Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6467/06.6TBOER-M.L1-6
Relator: JORGE ALMEIDA ESTEVES
Descritores: LEIS TEMPORÁRIAS COVID19
ENTREGA DE CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
SUSPENSÃO DA ENTREGA
CADUCIDADE DA LEI
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/25/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: INos termos do artº 6.º-E, n.º 7, al. b), da Lei n.º 1-A/2020, de 19-03, ficaram suspensos, no decurso do período de vigência do regime excecional e transitório previsto nesse artigo, os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família.

IITal suspensão mantém-se, conforme referido artº 6.º-E/1 daquela Lei, no decurso da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19.

IIIA questão da caducidade/não caducidade do regime processual consagrado no artº 6º-E da Lei nº 1-A/2020, de 19.03, tem dividido a jurisprudência dos Tribunais da Relação, existindo posições antagónicas em vários arestos.

IVNa redação inicial da Lei nº 1-A/2020 o termo do regime excecional seria expressamente definido por decreto-lei; no entanto a Lei nº 16/2020, de 29.05, revogou a norma que definia essa forma de cessação, pelo que esse regime excecional passou a ter uma vigência temporária definida pela manutenção da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19.

VNos termos do artº 7º/1 do CCivil, quando a lei se destina a ter vigência temporária, não é necessário que seja revogada por outra lei, bastando que cesse a situação que motivou a sua entrada em vigor.

VINos termos da Lei de Bases da Proteção Civil, aprovada pela Lei nº 27/2006, de 03.07, a situação de alerta é a menos grave das previstas nesse diploma; tendo cessado a que havia sido anteriormente decretada e se fundava na situação pandémica, às 23:59h do dia 30.9.2022, o que passou a existir desse então foi o simples regresso à normalidade, sem qualquer tipo de restrições.

VIINesse mesmo dia 30 de setembro de 2022, foi publicado em Diário da República o Decreto-Lei nº 66-A/2022, de 30.09, que determinou a cessação de vigência de decretos-leis publicados, no âmbito da pandemia da doença COVID-19.

VIIIOs argumentos que decorrem de se entender que o legislador, caso quisesse fazer cessar a vigência da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, tê-lo-ia efetuado no referido DL nº 66-A/2022, e do facto de estar pendente na Assembleia da República a apreciação da Proposta de Lei n.º 45/XV (publicada no DAR II série A n.º 114, 2022.11.11, da 1.ª SL da XV Leg, pág. 174-178 ), usados para sustentar a manutenção em vigor da Lei nº 1-A/2020, constituem, na realidade, argumentos em sentido contrário.

IXA Proposta de Lei n.º 45/XV, que foi apresentada pelo Governo, e o DL 66-A/2022, foram aprovados em Conselho de Ministros exatamente no mesmo dia, 29 de setembro de 2022.

XO Governo, por via do DL nº 66-A, levou a efeito, unicamente, a clarificação da cessação dos efeitos dos diplomas legislativos que ele próprio aprovou e, no mesmo dia em que aprovou em Conselho de Ministros esse diploma, aprovou também uma proposta de lei na qual pretendia operar exatamente a mesma clarificação quanto aos diplomas legislativos aprovados na Assembleia da República, ou seja, quanto às leis.

XIO legislador só não levou já a efeito a clarificação da cessação dos efeitos da Lei nº 1-A/2020 pelo simples facto de se tratar de um ato legislativo da Assembleia da República, tendo aprovado uma proposta de lei da qual consta a revogação expressa da Lei nº 1-/2020, que submeteu à Assembleia da República e cujo processo legislativo ainda está a decorrer.

XIINa situação que existe desde o final do ano passado, que é já de normalidade, as restrições procedimentais quanto à entrega de bens em qualquer tipo de procedimentos, nomeadamente executivos, decorrentes da situação pandémica constituem uma restrição manifestamente injustificada e, ademais, inadmissível ao direito de propriedade que está constitucionalmente garantido no artº 62º da Constituição da República Portuguesa.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes Desembargadores que compõem este Coletivo da 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa


RELATÓRIO

Recorrente: VM
Recorrida: BPIU, LDA.

