Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6011/23.0T8LSB-A.L1-7
Relator: DIOGO RAVARA
Descritores: EXECUÇÃO
ENTREGA DE COISA CERTA
COVID-19
VIGÊNCIA DA LEI Nº 1-A/2020
DE 19/3
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: O art.º 6º-E da Lei nº 1-A/2020, de 19-03 não caducou com a cessação do Estado de Alerta a partir de 01-10-2022, tendo vigorado até à entrada em vigor da Lei nº 31-2023, de 04-07, o que ocorreu às 00h00m do dia 04-08-2023.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório
A intentou execução para entrega de coisa certa contra B.
Apresentou como título executivo uma sentença proferida pelo Juízo Central Cível de Lisboa, parcialmente confirmada por acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa e pelo Supremo Tribunal de Justiça, nos termos da qual, na parte que ora interessa, foi reconhecido o direito de propriedade da exequente sobre determinado imóvel, tendo o executado sido condenado a entrega-lo à exequente[1].
No âmbito desta execução veio a ser proferido despacho com o seguinte teor:[2]
“Req.to do AE de 22/03:
Resulta dos autos que o imóvel em causa destina-se a habitação do executado.
Ora, de acordo com o disposto no art.º 6º-E, n.º 7, al. b) da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, introduzido pela Lei n.º 13-B/2021, de 5 de Abril, estão suspensos «os actos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família».
Assim, atento o regime preceituado naquela disposição legal, ainda em vigor, não pode ser deferida a pretensão do AE..”
Inconformada com tal decisão, veio o exequente interpor o presente recurso, cuja motivação sintetizou nas seguintes conclusões:[3]
DA CADUCIDADE DO ART.º 6.º-E DA LEI N.º 1 -A/2020
A) O Tribunal a quo errou ao não ter declarado a caducidade do art.º 6.º-E da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março com redação dada pela Lei n.º 13-B/2021, de 5 de Abril. Com efeito;
B) O Tribunal a quo errou ao não ter interpretado o n.º 1 do art.º 7.º do Código Civil no sentido de que as leis temporárias podem deixar de vigorar pela superveniência de um facto, ou pelo desaparecimento da realidade que a mesma regulava, que é o caso da Lei13-B/2020 de 5/04 que aditou o art.º 6.º- E à Lei 1-A/2020 de 19/03, pois que se não fosse óbvio que a mesma é temporária, então tal resulta de maneira expressa no n.º 1 do art.º 6.º-E da Lei 1-A/2020 de 19/03, que literalmente dispõe que o regime processual excecional e transitório existe “No decurso da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19”.;
C) O Tribunal a quo errou ao não ter interpretado o n.º 1 do art.º 6.º-E da Lei 1- A/2020 de 19/03 no sentido de que a vigência desta norma depende da existência da "situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID- 19”;
D) O Tribunal a quo errou ao não ter interpretado a Resolução do Conselho de Ministros n.º 73-A/2022 de 26/08 que claramente deu como terminada a "situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19” às 23:59h do dia 30 de Setembro de 2022;
E) O Tribunal a quo errou ao não ter usado das elementares regras da lógica jurídica que lhe permitiriam fazer o seguinte raciocínio: se o regime excecional apenas vigoraria durante a situação excecional e, se essa situação excecional terminou em 30 de Setembro de 2022, significa então que o regime excecional já não vigora.
F) Esta evidência interpretativa foi já - e bem - acolhida pelos nossos tribunais superiores em acórdãos proferidos durante este ano de 2023, como sendo o Acórdão da Relação de Évora de 2 de Março de 2023, o Acórdão da Relação do Porto de 7 de Fevereiro de 2023, e o Acórdão da Relação de Guimarães de 16 de Março de 2023, disponíveis em rodapé;
G) Pelo que se o Tribunal a quo tivesse interpretado corretamente o n.º 1 do art.º 7.º do Código Civil conjugado com o n.º 1 do art.º 6.º-E da Lei 1-A/2020 de 19/03, com a Resolução do Conselho de Ministros n.º 73-A/2022 de 26/08, teria declarado a caducidade do regime processual excecional e transitório previsto no já mencionado art.º 6.º-E e, consequentemente, o deferimento do pedido de intervenção da força pública de segurança.
Sem prescindir, mas admitindo que a caducidade não obtém vencimento por mera cautela de patrocínio,
DA FALTA DE TÍTULO
H) O Tribunal a quo errou ao não ter analisado convenientemente o título executivo oferecido aos autos de execução, que é uma sentença, onde ficou assente que o Executado não tem qualquer título que seja para ocupar o imóvel propriedade da Recorrente (aliás, até ficou provado que o mesmo forjou um documento para esse fim);
I) Porque é um facto assente: o Executado ocupa o imóvel em causa de maneira ilícita, sem título e, pior do que tudo, em plena afronta a uma decisão que o condenou a de lá sair; Efetivamente,
J) A al. b) do n.º 7 do art.º 6.º-E da Lei 1-A/2020 de 19/03, ao dispor que durante a “situação excecional” ficam suspensas as diligências de entrega de casa de morada de família, está a limitar os casos de suspensão às situações em que, de facto, existe uma “casa de morada de família”.
K) O conceito “casa de morada de família” está definido no n.º 3 do art.º 10.º da Lei de Bases da Habitação como sendo “aquela onde, de forma permanente, estável e duradoura, se encontra sediado o centro da vida familiar dos cônjuges ou unidos de facto.”;
L) Isto é: não basta averiguar se o Executado lá se encontra, ou sequer se lá vai de vez em quando; é necessário verificar se os pressupostos legais estão preenchidos, nomeadamente a “permanência”, a “estabilidade” e a “longevidade”, por expressa indicação do n.º 3 do art.º 10.º da Lei de Bases da Habitação;
M) Ou seja, o conceito “casa de morada de família” não se coaduna com situações de falta de título e ocupações ilícitas, pois que não há estabilidade em ocupações ilegais, não há permanência em ocupações sem título e não há longevidade numa ocupação não consentida pelo proprietário.
N) Por isso, o próprio conceito de “casa de morada de família” pressupõe a existência de um título. Se não existe título, não pode existir casa de morada de família.
