]. Tais considerações aplicam-se não apenas ao texto jornalístico tout court, como à divulgação, na imprensa, da opinião colhida junto de personalidades que desempenhem, ou tenham desempenhado, funções de relevante interesse público, como não pode deixar de ser o caso da ADoP, e do seu ex-presidente.
O debate sobre tais matérias deve ser aberto e plural, como é apanágio de uma sociedade democrática, assente no respeito pela diversidade de opiniões. Apesar de o assistente não gostar das conclusões extraídas pelo ex-presidente da ADoP do facto de ter sido substituído no cargo por uma pessoa que antes exercera funções nos órgãos sociais do COP, não pode negar-se ao arguido o direito a formular tais opiniões, nem pode reconhecer-se nas mesmas a tipicidade relevante ao preenchimento do crime previsto no artigo 187º do Código Penal.
Tal como no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 17.05.2017[33], cuja posição partilhamos, temos de concluir que, no caso, “a necessidade de proteger o direito à liberdade de expressão e de opinião [deve prevalecer] sobre a tutela do bom nome de uma empresa. É esse o caminho que actualmente a jurisprudência portuguesa vem trilhando, tendo em atenção a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e do Tribunal Constitucional, valendo para as empresas reputadas e conhecidas do público o que aquela jurisprudência preconiza em relação a figuras públicas[34].” É também neste sentido que se dirige a Resolução do Conselho da Europa nº 1577 (2007)[35], bem como a Recomendação (UE) 2022/758 da Comissão de 27 de abril de 2022[36].
Por fim, muito embora seja evidente o antagonismo entre o arguido e o presidente da comissão executiva do assistente, não é possível afirmar, em face do que foi dito nas mencionadas entrevistas, que aquele primeiro tenha sido movido pelo propósito de por em causa o bom nome do assistente enquanto representante dos ideais do olimpismo no nosso país, pelo que também o elemento subjetivo da infração deve considerar-se ausente.
Como também se referiu no citado acórdão da Relação de Lisboa de 17.05.2017, “O Direito Penal não se destina a proteger todos os bens jurídicos, nem todos os bens jurídicos de todas as formas, conferindo, ao invés, uma tutela fragmentária aos valores que protege. Daí que não seja qualquer afirmação de factos (mesmo inverídicos) que se enquadra no tipo objetivo do ilícito a que vimos aludindo”.
Em conclusão, a apreciação da prova indiciária efetuada na decisão recorrida não merece censura e, por respeito pelos princípios da legalidade e da tipicidade, não podia o arguido ser pronunciado pelo cometimento do crime de ofensa a pessoa coletiva, organismo ou serviço, previsto e punido pelo artigo 187º, nos 1 e 2 do Código Penal, pelo qual foi acusado.
Improcede, pois, o recurso.
*
VI – Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso, confirmando-se a decisão do Tribunal a quo.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC.
*
Lisboa, 22 de fevereiro de 2023
(texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal)

Lisboa, 22 de fevereiro de 2023
Sandra Oliveira Pinto
Mafalda Sequinho dos Santos
Capitolina Fernandes Rosa

_______________________________________________________
[1] Direito Processual Penal, 1º vol., 1974, pág. 133.
[2] Carlos Adérito Teixeira, Indícios suficientes: parâmetros de racionalidade e instância de legitimação (…), Revista do CEJ, 2.º semestre 2004, nº 1, pág. 189.
[3] Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo III, Almedina, 2021, pág. 1194.
[4] Neste exato sentido, vd., ainda, Nuno Brandão, “A Nova Face da Instrução”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 2 e 3/2008, págs. 227-255 e acessível também em https://apps.uc.pt/mypage/files/nbrandao/455
[5] No processo nº 88/08.6TATBU.C1, Relator: Desembargador Jorge Dias, acessível em www.dgsi.pt.
[6] Cf. Faria Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, págs. 609 e 610.
[7] Faria Costa, ob. cit., pág. 610.
[8] Faria Costa, ob. cit., pág. 680 e 681.
[9] Direito à Honra e a sua Tutela Penal, Almedina, pág. 116.
[10] “Sobre a tutela penal da honra das entidades coletivas”, in Julgar Online, março de 2016, acessível em http://julgar.pt/sobre-a-tutela-penal-da-honra-das-entidades-coletivas/
[11] Sobre a distinção entre factos e juízos de valor, vd., v. g., Matos, Filipe Miguel Cruz de Albuquerque, Responsabilidade Civil…, cit., págs. 267 e ss. Na jurisprudência, por todos, veja-se o acórdão do TC nº 201/2004, de 24/03/2004, disponível na internet, no sítio desse Tribunal.
[12] O que vai referido no texto não vale por dizer que a convicções subjetivas não possam encontrar-se subjacentes realidades demonstráveis. Todavia, isso não lhes retira o caráter de juízos de valor.
