Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
124/14.7YELSB-A.L1-5
Relator: FERNANDO VENTURA
Descritores: ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
NOVOS FACTOS NÃO AUTONOMIZÁVEIS
PRINCÍPIO NE BIS IN IDEM
VIOLAÇÃO DAS REGRAS DE SEGURANÇA
CRIME DE INFRAÇÃO ÀS REGRAS DE CONSTRUÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/07/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: 1. Nos termos da disciplina normativa contida nos artigos 358.º e 359.º do CPP, a alteração substancial dos factos em audiência constitui incidente da fase de julgamento, que se desdobra operativamente em vários momentos e diversos atos judiciais.
2. O primeiro momento é constituído pela verificação pelo tribunal que a prova produzida em audiência levou a que se averiguasse indiciariamente de factos com relevo para a decisão da causa, os quais comportam uma alteração do facto histórico-social objeto da perseguição jurídico-penal, tal como conformado pelo ato processual definidor do objeto do processo (acusação ou pronúncia). Deve o tribunal verificar igualmente se os novos factos indiciados preenchem o conceito estatuído na alínea f) do artigo 1.º do CPP, ou seja, se são subsumíveis a crime (materialmente) diverso do imputados na acusação/pronúncia ou comportam a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
3. Atingida convicção indiciária positiva pelo julgador sobre essas duas vertentes, e não se tratando de alteração derivada de factos alegados pela defesa, o modo de atuação subsequente decorre do comando inscrito na parte final do n.º 1 do artigo 358.º, em conjugação com o n.º 4 do artigo seguinte: o tribunal comunica a alteração aos sujeitos processuais e inquire-os sobre se estão de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos, concedendo-lhes, se o requererem, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa, com o consequente adiamento da audiência, se necessário.
4. Uma vez formalizada a posição dos sujeitos processuais e desenvolvida a atividade instrutória tida por necessária, o segundo momento aplicativo do instituto da alteração substancial dos factos corresponde à prolação da sentença. As consequências decorrentes da inexistência de acordo, com aplicação da norma do n.º 1 do artigo 359.º do CPP, constituem questão prévia à apreciação do mérito, cuja cognição deve ter lugar na sentença, com precedência relativamente à enunciação dos factos provados e não provados e da pronúncia sobre a questão da culpabilidade. É, pois, processualmente incorreta a apreciação dessa questão em momento anterior à prolação da sentença.
5. Por força do segmento final do n.º 2 do artigo 359.º do CPP, incumbe ao juiz decidir sobre o caráter autonomizável ou não autonomizável dos novos factos comunicados, para o efeito de procedimento pelo Ministério Público sobre os mesmos, devendo para tanto recorrer aos critérios jurídico-materiais que concretizam a identidade funcional pressuposta no funcionamento do efeito consuntivo do princípio ne bis in idem.
6. Essa decisão é recorrível, indo além do simples alargamento da discussão ou da promoção do andamento do processo.
7. Entre a previsão do crime de violação das regras de segurança, constante no artigo 152.º-B do CP, e do crime de infração de regras de construção, constante no artigo 277.º do CP, existe uma larga zona de sobreposição, própria de uma relação de subsidiariedade, convergindo os dois tipos penais na defesa do bem jurídico integridade física e vida do trabalhador por conta de outrem.
8. Encontrando-se o desvalor compreendido no objeto da comunicação de alteração substancial dos factos numa relação de unidade material de sentido com aquele presente na acusação, não podendo ser compreendidos um sem o outro, deve entender-se que os novos factos não são autonomizáveis.
(Sumário elaborado pelo relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I. Relatório
1. Em 26 de maio de 2020, o Ministério Público deduziu acusação contra os arguidos ... (aqui recorrente) e ..., para julgamento perante tribunal singular, fazendo uso do disposto no n.º 3 do artigo 16.º do CP.
Nessa peça, imputou ao arguido ... «um crime de violação das regras de segurança agravado pelo resultado morte, previsto e punido pelos artigos 152.º-B, n.ºs 1 e 4, alínea a), e 14.º, n.º 3, ambos do Código Penal (praticado contra ...), e um crime de violação de regras de segurança previsto e punido pelos artigos 152.º-B, n.º 1, e 14.º, n.º 3, ambos do Código Penal (praticado contra ...), ambos os ilícitos por referência ao disposto nos artigos 66.º, 67.º, 68.º e 81.º do Decreto-Lei n.º 418251/58, de 11 de Agosto; nos artigos 5.º, n.ºs 2 a 4, 6.º, 7.º e 20.º, alíneas d) e g), do Decreto-Lei n.º 273/2003, de 29 de Outubro; nos artigos 3.º, alínea g), e 14.º, alíneas b), c), d) e h) da Lei n.º 31/2009, de 3 de Julho; no artigo 16.º, n.º 2, alíneas a) e d), e n.º 3 da Lei n.º 102/2009, de 10 de Setembro; e no artigo 36.º da Lei n.º 19/2007, de 22 de Maio».
Por seu turno, o arguido ... foi acusado da prática, como autor, de «um crime de violação de regras de segurança agravado pelo resultado morte, previsto e punido pelos artigos 152.º-B, n.ºs 1 e 4, alínea a), e 14.º, n.º 3, ambos do Código Penal (praticado contra ...), um crime de violação de regras de segurança, previsto e punido pelos artigos 152.º-B, n.º 1, e 14.º, n.º 3, ambos do Código Penal (praticado contra ...) com referência ao disposto nos artigos 66.º, 67.º, 68.º e 81.º do Decreto-Lei n.º 4182/58, de 11 de Agosto; e no artigo 20.º, alínea d), do Decreto-Lei n.º 273/2003, de 29 de outubro».
2. Remetidos os autos a juízo, procedeu-se a audiência de julgamento, no decurso da qual, em sessão de 3 de setembro de 2021, foi proferido despacho, através do qual foi comunicada «alteração substancial dos factos descritos na acusação (a bold) nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 359.º e 358.º, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Penal e alteração da qualificação jurídica». Consubstanciando essa comunicação, procedeu-se à enunciação de um elenco de factos, culminando com a seguinte menção:
«Em face da prova produzida o tribunal julga imputável aos arguidos o crime de infracção de regras de construção p.p. pelos artigos 10º, 277º/1 al. a) e n.º 2 e art.º 285º, todos do Código Penal»
3. Fixado prazo concedido aos sujeitos processuais para se pronunciarem «nos termos e para os efeitos do previsto pelo art.º 359.º/2 e 3 do C.P.P. e 358/1 e 3 e sem prejuízo do disposto no art.º 16º/3 do CPP», o Ministério Público apresentou requerimento, no qual deu o seu acordo à continuação do julgamento «relativamente [aos] factos ora aditados», requereu, ao abrigo do disposto n.º 3 do artigo 16.º do Código de Processo Penal (CPP), o julgamento dos arguidos com intervenção do tribunal singular, e ainda que, caso os arguidos não dessem o seu acordo à continuação do julgamento, fosse determinada «a extracção de certidão de todo o processado e a sua remessa ao DIAP de Lisboa».
Por seu turno, a defesa do arguido ... declarou não se opor à continuação do julgamento relativamente aos factos aditados.
Diferentemente, o arguido ... apresentou requerimento, nos termos do qual deduziu oposição à continuação do julgamento pelos factos comunicados, opondo-se igualmente «à extração da certidão requerida pelo Ministério Público por ofensa ao previsto no n.º 2 do artigo 359.º do CPP».
4. Em 21 de setembro de 2021, foi proferido o despacho recorrido, nos termos do qual o tribunal recorrido determinou «que se extraia certidão integral dos autos e se remeta ao DIAP de Lisboa para instauração de procedimento criminal contra o arguido ...».
5. Ato seguido, procedeu-se à leitura da sentença, nos termos da qual foram os dois arguidos absolvidos dos crimes por que foram acusados e o arguido ... absolvido da prática de um crime de infração de regras de construção p. e p. pelos artigos 277.º, n.ºs 1, alínea a) e 2, e 285.º, ambos do Código Penal (CP).
6. Inconformado, por requerimento apresentado em 21 de outubro de 2021, o arguido ... veio interpor recurso para esta relação do despacho proferido em 21 de setembro de 2021, referido supra. Extraiu da motivação as seguintes conclusões:
«- Objeto
A. O presente recurso tem por objeto a decisão contida no despacho judicial datado de 21.09.2021, de autonomização de factos novos e extração de certidão integral dos autos e remissão ao DIAP de Lisboa para instauração de procedimento criminal contra o Arguido ... por estes factos.
[...]
- Da ilegalidade do despacho recorrido
− dos factos que não são novos e daqueles que, embora sendo novos, não implicam uma alteração substancial
F. A 03.09.2021, foi comunicada pelo Tribunal a quo alteração substancial de factos.
G. Todas as alterações realizadas ao elenco de factos constante da Acusação foram configuradas pelo Tribunal a quo como factos novos que implicam uma alteração substancial.
H. Sucede, porém, que, além dos factos novos que implicam uma alteração substancial do objeto da acusação, o despacho recorrido refere alterações em que claramente há:
a. Factos que na realidade não são novos;
b. Factos que, embora sendo novos, não implicam uma alteração substancial, e que, por isso, deveriam ter sido tidos em conta no processo em curso, nos termos do disposto no artigo 358.º do CPP.
I. Como é evidente, e diga-se, desde já, a abertura de novo inquérito sobre tais factos (referidos nos pontos 15 a 18 do presente recurso) – que não são sequer novos, quanto mais autonomizáveis – constituiria uma violação do princípio ne bis in idem, plasmado no artigo 29.º, n.º 5, da CRP.