A recorrida, adquirente do bem imóvel penhorado na ação executiva de que estes autos são dependência, veio, em 02.11.2021, apresentar o seguinte requerimento:

“BPIU, LDA…, com sede na Rua…, Interveniente Acidental, na medida em que adquiriu em 23/06/2021, por negociação particular, o imóvel objecto de penhora e venda judicial nos presentes autos, cfr. dos mesmos já resulta, anunciado na plataforma, vem mui respeitosamente requerer a V.Exª a sua entrega coerciva com os fundamentos infra e nos seguintes termos:
1.–Conforme resulta dos autos, a penhora sobre o bem imóvel, que deu origem à venda judicial, data do ano de 2012;
2.–Atento o lapso de tempo decorrido, a executada VM, residente no local, habilitada como herdeira de JM, nos termos do incidente de habilitação de herdeiros que correu por apenso (Apenso F) ao processo de execução, sabia e conformou-se que tal venda viria a concretizar-se.
3.–E efectivamente assim foi, mas somente 9 anos após o registo da penhora.
4.–Apesar de o ora adquirente desconhecer as vicissitudes que levaram a tal delonga.
5.–Mas, e atento o lapso de tempo decorrido, decerto a executada supra identificada terá ao longo desses 9 anos acautelado a sua situação, pois que bem sabia que, em determinado momento, tal se iria materializar.
6.–No entanto, e até à presente data, a executada não permitiu que o adquirente tomasse posse do imóvel ou sequer acedesse ao mesmo, para verificação do seu estado de conservação.
7.–E até poder acautelar algumas obras imediatas de conservação urgentes do edifício.
8.–Dado que, pelo exterior, é visível um assinalável grau de degradação, motivado pela falta de manutenção ao longo do tempo.
9.–E se, num passado próximo a situação epidemiológica provocada pelo coronavírus conduziu à implementação de medidas excepcionais e temporárias, com vista à saúde pública, o funcionamento da economia e o acesso a bens essenciais a todos os cidadãos,
10.–Com o fim do estado de emergência e das restrições anteriormente impostas, da actual situação do país, dos anos decorridos entre a data da penhora e a venda do bem imóvel dos autos, não pode aceitar-se ou ser-se condescendente com o comportamento da Executada, VM, e a inviabilização de acesso ao imóvel apenas, ainda que só para verificação do estado de conservação em que se encontra o mesmo, podendo este tipo de actuações estar até a criar situações perniciosas, impeditivas da efectividade ao estímulo económico e à preservação do património, como é o caso em concreto.
Assim, com os fundamentos supra e nos termos seguintes, vem a Interveniente Acidental, requerer a V.Exªs:
- que a Executada, VM, seja, desde já, notificada para permitir o acesso imediato ao interior do bem imóvel, pelo representante legal da Adquirente, a fim de este aferir o actual estado de conservação do imóvel;
- que lhe seja concedido um prazo legal, nunca superior a 60 (sessenta) dias, para que a Executada VM entregue o bem, devoluto de pessoas e bens;
- caso não o faça voluntariamente no decurso de tal prazo seja, desde já, se requer que seja deferido o auxílio de força pública para que o Interveniente Acidental possa tomar posse efectiva do bem imóvel”.

A recorrente respondeu a este requerimento da seguinte forma:

“VM, Executada melhor id., notificada do teor do requerimento da proprietária do imóvel penhorado e vendido nos presentes autos, datado de 19/10/2022, onde vem pugnar pela caducidade do artigo 6.ºE, n.º7, alínea b) da Lei n.º 1-A/2020, vem pelo presente expor e requerer o seguinte:
1.–A executada requereu a suspensão dos actos a realizar em sede de processo executivo referente à entrega judicial do imóvel penhorado nos autos, o que lhe havia sido deferido mediante despacho sob a ref.ª 19183529, de 02/07/2021, ao abrigo da al. b), do n.º 7, do artigo 6.º-E da Lei n.º 13-B/2021, redacção então vigente da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, uma vez tratando-se da sua casa de morada de família.
2.–Em requerimento datado de 20/12/2021, a Executada reeditou tal pedido alegando, além do mais, que nele residem a própria e o seu neto com problemas mentais.
3.–Por força do disposto na alínea b) do n.º 7 do referido artigo 6-º-E, estão suspensos «os actos a realizar em processo executivo (…) relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família», enquanto vigorar o regime excepcional e transitório previsto nesse mesmo artigo.
4.–A suspensão prevista neste último preceito legal - que tem por objecto exclusivo actos de entrega judicial de casa de morada de família - opera ope legis, como reconhecido por este Tribunal e reiterado por despacho datado 30/03/2022, remetendo as partes para o despacho já anteriormente proferido neste sentido, proferido no apenso B, a propósito da suspensão dos actos com vista à entrega do imóvel.
5.–Está provado, por documentos e acordo, que o imóvel penhorado nos autos é casa de morada de família da executada, pelo que não poderá ser efectuada a sua entrega coerciva enquanto durar o referido regime excepcional, o qual se manteve com a última versão da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, resultante da Lei n.º 91/2021, de 17/12 que manteve aquele dispositivo em vigor,
6.–E que se mantém até hoje em vigor uma vez não tendo sido objecto de qualquer revogação, ao contrário de outros do mesmo diploma e de diplomas diversos, conforme resultou do Decreto-Lei 66A/2022, de 30 de Setembro.
7.–À contrario, resulta assim que se fosse intenção do legislador ter feito cessar o dispositivo em causa tê-lo-ia feito nesta mesma ocasião, o que não fez.
8.–E o que bem se compreende, atento o ainda difícil momento vivido em termos de saúde pública, resultante da recente pandemia que a estação fria vem novamente colocar na ordem do dia, estando os hospitais com as dificuldades que são notórias e do conhecimento público.
9.–Sendo a executada uma pessoa idosa e com parcos recursos, como ficou já exposto por diversas vezes, tendo a seu cargo ainda o seu neto com problemas psiquiátricos, resulta manifesto que as razões que presidiram à aplicação do dispositivo chamado à colação se mantêm actuais.
10.–Mais acresce que se encontra pendente de decisão de Recurso nos presentes autos o despacho proferido em 20/07/2022, o qual, mantendo-se, na pior das hipóteses dará à executada alguns meios financeiros para procurar alternativa habitacional de que agora não dispõe de todo, mediante a restituição de excesso de penhora de que foi objecto ou, em hipótese alternativa, legitimará a anulação da presente venda, considerando os valores pendentes de correcta contabilização por parte da Sr.ª Agente de Execução.
11.–Pelo exposto, deverão manter-se suspensas as diligências de entrega judicial do imóvel em causa”.
*

Sobre o referido requerimento foi proferido o seguinte despacho:

O adquirente veio requerer a entrega coerciva do imóvel vendido, ao que a executada se opôs, alegando que não foi revogada a Lei nº 1-A/2020.
Cumpre apreciar e decidir:
A produção de efeitos da Lei nº 1-A/2020 (que prevê medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS- CoV -2 e da doença COVID-19), é reportada à data da produção de efeitos do DL nº 10-A/2020, conforme art. 10º da Lei nº 1-A/2020, sendo que o DL nº 66- A/2022, de 30/09, revogou a maioria do corpo normativo estabelecido pelo DL nº 10-A/2020, de 13/03.
Por outro lado, a situação de alerta provocada pelo coronavírus SARS não foi renovada pelo Governo a partir das 00:00 do dia 1 de outubro de 2022.
Acresce-se que a Lei nº 1-A/2020, na redação original, estabelecia que o regime processual excecional sobre prazos e diligências só por decreto-lei poderia deixar de se aplicar (cf. art. 7º, nº 2), sendo que, entretanto, este preceito foi revogado pelo art. 8º da Lei nº 16/2020, de 29/5.
Assim, considero que a vigência da Lei nº 1-/2020 cessou por caducidade, não apenas porque deixou de existir a realidade que ela se destinava a regular (ou seja, a situação excecional da pandemia), como também porque a revogação deixou de ser a forma prevista para aquela lei deixar de vigorar.
Nestes termos, deverá entender-se que a Lei nº 1-A/2020 cessou a sua vigência por caducidade às 23h59m do dia 30 de setembro de 2022 (data em que cessou por caducidade a Resolução do Conselho de Ministros nº 73-A/2022, de 26/8), devendo considerar-se tacitamente revogada a dita lei, designadamente o Regime Processual Excecional e Transitório previsto no seu art. 6ºE.
Por todo o exposto, autorizo a intervenção da força pública como vista à entrega do imóvel objecto destes autos, se necessário com arrombamento, devendo, no entanto, ter-se presente o que se dispõe no art. 861º, nº 6, do Cód. Proc. Civil”.
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Inconformada com o decidido, apelou a executada, tendo apresentado alegações e (desnecessariamente extensas) conclusões, nas quais, na sua maior parte aborda questões que não foram suscitadas no contraditório prévio à decisão recorrida, nem apreciadas nesta última. No que concerne especificamente à decisão recorrida, entende que se mantém em vigor a Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, mais especificamente o art.º 6.º-E, n.º 7, al. b), nos termos que já tinha referido na resposta ao requerimento da recorrida.