O) Pelo que se o Tribunal a quo tivesse interpretado corretamente a al. b) do n.º 7 do art.º 6.º-E da Lei 1 -A/2020 de 19/03 conjugada com o n.º 3 do art.º 10.º da Lei de Bases da Habitação, não teria proferido o despacho em crise e teria - caso não declarasse a caducidade da norma - deferido a intervenção com auxílio das forças públicas de segurança.
Sem prescindir, mas admitindo por mera cautela de patrocínio que o entendimento de que a falta de título obsta à suspensão não obtém vencimento,
DA FALTA DE DEMONSTRAÇÃO DA CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
P) O Tribunal a quo errou ao ter assumido que o imóvel em causa era casa de morada de família do Executado (até porque a Recorrente sabe com conhecimento de causa que não é);
Q) A al. b) do n.º 7 do art.º 6.º-E da Lei 1-A/2020 de 19/03, ao dispor que durante a “situação excecional” ficam suspensas as diligências de entrega de casa de morada de família, faz depender a aplicação da sua estatuição da verificação do preenchimento da sua previsão (aliás, como em qualquer norma jurídica);
R) Quer isto dizer que antes do Tribunal poder decretar a suspensão das diligências, tem, primeiro, de ter a certeza que o imóvel em causa é a casa de morada de família do Executado;
S) O Tribunal não se pode substituir ao Executado nem sequer às hipotéticas insuficiências probatórias - tem de ficar convencido do facto para o poder decretar e só pode retirar a consequência do facto depois do mesmo estar assente;
T) Pelo que se o Tribunal a quo tivesse interpretado corretamente a al. b) do n.º 7 do art.º 6.º-E da Lei 1-A/2020 de 19/03, não teria proferido o despacho em crise e teria - caso não declarasse a caducidade da norma ou seguisse o correto entendimento de que a falta de título obsta à suspensão - notificado o Executado para vir aos autos fazer prova de que o imóvel em causa é a sua casa de morada de família.
O apelado não apresentou contra-alegações.
O Tribunal a quo admitiu o recurso, que qualificou como de apelação, com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo.[4]
Remetidos os autos a este Tribunal, e nada obstando ao conhecimento do mérito do recurso, foram colhidos os vistos.
2. Objeto do recurso
Conforme resulta das disposições conjugadas dos art.ºs 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do CPC, é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso, seja quanto à pretensão dos recorrentes, seja quanto às questões de facto e de Direito que colocam[5]. Esta limitação dos poderes de cognição do Tribunal da Relação não se verifica em sede de qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. art.º 5º n.º 3 do CPC).
Não obstante, excetuadas as questões de conhecimento oficioso, não pode este Tribunal conhecer de questões que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas[6].
Em consequência, as questões a equacionar e decidir são as seguintes:
a) apreciar se a vigência da Lei nº 1-A/2020 de 19-03, de cessou por caducidade, em virtude de a situação de alerta pela pandemia Covid 19 não ter sido renovada a partir de 01 de outubro de 2022;
b) caso a resposta seja negativa, determinar se no caso em apreço se encontram reunidos os pressupostos da aplicação da medida de suspensão de atos executivos prevista no art.º 6-E, nº 7, al. E) da mesma lei.
3. Fundamentação
3.1. Os factos
Os factos a considerar são os expostos no relatório que antecede.
3.2. Os factos e o Direito
3.2.1. Dos mecanismos suspensivos previstos no art.º 6º-E, nº 7 da Lei 1-A/2020, de 19-03, e da alegada caducidade dos mesmos
Como se deu conta, na presente execução o Tribunal a quo proferiu despacho decidindo indeferir requerimento do agente de execução com vista à concretização da entrega judicial do imóvel objeto da presente execução, com fundamento no disposto no art.º 6º-E nº 7 da Lei nº ,1-A/2020, de 19-03, na redação resultante da Lei nº 13-B/2021, de 05-04.
A apelante considera que à data em que tal decisão foi proferida, esta disposição legal já não se encontrava em vigor, por ter caráter temporário, sendo que em seu entender a situação de facto que justificava tal medida (estado de exceção decorrentes da pandemia COVID19), deixou de se verificar.
Importa, assim, aferir se a mencionada Lei ainda se encontra em vigor, tendo presente que o apelante sustentou que a mesma caducou por efeito da não renovação do estado de alerta a partir de 01-10-2022.
Vejamos então.
Sobre a mesma matéria disse J. H. DELGADO DE CARVALHO[7]:
“1. O DL 66-A/2022, de 30/9, revogou a maioria do corpo normativo estabelecido pelo DL 10-A/2020, de 13/3. A produção de efeitos da L 1-A/2020, de 19/3 (que prevê medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-COV-2 e da doença COVID-19), é reportada à data da produção de efeitos do DL 10-A/2020 (cf. art.º 10.º L 1-A/2020). Este é um argumento para se poder considerar revogada tacitamente a L 1-A/2020, e, por conseguinte, o Regime Processual Excecional e Transitório previsto no art.º 6.º-E deste diploma legal.
Só que as normas estabelecidas pelo DL 10-A/2020 relativas a atos e diligências processuais e procedimentais (ou seja, os seus art.ºs 14.º, 15.º e 15.º-A) já haviam sido revogadas pelo art.º 9.º DL 78-A/2021, de 29/9. Deste modo, o argumento de que a L 1-A/2020 foi revogada tacitamente pelo DL 66-A/2022 não procede.
2. Também se poderá considerar que a L 1-A/2020 (e, decorrentemente, o Regime Processual Excecional e Transitório estabelecido no seu art.º 6.º-E) cessou por caducidade, porque a situação de alerta não foi renovada pelo Governo a partir das 00:00 do dia 1 de outubro de 2022. A L 1-A/2020, na redação original, estabelecia que o regime processual excecional sobre prazos e diligências só por decreto-lei poderia deixar de se aplicar (cf. art.º 7.º, n.º 2). Entretanto, este preceito foi revogado pelo art.º 8.º L 16/2020, de 29/5. Por conseguinte, neste momento, nada impede que se defenda a cessação da vigência da L 1-A/2020 por caducidade, dado que a revogação deixou de ser a forma prevista para aquela lei deixar de vigorar. Está em causa a caducidade em virtude de deixar de existir a realidade que ela se destinava a regular (ou seja, a situação excecional da pandemia).