− Dos factos não constantes da acusação que impliquem alteração substancial dos factos
J. Só quanto aos factos verdadeiramente novos (citados no ponto 19 do presente recurso), que implicam a alteração substancial dos factos descritos na acusação, cabe aferir da possibilidade de autonomização, para efeitos do disposto no artigo 359.º, n.º 2, do CPP. São eles:
«Ao não dar a ordem para inclinar a vala com um talude a 45º ou mandar proceder à entivação da vala nas frentes de escavação, sabia que não estava a cumprir com as regras de construção aplicáveis ao caso e que não garantia a estabilidade do terreno e dos blocos de fundações existentes durante a fase de escavação;
Com tal conduta, o arguido ... sabia que incumpria o estabelecido no Plano de Segurança e Saúde para a fase de projecto no que concerne ao seu desenvolvimento e especificação na fase de obra; no entanto, não adoptou nenhuma das medidas de segurança que se impunham face ao risco de soterramento existente – taludes a 45.º (quarenta e cinco graus) ou entivação;
Ao infringir as regras de construção supra referidas o arguido ... não impediu o perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo e a saúde dos trabalhadores, porquanto não se assegurou da estabilidade das pedras de fundação encontradas, tendo sujeitado os trabalhadores a tais perigos;
O arguido ... não representou como possível que, ao agir da forma descrita não ordenando a entivação da vala nas frentes de escavação, nem a sua inclinação em talude a 45º, tal poderia conduzir ao desmoronamento de terras e poderia causar a morte ou lesar gravemente a integridade física dos trabalhadores que ali exerciam funções, como ocorreu. 
K. São factos que se referem, em exclusivo, ao elemento subjetivo do tipo de crime.
L. A acusação enfermava, ab initio, de insuficiências e contradições insanáveis de alegação de factos que suportassem o tipo subjetivo. Mesmo que o Ministério Público tivesse acertado no crime em causa, sempre faltariam os elementos constitutivos desse ou de qualquer outro tipo de crime, porquanto a alegação da Acusação em matéria de tipo subjetivo é um «nado morto» ostensivo que o Tribunal a quo tentou - não apenas refundar, mas ostensivamente fundar ab initio.
M. Insuficiências estas que tornaram impossível o exercício do direito de defesa quanto aos mesmos por parte do Arguido, constituindo a nulidade prevista no n.º 3 do artigo 283.º do CPP.
N. Tal como resulta da jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça:
«Ora, a consabida razão de ser do regime que decorre das normas dos artigos 1.º, alínea f), 358.º e 359.º situa-se num plano diverso, que tem como pressuposto que na acusação, ou na pronúncia, se encontravam devidamente descritos os factos que integravam, quer todos os elementos do tipo objectivo de ilícito, quer todos os elementos do tipo subjectivo de ilícito, respeitantes ao tipo de ilícito incriminador pelo qual o arguido fora sujeito a julgamento.
Por isso, a ausência ou deficiência de descrição na acusação dos factos integradores do respectivo tipo de ilícito incriminador – no caso, descrição dos factos atinentes aos elementos do tipo subjectivo de ilícito – conduz, se conhecida em audiência, à absolvição do arguido.»  
O. Assim, a única consequência admissível a sua absolvição pura e simples do Arguido, e não a tentativa, levada a cabo pelo Tribunal a quo, de sugerir ao Ministério Público que o acuse novamente pelos mesmos factos.
P. Ainda que assim não fosse, o que não se concede, estes factos – só relativos ao tipo subjetivo – estão de tal forma interligados com o objeto do atual processo, que não podem ser extraídos isoladamente por forma a que se conclua pela prática de ilícito sem que se conheça dos factos fundamentais do objeto da Acusação – designadamente os correspondentes o tipo objetivo de ilícito.
Q. Além do mais, é incompreensível a invocação no despacho ora recorrido da doutrina do concurso ideal de infrações para decidir pela autonomização dos factos em causa. 
R. O crime de violação de regras de segurança (p. e p. pelo artigo 152.º-B do CP) é subsidiário do crime de infração de regras de construção (p. e p. pelo artigo 277.º, n.º 1 do CP), tendo estes, portanto, uma relação de concurso aparente entre si, não ideal.
S. Está apenas em causa o crime de violação de regras de segurança (do qual, precisamente, o Arguido foi já absolvido – após alteração da qualificação jurídica – na sentença proferida), cujo âmbito é mais alargado, nos casos em que não estão verificados os pressupostos do crime de infração de regras de construção, pelo que a relação entre os crimes é, de facto, de subsidiariedade, que é uma modalidade de concurso aparente, bem distinta do concurso ideal,
T. Considera o Tribunal a quo que pode absolver o mesmo arguido, pela mesma situação da vida, de um único crime, por falta de factos relativos ao elemento subjetivo (num processo que já fez 7 anos!), para mais tarde virem a condená-lo por esse crime de que foi já absolvido. 
U. Não tem, evidentemente, razão.
V. Não se podendo senão concluir que os factos em apreço não são autonomizáveis.
W. Por todos os motivos expostos, a decisão de autonomização dos factos, bem como de comunicação dos mesmos ao Ministério Público para novo procedimento criminal, viola o disposto nos artigos 383.º, n.º 3, 359.º, n.º 2, do CPP, e 29.º, n.º 5, da CRP, pelo que deverá ser revogada.
Nestes termos e nos melhores de direito, deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser revogada a decisão recorrida, contida no aludido despacho de 21.09.2021.»
7. A magistrada do Ministério Público junto do tribunal recorrido apresentou resposta ao recurso, através de peça desprovida de remate conclusivo.
Em súmula, a título de questão prévia, defendeu a rejeição do recurso, que considerou inadmissível, por se tratar de despacho de mero expediente e por falta de interesse em agir do recorrente. Quanto ao objeto do recurso, defendeu que o tribunal recorrido procedeu a alteração substancial dos factos consonante com a prova carreada para os autos e produzida em audiência de julgamento, na qual se apuraram mais factos, diferente daqueles que vinham imputados na acusação público, defendendo o acerto do juízo que a subsunção dos mesmos ao direito. Mais entendeu que, ao contrário do argumentado pelo arguido recorrente, bem andou o Tribunal ao considerar que os factos novos são autonomizáveis do objeto dos presentes autos, afastando igualmente a violação do princípio ne bis in idem.
8. Por despacho de 29 de outubro de 2021, foi o recurso admitido, sendo decidida a sua subida imediata, em separado e com efeito suspensivo, com referência aos artigos 406.º, n.º 1, 407.º, n.º 1 e 408.º, n.º 3, do CPP.
9. Subidos os autos a esta Relação, a Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer.
 Relativamente à questão prévia de inadmissibilidade do recurso, pugnou também pela rejeição do mesmo, entendendo que o recurso versa despacho de mero expediente, insuscetível de recurso, nele não se tomando decisão sobre o mérito do inquérito a instaurar ou sobre questão interlocutória relacionada com o objeto dos autos. Entende também que o recorrente não tem interesse em agir, uma vez que deduziu oposição ao conhecimento dos factos novos pelo tribunal a quo, levando à determinação da extração de certidão em cumprimento do artigo 359.º, n.º 2 do CPP, e defende que, por essa razão, o despacho não foi proferido contra o arguido.
Subsidiariamente, sobre o mérito do recurso, diz que «quanto aos factos novos e o seu enquadramento no crime p. e p. no artigo 277.º, n.ºs 1, al. a), e 2, e 285.º, do Código Penal, [...] os mesmos, muito embora com o acordo do Ministério Público e dos arguidos, ou com a oposição de um deles, como foi o caso, determinam a incompetência material do tribunal singular para deles conhecer, pois que a moldura penal máxima abstrata aplicável é superior a 5 anos, sendo o crime agravado pelo resultado morte, de acordo com os termos conjugados dos arts. 14.º, n.º 2, al. a), 16.º, n.º 1, e 359.º, n.ºs 1, 2 e 3, todos do CPP». Defende que «os novos factos teriam sempre de ser autonomizados, por não poderem ser julgados em tribunal singular [a utilização do art. 16.º, n.º 3, do CPP apenas opera por iniciativa do Ministério Público] e dar lugar à extração de certidão para eventual procedimento criminal».
Termina pela rejeição do recurso, por manifesta improcedência.
10. Notificado o recorrente, nos termos do n.º 2 do artigo 417.º do CPP, veio responder a esse parecer.
Em síntese, disse discordar da qualificação do despacho recorrido como de mero expediente, antes procedendo à apreciação e decisão sobre a autonomização dos factos que importaram a alteração substancial; considera que «é de toda a evidência que o arguido é afetado desfavoravelmente pela decisão errónea de autonomização de factos que representam alteração substancial e que determina “que se extraia certidão integral dos autos e se remeta para o DIAP de Lisboa para instauração de procedimento criminal contra o arguido”»; defende que lhe assiste interesse em agir, por ter sido a qualificação dos factos novos como autonomizáveis que determinou a extração de certidão e remessa ao DIAP, e não a sua oposição; por último, diz que os factos novos apenas poderão determinar a incompetência material do tribunal singular estando em causa uma alteração substancial, o que não sucedeu, e que, ainda que tivesse havido acordo, a consequência não seria a autonomização dos factos novos e a extração de certidão para eventual procedimento criminal, mas sim a remessa dos autos para o tribunal competente, não sendo os novos factos e qualificação jurídica comunicados que determinam a incompetência do tribunal singular.
No mais, reitera a posição da motivação do recurso, que sintetiza nestes termos:
«41. Por outras palavras, os factos novos cuja autonomização foi determinada pelo Tribunal a quo não são “susceptíveis de fundamentar uma incriminação autónoma em face do objeto do processo”, sem que a estes se juntem os factos pelos quais o Arguido ... já foi julgado.
42. Concorre para tal conclusão a circunstância de o crime de violação de regras de segurança ser um crime subsidiário do crime de infração de regras de construção, o que significa que a valoração social dos factos em apreço é a mesma, diferindo apenas a norma do Código Penal concretamente aplicável. 
43. Assim, é ilegal a decisão de autonomização dos factos, bem como de comunicação dos mesmos ao Ministério Público para novo procedimento criminal, tendo sido violado, no despacho recorrido, o disposto nos artigos 359.º, n.º 2, do CPP, e 29.º, n.º 5, da CRP.»
11. A solicitação do relator, foi emitida e remetida ao presente apenso certidão da sentença proferida em 21 de setembro de 2021, com nota de que a mesma transitou em julgado no dia 21 de outubro de 2021.