Não foram apresentadas contra-alegações.
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FUNDAMENTAÇÃO

Colhidos os vistos cumpre decidir.

Objeto do Recurso

O objeto do recurso é balizado pelo teor do requerimento de interposição (artº 635º nº 2 do CPC), pelas conclusões (artºs 635º nº 4, 639º nº 1 e 640º do CPC), pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, ou por ampliação (artº 636º CPC) e sem embargo de eventual recurso subordinado (artº 633º CPC) e ainda pelas questões de conhecimento oficioso cuja apreciação ainda não se mostre precludida.

Quanto ao objeto do recurso, há que formular a seguinte questão prévia: a recorrente, nas alegações, aborda uma série de questões que não suscitou aquando da resposta que apresentou ao requerimento da recorrida e nem foram apreciadas na decisão recorrida.

É entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência que não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação[1].

Assim, em face das conclusões apresentadas pela recorrente, dos teores do requerimento da recorrida, da resposta da recorrente e da decisão recorrida, a questão a apreciar é unicamente a de apurar se ocorreu ou não a caducidade do art.º 6.º-E, n.º 7, al. b), da Lei n.º 1-A/2020, de 19-03.
***

Para a apreciação da questão que constitui o objeto do recurso, a factualidade a atender para é a que consta do relatório supra, sem necessidade de mais acrescentos.

Fundamentação jurídica

A situação que se configura nos autos decorre da venda, no processo executivo, que é o processo principal, do bem imóvel penhorado. A compradora do mesmo, ora recorrida, veio requerer a respetiva entrega.
A recorrente opôs-se invocando o disposto no artº 6.º-E, n.º 7, al. b), da Lei n.º 1-A/2020, de 19-03, segundo o qual ficam suspensos, no decurso do período de vigência do regime excecional e transitório previsto no presente artigo, os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família.
O nº 1 do referido artº 6.º-E estabelece que no decurso da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, as diligências a realizar no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal regem-se pelo regime excecional e transitório previsto no presente artigo”.
É de uma manifesta evidência que, à data da decisão recorrida, 25.01.2023, já não estávamos no decurso da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19. Tal decorreu da circunstância de a situação de alerta ter cessado às 23:59h do dia 30.9.2022. A questão que se coloca é a de saber se o regime processual consagrado no artº 6º-E da Lei nº 1-A/2020, de 19.03, se pode considerar caducado ou se é necessário que o mesmo seja expressamente revogado.
Esta questão tem sido apreciada pelos Tribunais da Relação e tem merecido respostas díspares.

