Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3779/21.2T8GMR-B.G2
Relator: ALEXANDRA VIANA LOPES
Descritores: QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
CULPOSA – ART.º 186.º N.º 2
AL. D) DO CIRE
GERENTES
INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/26/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÕES
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE; APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. Preenche a previsão de qualificação da insolvência como culposa do art.186º/2-d) do CIRE, o ato de dação em pagamento realizado pelos gerentes da insolvente, 5 meses antes do decretamento da mesma, em altura em que a mesma já se presumia, ato pelo qual, simultaneamente: foi transmitido para um credor comum o único bem imóvel da insolvente, por um valor inferior ao valor de mercado (pelo menos no valor de € 8 000, 00); foi paga com esta transmissão a dívida da insolvente à credora comum/donatária no valor global de € 87 790, 30, numa altura em que já estavam vencidos e a vencerem-se créditos privilegiados em valor superior (que vieram a ser reconhecidos na insolvência no valor global de € 230 000, 00), que seriam satisfeitos com prevalência na insolvência e determinariam que credor comum não obteria satisfação do valor que lhe foi pago se tivesse concorrido no processo de insolvência com a universalidade dos demais credores.
2. Devem ser afetados pela qualificação da insolvência ambos os gerentes de direito intervenientes no ato de dação em pagamento de 28.04.2022, independentemente de um dos gerentes não comparecer na sede da insolvente desde 2019 e ter ou não praticado atos de gestão nesse período, tendo em conta que lhe cabem responsabilidades gerais de representação e vinculação da sociedade (arts.252º/1 e 260º do C. S. Comerciais) e de observância de deveres de cuidado (art.64º/1-a) do C. S. Comerciais).
3. Deve ser alterada a indemnização a que os requerentes foram condenados, baseada num valor fixo de mercado do imóvel, para uma indemnização a liquidar nos termos do art.189º/4 do CIRE, quando, em decisão à impugnação da matéria de facto, foi alterado o referido valor fixo de mercado para um valor compreendido entre um mínimo e máximo a liquidar.
Decisão Texto Integral:
As Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam no seguinte

ACÓRDÃO

I. Relatório:
No incidente de qualificação de insolvência de «EMP01... – Comércio e Serviços Têxteis, Unipessoal, Lda.», aberto por despacho proferido em sede de assembleia de credores da insolvência:
1. O administrador da insolvência juntou o seu parecer (fls. 5 e ss), concluindo:
a) Que a insolvência deveria ser culposa: por continuar por apurar o paradeiro dos demais bens da empresa que constavam do imobilizado, apesar das interpelações realizadas (art.186º/2-a) do CIRE); por a insolvente a 04.05.2021, representada pelos seus dois gerentes à data, ter transmitido à sociedade EMP02..., Lda. (que seria um credor comum) o imóvel que constituía a sua sede, contrato no qual a insolvente assumiu obrigações que excederam manifestamente as da contraparte, o que constituiu um negócio ruinoso para a massa insolvente e para os demais credores (art.186º/1-b) e d) do CIRE); por a insolvente não se ter apresentado à insolvência (art.186º/3-a) do CIRE).
b) Que deveriam ser afetados pela qualificação da insolvência os seus gerentes AA (na qualidade de legal representante da insolvente na data da transmissão do imóvel) e BB (na qualidade de legal representante da insolvente).
2. O Ministério Publico emitiu parecer, no qual:
a) Julgou reproduzidos os fundamentos de facto e de direito do parecer do administrador da insolvência.
b) Aditou que no processo de reclamação de créditos da insolvente foram reclamados créditos por 13 credores, no valor global de € 389 710, 47, e que a atuação dos gerentes de direito e de facto foi a causa direta e necessária do agravamento dos prejuízos patrimoniais dos credores.
c) Concluiu que deveria qualificar-se a insolvência como culposa nos termos dos arts.185º e 186º/1, 2-a), b), d), f) g) e 3 do CIRE e que deveriam julgar-se afetados os gerentes de direito e de facto com as consequências do art.189º/2 a 4 do CIRE.
3. Os requeridos, indicados como afetados pela insolvência, apresentaram oposições, nos termos do art.188º/6 do CIRE, nas quais:
3.1. O requerido AA declarou defender-se:
a) Por exceção de ilegitimidade passiva, com o fundamento: que na data da insolvência de 28.09.2021 não era gerente de direito, nem de facto; que nunca exerceu qualquer função de gerência ou administração da insolvente, de forma direta ou indireta («12) Nunca contratou trabalhadores, nunca deu ou emitiu ordens aos mesmos; 13) Nunca negociou com fornecedores, nem com clientes;  14) Nunca, mesmo nunca, foi responsável pela organização da escrituração ou documentação da insolvente, nem nunca teve a incumbência de efetuar pagamentos ao Estado, a trabalhadores ou a outros;  15) Nunca, em caso algum, governou, dirigiu a insolvente, nem nunca geriu bens ou negócios da insolvente; 16) Na verdade, o oponente não tem, e nem nunca teve, conhecimento dos bens e património da referida firma; 17) Na realidade, o oponente desconhecia e desconhece as razões que tornaram a empresa economicamente inviável, ao ponto do respetivo património se ter tornado insuficiente para a satisfação das dívidas;»), razão pela qual não pode vir a ser afetado pela qualificação da insolvência como culposa.
b) Por impugnação, declarando: que impugna o teor do parecer do administrador, mormente na parte da afetação do opoente à qualificação da insolvência como culposa; que apenas formalmente manteve a sua quota e designação, a pedido e por insistência do seu irmão sócio-gerente BB; que nunca interveio em atos de gestão da sociedade nem conhecia o seu estado, sendo apenas seu trabalhador até 2019, sendo que, se assinou quaisquer documentos que lhe eram entregues, sempre foi a título esporádico, não no âmbito de gestão da sociedade, e a pedido do sócio-gerente da firma BB, que se encarregava da gestão de toda a vida da sociedade.
3.2. O requerido BB declarou que a insolvência não foi causada por atos do seu gerente, nem este atuou com dolo ou culpa grave, e que os factos alegados pelo administrador e pelo Ministério Público não permitem preencher as hipóteses previstas nas als. a), b), d), f) e g) do nº2 e al. a) do nº3 do art.186º do CIRE, devendo a insolvência declarar-se fortuita,: não está preenchida a al. a) do nº2, pois não faz prova dos contactos realizados, nem refere ter feito contactos escritos ou ter-se deslocado ao local, nem identifica os bens em falta e seu valor; não está preenchida a al. b) do nº2 pois não alegou factos que permitissem concluir que o negócio foi ruinoso, nem que teve em vista obter vantagens para o próprio ou para pessoas com ele especialmente relacionadas, sendo que a dação em pagamento permitiu libertá-lo de alguma das responsabilidades que havia assumido (designadamente pagamentos a trabalhadores e fornecedores que o habilitassem a continuar a laborar) e permitiu os pagamentos de dívidas nela indicadas, tendo sido feita pelo preço que o credor aceitou, no contexto de crise do setor, sendo preferível vender a preço um pouco abaixo que permitisse solver algumas das suas responsabilidades do que não vender, sendo que um negócio não vantajoso não significa que seja ruinoso; não está preenchida a al. d) do nº2, pois não basta ter havido transmissão mas é necessário que esta tenha ocorrido em proveito pessoal dos administradores/gerentes ou de terceiro, sendo que a transmissão operada diminuiu o passivo da sociedade; não estão preenchidas as als. f) e g), do nº2, uma vez que não foram alegados quaisquer factos para a integração das mesmas; não está preenchida a al. a) do nº3, uma vez que apenas foi indicado o passivo e não o ativo (sendo que o administrador refere que em 2020 o ativo era superior ao passivo) e a presunção deste número não abrange o nexo causal entre as atuações omissivas e a verificação da situação de insolvência ou do seu agravamento.
4. A 07.03.2022 foi proferido o seguinte despacho saneador:
«Valor do Incidente: € 30.000,01.
Inexistem excepções dilatórias e nulidades de que cumpra conhecer.
O estado dos autos não permite desde já conhecer do mérito da causa.
Nos termos do art. 596º do CPC no presente litígio deverá ser apreciado se o gerente da insolvente fez desaparecer a maior parte do património da devedora; se criou ou agravou artificialmente os seus prejuízos; reduziu lucros; celebrou negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com ele especialmente relacionadas; dispôs dos bens da devedora em proveito pessoal e de terceiros; prosseguiu no seu interesse pessoal uma exploração deficitária e manteve uma contabilidade fictícia.
Dado o disposto no art. 11º do CIRE a decisão do incidente de qualificação de insolvência pode ser baseada em factos não alegados pelas partes, exigindo-se no entanto que o visado tenha sido chamado a pronunciar-se sobre eles, para efeitos do seu exercício de contraditório.
Nos termos do art. 137º do CIRE:
Admitem-se os meios de prova requeridos pelas partes e intervenientes.
Convoca-se o Sr. A.I. para prestar esclarecimentos em audiência.
Para realização da audiência de julgamento designa-se o próximo dia 05/04/2022, pelas 14h15.».
5. Realizou-se a audiência final em 2 sessões.
6. A 30.06.2022 foi proferida sentença, que decidiu:
«Pelo exposto, nos termos do disposto nos arts. 189º nºs 1 e 2 do CIRE, o tribunal qualifica como culposa a insolvência da sociedade “EMP01... – Comércio e Serviços Têxteis, Unipessoal, Lda..” e em consequência:
a) Declara afectados pela qualificação os gerentes BB e AA.
b) Declara os supra citados inibidos pelo período de 2 anos e 9 meses cada um para o exercício do comércio, e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa.
c) Determina-se a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos por BB e AA.
d) Condenam-se os afetados a indemnizar os credores do devedor declarado insolvente, solidariamente, até ao máximo de € 241.456,80 e das forças dos respetivos patrimónios.
*
Custas do incidente pelos afectados pela qualificação – art. 303º do CIRE.
Registe e notifique.
*
Remeta certidão à Conservatória do Registo Civil competente, nos termos e para os efeitos previstos no art. 189º nº3 do CIRE e art. 1º, nº1 al. m) do Código de Registo Civil.».

7. BB e AA interpuseram, cada um, recurso de apelação da sentença referida em I-6 supra, respondido pelo Ministério Público, após o que foi proferido acórdão de 03.11.2022, no qual se decidiu:

«Pelo exposto, as juízes desembargadoras da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam em anular todo o processado desde o termo da prova testemunhal na sessão da audiência de 28.06.2022, devendo o Tribunal a quo ordenar a junção aos autos do incidente do relatório pericial junto no processo de insolvência a 07.01.2022, cumprir o contraditório do mesmo, realizar as diligências que forem necessárias (face, nomeadamente: ao contraditório e eventual contraprova; ao referido em III-2.2.2. e 2.3.1. supra) e, após encerrada a audiência, proferir nova sentença.
*
Custas do recurso do recorrente AA pelo próprio, pois decaiu na arguição da nulidade, mas sem prejuízo do benefício de apoio judiciário (art.527º do C. P. Civil).
Custas do recurso do recorrente BB pelo próprio, pois decaiu na arguição de nulidade da sentença e obteve proveito da arguição de falta de contraditório da prova do facto 11 (art.527º do C. P. Civil).».
8. Descido o processo à 1ª instância:
8.1. A 16.12.2022 foi proferido o seguinte despacho:
«Em cumprimento do determinado pelo TRG notifique os requeridos/afetados do relatório de avaliação que foi junto no processo de insolvência nº3779/21.... a 07.01.2022, a fim de, querendo, exercerem o respetivo contraditório.
Prazo: 10 dias.
Relativamente aos factos 6 e 12 oportunamente será reinquirido o Sr. A.I. assim como como já se disse, ter-se-á em conta o teor da certidão de fls. 82 e ss. e o que resulta da lista definitiva de créditos reconhecidos.
Sobre os factos 26º, 28 e 32º da contestação do requerido BB, notifique o mesmo a fim de no prazo de 10 dias de indicar os meios de prova a produzir sobre essa factualidade, sem prejuízo dos esclarecimentos que o Sr. A.I. sobre os mesmos possa produzir.».
8.2. A 04.01.2023, a pedido de BB, foi prorrogado o prazo de 10 dias para o exercício do contraditório.
8.3. A 11.01.2023 BB exerceu o contraditório do relatório pericial e apresentou prova (documentos e uma testemunha).
8.4. A 18.04.2023 realizou-se audiência, na qual: ouviu-se o administrador da insolvência, a testemunha indicada (subscritor do relatório de avaliação junto nos documentos juntos em I- 8.3. supra) e BB em declarações de parte; procedeu-se a alegações finais.
8.5. A 27.04.2023 foi proferida sentença, que decidiu:
«Pelo exposto, nos termos do disposto nos arts. 189º nºs 1 e 2 do CIRE, o tribunal qualifica como culposa a insolvência da sociedade “EMP01... – Comércio e Serviços Têxteis, Unipessoal, Lda..” e em consequência:
a) Declara afectados pela qualificação os gerentes BB e AA.
b) Declara os supra citados inibidos pelo período de 2 anos e 9 meses cada um para o exercício do comércio, e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa.
c) Determina-se a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos por BB e AA.
d) Condenam-se os afetados a indemnizar os credores do devedor declarado insolvente, solidariamente, até ao máximo de € 241.456,80 e das forças dos respetivos patrimónios, considerando um valor de venda do imóvel (a ocorrer) de 318.000,00 e caso o venha a ser por valor inferior deverá ser deduzida diferença ao mencionado montante de 241.456,80 em exata medida.
*
Custas do incidente pelos afectados pela qualificação – art. 303º do CIRE.
Registe e notifique.
*
Remeta certidão à Conservatória do Registo Civil competente, nos termos e para os efeitos previstos no art. 189º nº3 do CIRE e art. 1º, nº1 al. m) do Código de Registo Civil.».
9. Após a prolação da sentença referida em I- 8.5. foram apresentados recursos da mesma, contraditados e liminarmente apreciados:
9.1. AA declarou interpor recurso do despacho saneador e da sentença, apresentando as seguintes conclusões e pedido final:
«I. Questão prévia: Da nulidade da sentença por omissão de pronúncia (art.615º, nº1, al. d) do CPC)
1- A nulidade consistente na omissão de pronúncia ou no desrespeito pelo objeto do recurso, em direta conexão com os comandos ínsitos nos arts. 608.º e 609.º do CPC, só se verifica quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões ou pretensões que devesse apreciar e cuja apreciação lhe foi colocada.
2- Revertendo ao caso dos autos, verificamos que, o Requerido AA, na sua oposição, arguiu exceção dilatória de ilegitimidade passiva, pois conforme alegado, à data da declaração da insolvência, ou seja, em 28/09/2021, o recorrente já não era gerente de direito, e muito menos, de facto da firma insolvente.
3- Com efeito, conforme resulta da certidão permanente da aludida firma, à data da insolvência o recorrente já não era gerente de direito da insolvente, pois tinha renunciado à gerência e cedido a sua quota em 29/04/2021, e muito menos, era gerente de facto da insolvente, como aliás, resultou provado nos pontos 16) e 17) dos factos provados.
4- De todo o modo, não sendo gerente de direito, à data da insolvência, o certo é que, não foi alegado qualquer facto quanto ao exercício por parte do recorrente da gerência de facto, sendo imprescindível, para se poder considerar o recorrente como parte legítima no aludido processo, e não ocorreu.
5- Sucede que, no despacho saneador o Tribunal a quo, apenas referiu tabelarmente «Inexistem exceções dilatórias e nulidades de que cumpra conhecer», tendo fixado os temas de prova e sujeitado o processo a julgamento.
6- Tendo o tribunal proferido saneador tabelar onde refere que as partes são legítimas, contudo é entendimento pacífico que, não tendo tal exceção sido concretamente conhecida, aquele despacho não faz caso julgado formal pelo que é possível a apreciação da exceção de ilegitimidade em momento ulterior.
7- Não obstante, após a realização do julgamento, foi proferida a douta sentença recorrida, que apreciou o mérito do incidente de qualificação, face aos factos provados e não provados, sendo que a questão da exceção da ilegitimidade passiva, não foi apreciada e fundamentada à luz dos normativos aplicáveis, nem sequer genericamente, sendo a sentença completamente omissa.
8- Assim, não tendo o Tribunal a quo se pronunciado sobre a questão da exceção de ilegitimidade passiva suscitada na oposição, constitui nulidade do despacho saneador e da sentença por omissão de pronúncia nos termos e para os efeitos do art. 615º, nº1, al. d) do CPC, o que expressamente se requer para todos os efeitos legais.
II. Do recurso da matéria de direito:
a) Da não afetação do recorrente pela qualificação da insolvência como culposa
9- O Recorrente não se conforma com a douta sentença recorrida que o declarou afetado pela qualificação da insolvência como culposa da sociedade, “EMP01... –Comércio e Serviços Têxteis, Unipessoal, Lda.,”, com as consequências daí advenientes.
10- A insolvência é culposa quando esse estado tiver criado ou agravado em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência (artº 186 nº 1 do CIRE).
11- A doutrina e a jurisprudência dominantes vêm defendendo que as situações do nº2 consubstanciam presunções iuis et iure, absolutas ou inilidíveis de insolvência culposa, por contraponto aos comportamentos enumerados sob o nº3, que constituiriam meras presunções iuris tantum, relativas ou ilidíveis, da existência de culpa grave.
12- Na determinação do alcance das presunções consagradas no nº2 do artigo 186º (e, ainda com maior acuidade, relativamente às presunções contidas sob o nº3), vem- se questionando se, para a qualificação da insolvência como culposa, a par da prova do circunstancialismo previsto nalguma das suas alíneas, haverá ainda que demonstrar a existência de um nexo de causalidade entre os factos aí previstos e a produção e/ou agravamento da situação de insolvência.
13- Assim, entendem alguns, que, como defende o recorrente, para que no caso “subiudice”, se conclua pelo carácter culposo da insolvência, não basta a ilicitude e a culpa na gerência da insolvente – é necessário a verificação de um nexo causal entre essa conduta e a criação ou agravamento da situação de insolvência do devedor – nesse sentido ver Raposo Subtil, Matos Esteves, Maria José Esteves e Luís Martins,CIRE Anotado, 2ª edição, págs. 265 e 266 e, entre outros, os acórdãos do TRC de7.2.2012 e de 12.7.2017, nos processos 2273/10.1TBLRA-B.C1 e 370/14.3TJCBR-A.C1, todos publicados em dgsi.pt.
14- Volvendo ao caso em apreço, não restam dúvidas de que, de que este nexo causal não existiu, nem existe, relativamente ao recorrente AA.
15- Em nenhum momento, foi alegado ou demonstrado que o recorrente foi a pessoa responsável pela criação ou agravamento invocado pelo Senhor Administrador como causa do presente incidente.
16- Na data em que a empresa foi declarada insolvente, em 28/09/2021, o recorrente já não era gerente de direito desde 29/04/2021 (altura em que renunciou à gerência e cedeu a sua quota).
17- A sua nomeação foi meramente formal, a pedido e por insistência do sócio-gerente BB, o que aquele acedeu por se tratar do seu irmão, esgotando-se aí, nunca tendo exercido efetivamente as funções correspondentes a tal nomeação.
18- Durante aquele período temporal, o seu exercício foi unicamente de direito, uma vez que nunca teve quaisquer contactos com a parte administrativa, contabilística, laboral, fiscal e financeira da sociedade. Sempre foi o seu irmão BB, desde a constituição da sociedade, quem exerceu de facto as funções de gerente da insolvente.
19- O recorrente, até à indicada data, nunca esteve envolvido no giro e funcionamento comercial da insolvente, nunca acompanhou e controlou a condução da atividade da sociedade, nunca teve poder decisório sobre o destino da empresa, nunca contratou com terceiros em nome da empresa, nunca admitiu ou despediu, nunca exerceu poderes de chefia, nunca praticou atos de comando, ou deu instruções ou ordens aos empregados, nunca fez pagamentos a fornecedores ou credores, ou sequer encomendas, nem tão pouco contactos com clientes, fornecedores ou credores.
20- Em boa verdade, o recorrente não era mais do que um mero trabalhador da sociedade insolvente, nunca se tendo comportado como sócio ou até mesmo gerente da sociedade, nem como tal era reconhecido, quer pelo sócio-gerente BB, quer por clientes, fornecedores ou trabalhadores, o que aliás, foi corroborado pela prova testemunhal, designadamente, os trabalhadores da empresa, que de forma consentânea admitiram que o recorrente não era gerente de facto da aludida empresa.
21- Aliás, é isso mesmo que resulta da factualidade dada como provada, nomeadamente que, o AA renunciou à gerência em 29/04/2021 e registo em 04/05/2021 e cessão de quotas e segundo despacho da Segurança Social de fls. 103, nessa data o mesmo já não exercia a gerência de facto (cfr. Facto 16)), além de que, desde janeiro de 2019 não se deslocava às instalações da insolvente (cfr. facto 17)).
22- No que diz respeito ao negócio relativo à transmissão do imóvel onde a insolvente tinha instalada a sua sede social, o recorrente não conhece, nem podia conhecer a prejudicialidade do mesmo, como não era gerente de facto.
23- Além de que, o recorrente não interveio no negócio, limitando-se a assinar como lhe foi pedido pelo Sr. BB, seu irmão, circunstância que foi confirmada pelo representante legal da EMP02..., Lda., empresa com a qual foi celebrado o aludido negócio, que garantiu que o negócio foi feito apenas com o gerente BB.
24- Pelo que, a existir responsabilidade da criação da situação da insolvência não poderá ser imputada ao AA, que nada sabia do aludido negócio, nem da situação financeira da empresa insolvente.
25- Atento o supra exposto, ao afetar o ora Recorrente o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 18.º, 186.º e 188.º do CIRE. Contudo e sem prescindir,
b) Do critério legal da indemnização a fixar nos termos do art. 189º, nº2, al. e) do CIRE
26- Por último, e caso assim não se entenda, o que apenas por mera cautela de patrocínio se concede, certo é que a decisão proferida pelo Tribunal a quo revela-se manifestamente desproporcional quanto ao montante indemnizatório.
27- Não se alcança a bondade da decisão que condenou o recorrente a pagar solidariamente a quantia de 241.456,80€, na medida em que, dos factos provados em 16) e 17) resulta que a culpa do gerente AA, ora recorrente, é diminuta pois o mesmo renunciou à gerência no dia 29/04/2021, ou seja, um dia antes da transmissão do imóvel para a EMP02..., Lda., mas segundo despacho da Segurança Social de fls. 103 o mesmo, nessa data, já não exercia a gerência de facto,e para além disso, desde janeiro de 2019 que já não se deslocava às instalações da  insolvente.
28- Deste conjunto de factos resulta claramente que, se alienação do bem imóvel sem ter sido paga uma contrapartida justa e tendo apenas beneficiado um credor privando os demais, ocorreu em altura em que o mesmo já não exercia a gerência de facto, e se se demonstrou que o outro gerente de direito e de facto, BB, foi o verdadeiro dinamizador da atividade da empresa até então, tal diminui o grau de culpa do gerente recorrente.
29- Vista toda a factualidade apurada, e o grau de culpa relativo manifestado pelo Requerido/recorrente, deve ele responder apenas na proporção de 1%, relativamente ao valor em que foi condenado, o que equivale ao montante de 2.414,69€.
30- A douta sentença recorrida, decidindo como decidiu, violou, frontalmente, o disposto nos artigos 18.º, 186.º e 188.º, e 189.º nº2 e) do CIRE, e artigos 608.º, nº2 e 615.º, nº1 d) do CPC.
31- Pelo que, deve ser proferido douto acórdão que revogando a sentença recorrida, declare o gerente AA, não afetado pela qualificação como culposa da insolvência da sociedade “EMP01... – Comércio e Serviços Têxteis, Unipessoal, Lda.”, absolvendo-o do demais em que foi condenado, com as consequências legais.
Termos em que, deve o presente recurso ser
julgado procedente, revogando-se em consequência a douta sentença recorrida e substituindo-a por outra que, não declare afetado pela qualificação como culposa da insolvência da sociedade “EMP01... – Comércio e Serviços Têxteis, Unipessoal, Lda.”, o gerente AA, absolvendo- o do demais em que foi condenado, com as consequências legais.
Assim se decidindo farão V.as Ex.as Venerandos Desembargadores, a habitual JUSTIÇA!».
9.2. BB declarou interpor recurso da sentença, apresentando as seguintes conclusões e pedido final:
«1 - O presente recurso estende-se quer à decisão de facto, quer à decisão de direito, e observado que se mostra o exigido pelo artigo 640º, do CPC, pode-se afirmar que o Tribunal “a quo” fez errada apreciação e valoração dos depoimentos prestados, em audiência de julgamento pelas testemunhas cujos passos mais significativos se transcreveram, o que acarreta o errado enquadramento jurídico a protestar após a produção da prova.