12. Em sede de exame preliminar, foram alterados o modo de subida e o efeito do recurso interposto, fixando-se o modo de subida diferida, a processar no momento de subida de recurso interposto da decisão que tiver posto termo à causa (já ultrapassado) e com efeito meramente devolutivo. Mais se determinou que o tribunal recorrido, após executar a extração de certidão e a remessa determinadas no despacho recorrido, remetesse os autos principais a esta Relação e, ainda, a notificação do recorrente para os efeitos do n.º 5 do artigo 412.º do CPP. Nenhum dos sujeitos processuais impugnou esse despacho e, correspondendo a convite que lhe foi dirigido, o recorrente ... veio manifestar interesse no conhecimento do recurso.
13. Remetidos os autos, foram lavrados os vistos e procedeu-se a conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
A. Objeto do recurso e questão a decidir
14. Mostra-se sedimentado na doutrina e na jurisprudência o entendimento de que a delimitação do objeto do recurso decorre do enunciado das conclusões formuladas na motivação do recurso, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 2ª ed., Ed. Verbo, pág. 335 e Ac. do STJ de 24/03/99, in CJ (STJ), ano VII, T 1, pág. 247).
Atento o objeto formal da impugnação – o despacho judicial proferido em audiência previamente à prolação da sentença -, a única questão colocada no recurso e que se impõe apreciar reconduz-se ao acerto do juízo de autonomizabilidade dos factos comunicados em relação ao objeto do processo, para efeitos do n.º 2 do artigo 359.º do CPP.
Haverá, no entanto, e com procedência, que tomar posição sobre os pressupostos de admissibilidade do recurso, cuja verificação é posta em crise pelo Ministério Público.
B. Do despacho recorrido
15. Importa começar a enunciar o teor do despacho recorrido.
Essa tarefa comporta aqui uma especialidade, pois a decisão tem como pressuposto os factos comunicados na sessão da audiência de 3 de novembro de 2021, a título de alteração substancial dos factos descritos na acusação e decorrente alteração da qualificação jurídico-penal, ao abrigo dos artigos 1.º, alínea f) e 359.º do CPP, pelo que se impõe ter presente o seu conteúdo. Acresce que esse elenco, na formulação constante da ata, mescla os factos alterados com outros não alterados, na formulação da acusação (cujo teor não esgotam), oferecendo ao leitor, como fator de diferenciação, um elemento gráfico, a saber, o realce dos primeiros a negrito (cfr. ponto 2, supra).
Assim, para evidenciar quais os factos que o tribunal recorrido considerou como consubstanciando a alteração, de modo a confrontá-los com o teor da acusação, a transcrição reproduz fielmente esses realces.
15.1. Lê-se na ata da sessão da audiência de 3 de novembro de 2021:
«Pela Mmª Juiz de Direito foi comunicada a seguinte alteração substancial dos factos descritos na acusação (a bold) nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 359.º e 358.º, n.º 1 e 3, do Código de Processo Penal e alteração da qualificação jurídica:
O arguido ... desempenhava as funções de Encarregado da Obra nos termos do contrato de trabalho a termo incerto de fls. 1064-1067 cujo teor se dá por reproduzido, cabendo-lhe, designadamente, as seguintes responsabilidades:
a. chefiar as obras sob a sua responsabilidade, coordenando as várias actividades;
b. controlar a qualidade dos trabalhos próprios e de subempreiteiros;
c. proceder à leitura e interpretação de desenhos e respetivas marcações;
d. controlar o aprovisionamento da obra;
e. organizar o estaleiro em obra de acordo com os planos de qualidade, ambiente e segurança aprovados;
f. gerir os equipamentos e informar o Diretor da Obra da necessidade de manutenção ou substituição;
g. controlar o fabrico de materiais em obra;
h. conhecer e aplicar a política do SGI, colaborar na sua implementação e aplicar todos os processos definidos;
i. efetuar uma correcta gestão de resíduos, actuar em caso de emergências ambientais e adoptar boas práticas ambientais;
j. utilizar os EPI’s específicos para a sua função e actividade que desenvolvem assim como zelar pela segurança e saúde de todos.
No aludido Plano da fase de projecto encontrava-se referido que, nas escavações para as fundações, deveria existir talude natural ou entivações, devendo em qualquer dos casos sanear-se as paredes da escavação de elementos soltos como medidas preventivas dos riscos de esmagamento, soterramento e deslizamento de terras;
Prevê-se ainda, em tal Plano:
a. a elaboração e apresentação prévia de um Plano de Execução de escavações para as fundações, plano esse que antecederia a fase das escavações e que deveria ser apresentado à Fiscalização da Obra.
b. Previa-se ainda no Plano de Trabalhos com riscos especiais, no que toca à execução de muros de Berlim, no que toca ao perigo de movimento de terras e desmoronamentos: cumprir com os taludes de segurança mas escavações efectuadas para a realização de painéis de betão armado, se necessário entivar os locais (...);
c. Quanto à escavação e quanto ao risco de derrocadas/desabamento, a execução dos taludes terá em consideração o talude de segurança que deverá ter uma inclinação máxima de 45º ou redução do talude de acordo com a natureza do terreno encontrado.
No dia 1 de Agosto de 2014, sexta-feira, a obra em causa encontrava-se na fase de escavação e construção da parede de suporte à construção adjacente (Edifício Cimpor), encontrando-se ainda em curso os trabalhos de escavação.
Nesse mesmo dia, pelas 17 horas, ... terminou a abertura de uma vala com 8 (oito) metros de cumprimento [sic], 2,5 (dois vírgula cinco) metros de largura e uma profundidade situada entre 2,5 (dois vírgula cinco) e com uma profundidade situada entre 2,5 (dois vírgula cinco) e 3 (três) metros.
A zona da vala possuía, na sua adjacência, os mencionados blocos de fundações antigas, detectados pelos arguidos logo desde o início da obra.
Na sequência da abertura da vala o arguido ... deslocou-se ao seu interior para efetuar a medição da profundidade da mesma e concluiu ser ainda necessário escavar mais terreno pelo que determinou a ... que os trabalhos de escavação prosseguissem:
Entretanto, a máquina giratória avariou tendo sido necessário que ... fosse buscar uma peça para a reparar, tendo regressado ao local pelas 17h30m e terminado os trabalhos de escavação cerca das 18h00;
Na sequência do descrito colapso, ... ficou soterrado até à cintura, tendo sofrido as seguintes lesões (...):
d. Foi sujeito a intervenção cirúrgica de encavilhamento fechado do fémur, esteve internado até 19/9/2014, teve alta a fazer marcha com apoio parcial numa canadiana que manteve até 8/1/2015; foi sujeito aos tratamentos de medicina física e de reabilitação e foi seguido em consultas de ortopedia; iniciou marcha sem canadianas em 8/1/2015 e teve alta em 28/6/2015.
e. Em Junho de 2016 mantinha as queixas descritas a fls. 741v. cujo teor se dá por reproduzido
Ao não dar a ordem para inclinar a vala com um talude a 45º ou mandar proceder à entivação da vala nas frentes de escavação, sabia que não estava a cumprir com as regras de construção aplicáveis ao caso e que não garantia a estabilidade do terreno e dos blocos de fundações existentes durante a fase de escavação;
Com tal conduta, o arguido ... não impediu o perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo e a saúde dos trabalhadores, porquanto não se assegurou da estabilidade das pedras de fundação encontradas, tendo sujeitado os trabalhadores a tais perigos;
Ao infringir as regras de construção supra referidas o arguido ... não impediu o perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo e a saúde dos trabalhadores, porquanto não se assegurou da estabilidade das pedras de fundação encontradas, tendo sujeitado os trabalhadores a tais perigos;
O arguido ... não representou como possível que, ao agir da forma descrita não ordenando a entivação da vala nas frentes de escavação, nem a sua inclinação em talude a 45º, tal poderia conduzir ao desmoronamento de terras e poderia causar a morte ou lesar gravemente a integridade física dos trabalhadores que ali exerciam funções, como ocorreu
Na sequência do inquérito sumário realizado pela ACT no dia 4/8/14 foi efectuada à Lucios notificação para tomada de medidas imediatas que foram implementadas conforme consta de fls. 1429-1431 cujo teor se dá por reproduzido;
O terreno no local da escavação não era rocha em argila dura;
Em face da prova produzida o tribunal julga imputável aos arguidos o crime de infracção de regras de construção p. p. pelos artigos 10º, 277.º/1 al. a) e n.º 2 e art.º 285.º, todos do Código Penal.»
15.2. Por seu turno, o despacho recorrido tem o seguinte teor:
«Atenta a posição assumida pelo arguido ... no sentido de se opor ao prosseguimento do julgamento pelos novos factos comunicados, resta verificar que os factos comunicados não podem ser atendidos pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso, nem implica[m] a extinção da instância.
O crime imputado na acusação ao arguido (art.º 152.º-A n.ºs 1 e 4 al. a) e art.º 14.º/3 aplica-se subsidiariamente se pena mais grave não couber por força de outra disposição legal. Este crime está numa relação de concurso aparente (subsidiariedade) com o crime previsto pelo art.º 277.º, infracção de regras de construção, ou seja, neste caso a norma dominada do art.º 152º-B constituiu uma forma menos grave de violação do bem jurídico pelo que só se aplica se pena mais grave não lhe for aplicada por força de outra disposição legal.
A relação de subsidiariedade significa que determinadas normas penais “intervêm só de forma auxiliar ou subsidiária, quando o facto não seja punido por uma outra norma mais grave”.
É o que acontece, designadamente, nas hipóteses em que a própria lei é expressa “em condicionar a aplicação de um preceito à não aplicação de um preceito mais grave ou de uma pena mais pesada”, como é o caso destas duas normas.
Ou seja, verificados os pressupostos do art.º 152.º-B e do art.º 277º deve aplicar-se o art. 277.º uma vez que o art.º 152.º-B ao punir o crime de violação de regras de segurança não é tão exigente em termos de cumulação de elementos típicos.