No sentido de não ter ocorrido a caducidade, ou de não se poder considerar cessado por essa via o regime em causa, temos os seguintes acórdãos:
-Relação Lisboa de 13.10.2022, (procº nº 17696/21.2T8LSB.L1-6), de cujo sumário consta o seguinte:
4.–O artº Artigo 6.º-E, nº 7, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, não foi pelo Decreto-Lei 66-A/2022,de 30 de Setembro , visado/atingido, mantendo-se em vigor, o que deverá suceder enquanto permanecer a “situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19”.
-Relação de Lisboa de 09.02.2023 (procº nº 8834/20.3T8SNT.L1-2), de cujo sumário consta o seguinte:
II– Apesar do fim do estado de alerta em território continental nacional, a partir das 23h59 de 30 de setembro de 2022, ainda não se pode considerar verificada tal alteração legislativa, uma vez que continua a estar prevista nessa lei, em artigo correspondente (o art.º 6.º-E, n.º 7, artigo aditado pela Lei n.º 13-B/2021, de 05-04) essa mesma medida, enquanto durar a “situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19”, não se podendo considerar que aquele preceito sido revogado ou caducado, perspetivando-se, tão-só, que a sua revogação poderá vir a ocorrer a breve trecho, se vier a ser aprovada pela Assembleia da República a Proposta de Lei n.º 45/XV/1.
-Relação de Coimbra 28.03.2023 (procº nº 86/18.1T8CTB-A.C1), de cujo sumário consta o seguinte:
I–Não se tem por demonstrado que a situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-COV-e e da doença Covid-19, tenha deixado de existir, incumbindo ao legislador, a determinação de quais as medidas de combate à pandemia – adotadas numa perspetiva sanitária ou nas vertentes de apoio social e económico às famílias e às empresas – que, face à evolução da doença, já não se revelam necessárias, sendo que, tal juízo assentará não só em razões sanitárias, mas na sua perceção dos efeitos da pandemia nos aspetos sociais e económicos que podem perdurar muito para além dos decretados estados de emergência, de calamidade ou de alerta.
II–Como tal, não se reconhece a invocada caducidade do art.º 6.º-E, n.º 7, da Lei n.º 1-A/2020, de 19-03, embora perspetivando que a sua revogação poderá vir a ocorrer em breve, com a aprovação pela Assembleia da República a Proposta de Lei n.º 45/XV/1, que prevê a ressalva dos factos ocorridos na sua vigência e os efeitos que deles possam ocorrer no futuro.
III– A pretensão à não aplicação da norma contida nº 7, al. b), do art. 6-E da Lei n.º 1-A/2020, com a alegação de que a situação excecional que a justificava – de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-COV2 e da doença Covid-19 – deixou de existir, não constituiu fundamento de inconstitucionalidade da própria norma, mas de eventual caducidade da mesma.
-Relação de Lisboa de 11.04.2023 (procº nº 2160/22.0T8SNT-H.L1-1), de cujo sumário consta o seguinte:
I- Do disposto no art.º 6º-E, nº 7, alínea b), da Lei nº 1-A/2020, de 19/3, resulta que a suspensão das diligências de entrega judicial da casa de morada de família em processo executivo e de insolvência opera ope legis.
II- Não tendo o aludido normativo sido revogado pelo Dec. Lei nº 66-A/2022, de 30 de Setembro, nem se podendo concluir pela respectiva caducidade, o mesmo mantém-se actualmente em vigor.

Em sentido contrário temos os seguintes acórdãos:
-Relação do Porto de 07.02.2023 (procº nº 2397/12.0TBMAI-A.P1), de cujo sumário consta o seguinte:
I–A Lei nº 1-A/2020, de 19.3., que estabelece medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, é uma lei temporária, cuja vigência se encontra dependente da manutenção da situação excecional de pandemia.
II–Assim, se a situação de alerta, por não ter havido decisão governamental a prorrogar essa situação, deixou de existir às 23:59h do dia 30.9.2022, deverá entender-se que a Lei nº 1-A/2020, de 19.3. cessou, nessa ocasião, a sua vigência por caducidade.
-Relação de Évora de 02.03.2023 (procº nº 2359/21.7T8STR-D.E1), de cujo sumário consta o seguinte:
1– A lei tem vigência temporária, quando se fixa o seu termo em certa data, se torna a sua vigência dependente de certo pressuposto ou se destina à consecução de certo fim. Em qualquer destes casos, a cessação da vigência da lei não depende da sua revogação.
2– Findo estado de alerta em todo o território nacional, a partir de 30/09/2022, na alçada jurisdicional, já não se está no âmbito dos pressupostos de aplicação da legislação editada a propósito da situação excepcional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infecção epidemiológica por SARS-Cov-2 e da doença Covid-19.