3. Para já, talvez seja mais avisado aguardar algum tempo para ver se a Assembleia da República se vai pronunciar sobre o tema (revogação expressa da L 1-A/2020). Pode imaginar-se que será publicada, em breve, uma lei com a finalidade de revogar as diversas leis aprovadas no âmbito da pandemia da doença COVID-19, à semelhança do que sucedeu com a entrada em vigor do DL n.º 66-A/2022. Há que estar atento ao que possivelmente possa constar da próxima Lei sobre o Orçamento de Estado.
No entanto, se essa lei não vier a ser publicada, então deverá entender-se que a L 1-A/2020 cessou a sua vigência por caducidade às 23h59m do dia 30 de setembro de 2022 (data em que cessou por caducidade a Resolução do Conselho de Ministros n.º 73-A/2022, de 26/8).”
Em sentido aproximado, sustentando que o disposto no art.º 6º, nº 7 da Lei nº 1-A/2020 caducou, a partir das 00h00m do dia 01-10-2022, em todo o território nacional continental, por se tratar de uma lei temporária, e porque a situação de alerta que constituía o seu fundamento cessou na referida data pronunciaram-se os seguintes arestos:
- RP 07-02-2023 (Rodrigues Pires), p. 2397/12.0TBMAI-A.P1;
- RE 02-03-2023 (Tomé de Carvalho), p. 2359/21.7T8STR-D.E1;
- RG 16-03-2023, (Mª Amália Santos), p. 1840/22.5T8VNF-B.G1;
- RL 25-05-2023, (Jorge Almeida Esteves), p. 6467/06.6TBOER-M.L1-6;
Porém, em sentido diverso se pronunciaram os seguintes acs.:
-  RL 13-10-2022, p. 17696/21.2T8LSB.L1-6 (António Santos), p. 17696/21.2T8LSB.L1-6;
- RL 29-11-2022 (Mª do Céu Silva), p. 12992/13.5T2SNT-G.L1;
- RL 09-02-2023 (Laurinda Gemas), p. 8834/20.3T8SNT.L1-2;
- RL 23-02-2023 (Eduardo Petersen Silva), p. 16142/12.7T2SNT-F.L1-6;
- RP 23-03-2023 (Aristides Rodrigues de Almeida), p. 19545/22.5T8PRT-A.P1;
- RC 28-03-2023 (Mª João Areias), p. 86/18.1T8CTB-A.C1;
- RL 11-04-2023 (Manuela Espadaneira Lopes), p. 2160/22.0T8SNT-H.L1-1;
- RP 20-04-2023 (Isabel Silva), p. 12270/20.3T8PRT-B.P1;
- RG 27-04-2023 (Mª João Sousa e Faro), p. 274/12.4TBRMR.E1;
- RL 02-05-2023 (Diogo Ravara), p. 610/22.5YLPRT.L1;
- RE 11-05-2023 (Manuel Bargado), p. 3723/20.4T8STB-E1,
- RL 16-05-2023 (Isabel Fonseca), p. 701/14.6T8SNT-I. L1-1;
- RL 13-07-2023 (Cristina Coelho), p. 3141/07.0TBLLE-AY.L1[8];
Neste último grupo de arestos concluíram os Tribunais da Relação que a mencionada Lei nº 1-A/2020 permaneceu em vigor mesmo após a cessação do estado de alerta, por não ter sido objeto de revogação.
Com efeito como se refere no segundo dos mencionados arestos:
“Ora, não parece que o citado n.º 7 do art.º 6.º-E da Lei n.º 1-A/2020, de 19-03 possa ser qualificado como lei temporária (isto é, limitada a um determinado período de vigência, por estar na mesma prevista a sua vigência durante um período temporal fixado ou enquanto durar um certo acontecimento aí indicado) – neste sentido, veja-se o referido acórdão da Relação de Lisboa de 13-10-2022, proferido no proc. n.º 17696/21.2T8LSB.L1-6.
Ademais, apesar de o legislador ter já vindo reconhecer - no Decreto-Lei n.º 66-A/2022, de 30 de setembro (que entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação) - a cessação de vigência de diversos artigos de decretos-leis publicados, no âmbito da pandemia da doença COVID-19, tal ainda não sucedeu com a referida Lei n.º 1-A/2020. Isto mesmo foi, aliás, reconhecido pelo acima citado acórdão da Relação de Lisboa de 13-10-2022, referindo-se no ponto 4 do respetivo sumário que «O art.º Artigo 6.º-E, nº 7, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, não foi pelo Decreto-Lei 66-A/2022, de 30 de Setembro, visado/atingido, mantendo-se em vigor, o que deverá suceder enquanto permanecer a “situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19”.»
(…)
A questão que se coloca é, assim, a de saber se, à data da prolação do despacho recorrido já não era aplicável o regime legal em causa, o que pressupõe a demonstração, posto que não se está perante facto notório [cf. artigos 5.º, n.º 2, al. c), e 412.º, n.º 1, do CPC] da cessação da “situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19”.
No referido acórdão da Relação de Lisboa de 13-10-2022 entendeu-se que «nada permite concluir que a “situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19”, deixou já de existir [antes tudo obriga a considerar que continuamos ainda hoje a viver em estado de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica, ainda que, é verdade, já não em período de estado de emergência - a qual se iniciou em Portugal ao abrigo do Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março, tendo sido objecto de diversas renovações, v.g. operadas pelo Decreto n.º 17-A/2020, de 2 de abril, pelo Decreto n.º 20-A/2020, de 17 de abril e pelo Decreto do Presidente da República n.º 41-A/2021, de 14 de abril, mas já cessado -, de calamidade - estado que foi decretado pelo Governo através da Resolução do Conselho de Ministros n.º 33-A/2020, de 30 de abril, aprovada ao abrigo do artigo 19.º da Lei de Bases da Proteção Civil, aprovada pela Lei n.º 27/2006, de 3 de julho, prorrogada por diversas vezes também, mas já cessado - , ou sequer de alerta - estado v.g. decretado e regulamentado através de Resolução do Conselho de Ministros n.º 73-A/2022, de 30 de Agosto e para vigorar até às 23:59 h do dia 30 de Setembro de 2022], continua portanto a justificar-se o atrás decidido no tocante ao prosseguimento dos autos e dos seus termos, sem prejuízo todavia de, em face do requerido pela apelada, decidir o tribunal a quo que se mostra alegada e provada factualidade que preenche a previsão da parte final da alínea c), do nº 7, do art.º 6º-E, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março , e aditado pela Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril.»