[13] Evidenciando as dificuldades na distinção entre factos, ou melhor, declarações de factos e juízos de valor, bem como alinhando diversos critérios para se proceder a tal distinção, veja-se, por todos, Matos, Filipe Miguel Cruz de Albuquerque, Responsabilidade Civil…, cit., págs. 267 e ss.
[14] Cfr. Matos, Filipe Miguel Cruz de Albuquerque, Responsabilidade Civil…, cit., pág. 285.
[15] Loc. cit., págs. 6-7.
[16] Renato Militão, loc. cit., pág. 9.
[17] “Liberdade de expressão - a jurisprudência do TEDH e os Tribunais portugueses”, in Revista Julgar, nº 32 (maio-agosto 2017), pág. 182.
[18] «1. Qualquer pessoa tem o direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideais sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem considerações de fronteiras. O presente artigo não impede que os Estados submetam as empresas de radiodifusão, de
cinematografia ou de televisão a um regime de autorização prévia.
2. O exercício destas liberdades, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a proteção da saúde ou da moral, a proteção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial
[19] Pesquisado em https://hudoc.echr.coe.int/
[20] No texto original: «The Court's supervisory functions oblige it to pay the utmost attention to the principles characterising a “democratic society”. Freedom of expression constitutes one of the essential foundations of such a society, one of the basic conditions for its progress and for the development of every man. Subject to paragraph 2 of Article 10 (art. 10-2), it is applicable not only to “information” or “ideas” that are favourably received or regarded as inoffensive or as a matter of indifference, but also to those that offend, shock or disturb the State or any sector of the population. Such are the demands of that pluralism, tolerance and broadmindedness without which there is no “democratic society”. This means, amongst other things, that every “formality”, “condition”, “restriction” or “penalty” imposed in this sphere must be proportionate to the legitimate aim pursued.»
[21] No texto original da decisão: «From another standpoint, whoever exercises his freedom of expression undertakes “duties and responsibilities” the scope of which depends on his situation and the technical means he uses. The Court cannot overlook such a person's “duties” and “responsibilities” when it enquires, as in this case, whether “restrictions” or “penalties” were conducive to the “protection of morals” which made them “necessary” in a “democratic society”.»
[22] Igualmente em https://hudoc.echr.coe.int/
[23] Como nota Vieira de Andrade, as situações concretas em que se verificam colisões de direitos fundamentais podem ser hipotéticas (cfr. Andrade, José Carlos Vieira de, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 3ª ed., Coimbra, Almedina, 2007, págs. 320-321).
[24] Segundo Vieira de Andrade, a concordância prática é «um método e um processo de legitimação das soluções que impõe a ponderação – ou, para utilizar uma terminologia anglosaxónica, um weighing ou balancing ad hoc – de todos os valores constitucionais aplicáveis, de modo que se não ignore nenhum deles, para que a Constituição (essa, sim) seja optimizada ou preservada na maior medida possível» (cfr. Andrade, José Carlos Vieira de, Os Direitos…, cit., pág. 325).
[25] Renato Militão, loc. cit., págs. 17-18.
[26] Loc. cit., págs. 36-38.
[27] Como bem surpreendeu o TRP, no seu acórdão de 03/04/2013, Processo 1354/12.1TAMTS.P1, disponível na internet, no sítio da DGSI, «[n]o crime previsto no art.º 187º do CP, considerando a qualidade do sujeito passivo (“entidade abstracta”, com determinadas características que a distinguem da pessoa singular) a “ofensa” terá que assumir relevo bastante para se poder concluir que tem aptidão para afectar o bem jurídico protegido, o que igualmente significa que terá de existir maior tolerância perante a crítica feita a uma entidade abstracta».
[28] Assim, Andrade, Manuel da Costa, Liberdade de Imprensa…, cit., págs. 219-220. Como bem surpreendeu a Relação de Coimbra, no seu acórdão de 28/10/2008, Processo 1376/06.1TACVL.C1, disponível na internet, no sítio da DGSI, «dentro do próprio tipo [no caso, da difamação], conflituam bens jurídicos fundamentais com assento na Lei Fundamental: de um lado o direito de todos os cidadãos à sua integridade moral, ao bom-nome e à reputação – art. 26º da CRP. E de outro o direito de cada um exprimir e divulgar livremente o seu pensamento através da palavra, da imagem ou qualquer outro meio – cfr. art. 37º n.º 1 da CRP. Direitos que têm que ser compatibilizados entre si, num equilíbrio nem sempre fácil de encontrar, tanto mais numa sociedade democrática, aberta e plural que reconhece e aceita a diferença».