Vejamos qual a solução a dar à questão, tendo em atenção os argumentos que foram usados para fundamentar os mencionados doutos acórdãos.

A Lei nº 1-A/2020, de 19.3. [que estabelece medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19], na redação original do art. 7º veio consagrar, além do mais, a suspensão dos processos para a entrega de coisa imóvel arrendada [nº 10] até à cessação daquela situação excecional. No nº 2 deste mesmo art. 7º previa-se que o regime dele constante cessaria em data a definir por decreto-lei, no qual se declarasse o termo da situação excecional. Porém, este art. 7º foi revogado pela Lei nº 16/2020, de 19.5

O segmento normativo onde se previa que o regime transitório cessaria em data a definir por decreto-lei logo que se declarasse o termo da situação excecional foi revogado pela Lei nº 16/2020, de 19.5., daí resultando que a vigência do regime processual transitório e excecional previsto no art. 6º-A – da Lei nº 1-A/2020 - se manteria enquanto perdurasse a situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, tal como definido no nº 1 do preceito.

Assim, ao invés do que sucedia na redação inicial da Lei nº 1-A/2020, em que o termo do regime excecional seria expressamente definido por decreto-lei, com a Lei nº 16/2020 este regime excecional passou a ter uma vigência temporária definida pela manutenção da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19.

O preceito que regula a cessação da vigência das leis é o artº 7º/1 do CCivil, onde se estabelece que quando se não destine a ter vigência temporária, a lei só deixa de vigorar se for revogada por outra lei. Sobre este preceito PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA entendem que “a lei tem vigência temporária, quando se fixa o seu termo, se torna a sua vigência dependente de certo pressuposto (o estado de guerra, por exemplo) ou se destina à consecução de certo fim (por exemplo, expropriações na Cidade Universitária de Coimbra). Em qualquer destes casos, a cessação da vigência da lei não depende da sua revogação”[2]. Esta é, portanto, a regra de revogação das leis temporárias, como são as leis de emergência, nas quais, naturalmente, se integra toda a legislação que foi decretada como consequência direta e necessária da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19.

A Lei de Bases da Proteção Civil, aprovada pela Lei nº 27/2006, de 03.07, que serviu de fundamento para a criação do quadro de atuação das entidades públicas para fazer face à pandemia, estabelece três situações que podem ser declaradas em função da gravidade dos acontecimentos a prevenir ou a enfrentar e a gravidade e extensão dos seus efeitos atuais ou expectáveis. São elas a situação de alerta, a situação de contingência e a situação de calamidade. Nos termos do artº 9º daquele diploma, os pressupostos das situações de alerta, contingência e calamidade são os seguintes:
1-A situação de alerta pode ser declarada quando, face à ocorrência ou iminência de ocorrência de algum ou alguns dos acontecimentos referidos no artigo 3.º, é reconhecida a necessidade de adotar medidas preventivas e ou medidas especiais de reação.
2-A situação de contingência pode ser declarada quando, face à ocorrência ou iminência de ocorrência de algum ou alguns dos acontecimentos referidos no artigo 3.º, é reconhecida a necessidade de adotar medidas preventivas e ou medidas especiais de reação não mobilizáveis no âmbito municipal.
3-A situação de calamidade pode ser declarada quando, face à ocorrência ou perigo de ocorrência de algum ou alguns dos acontecimentos referidos no artigo 3.º, e à sua previsível intensidade, é reconhecida a necessidade de adotar medidas de caráter excecional destinadas a prevenir, reagir ou repor a normalidade das condições de vida nas áreas atingidas pelos seus efeitos”.

Como se constata, a situação de alerta é a menos grave das previstas. Ora, como se referiu supra, a situação de alerta cessou às 23:59h do dia 30.9.2022. Como essa situação é a menos grave, cessando ela não existe qualquer outra situação de excecionalidade, pelo que o que passa a existir é a situação de normalidade. A partir desta data deixaram de ter fundamento legal quaisquer restrições que se fundavam nos pressupostos que determinaram a declaração da situação de alerta e que era, naturalmente, decorrente da situação pandémica.