Assim, entende o tribunal estar-se na presença dos crimes previstos no art.º 277.º/1 al. a) e n.º 2 e art.º 285.º/1 do Código Penal pelo que a conduta dos arguidos deverá ser analisada à luz da referida norma.
Resta decidir se estamos ou não em presença de factos novos autonomizáveis nos termos e para os efeitos previstos no n.º 2 do artigo 359.º.
Entende-se que sim, perfilhando a doutrina exposta por Germano Marques da Silvam [sic] Figueiredo Dias e Sousa Mendes.
Desde logo, estamos em presença de um crime diverso do originalmente imputado ao arguido ... – crime de infracção de regras de construção – que é um crime de perigo que está em relação de concurso aparente (subsidiariedade) com o crime de dano imputado na acusação quando o perigo concreto se verificou apenas em relação ao bem jurídico que foi lesado.
Entende-se que os factos ora comunicados são autonomizáveis em relação ao objecto do processo porquanto este se traduz num conjunto de factos em conexão natural analisado à luz de todos os juízos jurídicos pertinentes, ou seja, uma questão de facto integrada por todas as questões de direito que possa suscitar, embora o facto naturalístico que serve de suporte às duas infracções (em concurso ideal) seja o mesmo, a valoração social subjacente ao concreto caso trazido a tribunal é totalmente diverso: tira-se de uma [sic] facto novo e diverso – neste sentido doutrina citada in Cruz Bucho, Alteração substancial dos factos em processo penal, revista Julgar, n.º 9.
No mesmo sentido, Sousa Mendes refere que no caso de concurso ideal a autonomização não choca com as [sic] nossa concepção das garantias do processo penal porque não [sic] sistema jurídico-penal português o concurso ideal é equiparado pelo menos ao nível das consequências jurídicas do crime ao concurso real de infracções de tal sorte que aquele é considerada [sic] uma mera adição e infracções ainda que unidas pela identidade do agente e pela unidade da motivação e da decisão criminosa e temporalmente na contemporaneidade da prática dos factos puníveis.
Diga-se ainda assim, nada obsta à autonomização dos factos em consequência, determina-se que se extraia certidão integral dos autos e se remeta ao DIAP de Lisboa para instauração de procedimento criminal contra o arguido ...»
C. Da admissibilidade do recurso
16. Nos termos relatados, o Ministério Público disputa a admissibilidade do recurso, com fundamento na natureza não decisória do despacho recorrido, em função do seu conteúdo e alcance e, bem assim, na falta de interesse em agir do recorrente, à luz do n.º 2 do artigo 359.º do CPP, posição que teve a discordância do recorrente, nos termos relatados.
A resposta a esse problema depende da perceção da função da norma que o recorrente aponta como violada, constante do n.º 2 do artigo 359.º do CPP, onde se diz «A comunicação da alteração substancial dos factos ao Ministério Público vale como denúncia para que ele proceda pelos novos factos, se estes forem autonomizáveis em relação ao objeto do processo», e seu cotejo com a tramitação efetivamente seguida no caso sub juditio.
17. Nos termos da disciplina normativa contida nos artigos 358.º e 359.º do CPP, a alteração substancial dos factos em audiência constitui incidente da fase de julgamento, que se desdobra operativamente em vários momentos e diversos atos judiciais.
O primeiro momento é constituído pela verificação pelo tribunal que a prova produzida em audiência levou a que se averiguasse indiciariamente de factos com relevo para a decisão da causa, os quais comportam uma alteração do facto histórico-social objeto da perseguição jurídico-penal, tal como conformado pelo ato processual definidor do objeto do processo (acusação ou pronúncia). E também, em função da dicotomia do tratamento normativo conferido nos referidos preceitos, entre a alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia e a alteração substancial dos mesmos, deve o tribunal verificar se os novos factos indiciados preenchem o conceito estatuído na alínea f) do artigo 1.º do CPP, ou seja, se são subsumíveis a crime (materialmente) diverso do imputados na acusação/pronúncia ou comportam a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
Atingida convicção indiciária positiva pelo julgador sobre essas duas vertentes, e não se tratando de alteração derivada de factos alegados pela defesa, o modo de atuação subsequente decorre do comando inscrito na parte final do n.º 1 do artigo 358.º, em conjugação com o n.º 4 do artigo seguinte: o tribunal comunica a alteração aos sujeitos processuais e inquire-os sobre se estão de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos, concedendo-lhes, se o requererem, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa, com o consequente adiamento da audiência, se necessário.
Temos então que o juízo pressuposto no exercício do dever de comunicação, ainda que necessariamente assente no preenchimento de critérios jurídicos, pela sua dimensão indiciária, sujeito a contraditório e a valoração probatória com os cânones próprios da sentença, não constitui uma decisão final sobre o problema da alteração do objeto do processo. A sua teleologia e função não é a de proceder ao acertamento da questão, de modo a adquirir na lide com carácter de definitividade a ocorrência de uma alteração substancial dos factos.
Como decorre da parte final do preceito, a comunicação obedece às vinculações que emanam do princípio do contraditório, garantindo aos sujeitos processuais, mormente ao arguido, influir utilmente na decisão da questão de alteração substancial em todas as suas dimensões, incluindo naturalmente sobre o mérito do entendimento de que os novos factos comunicados encontram suporte probatório bastante e sobre a qualificação jurídico-penal que decorre da projetada alteração do objeto do processo, com ampliação dos poderes de cognição do tribunal em sede de sentença.
E, caso o arguido tenha como provável que o tribunal venha a decidir pelo preenchimento do conceito de alteração substancial dos factos, nada impede que, a título principal ou subsidiário, tome posição sobre outras vertentes do instituto, nomeadamente sobre a autonomia ou não autonomia dos factos comunicados, na sua relação com o significado social da conduta comportada no objeto do processo pré-constituído. Foi o que sucedeu no caso vertente com o aqui recorrente, como relatado, que se opôs, na sequência da comunicação, à eventual determinação do efeito jurídico estatuído no n.º 2 do artigo 359.º do CPP.
Ora, o regular funcionamento do contraditório postula que a comunicação, em todas as suas irradiações, ainda está em aberto, pois de outro modo a audição do arguido sobre os factos comunicados seria inteiramente desprovida de sentido útil, por incapaz de influenciar retroativamente decisão já formalizada.
Essa tem sido a orientação jurisprudencial prevalecente. Na expressão do STJ, a comunicação é «orientad[a] no sentido de garantir que o arguido não vem a ser condenado por factos distintos dos que figuram na acusação ou pronúncia, com os quais não pode contar e dos quais não lhe foi permitido defender-se oportunamente, em respeito pelo princípio da vinculação temática substanciado na acusação, que define de forma única, irrepetível e definitiva o objecto da sua condenação, em observância do referido princípio do acusatório, com consagração no nosso direito (...), sem embargo de sofrer ligeira atenuação, um desvio, no caso da alteração substancial ou não dos factos descritos na acusação ou pronúncia, se a houver em resultado da instrução»; «Quando o Juiz assim procede não está a adiantar a solução última a concretizar na sentença, a inelutável comprovação no imediato, da hipotética alteração surgida ao longo do julgamento, um dado assente a incluir no elenco futuro dos factos provados, já em forma de antecipação decisória, mas a enunciar a mera possibilidade de assim suceder, seguindo-se que o arguido, em manifestação do seu direito de defesa, do direito de contraditório, pode reformular a sua estratégia de defesa, desde logo avançando novas provas, frisando certos aspectos e, até, substituindo o patrono ou opor-se à continuação do julgamento segundo a nova porém ainda não definitiva versão» (Acórdão de 21 de janeiro de 2016, rel. Armindo Monteiro, P.º 8/12.3JALRA.C1.S1, acessível em www.dgsi.pt).
18. Sendo esse o sentido da comunicação, uma vez formalizada a posição dos sujeitos processuais e desenvolvida a atividade instrutória tida por necessária, o segundo momento aplicativo do instituto da alteração substancial dos factos corresponde, como aliás indicado no segmento do aresto que se vem de transcrever, à prolação da sentença.
A decisão final sobre o mérito da causa pressupõe logicamente a delimitação do objeto e dos poderes de cognição do tribunal, incluindo quanto aos factos subjacentes à alteração comunicada, o que implica a emissão de pronúncia fundamentada e definitiva sobre a existência ou não de uma alteração substancial dos factos. Só em caso de resposta afirmativa a essa questão, assume relevo a posição de concordância ou discordância sobre o prosseguimento do julgamento pelos novos factos manifestada pelo Ministério Público, arguido ou assistente, pois apenas nesse momento fica processualmente adquirido o primeiro elemento da hipótese normativa do n.º 1 do artigo 359.º do CPP: que se esteja, efetivamente, perante uma alteração dos factos de natureza substancial.
Em suma, as consequências decorrentes da inexistência de acordo, com aplicação da norma do n.º 1 do artigo 359.º do CPP, constituem questão prévia à apreciação do mérito, cuja cognição deve ter lugar na sentença, com precedência relativamente à enunciação dos factos provados e não provados e da pronúncia sobre a questão da culpabilidade, não sendo processualmente correta a apreciação dessa questão em momento anterior à prolação da sentença, como aqui sucedeu.
19. A esse primeiro desvio seguiu-se um outro, pois também a aplicação da norma do n.º 2 do artigo 359.º do CPP foi indevidamente antecipado para momento anterior à sentença.
Com efeito, o impedimento decorrente da oposição do Ministério Público, arguido ou assistente não significa que a perseguição criminal fique inviabilizada. Por força da estatuição do n.º 2 do artigo 359.º do CPP, nesses casos, a comunicação dos novos factos vale como denúncia ao Ministério Público, para que este proceda sobre a matéria, efeito jurídico que se constitui ope legis, incumbindo apenas ao juiz a respetiva operacionalização prática, através de determinação da extração de certidão para o efeito.