2 – Entende o apelante que o ponto dos Fatos Provados 11 deverá ver alterada a sua redacção para: “O imóvel tem um valor de mercado de € 235.000,00.” E que deverá ser aditado aos factos provados, o seguinte facto: “a quantia remanescente do preço, no montante de € 30.995,49, que deu entrada na insolvente através da conta bancária daquela com o nº ..., do Banco 1..., foi utilizada no pagamento das despesas correntes da sociedade”.
3 – Ora no que se refere ao Ponto 11 dos factos provados, não se compreende como é que o Mmo. Juiz “a quo”, confrontado com as inúmeras debilidades do relatório de avaliação apresentado pelo Administrador de Insolvência nos Autos principais, a saber o relatório foi elaborado sem que o senhor perito sequer entrasse no interior do imóvel e existência de erro na área utilizada na contabilização da avaliação, optou, sem mais, por credibilizar aquele, em detrimento das correcções explicadas pela testemunha Sr. Eng. CC, cujo relatório de avaliação consta do processo.
4 – Aliás, nem o íter cognoscitivo do Mmo. Juiz “a quo” nos parece perceptível, uma vez que da premissa: “É um relatório particular, feito por pessoa especializada, reconheça-se que alertou para alguns aspetos que todavia, são relevante, desde logo que no relatório junto aos autos principais, por não se ter feito uma visita ao interior do imóvel não foi constatado o seu atual estado de conservação. Seguidamente, há alguma divergência da área considerada, que resulta das divergências existentes entre a caderneta predial e as plantas.”
5 – Extrai a conclusão: “Por este motivo se manteve como prevalecente o relatório dos autos principais que foi submetido a todos os credores e não apenas aos gerentes da insolvente ainda assim com uma resposta explicativa.”
6 – Ora, como resultou inequívoco do Acórdão já proferido no presente processo, os gerentes da insolvente só agora tiverem acesso, no presente apenso, ao Relatório de Avaliação apresentado pelo Sr. Administrador de Insolvência, exercendo o seu contraditório, no entanto parece retirar-se das palavras do Mmo. Juiz “a quo” que o exercício desse contraditório foi e seria sempre um exercício formal, pois fossem encontradas as discrepâncias que fossem, sempre seria de manter o Relatório Pericial já juntos Autos, primeiro porque como refere é um Relatório Pericial e, segundo, porque no presente apenso, não estando presentes todos os credores jamais poderia ser sujeito à avaliação de todos os credores.
7 - Já relativamente ao argumento de que o relatório junto pelo requerido, não tem o valor de prova pericial por contraponto com o Relatório Pericial junto pelo Sr. Administrador de Insolvência, sempre se diga que o especial valor probatório do relatório pericial será de excluir se outros preponderantes elementos de prova o infirmarem, mormente por padecer de erro grosseiro;
8 - É este precisamente o presente o caso, o Mmo. Juiz “a quo” confrontado com os erros grosseiros do Relatório Pericial junto aos Autos, como a não avaliação sem constatação do estado interior do edifício, ou a discrepância de áreas entre o que consta do Relatório Pericial e o que decorre da Caderneta Predial e das Plantas do edifício, deveria ter afastado o efeito probatório mesmo e, como fez, admitir tais desconformidades, mas concluir pela sua não aplicação.
9 - Por último, no que se refere ao facto de avaliação junta ser de janeiro de 2023 e o negócio de maio de 2021, a testemunha Eng. CC deixou claro que o lapso temporal decorrido não era susceptível de alterar o valor obtido no seu relatório.
10- Assim, atento todo o supra exposto o Ponto 11 dos Factos Provados, deverá ver a sua redacção alterada para: “O imóvel tem um valor de mercado de € 235.000,00.”
11 – Ainda, foi dado como não provado que:
“Do destino do valor remanescente referido sob 3, sendo certo que atentas as reclamações de créditos se constante que há créditos laborais reclamados e reconhecidos.”
12 – Com efeito, da motivação da matéria de facto, não se descortina a razão pela qual o Mmo. Juiz “a quo” terá levado o destino do remanescente do preço no montante de € 45.995,49 pago pela EMP02..., Lda à insolvente ao elenco dos factos não provados, apenas se dizendo:
“No mais, não se provou, exatamente o destino desse dinheiro, sendo certo que face ao seu montante e ao valor dos créditos laborais reclamados não se pode dar como provados que tivessem esse destino, nem isso resulta de forma clara da contabilidade da insolvente.”
13 - Em primeiro lugar, questiona-se: a que créditos laborais reclamados se refere o Mmo. Juiz “a quo”?
É que sendo os créditos reclamados, posteriores e decorrentes da declaração da insolvência, obviamente que o remanescente do preço recebido pela insolvente não poderia ser utilizado no pagamento de créditos que à data ainda não existiam.
14 - Acresce que, o requerido BB, por requerimento com a Ref. Citius nº ...28, de 11/01/2023, juntou aos Autos extractos bancários da insolvente, sob os documentos nºs ... a ...1, de onde se retira a entrada desse montante do remanescente do preço, respectivamente em:
- 30/04/2021 (€ 5.000,00) – doc....;
- 03/05/2021 (€ 5.000,00) – doc. ...;
- 20/07/2021 (€ 5.000,00 + € 5.995,49) - doc. ...;
- 14/07/2021 (€ 5.000,00) – doc....0; e
- 19/08/2021 (€ 5.000,00) – doc. ...1 e, a consequente, movimentação que foi dada às sucessivas entradas espelhada na conta bancária da insolvente, com o pagamento das despesas correntes da empresa, tanto mais que a insolvente foi surpreendida com o seu pedido de insolvência. Portanto, até ao pedido de insolvência, a insolvente laborou e exerceu a sua actividade, sempre no sentido da sua continuidade.
15 - Pelo que deverá ser dado como provado que “a quantia remanescente do preço, no montante de € 30.995,49, que deu entrada na insolvente através da conta bancária titulada por aquela com o nº ..., do Banco 1..., foi utilizada no pagamento das despesas correntes da sociedade”.
16 - Efectuada que seja a alteração da matéria de facto no sentido acabado de propor, outro terá de ser, como é evidente, o enquadramento jurídico dessa nova factualidade.
17 - É inquestionável, como refere o Mmº Juiz “a quo” na sentença recorrida, que um credor não pode impor/exigir ao devedor a extinção da respectiva obrigação através da dação em cumprimento a que se referem os art. 837º e ss. do C. Civil, visto que só o devedor pode decidir se quer ou não efectuar uma prestação diferente da devida;
18 - Ponto é saber se a “anormalidade” da forma extintiva da obrigação que foi escolhida deve ser considerada abstractamente (em si mesma), ou se, diversamente, para a sua aferição devem tomar-se em linha de conta as concretas circunstâncias do caso.
19 – Ora, tendo em conta o particular circunstancialismo que rodeou o acto impugnando, a sua configuração pode considerar-se como aceitável do ponto de vista das boas práticas na gestão patrimonial/empresarial, e, por essa via, o “legitime” como usual.
20 - Em rigor, a dação em cumprimento representa de certo modo um expediente alternativo ou de recurso de que, as mais das vezes, um devedor só lança mão quando se vê numa difícil situação de liquidez que o impede de conseguir livrar- se da sua responsabilidade pela forma normal do pagamento.
21 - Do acervo factual constante dos Autos temos como provado que a dação em pagamento foi realizada acima do valor patrimonial tributário do prédio em questão, não existindo nos Autos, qualquer tipo de prova de que o valor pelo qual o negócio foi realizado (€ 227.000,00) não corresponda ao valor efetivo do bem. Acresce ainda, que tal valor foi o valor acordado entre as partes, sendo esse entendido como o valor de mercado e o valor pelo qual as partes se encontravam dispostas a realizar o negócio.
22- Aliás, conforme relatório de avaliação junto aos Autos pelo requerido BB, o valor de mercado do bem seria de € 235.000,00, cabendo a diferença de € 8.000,00 na normal margem negocial, ainda para mais atendendo que a insolvente via no negócio realizado a forma de prosseguir com a sua atividade.
23 - Com a dação em pagamento a insolvente saldou os débitos que tinha para com a sua credora EMP02... no valor de € 70.290,30, mas não só, saldou, ainda, a dívida que tinha com o credor hipotecário (garantido) Banco 2... e a credora (privilegiada) Segurança Social no montante de € 76.643,20, reservando o remanescente de € 45.995,49 para o exercício corrente da sua actividade.
24 - Quanto ao prejuízo para os credores, a verdade é que o negócio foi celebrado num contexto de dificuldades económicas da devedora, em que a alternativa seria desistir do exercício da actividade e até apresentar-se a insolvência.
25 - Sendo que, ao contrário do discorrido na sentença recorrida, da existência de créditos laborais, até à declaração de insolvência os mesmos não existiam, só se tendo vencido com aquela declaração, sendo, portanto, créditos de constituição posterior e não anterior à declaração de insolvência.
26 - Pelo que, não obstante, não sendo a dação em pagamento um meio corrente, vulgar de extinguir uma dívida, pode, no entanto, como supra se referiu, revestir a natureza de um acto “normal” do devedor quando se possa considerar um acto de boa ou sã gestão patrimonial/empresarial, desde que se mostre aceitável ou justificada no concreto quadro das circunstâncias em que teve lugar, que foi precisamente o que sucedeu no presente caso – era a única forma de a devedora conseguir continuar a laborar, libertando-se de parte significativa do seu passivo e dotando-se de meios de liquidez imediata para prosseguir com a actividade.
27 - Acresce que, tal dação em pagamento não foi em proveito pessoal nem dos gerentes da devedora, nem de terceiros, uma vez que o negócio nos moldes em que foi celebrado não originou para terceiro uma vantagem injustificada, muito pelo contrário, o negócio celebrado permitiu que a devedora vi-se o seu passivo global significativamente diminuído e continuasse com o desenvolvimento da sua actividade.
28 - Deste modo, tendo por base tudo o que já ficou dito, forçoso será concluir- se que a dação em pagamento foi a forma adequada de administração do património insolvente;
29 – Não se encontra provado que à data em que foi celebrado o referido contrato de dação em pagamento, o devedor estivesse já em situação de insolvência, com efeito, o contrato em causa teve lugar em 28/04/2021, não se tendo apurado quando é que a devedora começou a deixar de cumprir os seus compromissos, não se podendo concluir que a situação de insolvência já se verificava na data da celebração do negócio.
30 - Ou seja, não é possível estabelecer, em função dos factos dados como provados, que no momento em que foi celebrado o contrato, o devedor estava em situação de insolvência, e menos ainda que disso tinha ou devia ter conhecimento, donde não se poderá retirar que da celebração do negócio (dação em pagamento) resultou prejuízo para os demais credores e agravamento da situação de insolvência.
31 - Ao decidir como decidiu a sentença recorrida violou, entre outros, por erro de interpretação e aplicação o art. 186º, nº 2, als. b) e d) do CIRE.
Termos em que deve a apelação ser julgada procedente e, em consequência, ser revogada a douta sentença apelada, substituindo-se por outra que alterando a matéria de facto e procedendo ao correcto enquadramento jurídico desta, considere a insolvência da EMP01... – Comércio e Serviços Têxteis, Unipessoal, Lda como fortuita.
Assim decidindo, farão Va.s Exa.s, Venerandos Desembargadores, a habitual JUSTIÇA.».
9.3. O Ministério Público respondeu ao recurso referido em I-9.1. supra, no qual apresentou as seguintes conclusões:
«1.- Contrariamente ao alegado pelo recorrente, não se verifica qualquer nulidade, nem haveria motivos para a verificação de qualquer exceção dilatória de ilegitimidade processual passiva do requerido AA.
2.- Como resulta do art. 186º, nº1 do CIRE são puníveis tanto os administradores de direito como de facto.
3.- A conduta do recorrente integra o preenchimento das condutas típicas previstas nas alíneas b) e d) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE.
4.- Não se verifica a invocada desproporcionalidade relativamente ao montante indemnizatório, dado que a intervenção do recorrente foi essencial para a realização do negócio prejudicial aos credores.
5.- Nestes termos, a actual Sentença deve ser mantida, negando-se, consequentemente, provimento ao recurso interposto.
6.- Nenhuma norma foi violada na Sentença recorrida, não se verificando nenhuma nulidade na mesma.
Nestes termos e noutros, que Vossas Excelências doutamente saberão suprir, deve o recurso ser julgado improcedente, mantendo-se a Sentença recorrida na íntegra e nos seus termos, assim se fazendo, como sempre, JUSTIÇA».
9.4. O Ministério Público respondeu ao recurso referido em I-9.2. supra, apresentando as seguintes conclusões:
«1.- Contrariamente ao alegado pelo recorrente, não se verifica qualquer contradição entre factos dados como provados e insuficiente motivação.
2.- A factualidade dada como provada na Douta Sentença, encontra-se devidamente fundamentada na prova produzida, a qual foi correctamente apreciada pelo M.mo Juiz.
3.- A conduta do recorrente integra o preenchimento das condutas típicas previstas nas alíneas b) e d) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE.
4.- Nestes termos, a actual Sentença deve ser mantida, negando-se, consequentemente, provimento ao recurso interposto.
5.- Nenhuma norma foi violada na Sentença recorrida, não se verificando nenhuma nulidade na mesma.
Nestes termos e noutros, que Vossas Excelências doutamente saberão suprir, deve o recurso ser julgado improcedente, mantendo-se a Sentença recorrida na íntegra e nos seus termos, assim se fazendo, como sempre, JUSTIÇA.».
9.5. A 05.07.2023 foi proferido despacho de admissão dos recursos de apelação de I-9.1. e 9.2. supra, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
10. Subido o recurso a esta Relação de Guimarães:
10.1. A 22.08.2023 foi proferido despacho de cumprimento de contraditório sobre a rejeição do recurso do despacho saneador, sobre o qual não foi apresentada oposição.
10.2. A 30.09.2023: foi rejeitado o recurso de apelação do despacho saneador, por preclusão do direito de recorrer do mesmo no recurso apresentado da 1ª sentença (apenas anulada para os efeitos determinados a 03.11.2022); foram admitidos os recursos da sentença, nos termos e com os efeitos admitidos na 1ª instância.
10.3. Colheram-se os vistos e realizou-se a conferência.