Foi exatamente por essa razão que o Governo, logo nesse mesmo dia 30 de setembro de 2022, fez publicar em Diário da República o Decreto-Lei nº 66-A/2022, de 30.09, que determina a cessação de vigência de decretos-leis publicados, no âmbito da pandemia da doença COVID-19. No preâmbulo desse diploma disse-se o seguinte:
Desde o início da pandemia da doença COVID-19, o Governo tem vindo a adotar uma série de medidas de combate à pandemia, seja numa perspetiva sanitária, seja nas vertentes de apoio social e económico às famílias e às empresas, com o intuito de mitigar os respetivos efeitos adversos.
Face ao desenvolvimento da situação epidemiológica num sentido positivo, observado nos últimos meses, assistiu-se à redução da necessidade de aprovação de novas medidas e de renovação das já aprovadas.
Concomitantemente, importa ter presente que a legislação relativa à pandemia da doença COVID-19 consubstanciou-se num número significativo de decretos-leis com medidas aprovadas com o objetivo de vigorar durante um período justificado.
Neste contexto, através do presente decreto-lei, procede-se à clarificação dos decretos-leis que ainda se encontram em vigor, bem como à eliminação das medidas que atualmente já não se revelam necessárias, através da determinação expressa de cessação de vigência de decretos-leis já caducos, anacrónicos ou ultrapassados pelo evoluir da pandemia.
Desta forma, ganha-se em clareza e certeza jurídica, permitindo aos cidadãos saber - sem qualquer margem para dúvidas - qual a legislação relativa à pandemia da doença COVID-19 que se mantém aplicável”.

O artº 1º, al. a), estabelece que considera revogados diversos decretos-leis aprovados no âmbito da pandemia da doença COVID-19, determinando expressamente que os mesmos não se encontram em vigor, em razão de caducidade, revogação tácita anterior ou revogação pelo presente decreto-lei. O artº 2º procede à revogação de 101 decretos-leis.

Um dos argumentos – sendo que até é o principal argumento – usado nas decisões que consideram que o diploma em causa ainda se mantém em vigor, é o de se entender que o legislador, caso quisesse fazer cessar a vigência da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, tê-lo-ia efetuado no referido DL nº 66-A/2022. E o outro argumento é o facto de estar pendente na Assembleia da República a apreciação da Proposta de Lei n.º 45/XV (publicada no DAR II série A n.º114, 2022.11.11, da 1.ª SL da XV Leg, pág. 174-178[3]).
Acontece, porém, que esses argumentos não colhem, de todo.

A referida proposta de lei foi, como o próprio nome indica, apresentada pelo Governo[4]. Quer o DL 66-A/2022, quer a Proposta de Lei n.º 45/XV, foram aprovadas em Conselho de Ministros de 29 de setembro de 2022.

Da proposta de lei consta a seguinte Exposição de Motivos:
Desde o início da pandemia da doença COVID-19, o Governo tem vindo a adotar uma série de medidas de combate à pandemia, seja numa perspetiva sanitária, seja nas vertentes de apoio social e económico às famílias e às empresas, com o intuito de mitigar os respetivos efeitos adversos.
Face ao desenvolvimento da situação epidemiológica num sentido positivo, observado nos últimos meses, assistiu-se à redução da necessidade de aprovação de novas medidas e de renovação das já aprovadas.
Concomitantemente, importa ter presente que a legislação relativa à pandemia da doença COVID-19 consubstanciou-se num número significativo de leis com medidas aprovadas com o desidrato de vigorar durante um período justificado de tempo.
Neste contexto, através da presente proposta de lei, procede-se à clarificação das leis que ainda se encontram em vigor, bem como à eliminação das medidas que atualmente já não se revelam necessárias, através da determinação expressa de cessação de vigência de leis já caducas, anacrónicas ou ultrapassadas pelo evoluir da pandemia.
Desta forma, ganha-se em clareza e certeza jurídica, permitindo aos cidadãos saber – sem qualquer margem para dúvidas - qual a legislação relativa à pandemia da doença COVID-19 que se mantém aplicável”.