Desde cedo, a doutrina e jurisprudência convergiram no entendimento de que esse efeito extraprocessual não está isento das condicionalidades inerentes aos pressupostos negativos que recaem em geral sobre toda a perseguição criminal, mormente as injunções que emanam do princípio ne bis in idem, com consagração no n.º 5 do artigo 29.º da Constituição (cfr.  Cruz Bucho, “Alteração Substancial dos factos e Processo Penal”, Julgar, n.º 9, 2009, pp. 52-57 e Henrique Salinas, Os Limites Objetivos do Ne Bis In Idem e a Estrutura Acusatória no Processo Penal Português, Lisboa, 2014, pp. 462-467). Dele decorre o dever de os poderes públicos, mormente os tribunais e o Ministério Público, obstarem ao duplo julgamento de arguido que já tenha sido definitivamente absolvido pela prática da infração, abstendo-se de impulsionar, direta ou indiretamente, a pretensão punitiva do Estado logo que verificada a constituição desse direito subjetivo fundamental (J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra, 4.ª Ed., 2007, 497)
Com a revisão operada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de janeiro, essa condição passou a ter consagração expressa, sendo-lhe introduzido o segmento final do n.º 2 do artigo 359.º do CPP, estatuindo que o valor de denúncia da comunicação, e a decorrente procedibilidade pelos novos factos, se encontra condicionada a uma avaliação judicial positiva sobre o carácter autonomizável dessa matéria, a desenvolver de acordo com os critérios jurídico-materiais que concretizam a identidade funcional pressuposta no funcionamento do efeito consuntivo do princípio ne bis in idem.
Ora, tendo o princípio ne bis in idem alcance objetivo, processual e material, vertentes que se interpenetram (Inês Ferreira Leite, Ne (Idem) Bis In Idem, Lisboa, Vol. I, Lisboa, 2016, pp. 237 e segs; pp. 488-493), o lugar adequado para a sua mobilização no quadro da alteração substancial de factos é o da sentença final, pela sua imbricação com o aí decidido e a respetiva formação de caso julgado material, com vinculação extraprocessual. Essa é justamente a teleologia da norma da parte final do n.º 2 do artigo 359.º do CPP: garantir que, logo no primeiro momento viável, é tutelado o direito de defesa do arguido perante um duplo julgamento pelo mesmo sentido material de ilícito, em benefício da segurança jurídica, nas suas dimensões objetiva e subjetiva. 
Porém, o tribunal recorrido, ao invés de se ter pronunciado na sentença sobre todas as dimensões decisórias implicadas pelo sistema normativo da alteração substancial de factos, antecipou em despacho prévio a apreciação daquela que corresponde logicamente ao último momento aplicativo do instituto jurídico, afirmada a presença de obstáculos ao conhecimento dos novos factos objeto da comunicação, emitindo logo o juízo imposto pela parte final do n.º 2 do artigo 359.º do CPP. O qual, note-se, foi tido como assente na sentença proferida de seguida, como decorre do respetivo relatório, onde se lê que «... se considerou que tais factos são autonomizáveis relativamente aos factos vertidos na acusação determinando por isso extracção de certidão integral dos autos para remessa dos mesmos ao Ministério Público para instauração de inquérito contra o arguido ...».
20. Assim caracterizado o objeto da pronúncia judicial sobre a condição autonomizável ou não autonomizável dos novos factos comunicados, temos que o correspondente resultado aplicativo conforma uma verdadeira decisão da questão incidental, com vocação de definitividade quanto ao efeito jurídico associado (que não se confunde com as decisões do Ministério Público ou jurisdicionais que venham a ser tomadas no âmbito do inquérito instaurado), indo além do simples alargamento da discussão ou da promoção do andamento do processo.
Não parecem, então, sobrar dúvidas que a questão material da verificação da condição estatuída na parte final do n.º 2 do artigo 359.º do CPP, foi conhecida e decidida no despacho prévio objeto do presente recurso, não lhe assentando, pelo seu conteúdo, a noção de despacho de mero expediente, pelo que não tem aplicação o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP.
Também não procede a alegação de falta de interesse em agir do recorrente.
Desde logo, tratou-se de uma decisão contrária ao entendimento que o arguido recorrente manifestara em requerimento, conjuntamente com a manifestação de oposição à alteração substancial dos factos que havia sido comunicada. Mas, mesmo que nada tivesse dito o recorrente, sempre seria de lhe reconhecer legitimidade ad recursum, atenta a materialidade do interesse em liça. O interesse em agir do arguido decorre diretamente do que é decidido definitivamente no presente processo, e não, reflexa ou derivadamente, dos deveres inscritos no estatuto processual de arguido no novo inquérito, os quais derivam de normas alheias à ratio decidendi do despacho recorrido.
Pelas mesmas razões, não colhe o argumento do Ministério Público, assente na possibilidade de arquivamento do novo inquérito, que é apenas um dos desfechos possíveis, sendo um outro a dedução de acusação. Acresce que nenhuma analogia existe entre a normação contida nos n.ºs 1 e 2 do artigo 359.º do CPP, na qual o legislador faz equivaler um facto processual a denúncia, e os deveres estatuído nos artigos 242.º e 243.º do mesmo código, cuja função é a assegurar uma primeira notícia do crime.
Conclui-se, assim, que o recorrente tem legitimidade e interesse em agir para a impugnação deduzida, sendo o recurso admissível nos termos gerais (artigo 399.º do CPP).
Face ao exposto, improcedem as questões prévias colocadas pelo recorrido, nada obstando à admissibilidade do recurso.
D. Apreciação
21. O recorrente discorda do juízo de autonomia dos factos comunicados, alinhando um conjunto de argumentos, que se pode sintetizar nestes termos: (i) sustenta em primeiro lugar que alguns dos factos comunicados «na realidade não são novos» (conclusões F. a I.); (ii) depois, que há factos que, embora novos, não implicam uma alteração substancial, pelo que deveriam ter sido tidos em contra no processo em curso, nos termos do artigo 358.º do CPP (conclusões H. e I.); (iii) em terceiro lugar, que a acusação enfermava ab initio de «insuficiência e de contradições insanáveis de alegação de factos que suportassem o tipo objetivo e subjetivo, quer do crime de violação de regras de segurança, quer do crime de infração de regras de construção, quer de qualquer outro» (conclusões J. a P.); (iv) por último, defende-se que é errada a decisão de autonomização dos factos, por o arguido ter sido «sujeito a julgamento, por uma e a mesma situação, que cabe apenas numa norma incriminadora», concluindo-se que os factos em apreço não são autonomizáveis e a decisão recorrida violou os artigos 283.º, n.º 3 e 359.º, n.º 2 do CPP, e o artigo 29.º, n.º 5 da Constituição, pelo que deve ser revogada (conclusões Q. a W.).
Posição diferente defende o Ministério Público, em ambas as instâncias. Na resposta, defende-se o acerto da decisão recorrida e a condição de factos autonomizáveis daqueles comunicados, enquanto variação dos que integram a acusação, incluindo-se no mesmo facto histórico unitário, afastando a violação do princípio ne bis in idem. Nesta Relação, a Sr.ª Procuradora-Geral adjunta aduz que os factos novos e o seu enquadramento no crime p. e p. pelos artigos 277.º, n.ºs 1, alínea a), e 2 e 285.º do CP, não poderiam ser aqui conhecidos, por incompetência material do tribunal singular, uma vez que que, ao crime agravado pelo resultado morte é aplicável pena superior a 5 anos, de acordo com as disposições conjugadas dos artigos 14.º, n.º 2, alínea a), 16.º, n.º 1, e 359.º, n.ºs 1, 2 e 3, todos do CPP. Daí que, na sua ótica, os novos factos sempre teriam de ser autonomizados, por não poderem ser julgados em tribunal singular.
22. Numa primeira aproximação, verifica-se que parte dos argumentos esgrimidos não radica na dimensão do instituto da alteração substancial dos factos regulada pela norma do n.º 2 do artigo 359.º do CPP. Convocam dimensões problemáticas que se situam verdadeiramente à margem da questão em apreço - ou melhor, a montante desta -, versando outros momentos aplicativos do instituto da alteração substancial dos factos. Com efeito, o arguido inscreve na motivação argumentos relativos ao juízo sobre a novidade dos factos comunicados aos sujeitos processuais, no confronto com a acusação, que defende ser parcialmente errado e, bem assim, sobre o juízo de preenchimento do conceito de alteração substancial dos factos, com referência a essa mesma parcela de factos, também ele considerado desacertado.
Mas não só. Defende também o recorrente que essa matéria podia ser conhecida no processo em curso, nos termos do disposto no artigo 358.º do CPP, o que, tratando-se de poder-dever, consubstancia a arguição de um défice cognitivo da sentença, gerador de nulidade por omissão de pronúncia [artigo 379.º, n.º 1, alínea c) do CPP]. A que se junta, agora recuando até à delimitação do objeto do processo efetuada pela acusação pública, a arguição de que esse ato padece de «insuficiências e contradições insanáveis da alegação de factos», mormente relativamente aos elementos do tipo subjetivo do tipo de crime que lhe foi imputado, pugnando pela verificação da nulidade prevista no artigo 283.º, n.º 3 do CPP.
Todavia, nenhum desses argumentos assume aqui pertinência.
O presente recurso tem como objeto a decisão recorrida - não o processo no seu conjunto -, assumindo a intervenção da Relação nesta sede a natureza de remédio jurídico, votado a sindicar a presença dos erros in procedendo ou in judicando que afetem o específico ato judicial impugnado, sem que possa reapreciar questões ou problemas jurídicos que o tribunal recorrido não apreciou, nem devia apreciar, na decisão recorrida.
Ora, o despacho recorrido apenas se pronunciou sobre a questão da aplicação da norma do n.º 2 do artigo 359.º do CPP, em resposta, aliás, à oposição deduzida pelo aqui recorrente apenas sobre essa específica matéria, e não sobre as outras dimensões da alteração dos factos e qualificação criminal que inscreveu no recurso em apreço, sobre as quais não exerceu o contraditório. E, quanto às nulidades invocadas, o despacho não se pronunciou sobre os factos alegados pela acusação, de modo a tomar posição sobre vícios invalidantes desse ato, nem se impunha que o fizesse, por não lhe ser aplicável a disciplina dos artigos 368.º e 369.º do CPP, além de que, pela natureza das coisas, não poderia ter tomado posição sobre um défice cognitivo da sentença, dado que esta não fora ainda proferida.