Tendemos a concordar com esta posição.
Efetivamente, importa ter presente que o n.º 2 do art.º 7.º da referida Lei n.º 1-A/2020, de 19-03 (cuja epígrafe era “Prazos e diligências”) dispunha na sua redação primitiva (não tendo sido alterado pela Lei n.º 4-A/2020, de 06-04), que “(O) regime previsto no presente artigo cessa em data a definir por decreto-lei, no qual se declara o termo da situação excecional.”. Este artigo foi expressamente revogado pelo art.º 8.º da Lei n.º 16/2020, de 29-05, tendo essa mesma lei, no seu art.º 2.º, logo aditado à Lei n.º 1-A/2020, de 19-03, o art.º 6.º-A acima citado, com a epígrafe “Regime processual transitório e excecional”, o qual já não aludia à definição de data para cessação a definir por decreto-lei, no qual se declara o termo da situação excecional. Deixou então de estar previsto que o Governo poderia, mediante decreto-lei, vir declarar o termo da situação excecional prevista naquela.
Por outro lado, embora tecnicamente não se confundam tais situações, não há dúvida que o legislador, ao aludir à “situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19” estava a considerar a situação epidemiológica vivida em Portugal na sequência da pandemia da doença COVID-19 que motivou as sucessivas declarações do Estado de Emergência e das Situações de Calamidade e Alerta.
Como é sabido, a declaração do estado de emergência é da competência do Presidente da República [cf. artigos 19.º, 134.º, al. d), e 138.º da CRP], o que já não sucede com a declaração das situações de calamidade, contingência e alerta, matérias reguladas na Lei n.º 27/2006, de 03-07 (Lei de Bases da Proteção Civil).
O Estado de Emergência vigorou em todo o território nacional entre 19 de março e 2 de maio de 2020 (cf. Decretos do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18-03, n.º 17-A/2020, de 02-04, e 20-A/2020, de 17-04) e de 9 de novembro de 2020 a 30 de abril de 2021 (cf. Decretos do Presidente da República n.º 51-U/2020, de 06-11, n.º 59-A/2020, de 20-11, n.º 61-A/2020, de 04-12, º 66-A/2020, de 17-12, n.º 6-A/2021, de 06-01, n.º 6-B/2021, de 13-01, n.º 9-A/2021, de 28-01, n.º 11-A/2021, de 11-02, n.º 21-A/2021, de 25-02, nº 25-A/2021, de 11-03, n.º 31-A/2021, de 25-03, n.º 41-A/2021, de 14-04).
Foram igualmente declaradas as situações de calamidade, contingência e alerta, em moldes que seria fastidioso enumerar, com âmbito territorial diversificado (municipal, nacional, continental nacional), pelo que destacamos a Resolução do Conselho de Ministros n.º 33-C/2020, de 30-04 - que estabeleceu “uma estratégia de levantamento de medidas de confinamento no âmbito do combate à pandemia da doença COVID 19” -, a Resolução do Conselho de Ministros n.º 51-A/2020, de 26-06 - que declarou “a situação de calamidade, contingência e alerta, no âmbito da pandemia da doença COVID-19” tendo em consideração o território, nos termos da Lei de Bases da Proteção Civil, aprovada pela Lei n.º 27/2006, de 3 de julho, na sua redação atual - e a Resolução do Conselho de Ministros n.º 51-A/2022, de 30-06 - que veio prorrogar a declaração da Situação de Alerta, no âmbito da pandemia da doença COVID-19 até 31 de julho de 2022, em todo o território nacional continental.
De referir que esta última Resolução veio a ser considerada expressamente revogada, a partir de 25-10-2022, conforme Resolução do Conselho de Ministros n.º 96/2022, de 24-10-2022, que determina a cessação de vigência de resoluções do Conselho de Ministros publicadas no âmbito da pandemia da doença COVID-19, tendo o respetivo sumário o seguinte teor (sublinhado nosso):
“Desde o início da pandemia da doença COVID-19, o Governo tem vindo a adotar uma série de medidas de combate à pandemia, seja numa perspetiva sanitária, seja nas vertentes de apoio social e económico às famílias e às empresas, com o intuito de mitigar os respetivos efeitos adversos.
Face ao desenvolvimento da situação epidemiológica num sentido positivo, observado nos últimos meses, assistiu-se à redução da necessidade de aprovação de novas medidas e de renovação das já aprovadas.
Concomitantemente, importa ter presente que a legislação relativa à pandemia da doença COVID-19 consubstanciou-se num número significativo de resoluções do Conselho de Ministros com medidas aprovadas com o desidrato de vigorar durante um período justificado de tempo.
Neste contexto, através da presente resolução do Conselho de Ministros, procede-se à clarificação das resoluções do Conselho de Ministros que ainda se encontram em vigor, bem como à eliminação das medidas que atualmente já não se revelam necessárias, através da determinação expressa de cessação de vigência de resoluções do Conselho de Ministros já caducas, anacrónicas ou ultrapassadas pelo evoluir da pandemia.
Desta forma, ganha-se em clareza e certeza jurídica, permitindo aos cidadãos saber - sem qualquer margem para dúvidas - quais as normas relativas à pandemia da doença COVID-19 que se mantêm aplicáveis.”
Em comunicado oficial, disponível em https://www.portugal.gov.pt, o Governo veio, aliás, informar o seguinte (sublinhado nosso):
“Fim do estado de alerta
Atenta a atual situação da pandemia pela Covid-19, o Governo decidiu não prorrogar a situação de alerta no território continental, bem como a cessação de vigência de diversos decretos-leis e resoluções aprovados no âmbito da pandemia.
A não prorrogação do estado de alerta visa adequar a legislação ao estado epidemiológico atual, equiparando, em termos legais e procedimentos daí decorrentes, a infeção Covid-19 às outras doenças.