[29] Como nota Costa Andrade, os crimes contra a honra integram «uma área problemática em que as dificuldades de demarcação clara e segura entre a tipicidade e a ilicitude ganham uma dimensão pouco comum» (cfr. Andrade, Manuel da Costa, Liberdade…, cit., pág. 219). Na verdade, como decorre do que já dissemos, sobretudo estando em causa condutas comunicacionais, da Constituição provém inequivocamente um mandamento, dirigido tanto ao legislador ordinário como ao julgador, que determina se proceda à ponderação de bens perante as circunstâncias do caso concreto, hipotético ou efetivo, desde logo no domínio da determinação da tipicidade dos atos, devendo, todavia, no caso de esta não ser afastada, intensificar-se essa metódica em sede de deteção de justificativas dos atos típicos. Relevando em grande medida os mesmos fatores em ambas as instâncias.
[30] A latere, pode também dizer-se que, se o assistente entende que existem segmentos das entrevistas dadas pelo arguido que não integram o crime que lhe imputou e que são irrelevantes para “o” objeto do processo, não devia, então, tê-los incluído na acusação que deduziu, o que obviaria à «confusão» que disse ter sido incorrida pelo Tribunal a quo.
[31] Igualmente em https://hudoc.echr.coe.int/
[32] Como pode ler-se no texto original da decisão: “§56 The Court has consistently emphasised the essential function the media fulfil in a democratic society. Although they must not overstep certain bounds, their duty is nevertheless to impart – in a manner consistent with their obligations and responsibilities – information and ideas on all matters of public interest. Not only do the media have the task of imparting such information and ideas, the public also have a right to receive them (see, with further references, Pentikäinen, cited above, § 88). The limits of permissible criticism are narrower in relation to a private citizen than in relation to politicians or governments (see, with further references, Delfi AS v. Estonia [GC], nº. 64569/09, § 132, ECHR 2015).
§61 …However, this does not give public prosecutors immunity from any media criticism of their actions performed in the official capacity. To suggest otherwise would undermine the vital public watchdog role of the press (see Observer and Guardian v. the United Kingdom, 26 November 1991, § 59, Series A nº. 216). Considering that the impugned statements concerning the three claimants employed by or affiliated with the Chief Military Prosecutor’s Office were not insulting (see, by contrast, Lešník, cited above, §§ 15 and 18) or attacking their personality (see, by contrast, Perna, cited above, § 13), the Court is satisfied that, as civil servants, they were subject to wider limits of acceptable criticism than private individuals (see Thoma v. Luxembourg, nº. 38432/97, § 47, ECHR 2001‑III; Pedersen and Baadsgaard v. Denmark [GC], nº. 49017/99, § 80, ECHR 2004‑XI; and Dyundin v. Russia, nº. 37406/03, § 26, 14 October 2008).  
§62 …The Court has previously acknowledged in the case concerning defamation claims brought by a courts’ management department that there may be sound policy reasons to decide that public bodies should not have standing to sue in defamation in their own capacity (see Romanenko and Others v. Russia, nº. 11751/03, § 39, 8 October 2009) and found that State bodies acting in an official capacity were subject to wider limits of acceptable criticism than private individuals (ibid., § 47). Similarly, the Court considers that, while the Chief Military Prosecutor’s Office, a public authority forming part of the judicial machinery in a broad sense, must enjoy public confidence if it is to be successful in carrying out its duties (see, mutatis mutandis, Morice, cited above, § 128), as an institution of a State it should display tolerance to criticism, particularly that emanating from the press.”
[33] No processo nº 95/15.2PEPDL.L1-3, Relator: Desembargador Jorge Raposo, acessível em www.dgsi.pt.  
[34] No TEDH: Casos Observer e Guardian v. The United Kingdom, proc. nº 13585/88, de 26.11.1991; caso Castells v. Spain, Proc. nº 11798/85, de 23.04.1992; caso Prager e Oberschlick v. Áustria, Proc. nº 15974/90, de 26.04.1995; caso Lopes Gomes da Silva v. Portugal, Proc. nº 37698/97, de 28.09.2000; caso Özgür Radyo-Ses Radyo Televizyon Yayin Yapim Ve Tanitim A.S. v. Turquie, Proc. nº 64178/00, 64179/00, 64181/00, 64183/00, 64184/00, de 30.03.2006; caso Kobenter e Standard Verlags GMBH v. Áustria, Proc. nº 60899/00, de 02.11.2006; caso Colaço Mestre e SIC – Sociedade Independente de Comunicação, S.A. v. Portugal, Proc. nº 11182/03 e 11319/03, de 26.04.2007, todos disponíveis em http://www.echr.coe.int/echr; No Tribunal Constitucional, Acórdão nº 81/84, na 2ª Série do DR de 31 de Janeiro de 1985; no Supremo Tribunal de Justiça, Acórdão de 07.03.2007, processo nº 07P440 e de 14.10.03, no proc. 03A2249, em www.dgsi.pt.
[35] Consultável em
https://assembly.coe.int/nw/xml/XRef/Xref-XML2HTML-en.asp?fileid=17588&lang=en
[36] Em
https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32022H0758&from=SL