O mesmo sucede com o problema competencial avançado pelo Ministério Público em resposta ao argumentário do recorrente, sem esquecer que, nos termos relatados no ponto 3, supra, tendo em atenção os factos comunicados, foi requerido por esse sujeito processual o prosseguimento do julgamento ao abrigo do n.º 3 do artigo 16.º do CPP, tendo a sentença absolvido o coarguido ..., não só dos crimes imputados na acusação, como também da prática «do crime de infração de regras de construção p.p. pelos artigos 277º/1 al. a) e n.º 2 e art.º 285º todos do Código Penal».
Por tais razões, o argumentário que versa a discussão sobre a novidade dos factos comunicados, sobre um (pretérito) erro na qualificação da alteração como substancial, sobre as pretendidas «insuficiências e contradições insanáveis da alegação de factos» constante da acusação deduzida e sobre vício competencial e cognitivo na sentença, não pode ser aqui conhecido.
Diga-se, sem embargo, que todo esse arrazoado poderia encontrar relevância caso a sentença tivesse sido impugnada, o que não sucedeu. Como relatado (cfr. ponto 8), a sentença transitou em julgado em 21 de outubro de 2021, isto é, no mesmo dia em que foi apresentado o recurso em apreço. Significa isso que todas as matérias decididas na sentença se encontram cobertas pela força de caso julgado (artigo 620.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 4.º do C.P.P), sanando todos os vícios invocados.
 23. Posto isto, afastadas as questões prévias invocadas pelo Ministério Público, assim como a argumentação do recorrente verdadeiramente dirigida à sentença, haverá que passar a responder à questão colocada no recurso, a única questão versada na decisão recorrida, ou seja, saber se os factos objeto da comunicação são autonomizáveis do objeto material fixado na acusação, permitindo, como se decidiu, a promoção de um novo inquérito com esse objeto.
A doutrina tem aceitado que os critérios de resposta ao problema encontram identidade com os que presidem ao concurso de infrações, remetendo para a respetiva dogmática – reconhecidamente complexa -, pois sobre os dois institutos incide primacialmente a vinculação decorrente do direito subjetivo fundamental enunciado no n.º 5 do art.º 29.º da Constituição. Na expressão de Sousa Mendes, «O conceito de factos autonomizáveis resume-se à possibilidade de os desligar daqueloutros que já constituem o objeto do processo, de tal sorte que, sem prejudicar o processo em curso, sejam criadas as condições para se iniciar um outro processo penal sem violação do princípio ne bis in idem (que ninguém seja julgado, no todo ou em parte, mais do que uma vez pelos mesmos factos!)» (“O Processo Penal em Ação: Hipótese e Modelo de Resolução, in Questões Avulsas de Processo Penal, 2000. p. 112, apud Cruz Bucho, ob. cit., p. 53, onde se traça um panorama da doutrina anterior a 2009 sobre o problema; vd. também, Sousa Mendes, “O regime da alteração substancial de factos no processo penal”, Que futuro para o Direito Processual Penal, Coimbra, 2009, pp. 758-764, e Lições de Direito Processual Penal, Coimbra, 2021, 149-151; pp. 55-60; Henrique Salinas, ob. cit., pp. 413-427 e 475-479; e Frederico Isasca, Alteração Substancial dos factos, Coimbra, 1992, p. 203).
Trata-se essencialmente de determinar se os novos factos apurados formam, juntamente com os constantes da acusação, uma unidade de sentido, que não permite a sua cisão, por insuscetíveis de fundamentar uma incriminação autónoma em face do objeto do processo preconstituído. Na formulação de Marques Ferreira «factos não autonomizáveis são factos insuscetíveis de valoração jurídico-penal separados do objeto do processo em que foram descobertos» (“Da alteração dos factos objecto do processo penal”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano I, fasc. 2, Abril/Junho de 1991, p. 253), sem esquecer que, como sublinha Germano Marques da Silva, «Crime diverso não é o mesmo que tipo incriminador diverso. É que o mesmo juízo de desvalor pode ser comum a diversas normas, a diversos tipos, que mantendo em comum o juízo de ilicitude divergem apenas na sua quantidade, não na sua essência, mas na gravidade» (Direito Processual Português, Lisboa, 2017, p. 385).
O despacho recorrido parece orientar-se também nesse sentido, concluindo pela «autonomia dos novos factos» em resultado de se estar perante relação de concurso aparente de normas, na forma de subsidiariedade, entre o tipo penal imputado na acusação – o crime de violação de regras de segurança, agravado pelo resultado, previsto e punido pelos artigos 152.º-B, n.ºs 1 e 4, alínea a), e 14.º, n.º 3 do CP – e aquele que se entende preenchido pela nova unidade fática composta por via da alteração substancial comunicada – o crime de infração de regras de construção, dano em instalações e perturbação de serviços, agravado pelo resultado, p. e p. pelo artigos 277.º, n.ºs 1, alínea a) e 2, e 285.º do CP, sendo esta última a norma penal prevalecente.
Contudo, sendo essa a súmula da parte inicial da decisão recorrida, seguem-se outras passagens, as quais apontam noutra direção. É o que decorre das referências à figura do concurso ideal, incluída na expressão «o facto naturalístico que serve de suporte às duas infracções (em concurso ideal) [é] o mesmo, a valoração social subjacente ao concreto caso trazido a tribunal é totalmente diverso» (sublinhado aditado), a que segue, com citação de Sousa Mendes alusão à figura do concurso real, as quais, na posição dogmática mais comum, são modalidade da categoria do concurso efetivo ou próprio de crimes, que se coloca a par da categoria do concurso aparente ou impróprio, com ele não se confundindo.
Importa ressalvar que estamos perante categorias dogmáticas, sem uma consagração normativa, relativamente às quais existem múltiplas posições doutrinárias, incluindo no sentido da recusa da figura concurso aparente, por «nociva para a normal tarefa dogmática da qualificação e individualização dos factos-crime» (Cristina Líbano Monteiro, Do concurso de crimes ao «concurso de ilícitos» em direito penal, Coimbra, 2015, em especial pp. 214 e 255 e segs), e de uma visão crítica relativamente aos contributos da doutrina do concurso de normas na perspetiva de uma conceção ampla do princípio ne bis in idem (Inês Ferreira Leite, ob. cit., em especial vol I, pp. 812 e segs.). Reclama-se um critério dogmático-material menos formal e abstrato, mais coerente com o funcionamento da vertente substantiva ou material do ne bis in idem e orientado (corrigido) pelas valorações decorrentes das circunstâncias concretas do caso.
Segundo a lição de Figueiredo Dias (Direito Penal, Coimbra, 2019, 3.ª edição, pp. 1153-1167) e de Claus Roxin (Derecho Penal – Parte General, Tomo II, Civitas, 2014, §33, n.ºs 170 a 247, pp. 997-1025 tradução da 1.ª edição alemã, de 2003), no concurso aparente, impróprio ou de normas, não existe verdadeiramente um “concurso de leis” porque, na verdade, apenas uma delas é aplicável, em função de uma unidade normativa. As formas de unidade de lei e o modo como se devem distinguir mutuamente é objeto de visões diversas, sendo em todo o caso prevalecente o entendimento de que tais relações entre normas penais se podem resolver em torno de três classificações lógico-formais: especialidade, subsidiariedade e consunção. Diferentemente, quando a conduta global do agente, traduza uma unidade ou pluralidade de ações naturalísticas, que preenche mais que um tipo legal de crime, previsto em mais que uma norma concretamente aplicável, ou preenche várias vezes o mesmo tipo legal de crimes previsto pela mesma norma concretamente aplicável, verifica-se, por força do artigo 30.º, n.º 1 do CP, um concurso de crimes, real ou ideal. Trata-se, aí, de um concurso de crimes efetivo, puro ou próprio, portador de uma pluralidade de sentidos sociais de ilicitude e que, segundo o mandamento da esgotante apreciação contido na proibição jurídico-constitucional da dupla valoração, devem ser integralmente valorados para efeitos de punição.
Também a jurisprudência tem seguido essa posição dogmática mais tradicional, de que é exemplo especialmente claro o Acórdão do Supremo Tribunal de 27 de Maio de 2010 (Processo n.º 474/09.4PSLSB.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt):
«I - A problemática relativa ao concurso de crimes (unidade e pluralidade de infracções), das mais complexas na teoria geral do direito penal, tem no art. 30.º do CP, a indicação de um princípio geral de solução: o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
II- O critério determinante do concurso é, assim, no plano da indicação legislativa, o que resulta da consideração dos tipos legais violados. E efectivamente violados, o que aponta decisivamente para a consagração de um critério teleológico referido ao bem jurídico.
III- A indicação da lei acolhe, pois, as construções teoréticas e as categorias dogmáticas que, sucessivamente elaboradas, se acolhem nas noções de concurso real e concurso ideal.
IV - Há concurso real quando o agente pratica vários actos que preenchem autonomamente vários crimes ou várias vezes o mesmo crime (pluralidade de acções), e concurso ideal quando através de uma mesma acção se violam várias normas penais ou a mesma norma repetidas vezes (unidade de acção).
V- O critério teleológico que a lei acolhe no tratamento do concurso de crimes, condensado na referência a crimes «efectivamente cometidos», é adequado a delimitar os casos de concurso efectivo (pluralidade de crimes através de uma mesma acção ou de várias acções) das situações em que, não obstante a pluralidade de tipos de crime eventualmente preenchidos, não existe efectivo concurso de crimes (os casos de concurso aparente e de crime continuado).
VI- Ao lado das espécies de concurso próprio (ideal ou real) há, com efeito, casos em que as leis penais concorrem só na aparência, excluindo uma as outras.
VII- A ideia fundamental comum a este grupo de situações é a de que o conteúdo do injusto de uma acção pode determinar-se exaustivamente apenas por uma das leis penais que podem entrar em consideração – concurso impróprio, aparente ou unidade de lei.