Ao longo do tempo, para orientar e proteger a população portuguesa perante uma situação de excecional imprevisibilidade e gravidade, foi sendo criado um conjunto de diplomas legais e normas que acompanharam os estados de exceção que o país foi vivendo, nomeadamente o estado de alerta.
Agora, são eliminados do ordenamento jurídico os atos legislativos cuja vigência se mostrou desnecessária ou ultrapassada, mantendo-se em vigor disposições dirigidas à proteção das pessoas mais vulneráveis à Covid-19, bem como salvaguardando-se os efeitos futuros de factos ocorridos durante a vigência das respetivas disposições.”
Mas, como é evidente, a Resolução falha no seu propósito de permitir aos cidadãos saber, sem qualquer margem para dúvidas, quais as normas relativas à pandemia da doença COVID-19 que se mantêm aplicáveis, sendo certo que não poderia ter o alcance, até pelo princípio da hierarquia das leis, de “eliminar do ordenamento jurídico” leis da Assembleia da República, que nem sequer foram contempladas pelo referido Decreto-Lei n.º 66-A/2022, de 30 de setembro.
A Resolução veio, é certo, evidenciar que o território continental de Portugal já não se encontra em situação de alerta no âmbito da pandemia da doença COVID-19.
No entanto, não podemos olvidar que, além de se manterem em vigor no território nacional continental algumas medidas de prevenção, contenção e mitigação como a obrigatoriedade do uso da máscara nas unidades de saúde e nas unidades residenciais para pessoas idosas, o território nacional também abrange as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira, tendo aí sido aprovadas ao longo do tempo um vasto leque de medidas no âmbito da pandemia de COVID-19, destacando-se a Resolução do Conselho do Governo (Regional dos Açores) n.º 173/2022 de 18-10-2022, que “declara que todas as ilhas do arquipélago dos Açores se encontram em situação de alerta - COVID 19”, sendo-lhes aplicáveis as medidas de cumprimento obrigatório previstas no anexo à referida resolução.
Nesta senda, apenas nos parece possível afirmar que, com o fim do estado de alerta em território continental nacional, a partir das 23h59 de 30 de setembro, foi pelo Governo dado um sinal claro de que já seria oportuno que a Assembleia República legislasse sobre a cessação de vigência de leis publicadas no âmbito da pandemia, incluindo naturalmente as citadas normas legais previstas para vigoraram no decurso da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19.
Aliás, que assim é resulta inequívoco da circunstância de ter sido pelo Governo apresentada na Assembleia da República, em 11-11-2022, a Proposta de Lei n.º 45/XV, aprovada em Conselho de Ministros de 29 de setembro de 2022, em que, além do mais, está previsto o seguinte:
Artigo 1.º
Objeto
A presente lei considera revogadas diversas leis aprovadas no âmbito da pandemia da doença COVID-19, determinando expressamente que as mesmas não se encontram em vigor, em razão de caducidade, revogação tácita anterior ou revogação pela presente lei.
Artigo 2.º
Norma revogatória
Nos termos do artigo anterior consideram-se revogadas:
a) A Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na sua redação atual, que estabelece medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, com exceção do artigo 5.º;
(…)
Artigo 3.º
Efeitos
1 - Quando incida sobre normas cuja vigência já tenha cessado, a determinação expressa de não vigência de atos legislativos efetuada pela presente lei não altera o momento ou os efeitos daquela cessação de vigência.
2 - A revogação operada pelo artigo anterior não prejudica a produção de efeitos no futuro de factos ocorridos durante o período de vigência dos respetivos atos legislativos.”
O processo legislativo está em curso, conforme pode ser verificado em www.parlamento.pt, merecendo-nos destaque o parecer do conselho Superior da Magistratura que aí se encontra publicado, de que citamos, pelo seu interesse, a seguinte passagem (…):
4.1 Pela sua relevância concreta para a presente situação, importa recordar, quanto à cessação da vigência da lei, o que estatui o artigo 7.º do Código Civil.
Assim, nos termos do n.º 1, quando não se destine a ter vigência temporária, a lei só deixa de vigorar se for revogada por outra lei, podendo a revogação resultar, conforme prescrito no n.º 2, de declaração expressa, da incompatibilidade entre as novas disposições e as regras procedentes ou da circunstância de a nova lei regular toda a matéria da lei anterior.
Como se vê, o artigo 7.º apenas prevê a caducidade e a revogação como formas de cessação da vigência da lei.
A caducidade ocorre por superveniência de um facto (previsto pela própria lei que se destina a ter vigência temporária) ou pelo desaparecimento, em termos definitivos, da realidade que a lei se destinava regular. Já a revogação pressupõe a entrada em vigor de uma nova lei e pode ser expressa ou tácita, total (ab-rogação) ou parcial (derrogação). A revogação é expressa quando consta de declaração feita na lei posterior e tácita quando resulta da incompatibilidade entre as disposições novas e as antigas ou quando a nova lei regula toda a matéria da lei anterior.
4.2 No preâmbulo da presente proposta de lei, são feitas referências a diversas realidades, nem todas elas coincidentes, nem todas elas formas de cessação da vigência da lei, atento o antes exposto.
E, no artigo 1.º de tal documento, que define o seu objecto, pode resultar de difícil apreensão a real mens legis. Com efeito, de tal artigo decorre que “a presente lei considera revogadas diversas leis aprovadas no âmbito da pandemia da doença COVID-19, determinando expressamente que as mesmas não se encontram em vigor, em razão da caducidade, revogação tácita anterior ou revogação pela presente lei” (…). Recorde-se que a revogação e a caducidade apenas têm em comum o facto de serem ambas formas de cessação da vigência de diplomas legais, sendo, pois, de questionável acerto técnico a opção consagrada de dizer que se considera um diploma legal revogado em razão da sua caducidade, como é sugerido no artigo 1.º.