II. Questões a decidir:

As conclusões das alegações do recurso delimitam o seu objeto, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso não decididas por decisão transitada em julgado e da livre qualificação jurídica dos factos pelo Tribunal, conforme decorre das disposições conjugadas dos artigos 608º/ 2, ex vi do art. 663º/2, 635º/4, 639º/1 e 2, 641º/2- b) e 5º/ 3 do Código de Processo Civil, doravante CPC.

1. Questão liminar a decidir:
As conclusões de recurso de AA suscitam a nulidade da sentença por omissão de pronúncia sobre a ilegitimidade passiva, nos termos do art.615º/1-d) do C. P. Civil (conclusões 1 a 8).
Todavia, esta questão é igual à suscitada no primeiro recurso da primeira sentença de qualificação da insolvência, decidido por acórdão de 03.11.2022, acórdão no qual (conforme se referiu também nos despachos de 22.08.2022 e 30.09.2023, relatados em I supra): julgou improcedente a arguição da nulidade da sentença porque o recorrente não recorrera do despacho saneador no qual a exceção de ilegitimidade deveria ter sido apreciada; considerou que, de qualquer forma, não havia qualquer ilegitimidade passiva; apenas anulou a sentença para cumprimento de um contraditório de uma prova, para realização de diligências subsequentes e para prolação de nova sentença de facto e de direito sobre o mérito da causa.
Desta forma, face a este acórdão transitado em julgado, à sentença a proferir não caberia conhecer a exceção de ilegitimidade e apenas caberia conhecer, após o cumprimento do contraditório ordenado, os factos e o direito do objeto do incidente.
Pelo exposto, rejeita-se a apreciação de mérito da arguição de nulidade da sentença, nos termos do art.615º/1-d) do CPC.

2. Questões de facto a apreciar no objeto do recurso:
2.1. A impugnação da matéria de facto (liminar e de mérito, se os ónus estiverem verificados) apresentada no recurso de BB:
a) Se deve ser alterada a redação do facto 11 para «O imóvel tem um valor de mercado de € 235 000, 00», tendo em conta, de acordo com os fundamentos do recorrente: as insuficiências assinaladas do relatório pericial, reconhecidas nomeadamente na sentença recorrida (apesar da mesma não ter sido coerente com esse reconhecimento, ao dar valor final à prova); o teor do relatório junto pelo requerido e a explicação dada pelo Eng. CC em audiência sobre a irrelevância da data de avaliação de janeiro de 2023 para o valor de mercado de maio de 2021 (conclusões 2 a 10).
b) Se, em contrariedade ao facto dado como não provado («Do destino do valor remanescente referido sob 3, sendo certo que atentas as reclamações de créditos se constante que há créditos laborais reclamados e reconhecidos»), deve ser aditado à matéria de facto o seguinte facto provado «A quantia remanescente do preço, no montante de € 30 995, 49, que deu entrada na insolvente através da conta bancária daquela com o nº..., do Banco 1..., foi utilizada no pagamento de despesas correntes da sociedade.», por, no entender do recorrente: não se entender a motivação dada ao facto não provado, nomeadamente quais os créditos laborais a que o tribunal se refere; estes créditos posteriores à declaração de insolvência, de qualquer forma, não existirem antes desta; os extratos bancários juntos pelo recorrente a 11.01.2023, sob os documentos ... a ...1, comprovarem a entrada de 5 tranches indicadas, entre 30.04.2021 e 19.08.2021 na conta da insolvente, no valor global de € 30 995, 49, afeto a pagamento de despesas correntes da empresa (conclusões 2, 11 a 16).
2.2. A alteração oficiosa da matéria de facto pela Relação: para expurgar a matéria conclusiva; para corrigir e aditar a matéria de facto, provada por força probatória plena, nos termos do art.607º/4, ex vi do art.663º/2 do CPC.
3. Questões de direito a apreciar no recurso de apelação:
3.1. Se a sentença supra incorreu em erro na qualificação da insolvência, tendo em conta: que a dação em pagamento não deve ser avaliada em abstrato mas face às condições concretas do caso (caso este que, no seu entender, mostra: que a insolvente saldou débitos seus, permitiu a continuação da sua atividade, não causou benefício próprio ou de terceiros; que não está provado que na data da dação em pagamento o devedor estivesse em situação de insolvência ou devesse conhecê-la) (conclusões 17 a 31 do recurso de BB).
3.2. Se a sentença supra incorreu em erro na decisão de afetação de AA e na determinação da sua indemnização:
a) Em relação à afetação do recorrente: por ser necessária a prova do nexo de causalidade previsto no nº1 do art.186º do CIRE, quer nos casos do nº2, quer com maior acuidade nos casos do nº3 do art.186º do CIRE (conclusões 19 a 13); por não estar demonstrado o nexo de causalidade entre a conduta do recorrente e a criação ou o agravamento da situação de insolvência do devedor (porque a gerência de direito do recorrente foi apenas formal e não material, tendo sido assumida a pedido de seu irmão e sem exercício de funções correspondentes à nomeação; porque não era gerente de direito desde há 5 meses antes da insolvência; porque não interveio no negócio, limitando-se a assinar o pedido pelo irmão) (conclusões 14 a 25 do recurso de AA).
b) Em relação à indemnização: por ser desproporcional ao grau de culpa menor do recorrente (por ter renunciado à gerência na véspera da dação, não desempenhar poderes de facto e não se deslocar às instalações da insolvente desde 2019); por dever ser fixada apenas em 1% ao valor de € 241 456, 80 a que foi solidariamente condenado, o que equivaleria ao valor de € 2 414, 69 (conclusões 27 a 29 do recurso de AA).
3.3. Se a indemnização a que os afetados foram condenados deve ser revista, face à alteração de matéria de facto, que haja sido decidida em relação à impugnação referida em II- 2.1. supra.

III. Fundamentação:

1. Apreciação da matéria de facto da sentença recorrida (face à impugnação e à oficiosidade da Relação) e fixação da matéria de facto relevante para o recurso:

A sentença recorrida declarou julgar provados e não provados factos, nos seguintes termos que abaixo se transcrevem:
«Factos Provados.
1. A transmissão do imóvel que era sede da insolvente a favor da sociedade EMP02..., Lda. foi celebrada por documento particular denominado “Contrato de dação em pagamento” em 28 de Abril de 2021 e apresentada a registo no dia 4 de Maio de 2021 – para regularização da dívida global de 164.433,51 € (cento e sessenta e quatro mil quatrocentos e trinta e três euros e cinquenta e um cêntimos), que se discrimina da seguinte forma:
a) 17.500,00 euros, referente a três pagamentos relacionados com a promessa de compra e venda do imóvel supra identificado;
b) 70.290,30 euros, referente à prestação de serviços a insolvente pela EMP02..., Lda.;
c) Assunção da liquidação de responsabilidades da insolvente pela EMP02..., Lda. no valor global de 76.643,20 euros.
2. A insolvente atribuiu ao imóvel o valor de 227.00,00 euros e as partes declararam que o remanescente do preço no montante de 45.995,49 euros, foi pago pela EMP02..., Lda. por endosso de oito cheques a favor da sociedade ora insolvente, descontando o valor das obrigações fiscais IS e IMT, igual a 16.571,00 euros.
3. A dação em pagamento do referido bem realizada pela insolvente a favor da EMP02..., Lda. foi realizada dentro dos seis meses anteriores à data do início do processo de insolvência (o requerimento inicial data de 3-07-2021).
4. No mesmo contrato a EMP02..., Lda. responsabiliza-se pela liquidação de responsabilidades da insolvente no valor global 76.643,20 euros.
5. Assim foram pagas quantias em dívida a Banco 2..., SA e Segurança Social as quais eram garantidas por ónus que recaíam sobre o referido imóvel.
6. À data da declaração da insolvência, o supra referido prédio encontrava-se registado a favor da Ré Massa Insolvente, mas onerado com:
a) Uma hipoteca legal, registada pela inscrição Ap.: 2328 de 2019/04/01, no montante de € 32.308,91, a favor do IGFSS – Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P.
b) Uma penhora, registada pela inscrição Ap.: 2348 de 2019/04/01, no montante de € 28.408, 18, a favor do IGFSS – Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P.
c) Uma hipoteca legal registada pela inscrição Ap.: 4206 de 2019/07/12, no montante de € 4.804,22, a favor do IGFSS – Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P.
d) Uma penhora, registada pela inscrição Ap.: 4207 de 2019/07/12, no montante de € 5.106,42, a favor do IGFSS – Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P.
e) Uma hipoteca voluntária, registada pela inscrição Ap.: 1904 de 2021/01/19, no montante de € 39.227,87 a favor da Banco 2..., S.A.
7. Tendo sido já requerido junto da Conservatória do Registo Predial o cancelamento das hipoteca e penhora existentes a favor do Instituto da Segurança Social, IP em 03/01/2023.
8. No “contrato de dação em pagamento” em causa, a insolvente atribui ao imóvel o valor igual a 227.000,00 euros e na data da transação (e actualmente) o Valor Patrimonial Tributário (VPT) era e é igual a 226.805,60 euros.
9. No balancete de 2020 na contabilidade da insolvente estava registado o valor 40.650,41 euros como “Terrenos e recursos naturais” e o valor de 307,645.32 euros como “Edifícios e outras construções”, totalizando o valor total de 348.295,73 euros.
10. No entanto, pelo Mapa de depreciações relativo a 2020, verifica-se que o valor de 8.986,94 euros diz respeito a “Obras em Edifícios Alheios”, pelo que apenas o valor global igual a 339.308,79 euros (terreno = 40.650,41€ + edifício = 298.658,38€) diz respeito ao edifico que era sede da insolvente, transmitido à EMP02..., Lda.
11. O imóvel tem um valor de mercado de € 318.000,00, todavia, pode ser necessário fazer algumas obras de reparação e conservação que diminuam proporcionalmente esse valor.
12. A beneficiária da transmissão, a sociedade EMP02..., Lda. possui a sua no imóvel contíguo, com as mesmas características estruturantes.
13. A Segurança Social reclamou um crédito no valor global de 182 mil euros, sendo que 232,90 € constituem créditos privilegiados.
14. O Sr. A.I. resolveu o negócio referido em 1 a favor da Massa insolvente.
15. AA renunciou à gerência em 29/04/2021 e registo em 04/05/20221 e cessão de quotas e segundo despacho da Segurança Social de fls. 103 o mesmo já não exercia a gerência de facto.
16. E desde Janeiro de 2019 não se deslocava às instalações da insolvente.
17. Os gerentes da EMP02... Lda. eram conhecedores das dificuldades económicas da insolvente.
Não Provado.
- A data concreta em que deveria o insolvente ter-se apresentado e que após a referida dação em pagamento tenha agravado a situação insolvencial contraindo mais dívidas.
- Quais os bens e equipamentos da insolvente que tenham desaparecido e por essa via sido inviável a sua apreensão para a massa.
- Do destino do valor remanescente referido sob 3, sendo certo que atentas as reclamações de créditos se constante que há créditos laborais reclamados e reconhecidos.
- Que a insolvente tenha proposto à referida EMP02... um valor superior para o imóvel objeto da dação em pagamento.
- Valor de imóveis transacionados em 28/04/2021 com características semelhantes ao dado em pagamento.».
A sentença recorrida, para além desta “decisão de facto”, referiu-se na sua motivação à reclamação de créditos, a créditos laborais privilegiados e ao pagamento de credores comuns, tal como a uma situação de insolvência iminente quando estes pagamentos foram feitos, sem que, todavia, tivesse levado previamente ao elenco de factos provados os factos plenamente provados nos autos que permitiriam retirar essas ilações:
«No mais, não se provou, exatamente o destino desse dinheiro, sendo certo que face ao seu montante e ao valor dos créditos laborais reclamados não se pode dar como provados que tivessem tido esse destino, nem isso resulta de forma clara da contabilidade da insolvente. (…)
Enfim, o pagamento, mesmo duma obrigação vencida, quando o devedor está já em situação de insolvência iminente, representa um desrespeito pelo princípio “par conditio”, uma vez que vem a receber por inteiro quem devia sujeitar-se ao rateio resultante da concorrência dos restantes credores. Conclui-se que a transmissão do imóvel a favor de um fornecedor, que em sede de insolvência, se classificaria como um credor comum, prejudica os credores que por força da Lei gozam de privilégios creditórios, nomeadamente, os trabalhadores (que reclamaram créditos nestes autos), o Estado e o Instituto da Segurança Social, IP).» (bold aposto por esta Relação).
Perante a decisão de facto, o recorrente BB impugnou a matéria de facto da sentença quanto a dois factos, que importa apreciar nos termos do art.640º do CPC, uma vez que estão satisfeitos liminarmente os ónus de que depende a sua apreciação (em 1.1. infra).
Para além desta apreciação da impugnação, importa, ainda, usar dos poderes oficiosos da Relação em relação à matéria provada por força probatória plena de documentos (art.607º/4 do CPC, ex vi do art.663º/2 do CPC) e à matéria irrelevante e conclusiva (em 1.2. infra), tendo em conta as deficiências e insuficiências da sentença e os poderes que cabem ao Tribunal da Relação, oficiosamente:
a) De rejeitar matéria conclusiva, genérica e de direito, uma vez que, apesar do Código de Processo Civil de 2013 não existir previsão idêntica ao art.646º/4 do anterior C. P. Civil de 1961 (que previa que se tinham como «não escritas as respostas do tribunal colectivo sobre questões de direito»), a doutrina e jurisprudência têm mantido o entendimento que a matéria não factual que conste de uma decisão de facto deve ser expurgada da mesma. Vide, neste sentido, entre outros: Abrantes Geraldes (que refere que devem ser erradicadas da decisão sobre a matéria de facto «as alegações com conteúdo técnico-jurídico, de cariz normativo ou conclusivo, a não ser que, porventura, tenham simultaneamente uma significação corrente e da qual não dependa a resolução das questões jurídicas que no processo se discutem (v.g. renda, contrato, proprietário, residência permanente, etc.)»); Ac. RG de 17.02.2022, proferido no proc. nº2549/11.0TJVNF-J. G1, relatado por Maria João Matos[i].
b) De rejeitar matéria de facto irrelevante para a decisão do caso ou recurso, face à conexão entre os factos relevantes a considerar e a decisão a proferir (sendo a impugnação dos mesmos instrumental a esta decisão a proferir).
c) De proceder a sanações: da desconsideração de matéria factual plenamente provada, através da ampliação e alteração da decisão de matéria de facto da sentença recorrida mediante a consideração da matéria de facto provada por confissão, acordo ou força probatória plena de documento (art.663º/2 em referência ao art.604º/4-2ª parte do CPC); das invalidades decorrentes da deficiência, obscuridades ou contradições na resposta à matéria de facto, se dispuser de elementos de prova contraditada no processo (art.662º/2-c) do CPC), quando os factos sejam necessários quer para a apreciação do objeto de recurso, de acordo com as soluções plausíveis das questões de direito suscitadas, quer para assegurar a delimitação do caso julgado e a exequibilidade da sentença.
Após, consolidar-se-á a matéria de facto provada (em 1.3. infra), a apreciar no recurso de direito referido em 2 infra.