VIII- A determinação dos casos de concurso aparente faz-se, de acordo com as definições maioritárias, segundo regras de especialidade, subsidiariedade ou consunção.
IX - Há consunção quando o conteúdo de injusto de uma acção típica abrange, incluindo-o, outro tipo de modo que, de um ponto de vista jurídico, expressa de forma exaustiva o desvalor (cf. H. H. Jescheck e Thomas Weigend, "Tratado de Derecho Penal", 5ª edição, pág. 788 e ss.).
X- A razão teleológica para determinar as normas efectivamente violadas ou os crimes efectivamente cometidos, só pode encontrar-se na referência a bens jurídicos que sejam efectivamente violados. O critério do bem jurídico como referente da natureza efectiva da violação plural é, pois, essencial.
XI- O bem jurídico, ainda numa projecção difusa de uma pluralidade de bens jurídicos e numa dimensão mais ampla, autonomiza-se de cada um dos concretos bens jurídicos que possam vir a ser individualmente afectados na respectiva titularidade concreta, sendo, por si, autonomamente e ex ante, considerado com relevante para justificar a definição de um crime de perigo».
Ou seja:
Estamos perante um Concurso real quando o comportamento do agente preencher vários tipos incriminadores e a sua responsabilidade contemplar todas essas infracções praticadas.
Já navegaremos por águas do Concurso aparente quando, aparentemente, na prática de um facto, convergem diversas disposições legais, mas na verdade só uma se lhe aplica, afastando todas as outras (sabemos que quando se pune um agente por uma situação de concurso aparente segundo as regras do concurso real, estamos a violar o princípio constitucional “ne bis in idem”, pois está se a valorar e punir mais do que uma vez o mesmo facto).
Nesse concurso aparente de normas, encontramos três modalidades:
• A relação de especialidade – Existe uma relação lógica de subordinação entre as normas, assim, quando um tipo legal é constituído a partir de outro, ou seja, se apresenta em relação àquele como qualificado ou privilegiado (ex. 132º, 133º e 134º em relação ao art. 131º todos do CP);
• A relação de subsidiariedade – Nestes casos existe uma intersecção de normas, cada norma pode ter um âmbito de aplicação autónomo, mas há também uma sobreposição, tornando-se uma subsidiária de outra, com aquela que tem a pena mais leve absorvida pela que tem a mais grave;
A relação de consunção – Existe nestes casos uma relação de instrumentalidade: a violação duma disposição legal é instrumental para a violação de outra enquanto que o concurso ideal e real são claramente diferenciáveis graças a conceitos básicos de unidade de acção e pluralidade de acções que respectivamente os acompanham, a unidade de lei pode dar-se em ambos os casos e apresentar-se, por ele, tanto em forma de “aparente (impróprio) concurso ideal” como na de “aparente (impróprio) concurso real”. De aí que a delimitação da unidade da lei haja de realizar-se com outros critérios. As questões que se colocam a respeito são objecto de uma forte polémica que alcança inclusive a da terminologia. A opinião dominante distingue entre especialidade, subsidiariedade e consunção.
Existe relação de especialidade quando um preceito penal contém todos os elementos de outro e só se diferencia do mesmo em oferecer, ao menos, um elemento adicional que capte o caso fáctico desde uma especial perspectiva. (...) Na especialidade concorre a lógica relação de dependência da subordinação, porque cada acção que viola o tipo de delito especial realiza por sua vez, necessariamente, o tipo geral, enquanto que não sucede o contrário. Isto conleva no direito penal que a lei geral retroceda: “lex specialis derogat legi generali”.
O contraponto da especialidade é a alternatividade. Concorre quando dois tipos contêm descrições da acção que pugnam entre si, de modo que se excluem reciprocamente, como o furto e a apropriação indevida.
(....)
A subsidiariedade significa que um preceito penal só deve aplicar-se de maneira auxiliar no caso de não intervir antes outro preceito.
Honing vê a razão material da subsidiariedade em que “diferentes proposições jurídico-penais protegem o mesmo bem jurídico em diferentes fases de ataque”. A estrutura lógica da subsidiariedade não é a subordinação, mas a da intercepção (interferência).
A relação de subsidiariedade depreende-se do teor literal da lei ou da interpretação da conexão de sentido entre vários preceitos penais. Distingue-se entre subsidiariedade expressa (formal) e subsidiariedade tácita (material). A invalidade auxiliar de uma lei pode regular-se de forma que tenha que dar preferência a qualquer outro preceito penal (subsidiariedade absoluta). Não obstante, geralmente só desfruta de preferência um tipo que castigue a acção com pena mais grave. Ademais, haverá de atender-se na maioria dos casos que o preceito penal subsidiário só deve ceder ante uma lei que compreenda acções com igual direcção de ataque, posto que aí radica a razão interna para a preferência da lei aplicável com carácter primário.»
24. De todo o modo, importa aqui, como primeiro passo metodológico, determinar qual a natureza do concurso que se estabelece entre os tipos incriminadores dos artigos 152.º-B e 277.º do CP, tarefa para a qual releva a história dos preceitos normativos.
O tipo legal do artigo 277.º do CP corresponde no essencial à reunião da previsão dos artigos 263.º a 266.º da versão original do Código Penal de 1982, constituindo-se, desde a sua introdução, como crime de perigo comum e, também como crime de perigo concreto, relativamente ao qual é necessário fazer prova em cada caso de um perigo comum verificado de facto em resultado de comportamento do agente.
O bem jurídico tutelado abrange a segurança de várias áreas da atividade humana, compreendendo quatro modalidades de realização do tipo: a violação de regras de construção [alínea a) do n.º 1; grosso modo idêntica ao artigo 263.º da versão original]; danos em meios ou aparelhos de prevenção de acidentes de trabalho ou violação de regras para a respetiva instalação [alínea b) do n.º 1; idem, relativamente ao artigo 264.º da versão original]; dano ou destruição de instalações [alínea c) do n.º 1; corresponde, com adaptações ao artigo 266.º da versão original]; e perturbação do funcionamento de serviços [alínea d) do n.º 1; corresponde, com adaptações ao artigo 265.º da versão original].
Ao nível do tipo subjetivo, a sua estrutura acompanha a generalidade dos crimes de perigo comum, sendo configurado primeiramente como crime doloso, quer em relação à conduta típica, quer ao perigo criado; num segundo nível, como crime doloso quanto à conduta e negligente quanto ao perigo; e num terceiro nível, é configurado como crime negligente, quer em relação à conduta, quer ao perigo.
Também numa solução de continuidade relativamente à versão original do Código Penal, é prevista no artigo 285.º uma agravação pelo resultado, em função da morte ou ofensa à integridade física grave de outra pessoa.
A esse tipo penal, inserido no capítulo dedicado aos crimes de perigo comum e com um alargado de proteção do bem jurídico, juntou-se em 2007 um outro tipo penal, mais orientado para a tutela das condições de segurança no trabalho em geral, consagrado no artigo 152.º-B do Código Penal e inserido no capítulo dos crimes contra a integridade física.
Como observa Maria João Antunes (“Responsabilidade Criminal Emergente de Acidente de Trabalho”, Colóquio do Direito do Trabalho, 2019, acessível em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2020/01/cdt2019_mariajoaoantunes_responsabilidadecriminalemergenteacidentetrabalho.pdf, a diferente inserção sistemática é enganadora, pois existe uma sintonia do bem jurídico tutelado em ambas as incriminações, com referência à proteção das relações laborais, tratando-se unicamente de uma autonomização, constituindo ambas as incriminações crimes específicos próprios, nos quais o agente detém uma posição de domínio sobre o trabalhador, no âmbito de uma relação laboral, sobre o qual recai a obrigação de garantir as condições de segurança no trabalho, previstas em regras legais, regulamentares e técnicas. Diz a Autora:
«Não obstante a diferente inserção sistemática dos tipos legais de crime – no título dos crimes contra as pessoas, no capítulo dos crimes contra a integridade física, no caso da violação das regras de segurança, no título dos crimes contra a sociedade, no capítulo dos crimes de perigo comum, no caso do dano em instalações e omissão de instalação de meios ou aparelhagem -, as incriminações visam a tutela dos mesmos bens jurídicos individuais: a vida e a integridade física do trabalhador. Em geral, uma diferente inserção sistemática não é determinante para a identificação do bem jurídico protegido com a incriminação.»
Mais adiante, depois de «ressaltar positivamente a autonomização do tipo legal de violação de regras de segurança», mas criticamente quanto aos problemas suscitados pela conjugação dos preceitos:
«Em razão do modo como foram sendo introduzidas alterações ao CP, em matéria de responsabilidade criminal emergente de acidente de trabalho, aumentaram as dificuldades de interpretação dos tipos legais de crime pertinentes e de subsunção dos diversos comportamentos.
À complexidade dogmática própria dos crimes de perigo, de perigo concreto no caso, dos comportamentos omissivos, dos crimes específicos e dos casos de agravação da pena pelo resultado e à sempre questionável remissão para normas legais, regulamentares ou técnicas, o legislador juntou as questões postas pelo concurso de normas ou concurso aparente de crimes – de crimes de violação de regras de segurança, de infração de regras de construção, de dano em instalações, de omissão de instalação de meios ou de aparelhagem, de homicídio negligente e de ofensa à integridade física grave e negligente.
Com o cuidado, apesar de tudo, de estabelecer uma relação de subsidiariedade entre o tipo legal de violação de regras de segurança e os outros tipos legais, dispondo o artigo 152.º-B que o arguido é punido com a pena aí prevista, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. Com o cuidado: de fazer depender o preenchimento do tipo legal de violação de regras de segurança da sujeição do trabalhador a perigo para a vida ou a perigo de grave ofensa para o corpo ou a saúde – no artigo 277.º aceita-se que a ofensa à integridade física não seja grave; de não punir o comportamento de quem, negligentemente, não observando disposições legais ou regulamentares, sujeitar o trabalhador a perigo para a vida ou a perigo de grave ofensa para o corpo ou a saúde – no artigo 277.º, n.º 3, pune-se quem, por negligência, infringindo regras legais, regulamentares ou técnicas, omitir a instalação de meios ou aparelhagem destinados a prevenir acidentes; e de não prever o preenchimento típico por inobservância de normas técnicas – segundo o artigo 277.º, o tipo legal de omissão de instalação de meios ou aparelhagem preenche-se também por infração de normas técnicas.