Importaria, pois, ter aferido se, e na afirmativa, quais dos vários diplomas legais enunciados no artigo 2.º já se encontram revogados expressa ou tacitamente, total ou parcialmente, quais aqueles que, atenta a sua natureza temporária e face ao evoluir da situação pandémica, já terão cessado a sua vigência por caducidade e quais os outros que, não sendo subsumíveis a nenhuma das referidas situações concretas, ainda mantêm vigência, carecendo, por isso, de uma declaração expressa de revogação como forma de cessação da produção dos seus efeitos na esfera jurídica. Com efeito, apenas uma declaração de revogação será adequada a produzir tal cessação de efeitos e tal declaração, salvo o devido respeito, não é confundível com a expressão “consideram-se revogadas”, lida esta, em termos sistemáticos, como estando inserida num diploma onde o artigo 1.º tem o conteúdo já enunciado e com o preâmbulo também já referenciado. Veja-se que uma “declaração expressa de não vigência” – cf. artigo 3.º da presente proposta de lei - não é, à face do disposto no artigo 7.º, do Código Civil e novamente ressalvado o devido respeito, forma de cessação da vigência da lei.
Tanto assim a presente proposta de lei o reconhece que, no artigo 3.º, n.º 1, salvaguarda – relativamente aos diplomas legais que já tenham cessado efectivamente a sua vigência pelas razões acima referenciadas – que os efeitos daquela cessação de vigência fiquem salvaguardados.
Pese embora, pelas razões que se enunciaram, a formulação do artigo 2.º possa suscitar as dúvidas interpretativas descritas, a verdade é que o n.º 2 do artigo 3.º da presente proposta de lei assume explicitamente que, através do disposto no artigo 2.º, o que se pretende é revogar tais diplomas (ainda que os mesmos já estivessem revogados expressa ou tacitamente ou tivessem caducado). De outro modo, não teria sido utilizada a expressão: “a revogação operada pelo artigo anterior”.
Torna-se, pois, claro que ainda não foi revogado, nem se pode considerar que tenha caducado, o disposto no art.º 6.º-E, n.º 7, da Lei n.º 1-A/2020, de 19-03, que, corresponde ao anterior art.º 6.º-A, n.º 6, perspetivando-se, tão-só, que a sua revogação poderá vir a ocorrer a breve trecho, se vier a ser aprovada pela Assembleia da República a Proposta de Lei n.º 45/XV/1.”
Concordamos inteiramente com este entendimento, sendo certo que a situação legislativa exposta nos citados arestos se manteve. Com efeito, sem que o processo legislativo iniciado com a proposta de Lei nº 45/XV/1 se tivesse completado, em 18-04-2023 foi publicado o DL nº 26-A/2023, o qual revogou expressamente o artigo 13.º-B do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13-03, o que parecia pressupor que a Lei 1-A/2020 ainda se mantinha em vigor.
E na verdade, só em 04-07-2013 foi publicada a Lei nº 31/2023 a qual, no seu art.º 1º, “determina, de forma expressa, a cessação de vigência de leis publicadas no âmbito da pandemia da doença COVID-19, em razão de caducidade, de revogação tácita anterior ou de revogação pela presente lei”.
Por sua vez, estabelece o art.º 2º, al. a) do mesmo diploma que se considera revogada a “Lei nº 1-A/2020, de 19 de março, que estabelece medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, com exceção do artigo 5.º”.
Este diploma revogou, pois, o art.º 6º-E da Lei nº 1-A/2020, de 19-03, disposição legal em que se havia fundado a suspensão da entrega judicial de imóvel a que se reportava o despacho apelado.
Ainda assim importa atentar que decorre claramente do art.º 4º da mesma lei que tal revogação apenas produz efeitos 30 dias após a publicação do mesmo diploma, ou seja, às 00h00m do dia 04-08-2023 (31º dia posterior a 04-07-2023).
Nesta conformidade, conclui-se que o despacho recorrido não merece censura, na parte em que considerou que o art.º 6º-E da Lei nº 1-A/2020 ainda se mantinha em vigor.
Tal permite-nos desde já concluir que caso se entenda que no caso se mostravam reunidos os pressupostos legais da suspensão de diligências executivas nos termos do mesmo preceito, perante a revogação expressa do referido preceito legal, sempre terá o Tribunal a quo apreciar, mesmo oficiosamente, o levantamento da suspensão da venda executiva, atenta a entrada em vigor da Lei nº 31/2023, de 04-07.

3.2.2. Da verificação dos requisitos de que depende a suspensão da entrega do imóvel Estabelece o artigo 6.º-E da Lei nº 1-A/2020, de 19-03, na redação resultante da Lei n.º 13-B/2021, de 05-04:
«Ficam suspensos no decurso do período de vigência do regime excecional e transitório previsto no presente artigo:
(…)
b) Os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família;
c) Os atos de execução da entrega do local arrendado, no âmbito das ações de despejo, dos procedimentos especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa».
E complementa o n.º 8 do mesmo artigo:
“8 - Nos casos em que os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência referentes a vendas e entregas judiciais de imóveis sejam suscetíveis de causar prejuízo à subsistência do executado ou do declarado insolvente, este pode requerer a suspensão da sua prática, desde que essa suspensão não cause prejuízo grave à subsistência do exequente ou dos credores do insolvente, ou um prejuízo irreparável, devendo o tribunal decidir o incidente no prazo de 10 dias, ouvida a parte contrária”.
Interpretando este preceito, alguma jurisprudência dele extraiu as seguintes conclusões:
a) se o imóvel em causa constituir casa de morada de família ficam automaticamente suspensas todas as diligências de entrega judicial da mesma;
b) se o imóvel a entregar, não sendo casa de morada de família, for um imóvel arrendado apenas se suspendem estas mesmas diligências caso “o arrendatário, por força da decisão final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa”;
c) se o imóvel em causa não constituir casa de morada de família nem for arrendado somente se suspende a prática de tais diligências caso estas “sejam suscetíveis de causar prejuízo à subsistência do executado ou do declarado insolvente (…) desde que essa suspensão não cause prejuízo grave à subsistência do exequente ou um prejuízo irreparável.”
Neste sentido, se pronunciaram os acs.:
- RP 27-04-2021 (Lina Baptista), p. 1212/20.6T8LOU-B.P1;
- RP 20-09-2021 (Manuel Domingos Fernandes), p. 2524/17.1T8LOU.P2.
Este parece ter sido o entendimento sufragado pelo Tribunal a quo.