Cotejando esta exposição de motivos com o preâmbulo do DL 66-A/2022, facilmente se constata que o teor é, ipsis verbis, idêntico, com uma única diferença: O DL 66-A refere decretos-leis, ao passo que a Proposta de Lei n.º 45/XV refere leis.

Temos, portanto, que o Governo, por via do DL nº 66-A, levou a efeito, unicamente, a clarificação da cessação dos efeitos dos diplomas legislativos que ele próprio aprovou. E, no mesmo dia em que aprovou em Conselho de Ministros esse diploma, aprovou também uma proposta de lei na qual pretendia operar exatamente a mesma clarificação quanto aos diplomas legislativos aprovados na Assembleia da República, ou seja, quanto às leis.

Assim, os argumentos que decorrem da circunstância de o DL 66-A não ter revogado a Lei nº 1-A/2020 e de estar pendente uma proposta de lei nesse sentido, constituem, na realidade, argumentos no sentido de o regime constante daquela Lei já estar caducado por já não existir a situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19 que a justificou.

O legislador só não levou já a efeito a revogação expressa desse diploma pelo simples facto de se tratar de um ato legislativo da Assembleia da República e, por isso, usando a iniciativa legislativa que assiste ao Governo e no mesmo dia em que aprovou o DL 66-A, aprovou também uma proposta de lei da qual consta a revogação expressa da Lei nº 1-/2020. A exposição de motivos da proposta de lei é exatamente a mesma, ipsis verbis, do preâmbulo do DL 66-A.

A acrescer a tudo o exposto, temos que desde o final do ano passado que a normalidade regressou à vida do dia-a-dia, não havendo, de todo, fundamento para a suspensão, no âmbito de qualquer tipo de procedimentos e especificamente quanto a bens vendidos em processo executivo, da entrega de bens imóveis aos respetivos proprietários. Tal constituiria, presentemente, uma restrição inadmissível ao direito de propriedade que está constitucionalmente garantido no artº 62º da Constituição da República Portuguesa.

De tudo o exposto resulta que o recurso é improcedente, nada havendo a censurar à decisão recorrida.

***

DECISÃO

Face ao exposto, acordam os Juízes Desembargadores que compõem este coletivo da 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar o recurso improcedente, mantendo a decisão recorrida.
Custas pela recorrente (artº 527º/1 e 2 do CPC).
Notifique.


Lisboa, 25 mai 2023


Jorge Almeida Esteves-(relator)
Teresa Soares-(1ª adjunta)
Octávia Viegas-(2ª adjunta)


[1]Neste sentido acórdão do STJ de 07.07.2016, proferido no procº nº 156/12.0TTCSC.L1.S1, in www.dgsi.pt, de cujo sumário consta o seguinte: “Não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objecto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação”. No mesmo sentido acórdão da Relação de Coimbra de 08.11.2018, proferido no procº nº 212/16.5T8PTL.G1, in www.dgsi.pt, constando do sumário o seguinte: “1. Quando um recorrente vem colocar perante o Tribunal superior uma questão que não foi abordada nos articulados, não foi incluída nas questões a resolver, e não foi tratada na sentença recorrida, então estamos perante o que se costuma designar de questão nova. 2. Por definição, a figura do recurso exige uma prévia decisão desfavorável, incidente sobre uma pretensão colocada pelo recorrente perante o Tribunal recorrido, pois só se recorre de uma decisão que analisou uma questão colocada pela parte e a decidiu em sentido contrário ao pretendido. 3. A única excepção a esta regra são as questões de conhecimento oficioso, das quais o Tribunal tem a obrigação de conhecer, mesmo perante o silêncio das partes”.
[2]In “Código Civil Anotado”, volume I, 4ª ed., Coimbra Editora, pág. 56.
[3]Consultável em www.parlamento.pt.
[4]Nos termos do artº 167º da Constituição da República Portuguesa, quando a iniciativa legislativa é do Governo, o documento que a consubstancia denomina-se proposta de lei (quando a iniciativa é dos
deputados denomina-se projeto de lei).