1.1. Impugnação da matéria de facto provada e não provada (apresentada por BB):
1.1.1. Pedido de alteração do facto provado em 11:
O recorrente BB defendeu que deveria ser alterada a redação do facto 11 para «O imóvel tem um valor de mercado de € 235 000, 00», tendo em conta: as insuficiências assinaladas do relatório pericial, reconhecidas nomeadamente na sentença recorrida, apesar da mesma não ter sido coerente com o mesmo reconhecimento, ao dar valor à prova pericial; o teor do relatório junto pelo requerido e a explicação dada sobre o mesmo pelo Eng. CC em audiência (no qual considerou irrelevante a data de avaliação de janeiro de 2023 para o valor de mercado de maio de 2021) (conclusões 2 a 10).
O recorrido Ministério Público defendeu: que o juiz apreciou a prova bem; que o perito avaliador do relatório junto pelo recorrente reconheceu que a avaliação foi de janeiro de 2023 e que apenas interessa o valor à data da dação em cumprimento de abril de 2021.
Impõe-se apreciar.
1.1.1.1. Numa primeira abordagem, importa avaliar o próprio facto julgado provado e a motivação apresentada pelo Tribunal a quo para o mesmo.
A sentença recorrida julgou provado o facto 11 («O imóvel tem um valor de mercado de € 318.000, 00, todavia, pode ser necessário fazer obras de reparação e conservação que diminuam proporcionalmente esse valor»), facto este que motivou basear-se na prova pericial junta aos autos e, a contrario, na desconsideração da contraprova apresentada, nos seguintes termos (expostos de forma dispersa e entrecortada na motivação geral):
«O facto 11 resulta da avaliação constante dos autos principais.
(…)
Acresce que, o afetado BB junto um relatório de avaliação, o qual não tem valor de prova pericial, porquanto o mesmo não resulta de prova obtida por esse meio nos termos previstos na lei processual civil.
É um relatório particular, feito por pessoa especializada, reconheça-se que alertou para alguns aspetos que todavia, são relevante, desde logo que no relatório junto aos autos principais, por não se ter feito uma visita ao interior do imóvel não foi constatado o seu atual estado de conservação. Seguidamente, há alguma divergência da área considerada, que resulta das divergências existentes entre a caderneta predial e as plantas. Por fim, o mesmo afirmou que a sua avaliação é de Janeiro de 2023, não sendo possível realizar uma avaliação precisa com referência á data do negócio em causa. Por este motivo se manteve como prevalecente o relatório dos autos principais que foi submetido a todos os credores e não apenas aos gerentes da insolvente ainda assim com uma resposta explicativa.
(…)
Também o engenheiro ouvido em audiência afirmou não se possível utilizar o método comparativo por desconhecer imóveis na zona com as mesmas características que tenham sido transacionados na mesma altura.
Por fim é contraditório com a alegação apresentada ter proposto com um valor superior uma vez que a sua defesa nessa parte assenta na conformidade entre aquele valor e o valor real de mercado.».
Impõe-se, à partida, apreciar este facto provado e a motivação.
Por um lado, verifica-se que este facto provado é obscuro e incompreensível, uma vez que, apesar do Tribunal a quo ter julgado provado um valor de mercado, acabou por indicar a possibilidade de abater ao mesmo, proporcionalmente, os valores de obras de reparação e de conservação possíveis, matéria esta condicional, vaga e indeterminável (que obras, que valores, que termos de abatimento pretendeu considerar?).
Esta obscuridade, por sua vez, ainda que não tivesse sido apresentada impugnação à matéria de facto, corresponde a uma invalidade, determinante de um dos efeitos do art.662º/2-c) do CPC.
Por outro lado, verifica-se que a motivação do facto apresentada pelo Tribunal a quo é inconsistente e contraditória, tendo em conta: que declarou valorizar o relatório pericial apenas por decorrer de uma prova pericial, apesar de ter admitido que esta padecia de limitações- por falta de inspeção do edifício que avaliasse o seu estado interior e por divergência de áreas; que declarou não valorizar o relatório particular, por este não ter valor pericial (quando a prova pericial não tem valor legal e vinculado, nos termos dos arts.489º e 607º/5 CPC, e pode ser contraditada e afastada por prova técnica fundamentada em contrário), por o engenheiro avaliador ter declarado não ser possível realizar uma avaliação precisa em relação à data do negócio em causa (quando este, após ter sido confrontado se no ano de 2022 haveria alterações significativas em relação a 2023 e se atribuiria o mesmo valor em 2022 e em 2023, referiu, respetivamente:  «Nesta altura o aço estava ao preço do ano passado, mas um pavilhão em custos e regras gerais..»; « Sim, sim. Já fiz outras avaliações em outros imóveis naquela zona industrial e os valores andam sempre naquela casa dos 200/250, depois em função da área do tamanho do parque de estacionamento ou do logradouro, aí podem subir bastante. Este só tem logradouro, cargas e descargas, um camião, não sei, passará, mas não dará a volta, portanto, tem de parar de lado do logradouro, já não passa mais em lado nenhum») e por não se poder utilizar o método comparativo de transações de imóveis da zona com as mesmas características que tivessem sido transacionados na mesma altura, por existir uma desconformidade entre a alegação e a proposta (afirmação que não se compreende a que se refere).
1.1.1.2. Numa segunda abordagem, importa apreciar a prova produzida, subjacente quer à decisão de facto impugnada, quer à impugnação realizada da mesma.
Por um lado, verifica-se que a prova pericial, que tem por fim «a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objecto de inspecção judicial.», não tem um valor pleno mas pode ser livremente apreciada (arts.607º/5 e 489º do CPC), ainda que a discordância de juízos técnico-científicos não possa ser feita de forma arbitrária e exija que a discordância deva também ser feita de forma fundamentada (vide, sobre o valor da prova pericial, v. g., Ac. RG de 01.10.2015, proferido no processo nº40/12-7TBSBR.G1, relatado por Maria da Purificação Carvalho).
Por outro lado, analisando o relatório pericial de janeiro de 2022, ao qual o tribunal deu valor prevalecente, em confronto com o relatório particular de janeiro de 2023, verifica-se:
a) O perito do 1º relatório assumiu expressamente que ocorreram condicionantes de avaliação, decorrentes, sobretudo, da falta de inspeção ao interior do pavilhão industrial (referindo «Condicionantes da Avaliação: O presente valor de avaliação do terreno foi estimado tendo em conta os dados fornecidos. A visita apenas foi possível efetuar pelo exterior da fração. Não foi fornecida a licença de utilização.»), limitação esta inexistente na avaliação realizada pelo avaliador do 2º relatório, que procedeu à inspeção ao interior do pavilhão industrial e descreveu problemas de infiltrações de água, ferrugem de equipamentos, destruição de paredes, que foram valorizadas pelo Tribunal a quo, ainda que sem consequência devida (pois referiu-as na sua fundamentação e levou-as de forma vaga ao facto provado sem extrair conclusão quanto ao valor).
b) O perito do 1º relatório: indicou que avaliou o prédio com área bruta de construção de 930 m2 (área esta correspondente, presumivelmente, à soma de 893 m2 de área bruta privativa e 37 m2 de área bruta dependente indicados no art....22º da matriz predial da fração ...) e 334 m2 de logradouro, área global esta contestada no 2º relatório, no qual o avaliador referiu (no relatório e em audiência) que, na avaliação, não encontrou qualquer área bruta dependente de 37 m2; mencionou, ainda, a área de terreno de 1 599 m2 e a área de implantação de 772 m2, sendo que estas duas áreas se referem ao prédio global (conforme se constata pelos documentos emitidos pela Conservatória e pelas Finanças), prédio esse que integra a fração ..., a única objeto da dação em pagamento.
c) O perito do 1º relatório indicou valores de mercado de estimativa, para os quais fez concorrer valores de m2 contestados pelo avaliador do 2º relatório (que explicou que foram utilizados alguns valores de cerca de € 600, 00, ao valor da habitação, o que considera desajustado).
d) Nenhum dos peritos, em qualquer um dos relatórios (e não apenas o avaliador do 2º relatório), realizou a avaliação da fração ... à data da dação em pagamento ocorrida em 28 de abril de 2021 (o relatório de avaliação pedido pelo administrador de insolvência e atendido pelo Tribunal é de 6 de janeiro de 2022; o relatório de avaliação junto pelo requerido/recorrente no seu contraditório é de 6 de janeiro de 2023), sendo que o avaliador do 2º relatório considerou que o valor de mercado por si achado não diferia substancialmente do de 2022.
Perante esta prova, conjugada com a assunção de posição pelas partes, não pode deixar de se entender: que a prova pericial do 1º relatório, pelas limitações que reconhece e também pelo contraditório realizado pelo 2º relatório, é totalmente insuficiente para julgar provado que a fração ... tinha o valor de mercado de € 318 000, 00 em abril de 2021; que a falta de conhecimento do estado do prédio exatamente em abril de 2021 (não se sabendo se já estava no estado de deterioração detetado em janeiro de 2023) e a falta de avaliação do mesmo face também a esses dados reportados a abril de 2021 em qualquer um dos relatórios, prejudica a possibilidade de chegar a uma conclusão segura do valor de mercado do mesmo nesta data; que o valor concluído no 2º relatório para 2022/2023 (superior ao valor de € 226 805, 60 da avaliação de 2020 das Finanças, expressa na certidão da matriz predial do art....22º) pode configurar um valor mínimo de mercado do prédio (face à assunção deste valor pela parte), cujo valor máximo, por sua vez, deve ser inferior ao valor do 1º relatório (uma vez que este não atendeu à degradação interior do imóvel existente no final de 2022/início de 2023, que se prefigura não se poder ter iniciado apenas depois 28.04.2021).
Pelo exposto, julgando parcialmente procedente a impugnação, determina-se a alteração do facto provado em 11 para os seguintes termos:
«A fração ..., inscrita na matriz sob o art....22º, em abril de 2021 tinha como valor de mercado quantia não exatamente apurada mas correspondente ao valor mínimo de € 235 000, 00 e a valor máximo inferior a € 318 000, 00.». 
1.1.2. Pedido de alteração do facto dado como não provado («Do destino do valor remanescente referido sob 3, sendo certo que atentas as reclamações de créditos se constante que há créditos laborais reclamados e reconhecidos»).
A recorrente pediu a alteração do facto não provado para facto provado (com o seguinte teor- «A quantia remanescente do preço, no montante de € 30 995, 49, que deu entrada na insolvente através da conta bancária daquela com o nº..., do Banco 1..., foi utilizada no pagamento de despesas correntes da sociedade.»), por, no seu entender: não se compreender a motivação dada ao facto não provado, nomeadamente quais os créditos laborais a que o tribunal se refere; estes créditos são posteriores e decorrentes da declaração de insolvência; os extratos bancários juntos pelo recorrente a 11.01.2023, sob os documentos ... a ...1, comprovam a entrada de 5 tranches indicadas, entre 30.04.2021 e 19.08.2021 na conta da insolvente, no valor global de € 30 995, 49, afeto a pagamento de despesas correntes da empresa (conclusões 2, 11 a 16).
Impõe-se apreciar.
1.1.2.1. Numa primeira abordagem, importa apreciar o alcance do próprio tema de prova julgado provado e a motivação apresentada pelo Tribunal a quo para o mesmo.
A sentença recorrida julgou não provado o destino do valor remanescente da dação em pagamento, motivando esta decisão: quer na própria afirmação da falta de prova, quando acrescentou «sendo certo que atentas as reclamações de créditos se constata que há créditos laborais reclamados e reconhecidos»; quer na motivação da decisão de facto, referindo, na parte que se presume respeitar ao referido tema, «No mais, não se provou, exatamente o destino desse dinheiro, sendo certo que face ao seu montante e ao valor dos créditos laborais reclamados não se pode dar como provados que tivessem tido esse destino, nem isso resulta de forma clara da contabilidade da insolvente.».
A afirmação de falta de prova deste tema de prova (uma vez que a afirmação do destino do dinheiro não corresponde a um facto), deve ler-se em referência:
a) À alegação feita pelo requerido/ recorrente BB, na sua oposição ao incidente de qualificação, em relação a essa matéria, na qual: alegou, implicitamente em relação à intenção da devedora com a dação, que a mesma ocorreu «para libertar de alguma das responsabilidades que haviam assumido, designadamente pagamentos a trabalhadores e fornecedores que lhe permitisse continuar a laborar» (art.26º); teceu considerações conclusivas posteriores, no sentido que «sempre seria preferível vender a um preço inferior que permitisse solver alguma das suas responsabilidades, já que a alternativa passava por não vender» (art.28º) e que, ainda que as vendas fossem realizadas por preços inferiores, continuavam a ser no interesse da devedora, por a alternativa passar «por ficar com o imóvel e manter o passivo tanto com o credor EMP02... como junto dos credores cujas responsabilidades aquela assumiu (Segurança Social e Banco 2...) e, consequentemente, agravar a difícil situação económica em que se encontrava».
b) À seguinte alegação complementar, realizada pelo recorrido a 11.01.2023, em resposta ao indicado no acórdão desta Relação de Guimarães de 03.11.2022, a fls.30/v (que referiu que interessava apurar «como a devedora usou o dinheiro remanescente referido na dação em pagamento, referido no ponto 2 da última página do contrato, constante de fls.88/verso (face à alegação do art.26º-parte final- (…)»):
« 5 – Ainda, por conta do pagamento recebido e tal como consta do contrato de dação em pagamento celebrado o remanescente do preço recebido foi para pagamento de despesas com a transmissão do imóvel, como Imposto de Selo e IMT (IMT - € 14.755,00 e IS - € 1816,00), no total de € 16.571,00; - Cfr. teor dos docs. que se juntam sob os nºs 6 e 7;
6 – O remanescente do preço no montante de € 29.424,49 (€ 45995,49 - € 16.571,00), entrou nas contas bancárias da EMP01... e foi para efectuar pagamentos a credores, no sentido de como se alegou, manter o exercício da actividade até a sociedade ser confrontada com o pedido da sua insolvência; - Cfr. teor docs. que se juntam sob os nºs 8 a 11;».
Ora, a afirmação de falta de prova realizada pelo Tribunal a quo referiu-se, sobretudo, à alegação geral inicial do art.26º, que o valor da dação (que o contrato indicou que destinava uma parte à 2ª outorgante, ao IGFSS e à Banco 2..., SA e que outra parte era entregue à 1ª outorgante sem destino atribuído) se tenha destinado a pagar a trabalhadores.
Todavia, a decisão não apreciou a matéria instrumental alegada posteriormente quanto ao depósito do valor de € 29 4224, 49 para fazer pagamentos a credores, matéria que se averiguará se está suportada pela prova apresentada na impugnação, apesar da irrelevância da mesma nos termos alegados.
Neste sentido, registe-se que o valor de € 30 995, 49 indicado no pedido da impugnação: não corresponde ao valor alegado de € 29 424, 49; que é este o valor cujo destino é, efetivamente, sobrante em relação ao valor de € 45 995,49 indicado na dação, uma vez que do mesmo foi declarado deduzir o valor de € 16 571,00 para IMT e IS.
1.1.2.2. Numa segunda abordagem, importa apreciar se os documentos nºs ... a ...1, juntos a 11.01.2023, suportam a prova do facto pretendido, com a ressalva já referida em III- 1.1.2.1. supra.
Ora, apreciando os documentos, verifica-se: que os documentos nºs ..., ...0 e ...1 documentam efetivamente 4 entradas de € 5 000, 00 cada uma na conta do Banco 1..., titulada pela insolvente (montantes que correspondem a valores dos cheques indicados como emitidos no contrato de dação em pagamento), nos 4 meses após a dação em pagamento, valores estes movimentados pela sociedade em transferências que se admite corresponderem a pagamentos diversos realizados na gestão da mesma; que o documento nº... titula a creditação numa conta da Banco 2..., titulada pela insolvente, de dois cheques de € 5 000,00 e de € 5 995, 49 (valores de cheques estes referidos no documento da dação em pagamento), mas sem que a utilização feita destes valores tenha sido comprovada, nomeadamente face à falta de junção do extrato bancário.
Pelo exposto, julgando-se parcialmente procedente a impugnação, determina-se a eliminação do 3º parágrafo dos factos não provados e o aditamento à matéria de facto provada:
«O valor de € 29 424, 49 (referido na dação em pagamento de 28.04.2021 como sendo titulado por cheques emitidos por EMP02..., Lda.) foi depositado em contas da sociedade «EMP01..., Lda»: o valor de € 20 000, 00 foi depositado na conta do Banco 1..., em prestações de € 5 000, 00 cada uma (com movimentos de 29.04.2021, 30.04.2021, 13.07.2021), a partir de onde foi movimentado para pagamento sucessivo de despesas; o valor de € 10 995, 49 foi movimentado para crédito de conta da Banco 2..., SA, em data não apurada.».