Porém, sem o cuidado de punir de forma coerente os casos em que do comportamento do agente resulta a morte ou a ofensa à integridade física grave do trabalhador. E a questão não está tanto em não diferenciar a punição consoante se trate de um ou outro resultado – o artigo 152.º-B, n.º 4, do CP, pune mais severamente se o resultado for a morte, ao passo que o artigo 285.º do CP pune de forma igual –, mas antes em, incoerentemente, punir mais severamente a violação de regras de segurança com resultado morte ou ofensa grave à integridade física do que a omissão de instalação de meios ou aparelhagem em local de trabalho destinados a prevenir acidente com resultado morte ou ofensa grave à integridade física. Exemplificando: quem omitir a instalação de meios ou de aparelhagem destinados a prevenir acidentes de trabalho com resultado morte é punido com pena de prisão entre 1 ano e 4 meses e 10 anos e 8 meses, mas quem violar regras de segurança com resultado morte é punido com pena de prisão entre 3 anos e 10 anos; quem omitir a instalação de meios ou de aparelhagem destinados a prevenir acidentes de trabalho, criando negligentemente perigo para a vida ou a integridade física, com resultado morte, é punido com pena de prisão entre 1 mês e 10 dias e 6 anos e 8 meses, mas quem violar regras de segurança, criando negligentemente perigo para a vida ou ofensa grave à integridade física e com resultado morte é punido com pena de prisão entre 2 e 8 anos
De facto, encontra-se na previsão dos dois tipos de ilícito uma larga zona de sobreposição, própria de uma relação de subsidiariedade, convergindo os dois crimes na defesa do bem jurídico integridade física e vida do trabalhador por conta de outrem, suscitando-se, em função da cláusula expressa ou formal de subsidiariedade inscrita na parte final do n.º 1 do artigo 152.º-B, a aplicação preferente de um ou outro dos crimes em função da punição mais grave da conduta típica. Trata-se, como refere Figueiredo Dias, de evitar «lacunas de punibilidade derivadas de um menor cuidado e previsão nas descrições típicas», procurando o legislador dar relevo ou mesmo criar «uma relação lógica de interferência entre os tipos legais convocados» (ob. cit., pp. 1159 e 1160), em que um deles esgota sozinho a necessidade de tutela do caso.
Também ao nível da estrutura típica, os dois crimes assumem natureza similar. O crime de violação de regras de segurança, tal como tipificado no artigo 152.º-B, constitui crime de perigo concreto, ou seja, em que o perigo é ele próprio elemento do tipo (e não apenas motivo da proibição, como é característico dos crimes de perigo abstrato), que se consuma logo que ocorre uma forte probabilidade de o resultado desvalioso se vir a desencadear ou a acontecer. A produção de um tal resultado constitui circunstância agravante, nos termos dos n.ºs 3 e 4 do artigo 152.º-B, à semelhança do que sucede com o disposto nos artigos 277.º e 285.º.
Persistem, contudo, várias diferenças, quer ao nível do tipo objetivo, quer ao nível do tipo subjetivo, já apontadas no trecho que se transcreveu: supra o crime de violação de regras de segurança constitui crimes específico próprio, tendo aplicação apenas no domínio das relações de trabalho por conta de outrem; esse crime não abrange a infração de regras técnicas, apenas de regras  legais e regulamentares, enquanto a incriminação operada no artigo 277.º abrange as três fontes normativas; a ausência da previsão no crime de violação de regras de segurança da combinação negligência da conduta/negligência do perigo, que se encontra prevista no n.º 3 do artigo 277.º; e a exigência no crime do artigo 152.º-B de que o perigo para a integridade física seja de uma grave ofensa, o que também traduz uma mancha incriminatória mais alargada do crime de infração de regras de construção, que tutela a ofensa no corpo ou na saúde do trabalhador, mesmo que não grave.
25. Ocorre, contudo, que nenhuma dessas diferenças releva no caso vertente. Quer na forma de imputação da acusação, quer na materialidade aduzida e comunicada ao recorrente, está em questão um acidente de trabalho em que as vítimas estavam numa relação de trabalho por conta de outrem, com imputação da criação de perigo para a vida e perigo de grave ofensa para o corpo e a saúde, agravados pelo resultado morte e ofensas corporais graves, enunciando-se a violação de normas de segurança de fonte legal. Aliás, na sentença proferida, é dito que «[r]elevam no caso as normas de segurança, higiene e saúdo no trabalho e as normas de segurança mencionadas no relatório junto aos autos» e são analisadas as normas referidas na acusação.
Por outro lado, ao nível subjetivo, a alteração comunicada perspetivou a qualificação jurídico da conduta, em função dos novos factos, à forma do crime tipificada no artigo 277.º, n.ºs 1, alínea a) e 2 do CP, mantendo-se a agravação pelo resultado nos termos do artigo 285.º, o que, confrontado com a acusação, transporta modificação da imputação de dolo de perigo para a de negligência de perigo. Tem, pois, razão o recorrente quando alega que a modificação operada pelos novos factos se circunscreve ao elemento subjetivo, atuando materialmente apenas ao nível dos elementos do tipo subjetivo de ilícito.
Sucede que, no quadro do crime de violação de regras de segurança previsto no artigo 152.º-B, essa mesma conduta encontra-se igualmente prevista, uma vez que, nos termos do n.º 2 do preceito, o perigo criado por negligência é punido com prisão até três anos, sendo o crime agravado pelo resultado, passando a moldura penal a ser de um a cinco anos de prisão, em caso de grave ofensa para o corpo ou saúde do trabalhador [n.º 3, alínea b)], e de dois a oito anos de prisão, em caso de morte do trabalhador [n.º 4, alínea b)].
Nessa medida, não só a relação de interferência corresponde, sem margem para dúvidas, no plano normativo, a um concurso aparente ou impróprio, como a sobreposição dos elementos típicos preenchidos nas circunstâncias específicas do caso é plena ou integral: tomados os novos facto, a conduta do arguido é subsumível quer ao crime de violação de regras de segurança na forma tipificada no artigo 152.º-B, n.ºs 1, 2 e 4, alínea b) do CP, quer ao crime objeto de comunicação ao recorrente, previsto e punido nos artigos 277.º, n.ºs 1, alínea a) e 2, e 285.º do mesmo código.
Atingida essa conclusão, a resposta à questão de saber se esses novos factos comportam um significado social de ilicitude distinto daquele incorporado pela acusação pública, à luz do princípio ne bis in idem, mostra-se clara, no sentido negativo. Ao contrário do que foi entendido no despacho recorrido, o desvalor compreendido no objeto da comunicação de alteração substancial dos factos está numa relação de unidade material de sentido com aquele presente na acusação, não podendo ser compreendidos um sem o outro.
Ou seja, logo ao nível da relação lógica entre as normas típicas que polarizam a alteração substancial dos factos, e também numa visão substancialista, mais ampla, que convoque o conceito material de crime e as injunções do princípio ne bis in idem na sua vertente material (Inês Ferreira Leite, ob. cit., vol. I, pp. 192-208), estamos no perímetro da proibição da dupla valoração do mesmo substrato material, vedando a autonomização dos novos factos comunicados e uma renovada perseguição criminal, na sua essência dirigida ao mesmo facto jurídico e à mesma unidade social de ilícito.
26. Compreende-se da conjugação do despacho recorrido com a sentença proferida, mormente a partir dos segmentos de texto comum, e, em especial da expressão nesta última, quanto ao aqui recorrente ... que, embora se tivesse como violados por este os deveres legais de garantia da segurança dos trabalhados que recaem sobre o diretor de obra, haveria um défice de imputação ao nível do tipo subjetivo que conduzia à absolvição (cfr. os dois últimos parágrafos da sentença). Sem discutir o acerto dessa asserção – a sentença não é objeto do presente recurso, repete-se -, a ser assim, o vício acusatório atinge os dois tipos penais na relação lógica de subsidiariedade que se referiu, não podendo o problema ser sanado através do regime dos artigos 358.º e 359.º do CPP, como emerge da jurisprudência fixada pelo Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 1/2015 (publicado no Diário da República n.º 18/2015, de 27 de janeiro de 2015), onde se lê, a propósito do aditamento de elementos constitutivos do tipo subjetivo do ilícito por via do regime dos artigos 358.º e 359.º do CPP, até então admitido por certa jurisprudência:
«Porém, se não é aplicável, nestas situações, o mecanismo do art. 358.º do CPP, também não será caso de aplicação do art. 359.º, pois, correspondendo a alteração à transformação de uma conduta não punível numa conduta punível (e, nesse sentido, substancial), ou, como querem alguns, uma conduta atípica numa conduta típica, a verdade é que ela não implica a imputação ao arguido de crime diverso. Pura e simplesmente, os factos constantes da acusação (aqueles exactos factos) não constituem crime, por não conterem todos os pressupostos essenciais de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou medida de segurança criminais
27. Em conclusão, os novos factos comunicados e tidos em atenção no despacho recorrido não são autonomizáveis face aos que constam da acusação pública, à luz do princípio ne bis in idem, vedando, por força do n.º 2 do artigo 359.º do CPP, que seja determinada a extração de certidão para que o Ministério Público proceda quanto aos mesmos, valendo como denúncia.
Procede, assim, o recurso, impondo-se revogar a decisão recorrida. 

III. Dispositivo
Pelo exposto, acordam os Juízes da 5.ª Secção Criminal desta Relação em:
Julgar procedente o recurso e revogar a decisão recorrida.
Sem custas.
Notifique.

Texto elaborado em computador e revisto (art.º 94.º, n.º 2 do CPP).          
Lisboa, 7 de junho de 2022
Fernando Ventura
Maria José Machado