Contudo, mais recentemente, a doutrina e a jurisprudência têm interpretado o citado preceito em sentido algo diverso, considerando que a mencionada al. b) só se aplica às ações executivas para pagamento de quantia certa em que seja penhorado e posteriormente vendido um imóvel que seja propriedade do executado e constitua a sua casa de morada de família, ou em situações em que sendo o mesmo imóvel propriedade do insolvente e venha a ser apreendido em processo de insolvência, com vista à liquidação, juntamente com a demais massa insolvente.
De acordo com esta corrente interpretativa, nas situações em que a casa de morada de família seja arrendada e venha a ser alvo de procedimento de despejo ou entrega judicial de coisa arrendada, ou execução para entrega de coisa certa em que o título executivo seja uma sentença de despejo transitada em julgado aplica-se (apenas e só) a al. c) do mesmo preceito.[9]
Com efeito, interpretando o mencionado art.º 6º-E da Lei 1-A/2020, diz J.H. DELGADO DE CARVALHO[10]:
“a alínea c) do n.º 7 do art.º 6.º-E regula especificamente o ato de entrega judicial de imóvel arrendado que for casa de morada de família, vale dizer, o mencionado normativo protege o arrendatário habitacional, seja qual for a natureza do processo ou procedimento em que aquele ato de entrega possa ocorrer.
A entrega judicial de imóvel arrendado para habitação obedece a uma ponderação casuística, e não apenas abstrata (cf. a al. c) do n.º 7 do art.º 6.º-E que não impõe, em regra, a suspensão do ato de entrega do locado), que ocorre incidentalmente no processo ou procedimento.
O executado e o insolvente não têm de suscitar o incidente para suspensão da entrega; já o arrendatário habitacional tem de se opor ao despejo.
Por conseguinte, quanto ao ato de entrega de coisa imóvel, importa distinguir:
⎯ nas execuções, se o imóvel pertencer ao executado e for a casa de morada de família deste, é um ato que não se pratica em qualquer caso, durante o período de vigência do RPTE (regra da suspensão) – cf. al. b) do n.º 7 do art.º 6.º-E;
⎯ ainda no âmbito das execuções, se o imóvel pertencer ao executado, mas não tiver como finalidade a habitação efetiva e permanente daquele, em regra, esse ato pratica-se, exceto se o executado alegar e demonstrar que a realização da entrega do imóvel provoca prejuízo à sua subsistência, nos termos do n.º 8 do art.º 6.º-E (desvio à regra da não suspensão);
Nas insolvências, só não se pratica (desvio à regra da não suspensão) se o imóvel for a casa de morada de família do insolvente (cf. al. b) do n.º 7 do art.º 6.º-E);
⎯ Nos demais processos (de execução para entrega de imóvel arrendado para fins habitacionais) e procedimentos indicados na alínea c) do n.º 7 (p. ex., entrega de imóvel arrendado para habitação no domínio do Procedimento Especial de Despejo), o ato de entrega, em regra, pratica-se (regra da não suspensão), exceto se for demonstrada, incidentalmente, a situação de fragilidade do arrendatário ou ex-arrendatário.
No âmbito do processo de insolvência, a entrega de imóvel que não constitua casa de morada de família do insolvente parece ser um ato permitido, assim como a sua venda.”
Em sentido idêntico aproximado a este se pronunciou o ac. RP 25-10-2022 (Artur Dionísio Oliveira), p. 18281/21.0T8PRT.P1, nos seguintes termos:[11]
“Não suscita dúvidas que a al. b) apenas se aplica à entrega judicial de imóveis que constituam a casa de morada de família do obrigado a essa entrega.
E é absolutamente inequívoco que a al. c) apenas se aplica a imóveis arrendados, ou melhor, apenas se aplica à entrega de imóveis pelos respectivos arrendatários.
Não cremos, porém, que o legislador tenha querido concentrar todas as medidas de protecção respeitantes à casa de morada de família na alínea b), abstraindo da sua titularidade, ou seja, independentemente de ser um bem próprio ou arrendado, reservando a medida da alínea c) (e do n.º 8) para os imóveis que não constituem a casa de morada do visado pela medida judicial. Na verdade, a exigência consagrada nesta al. c), de que o arrendatário possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria (ou por outra razão social imperiosa), só se compreende se a entrega respeitar à casa de morada do arrendatário.
Temos, assim, como certo que a alínea c) se aplica aos actos de execução de entrega de imóveis arrendados, no âmbito das ações de despejo, dos procedimentos especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada, independentemente de se tratar da casa de morada de família ou não.
Deste modo, tendo ainda em conta o propósito do conjunto de medidas excepcionais e temporárias consagradas na Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, bem como a letra e a própria sistematização da al. b) do n.º 7 e do n.º 8, ambos do artigo 6.º-E, mais facilmente constatamos que estes dois preceitos dizem respeito a imóveis pertencentes ao executado ou ao insolvente, apreendidos nos respectivos processos de execução ou de insolvência, tendo em vista a sua venda e a subsequente satisfação dos créditos do exequente ou dos credores do insolvente. Mas enquanto a al. b) se aplica apenas quando está em causa a casa de morada do executado ou do insolvente, o n.º 8 aplica-se a quaisquer imóveis.”
No mesmo sentido se pronunciaram igualmente os acs.:
- RP 27-04-2021 (Alexandra Playon), p. 514/20.6T8VNG.P1;
- RE 13-01-2022 (Vítor Sequinho dos Santos), p. 1152/20.9T8LLE-A.E1;
- RG 10-03-2022 (António Beça Pereira), p. 2822/19.0T8VCT-A.G1;
- RE 28-04-2022 (Maria João Sousa e Faro), p. 2882/21.3T8STB-B.E1;
- RL 13-10-2022 (António Santos), p. 17696/21.2T8LSB.L1-6;
- RL 22-11-2022 (Amélia Alves Ribeiro), p. 2012/22.4T8LSB.L1-7;
- RL 06-12-2022 (Cristina Lourenço), p. 17895/19.7T8SNT-B.L1-8.
No caso em apreço, o Tribunal a quo decidiu ser aplicável à situação dos autos a al. b).
Ora, como decorre do supra exposto, e em consonância com o entendimento atualmente maioritário na doutrina e jurisprudência, que sufragamos, entende este Tribunal que a mencionada al, b) não é aplicável à situação dos autos, porque o executado e ora apelado não é proprietário do imóvel em questão, sendo certo que também não é aplicável a al. c) porque o executado não é nem alguma vez foi arrendatário do imóvel a que se reporta a presente execução.