1.2. Alteração e ampliação oficiosa da matéria de facto:
Apreciando a decisão de facto transcrita em III-1 supra (na qual se detetam erros e deficiências), conjugados com os poderes oficiosos desta Relação (elencados   sumariamente em III-1 supra), verifica-se o seguinte.
1.2.1. A sentença não elencou factos relevantes do processo da insolvência (sobretudo, sobre a sociedade, os fundamentos do pedido da insolvência e a sentença proferida), do processo de reclamação de créditos (valores e vencimentos de créditos verificados e graduados), do prédio (registos incidentes sobre o mesmo) e da resolução da dação, apesar de ter feito algumas referências superficiais a alguns destes. 
Esta matéria, todavia, consta de atos processuais dos processos a que este incidente de qualificação está apenso, com força probatória plena, podendo ser aditados nos termos do art.607º/4-2ª parte, ex vi do art.663º/2 do CPC.
1.2.2. A sentença recorrida integra:
a) Matéria descritiva de meios de prova, conclusiva e irrelevante para a decisão já tomada e para a decisão a tomar («9. No balancete de 2020 na contabilidade da insolvente estava registado o valor 40.650,41 euros como “Terrenos e recursos naturais” e o valor de 307,645.32 euros como “Edifícios e outras construções”, totalizando o valor total de 348.295,73 euros. 10. No entanto, pelo Mapa de depreciações relativo a 2020, verifica-se que o valor de 8.986,94 euros diz respeito a “Obras em Edifícios Alheios”, pelo que apenas o valor global igual a 339.308,79 euros (terreno = 40.650,41€ + edifício = 298.658,38€) diz respeito ao edifico que era sede da insolvente, transmitido à EMP02..., Lda.»).
b) Matéria conclusiva e sem relevância para a decisão deste incidente de qualificação («12. A beneficiária da transmissão, a sociedade EMP02..., Lda. possui a sua no imóvel contíguo, com as mesmas características estruturantes. (…)17. Os gerentes da EMP02... Lda. eram conhecedores das dificuldades económicas da insolvente.»).
c) Matéria de direito, que apenas na apreciação jurídica de factos poderia ser apreciada («3. A dação em pagamento do referido bem realizada pela insolvente a favor da EMP02..., Lda. foi realizada dentro dos seis meses anteriores à data do início do processo de insolvência (…)»).
d) Matéria contrária à força probatória plena de documento junto aos autos («6. À data da declaração da insolvência, o supra referido prédio encontrava-se registado a favor da Ré Massa Insolvente, mas onerado com: (..)»), uma vez que o documento da Conservatória de Registo Predial de fls.82 ss documenta que à data da insolvência o prédio estava registado em favor da donatária.
e) Matéria descritiva das declarações da dação em pagamento, com muitas partes incompletas e com irregularidades (nos factos 1, 2 e 4), quando o documento de fls.87 ss permite apresentar as declarações de teor correto.
Desta forma, a Relação pode expurgar a matéria referida nas alíneas a) a c) e  deve corrigir os factos referidos nas alíneas d) e e). 
Pelo exposto, determina-se o aditamento, a expurgação e as correções indicadas em III- 1.2.1. e 1.2.2. supra, que serão inseridos em 1.3. infra, no alinhamento lógico e cronológico dos factos.

1.3. Matéria de facto provada:
1) A sociedade EMP01..., Lda., antes de 5) infra, tinha o capital de 225 000, 00, dividido em duas quotas de € 125 000, 00 cada uma, em nome de AA e de BB, ambos sócios e gerentes.
(facto aditado oficiosamente por esta Relação, com base: no documento ... do processo de insolvência; documento de fls.105 e 106 destes autos; documento de dação em pagamento constante do processo de resolução).
2) A fração autónoma ..., descrita sob o nº...03... da Conservatória de Registo Predial ... e inscrita na matriz predial sob o art....22º urbano, composta por cave, ... e andar direito, para armazém e/ou serviços, e com um logradouro de 334 m2 na parte frontal e lateral direita e traseiras do edifício:
2.1) Foi adquirida por EMP01..., Lda. à Banco 2...- Instituição Financeira de Crédito, SA, em locação financeira, com Ap. ...32 de 2018/04/24.
2.2) Estava onerada a 28.04.2021 com os seguintes ónus, com registo ainda em vigor a 01.10.2021:
a) Uma hipoteca legal, registada pela Ap. ...28 de 2019/04/01, a favor do IGFSS – Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P., para garantir o capital de € 32.308,91, com valor máximo assegurado de € 40 386, 14.
b) Uma penhora, registada pela Ap. ...48 de 2019/04/01, em favor do IGFSS – Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P., para garantir a quantia exequenda de € 28 408, 18.
c) Uma hipoteca legal, registada pela Ap. ...06 de 2019/07/12, em favor do IGFSS – Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P., para garantir o capital de € 4.804,22, com máximo assegurado de € 5 106, 42.
d) Uma penhora, registada pela Ap. ...07 de 2019/07/12, em favor do IGFSS – Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P., para garantir a quantia exequenda de € 5 106,42.
e) Uma hipoteca voluntária, registada pela Ap. ...04 de 2021/01/19, em favor da Banco 2..., S.A., no valor de € 39.227,87, registo este cancelado pela Ap. ...21 de 2021/06/14
(factos aditados e corrigidos oficiosamente por esta Relação em relação ao facto 6 da sentença, com base no documento de fls.82 ss)
2.3) Tinha inscrito o valor patrimonial de € 226 805, 60 no art....22º da caderneta predial, decorrente de avaliação de 2020.
(facto provado em 8-2ª parte da sentença recorrida, aditado por esta Relação face ao documento do art....22º da matriz predial).
2.4) Em abril de 2021 tinha como valor de mercado quantia não exatamente apurada mas correspondente ao valor mínimo de € 235 000, 00 e a valor máximo inferior a € 318 000, 00.
(facto 11 da sentença, alterado por esta Relação em decisão de procedência parcial da impugnação)
3) A 28.04.2021, por documento com a epígrafe “Dação em Pagamento”:
3.1) AA e BB, em representação da sociedade referida em 1), declararam, como primeiros outorgantes:
«1. Que,» EMP02..., Lda. «prometeu adquirir parte da fração a seguir identificada e prestou serviços relacionados com a sua atividade, que nesta data ascende a CENTO E SESSENTA E QUATRO MIL QUATROCENTOS E TRINTA E TRÊS EUROS E CINQUENTA E UM CÊNTIMOS assim discriminados:»
a) 17.500,00 euros, «referente a três pagamentos relacionados com a promessa de compra e venda referida»
b) 70.290,30 euros, «referente à prestação de serviços» indicados nas faturas constantes do documento;
«2. Que, (…) na impossibilidade de poder liquidar aqueles valores e cumprir o contrato prometido, se confessam devedores do montante de CENTO E SESSENTA E QUATRO MIL QUATROCENTOS E TRINTA E TRÊS EUROS E CINQUENTA E UM CÊNTIMOS».
«3. Que, em cumprimento total dessa dívida», referida em 1 e 2, «DÃO EM PAGAMENTO» à EMP02..., Lda. a fração ... referida em 2 supra, com as inscrições em vigor identificadas em 2.1. supra e com valor patrimonial de € 226 805, 60.
«3. Que atribuem à referida fração autónoma o valor de DUZENTOS E VINTE E SETE MIL EUROS».
3.2) Os representantes da EMP02..., Lda., em representação da mesma, declararam, como segundos outorgantes:
«1. Que para a sociedade sua representada aceitam a dação em pagamento nos termos exarados, consideram a mesma inteiramente paga do seu crédito e, em consequência, dando-se por cumpridas e extintas todas as obrigações da representada dos primeiros outorgantes.
2. Que se responsabilizam pela liquidação do valor global de € 76.643,20 (…), se segui discriminados:
A) € 32.308, 91 (…), ao IGFSS- Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, IP.
B) € 5 106, 42 (…) ao IGFSS- Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, IP.
C) € 39.227, 87 (…) à Banco 2..., SA. (…)»
3.3) Os outorgantes declararam ainda, «nas respetivas qualidades»:
«1. Que o negócio resultante do presente contrato, não houve intervenção de mediador imobiliário.»
«2. Que o remanescente do preço no montante» de € 45.995,49 euros, «descontado o valor das despesas com a transmissão do presente imóvel, nomeadamente IS e IMT, no montante de € 16.571,00, «foi pago da seguinte forma»: 2 cheques no montante de € 7 500, 00 cada; 5 cheques no montante de € 5000, 00 e 1 cheque no valor de € 5 995, 00, com números indicados, todos da conta da EMP02..., Lda. e endossados em favor da sociedade representada pelos primeiros outorgantes.
(factos 1, 2, 4 e 8 da sentença recorrida, corrigidos e aditados oficiosamente por esta Relação com base no documento “Dação em Pagamento” junto a fls.87/v e seguintes destes autos e ao processo nº3779/21....).
4) Após 3) supra:
4.1) A aquisição do imóvel referido em 2), por dação em pagamento, foi registada em favor de EMP02..., Lda., pela Ap. ...89 de 2021/05/04.
(facto aditado oficiosamente por esta Relação, com base no documento de fls.82 ss, e em correção do corpo do texto do facto 6 da sentença recorrida)
4.2) «Foram pagas as quantias em dívida à Banco 2..., SA e à Segurança Social, as quais eram garantidas por ónus que recaíam sobre o referido imóvel» e foi «requerido junto da Conservatória de Registo Predial o cancelamento das hipoteca e penhora existentes a favor do Instituto de Segurança Social, IP em 03/01/2023»
(factos 5 e 7 da sentença recorrida)
4.3) O valor de € 29 424, 49 (referido em 3) supra como sendo titulado por cheques emitidos por EMP02..., Lda.) foi depositado em contas da sociedade «EMP01..., Lda»: o valor de € 20 000, 00 foi depositado na conta do Banco 1..., em prestações de € 5 000, 00 cada uma (com movimentos de 29.04.2021, 30.04.2021, 13.07.2021), a partir de onde foi movimentado para pagamento sucessivo de despesas; o valor de € 10 995, 49 foi movimentado para crédito de conta da Banco 2..., SA, em data não apurada.
5) A 29.04.2021:
a) AA (que, desde janeiro de 2019, não se deslocava às instalações da sociedade referida em 1) supra) declarou ceder a sua quota referida em 1) a EMP01..., Unipessoal, Lda.» e renunciar à gerência;
b) BB declarou unificar as duas quotas e transformar a sociedade em unipessoal por alteração do pacto social, ato este registado na Conservatória de Registo Comercial pela Ap. ....
(factos 16 e 17 da sentença recorrida, reformulados e aditados pelo documento junto a fls.105/v ss)  
6) A 13.07.2021 DD, EE, FF, GG e HH instauraram processo de insolvência contra EMP01..., Unipessoal, Lda., que corre termos sob o nº3779/21.2/7GMR-B no Juiz ... do Juízo de Comércio do Tribunal Judicial ..., processo no qual:
6.1) As requerentes pediram a insolvência da requerida com base nos seguintes fundamentos, alegando:
a) Os créditos que dispõem sobre a requerida, integrado pela alegação:
a1) Das suas qualidades de trabalhadoras da sociedade referida em 1) supra (desde 2001, 2002, 2008, 2010, 2012), as categorias e remunerações pelas quais foram contratadas (art.3º), o horário de trabalho (art.4º).
a2) Do sofrimento de atrasos nas retribuições: desde início de 2020 o sócio-gerente «começou a relatar dificuldades, nomeadamente algum desequilíbrio da tesouraria, por alegada falta de encomendas e dificuldades em adquirir novos clientes.», tendo as requerentes recorrido à «suspensão do contrato de trabalho por falta de pagamento pontual de retribuições, situação que se manteve até Outubro de 2020»; depois de retomarem o trabalho em Novembro de 2020, suspenderam novamente o contrato de trabalho em 18.03.2021, «com base na falta de pagamento da retribuição de Fevereiro/2021, 23 dias de retribuição de Abril/2020 e subsídio de férias e de natal também de 2020». (arts.5º a 9º).
a3) Da resolução que fizeram do seu contrato «por carta registada com aviso de receção, datada de 27/05/2021», tendo em conta que a sociedade referida em 1) «ainda não tinha pago às requerentes as retribuições dos meses de Fevereiro/2021, Abril, o subsídio de férias e de Natal de 2020, conforme estipulam os art.ºs: 276.º, 277.º e 278.º do Código do Trabalho, causando às requerentes prejuízos na vida pessoal e familiar, já que as requerentes tinham apenas como fonte de sustento pessoal e familiar o produto do seu trabalho.» (arts.9º e 10º).
a4) Da manutenção de falta de pagamento e de intenção de o realizar, «Apesar de várias insistências das requerentes junto da Requerida, para que lhes fossem pagas as devidas retribuições,» (art.11º).
a5) Da identificação e contabilizações de créditos, pelas quais concluíram que são credoras: de remunerações (da quantia de € 31.558,65 à 1.ª Requerente; da quantia de € 20.392,77 à 2.ª requerente; da quantia de € 15.690,56 à 3.ª Requerente; da quantia de € 18.510,20 ao 4.º requerente; da quantia de € 27.401,04 à 5.ª Requerente); de indemnizações pela resolução (€ 23.232,63 à 1.ª requerente, € 13.095,03 à 2.ª requerente; € 8.715,57 à 3.ª requerente; € 11.211,66 ao 4.ª requerente; € 19.574,10 à 5.ª requerente); de outros créditos emergentes daquele contrato de trabalho e em falta no valor de € 27.290,31 (sendo € 6.175,35 à 1.ª requerente; € 5.174,19 à 2.ª, 3.º e 4.ª requerente; e € 5.592,39 à 5.ª requerente) e de horas de formação no valor global de € 2 403,60 (€ 536,40 à 1.ª Requerente; € 460,80 à 2.ª Requerente; € 460,80 à 3.ª Requerente; € 460,80 à 4.º Requerente; € 484,80 à 5.ª Requerente) (arts.16º a 24º).
b) A falta de pagamentos a todos os demais credores desde 27.05.2021- «14.ºA Requerida deixou também nessa data de pagar aos restantes credores, incluindo os demais trabalhadores que também têm salários em atraso. 15.ºComo supra se refere, a Requerida, no dia 27/05/2021 cessou os seus pagamentos aos trabalhadores e demais credores – circunstância que constitui motivo para a declaração de insolvência previsto na al. a), b), c), d) e g), e i), ii) e iii), do n.º 1 do art.º 20º do C.I.R.E.».
c) A limitação do património da requerida a bens móveis em valor não superior a € 5 000,00 («3 Máquinas de Bordar (2 de 6 cabeças e 1 de 12 cabeças); 4 Prensas Transferes; 1 Prensa de Sublimar; 1 Máquina Lazer; Diverso equipamento de escritório, (1 computador e várias secretárias); 1 Veículo automóvel (carrinha ... matricula ..-GR-..); (arts.25º e 26º).
(factos aditados por esta Relação, com base na força probatória da petição inicial do processo nº3779/21....)
6.2) Por sentença de 28.09.2021:
a) Foram julgados confessados os factos da petição inicial, sintetizada em 6.1) supra («Face à não oposição por parte da requerida, consideram-se confessados os factos alegados na petição inicial, susceptíveis de confissão (Artigo 30.º, n.º 5 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).»)
b) Foi declarada a insolvência da sociedade referida em 5) supra.
(factos aditados por esta Relação, com base na força probatória do ato eletrónico da sentença do processo nº3779/21....)
6.3) Por despacho de 26.11.2021, proferido na assembleia de credores, foi declarado encerrado o estabelecimento comercial («Atento o deliberado pela assembleia de credores, desde já se determina o encerramento do estabelecimento da devedora, prosseguindo os autos para liquidação do activo.  Para efeitos da cessação da actividade, nos termos do artº 65º, nº 3, do CIRE, comunique aos serviços de finanças com cópia da presente ata»).
(facto aditado por esta Relação, com base na força probatória do ato eletrónico da ata da assembleia de credores do processo nº3779/21....)
7) No processo de reclamação de créditos da insolvência referida em 6), que correu termos por apenso à mesma, sob o nº3779/21.2/8GMR-A:
7.1) A 27.06.2022 o administrador apresentou a lista de 15 créditos reconhecidos atualizada, nos quais, entre os créditos reconhecidos no valor total de € 450 507, 44 (sendo privilegiados no valor total de € 230 927, 78 e comuns no valor de € 219 579, 66), constam, nomeadamente:
a) Oito créditos vencidos antes de 28.04.2021:
a1) Três créditos laborais privilegiados, cujo valor de capital se venceu em 26.05.2020, nos valores globais (integrados por capital e juros): de € 39 322, 81 a II; de € 30 526, 15 a JJ; de € 13 385, 22 a KK;
a2) Cinco créditos comuns, nos seguintes valores globais (de capital e juros) e com as seguintes datas de vencimento do capital: de € 3 032, 58 à EMP03...- Serviços de Comunicação Multimédia, SA, de vários créditos vencidos desde 05.05.2008 e juros; de € 181 697, 31 ao ISS, IP, integrado por vários créditos vencidos sucessivamente desde 2011 e juros; de € 31 960, 76 à EMP04..., SARL, vencido a 15.04.2014; de € 829, 75 a Águas do ..., SA, de capital vencido desde 24.03.2017 e juros; de € 305, 37 a EMP05..., Lda, integrado por valores vencidos sucessivamente desde 09.11.2019 e juros; de € 1 676, 24 à EMP06...- Sociedade Unipessoal, Lda., de capital vencido a 27.01.2020 e juros.