Mas admitindo que a al. b) se possa considerar aplicável (por interpretação extensiva) às execuções para entrega de coisa certa que tenham por objeto imóvel cujo proprietário é o exequente e relativamente ao qual o executado não tem qualquer título válido e eficaz que legitime a detenção do mesmo, sempre haverá que concluir que a aplicação deste mecanismo suspensivo depende da verificação de um importante pressuposto: que o imóvel constitua a casa de morada de família do executado.
Ora, no caso em apreço, ao contrário do afirmado no despacho apelado, não se acha demonstrado que o executado resida no imóvel que é objeto da presente execução.
Com efeito, muito embora na sentença proferida no âmbito do processo nº 3123/18.6T8LSB, que integra o título executivo, o Tribunal a quo tenha considerado provado que o executado “ocupa a fração objecto da presente acção” (ponto 6 dos factos provados), e que a exequente assinou um acordo escrito que consubstanciava um contrato de comodato celebrado com o executado e a sua falecida mulher, contrato esse que tinha por objeto o imóvel dos presentes autos (pontos 7 e 8 dos factos provados), a verdade é que esta sentença foi objeto de recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, o qual, apesar de confirmar aquela sentença, na parte em que a mesma reconheceu o direito de propriedade da autora sobre o imóvel reivindicado e condenou o réu a restituí-lo à autora, alterou a decisão sobre matéria de facto no tocante aos referidos pontos 7 e 8 dos factos provados, passando agora a considerar-se assente que a exequente assinou duas folhas de papel que continham apenas um cabeçalho com o seu nome e morada em branco[12], considerando não provado que aquando dessa assinatura tais folhas de papel contivessem o clausulado que delas consta (e que consubstanciavam o invocado contrato de comodato).
E, em consequência de tal alteração considerou o Tribunal da Relação de Lisboa não ter resultado demonstrado que a exequente tenha outorgado qualquer contrato de comodato com o executado e a sua mulher, entretanto falecida.
Este acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa foi confirmado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-01-2023 (Luís Espírito Santo), p. 3123/18.6T8LSB.L1.S1.
Nesta conformidade verificamos que dos factos provados e não provados na sentença exequenda, tal como resultaram na sequência da alteração que neles foi introduzida pelo Tribunal da Relação de Lisboa resulta apenas demonstrado que o executado “ocupa a fração objeto da presente ação”.
Em nenhum outro ponto do elenco de factos provados consta qualquer elemento de facto que permita esclarecer que tipo de uso o réu, ora executado dá ao referido imóvel, e muito menos que o mesmo ali resida.
Nesta medida conclui-se que no caso não podia o Tribunal a quo considerar preenchido o pressuposto da aplicação da medida suspensiva consagrada no art.º 6º-E, nº 7, al. b) da Lei 1-A/2020, de 19-03, na redação resultante da Lei 13-B/2021, de 05-04.
Em consequência, cumpre revogar a decisão apelada, determinando o prosseguimento da presente execução.

3.2.3. Das custas
Nos termos do disposto no art.º 527º, nº 1 do CPC, “A decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito.”
A interpretação desta disposição legal, no contexto dos recursos, deve atender ao elemento sistemático da interpretação.
Com efeito, o conceito de custas comporta um sentido amplo e um sentido restrito.
No sentido amplo, tal conceito inclui a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte (cf. art.ºs 529º, nº 1, do CPC e 3º, nº1, do RCP).
sentido restrito, as custas são sinónimo de taxa de justiça, sendo esta devida pelo impulso do processo, seja em que instância for (art.ºs 529º, nº 2 e 642º, do CPC e 1º, nº 1, e 6º, nºs 2, 5 e 6 do RCP).
O pagamento da taxa de justiça não se correlaciona com o decaimento da parte, mas sim com o impulso do processo (vd. art.ºs 529º, nº 2, e 530º, nº 1, do CPC). Por isso é devido quer na 1ª instância, quer na Relação, quer no STJ.
Assim sendo, a condenação em custas a que se reportam os art.ºs 527º, 607º, nº 6, e 663º, nº 2, do CPC, só respeita aos encargos, quando devidos (art.ºs 532º do CPC e 16º, 20º e 24º, nº 2, do RCP), e às custas de parte (art.ºs 533º do CPC e 25º e 26º do RCP).
Tecidas estas considerações, resta aplicar o preceito supracitado.
E fazendo-o diremos que no caso em apreço, considerando que a taxa de justiça já se encontra assegurada, que nem a exequente, nem o executado deram causa ao presente recurso, e que o executado não contra-alegou, não havendo encargos a satisfazer, importa concluir não haver quaisquer outras custas a considerar.
4. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes nesta 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a presente apelação procedente e, em consequência, revogar a decisão recorrida, devendo o Tribunal a quo diligenciar pelo prosseguimento da execução.
Sem custas.

Lisboa, 12 de setembro de 2023
Diogo Ravara
José Capacete
Ana Rodrigues da Silva
______________________________________________________
[1] Cfr. refª 35226578.
[2] Refª 424845850, de 11-04-2023.
[3] Refª 45453575, de 02-05-2023.
[4] Refª 144764332, de 06-06-2023.
[5] Neste sentido cfr. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª Ed., Almedina, 2018, pp. 114-117
[6] Vd. Abrantes Geraldes, ob. cit., p. 119
[7] In Blog do IPPC, entrada de 13-10-2022, disponível em:
https://blogippc.blogspot.com/2022/10/cessacao-de-vigencia-da-l-1-a2020-de-193.html.
[8] Inédito.
[9] Esta será igualmente a al. aplicável às situações em que
[10] “O Regime Processual Transitório e Excecional estabelecido pela L 13-B/2021, de 5/4 (Incidências na Ação Executiva)”, in, blog IPPC, abril 2021, pp. 13-15, disponível em https://drive.google.com/file/d/1H0vEzIQ9iKPo6Dn-_t_A_nud9Nz98B-T/view?usp=sharing
[11] Os sublinhados são da nossa responsabilidade.
[12] Trata-se do ac. RL 14-07-2022 (Laurinda Gemas), p. 3123/18.6T8LSB.L1.