b) Cinco créditos laborais às requerentes da ação de insolvência, vencidos a 27.05.2021, nos valores globais (de capital e juros): de € 30 351, 30; de € 18 984, 54; de € 14 545, 57; de € 17 075, 58; de € 25 999, 87.
c) Um crédito fiscal global à Autoridade Tributária, com capital vencido antes e depois da dação, a 01.03.2021 e a 20.07.2021, nos valores globais (de capital e juros): de € 3 503, 84 de crédito privilegiado; de € 77, 65 de crédito comum.
d) Um crédito sem data de vencimento, no valor de € 37 000, 00, a LL.
7.2) A 29.11.2022 foi proferida a seguinte sentença:
«(…) Nos termos expostos, veio proposta a oportuna homologação da lista de credores reconhecidos, por aplicação do disposto no n.º 3, do artigo 130.º do CIRE e a graduação dos credores reconhecidos para serem pagos pela forma seguinte:
- ) Quanto à verba primeira:
• Em primeiro lugar, os créditos laborais por beneficiarem de privilégio imobiliário especial.
• Em segundo lugar, o crédito privilegiado reconhecido ao Instituto de Segurança social classificado como privilegiado.
• Em terceiro lugar, o crédito reconhecido à Autoridade Tributária classificado como privilegiado.
• Em quarto lugar, os créditos comuns, em paridade e em rateio, se necessário.
*
A sentença em causa tem uma natureza declarativa e como conteúdo a sentença de verificação de créditos constitui uma declaração ou certificação de direitos.
*
Considerando que se não vislumbra qualquer erro manifesto, ao abrigo do disposto no artigo 130.º, n.º 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, homologo a lista de créditos reconhecidos apresentada pelo Sr. Administrador da Insolvência e, em consequência, considero verificados os créditos dela constantes, bem como se homologa a graduação nos precisos termos e ordem acima elencados.».
(factos oficiosamente aditados por esta Relação, face à força probatória dos atos processuais da lista de créditos e da sentença, respetivamente, junta e proferida no processo de reclamação de créditos, matéria que absorve o facto 13 da sentença recorrida referente à reclamação de créditos do ISS).
8) Depois do administrador da insolvência ter resolvido o negócio referido em 3) supra em benefício da massa insolvente, correu ação de impugnação da resolução por apenso ao processo de insolvência referido em 6), com o nº3779/21...., na qual:
8.1) A 21.01.2023 foi proferida sentença, que determinou: 
«Julga-se a presente ação parcialmente improcedente, absolvendo-se a ré do pedido principal, devendo o imóvel supra identificado reverter para a Massa Insolvente e ser objeto de liquidação nos presentes autos.
Julga-se reconhecido o crédito da autora, no valor de €227.000,00 com a natureza comum.».
8.2) A 11.05.2023 foi proferido acórdão, em relação ao recurso da decisão de 8.1) supra, que julgou improcedente o recurso e confirmou a sentença recorrida.
(facto provado em 14 da sentença recorrida na 1ª parte do corpo do texto e factos aditados oficiosamente por esta Relação, com base na força probatória dos atos processuais da instauração da ação, da sentença e do acórdão
2. Apreciação do recurso de direito:
2.1. Sobre a qualificação da insolvência como culposa:
A sentença recorrida qualificou a insolvência como culposa, por verificação das previsões do art.186º/2-b) e d) do CIRE (que considerou fazerem presumir a culpa e o nexo de causalidade), com a seguinte subsunção concreta:
«Sobre os factos provados em 2 e 3, conclui-se que tal negócio constitui acto prejudicial à massa insolvente pois diminuiu o património ao dispôs dos credores, mas sobretudo lesa credores privilegiados.
Dos factos provados resulta que embora a dação em pagamento constitua um modo normal de extinção de obrigações, o devedor não tem obrigação de efectuar essa prestação de substituição, não podendo esta ser imposta unilateralmente por qualquer das partes.
A dação em pagamento de parte substancial do património do devedor, em benefício de um único credor – representando uma liquidação antecipada e instantânea desse património em favor deste – não pode considerar-se usual no comércio jurídico, nem poderia ser exigida por esse credor.
Desde logo se poderá dizer que houve aqui apenas a preocupação com a extinção de ónus que impedissem a transmissão do bem e no mais, beneficia um credor.
Enfim, o pagamento, mesmo duma obrigação vencida, quando o devedor está já em situação de insolvência iminente, representa um desrespeito pelo princípio “par conditio”, uma vez que vem a receber por inteiro quem devia sujeitar-se ao rateio resultante da concorrência dos restantes credores.
Conclui-se que a transmissão do imóvel a favor de um fornecedor, que em sede de insolvência, se classificaria como um credor comum, prejudica os credores que por força da Lei gozam de privilégios creditórios, nomeadamente, os trabalhadores (que reclamaram créditos nestes autos), o Estado e o Instituto da Segurança Social, IP.
Mais igualmente prejudica outros credores comuns, porquanto caso o referido imóvel fosse apreendido para a Massa Insolvente, os mesmos poderiam ainda de forma proporcional e rateada verem os seus prejuízos minorados.
Na verdade, e como se frisou, com esta assunção de responsabilidades tentou-se a transmissão do imóvel sem ónus (hipotecas e penhoras).
Acresce que, nos termos do artigo 4º do CIMT e do n. 1 do artigo 3º do Código do Imposto do Selo, o valor das obrigações fiscais pela transmissão do imóvel (IS e IMT), são da responsabilidade do adquirente, não podendo ser imputados ao preço da transmissão, dele não fazendo parte.
Ora a supracitada normal legal, prescreve que se considera “sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto tenham:
d) disposto de bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiro(…).
No presente caso, o gerente alienou tal bem sem haver um pagamento disponível para fazer face à generalidade das dívidas, impedindo a sua apreensão para a massa insolvente e consequentemente que os credores vissem satisfeitos, parcial ou totalmente, os créditos de que são titulares.
Com efeito, apenas se mostra beneficiado um dos credores e prejudicados vários.
A atuação dos gerentes da insolvente integrará a conduta tipificada nas als. b) e d) do nº2 do art. 186º do CIRE.
Assim, tal conduta consubstancia inequivocamente “disposição de bens em proveito de terceiros” considerando que a transmissão do imóvel ocorreu sem ter sido paga uma contrapartida justa e apenas beneficiou um credor privando os demais, e dotados de créditos privilegiados, das respetivas garantias patrimoniais.
Do supra exposto importa ainda concluir que o comportamento do gerente integra a previsão da al. d) do nº2 do art. 186º do CIRE e igualmente a da al. b) quanto à sua parte final atento o prejuízo da insolvente e dos seus credores daí adveniente.».
No recurso de BB, este pediu a reapreciação de direito da sentença, por ter entendido: que a dação em pagamento não deve ser avaliada em abstrato mas face às condições concretas do caso, sendo que o caso mostra, no seu entender, que o imóvel não foi vendido abaixo do seu valor, que a insolvente saldou débitos seus com a EMP02..., Lda., com a Banco 2... e com a Segurança Social, permitiu a continuação da sua atividade, não resultou em benefício próprio ou de terceiros e não conduziu a um benefício injustificado; que não está provado que na data da dação em pagamento o devedor estivesse em situação de insolvência ou devesse conhecê-la (conclusões 17 a 31).
O Ministério Público, na sua resposta, opôs-se ao recurso.
Impõe-se apreciar.
O Tribunal a quo qualificou a insolvência, face à dação em pagamento de 28.04.2021, com base no disposto no art.186º/2-b) e d) do CIRE, que preveem: «2 - Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham: b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas; (…)  d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;».
Os factos provados, nos termos consolidados em III-1.3. supra, conjugados com o regime legal aplicável, não permitem reconhecer razão ao recorrente, independentemente da sentença ter feito uma incorreta aplicação de alguma das normas.
Por um lado, verifica-se que a EMP01..., Unipessoal, Lda.:
a) Foi declarada insolvente com base em factos, julgados provados por confissão, que permitem verificar: que tinha dívidas a 5 trabalhadoras, que se constituíram entre 2020 e março de 2021 e que se venceram na totalidade com a resolução do contrato de 27.05.2021; na falta de pagamento generalizado de credores desde 27.05.2021 (factos provados em 6.1) e 6.2) de III-1.3. supra).
b) Na insolvência foram reconhecidos e graduados créditos no valor global de € 450 507, 44 (em que eram privilegiados no valor de € 230 927 78), sendo grande parte vencidos antes da dação em pagamento de 28.04.2021 ou imediatamente após:
b1) Antes da dação em pagamento de 28.04.2021 já se encontravam vencidos créditos a 8 entidades, sendo: que cerca de € 80 000, 00 eram créditos laborais privilegiados de 3 trabalhadores; que cerca de € 180 000, 00 eram créditos comuns à Segurança Social vencidos desde 2011.
b2) A 27.05.2021, apenas 29 dias após a dação em pagamento, venceram-se cerca de mais € 100 000, 00 de créditos laborais de 5 trabalhadores/requerentes da insolvência (que já se vinham constituindo em data anterior a 28.04.2021).
b3) Antes (em março de 2021) e imediatamente após 28.04.2021 (em julho de 2021) venceu-se um crédito fiscal privilegiado de cerca de € 3500, 00; e, em data não definida, venceu-se outro crédito laboral privilegiado de € 37 000, 00 (factos provados em 7)-7.1) e 7.2).
Por outro lado, verifica-se que, com a dação em pagamento de 28.04.2021, a devedora:
a) Transmitiu o seu único bem imóvel pelo valor de € 227 000, 00 (imóvel que tinha pelo menos o valor de mercado de € 235 000, 00), ficando apenas proprietária de bens móveis, que na data de apresentação do pedido de insolvência de 13.07.2021 tinham o valor de cerca de € 5 000, 00 (factos provados em 3.1), 4.1), 6.1)-c), 6.2)-a) de III-1.3. supra).
b) Pagou, através desta transmissão: não apenas as suas dívidas no valor global de € 76 643, 20, garantidas por duas hipotecas legais (em favor do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social) e por uma hipoteca voluntária (em favor da Banco 2..., SA); mas pagou, também, dívidas comuns à EMP02..., Lda., no valor global de € 87 790, 30, e valores de impostos de transmissão do imóvel no valor global € 16 571, 00.   
c) Recebeu o valor líquido de € 29 424, 49, que não provou que afetou à satisfação de créditos garantidos ou privilegiados (factos provados em 3.2)-2. em referência 2.2) a), c) e e), 4.2) e 4.3) de III-1.3. supra).
Ora, esta situação permite concluir que a 28.04.2021: a devedora já se presumia insolvente, face às dívidas que tinha a trabalhadores e à Segurança Social provados e reconhecidos, nos termos do art.20º/b) e g)-i, ii e iii) do CIRE; a devedora, mesmo que assim não fosse, estaria pré-insolvente face à cessação de pagamento total de credores a 27.05.2021 (julgada confessada na sentença de insolvência), situação que não poderia deixar de ser conhecida a 28.04.2021.
Por sua vez, com a dação em pagamento do único bem de valor da insolvente, no estado de insolvência (ou pré- insolvência) referido, e nos termos provados, beneficiou ilegitimamente a EMP02..., Lda: não só porque lhe transmitiu um bem por um valor inferior em, pelo menos, € 8 000, 00, ao valor de mercado; mas, sobretudo, porque com esta transferência de imóvel por esse valor, extinguiu nesse ato o crédito comum da EMP02..., Lda, no valor global de € 87 790, 30 (e pagou-lhe impostos de transmissão de imóvel), em detrimento da satisfação da universalidade de credores na insolvência que viria a ser decretada, pela qual, sendo os créditos privilegiados reconhecidos e graduados em primeiro lugar no valor superior a € 230 000, 00, a EMP02..., Lda. não teria satisfeito o seu crédito no valor que lhe foi assegurado pela dação em pagamento.
Assim, a insolvente realizou claramente um negócio de transmissão de um bem com o qual beneficiou terceiro, nos termos da al. d) do nº2 do art.186º do CIRE.
Desta forma, isto é suficiente para improceder o recurso (ainda que não se reconheça a qualificação feita pela 1ª instância da integração da al. b) do nº2 do art.186º do CIRE, uma vez que o negócio ruinoso é a consequência da criação ou agravação artificial de passivos, ato este que não se reconhece nos factos provados).
Pelo exposto, improcede o recurso de BB (sem prejuízo da revisão da indemnização, face ao critério com que a mesma foi fixada e a alteração do facto 11, que constituiu um dos seus pressupostos).

2.2. Sobre a afetação de AA e sobre a indemnização a suportar pelo mesmo:
A sentença recorrida declarou afetar ambos os gerentes da sociedade, de acordo com o art.186º/1 do CIRE, com os seguintes fundamentos:
«Podem ser visados, pelo incidente de qualificação da insolvência, sendo, então, os respectivos comportamentos sindicados do ponto de vista substantivo, o devedor, quando seja uma pessoa singular, ou os administradores de direito ou de facto do devedor, quando este seja uma pessoa colectiva ou uma entidade colectiva não personalizada.
Saber-se quem são os administradores de direito de determinada pessoa colectiva ou entidade colectiva não personalizada não oferece, em geral, grande dificuldade, pois a lei ou os estatutos, conforme os casos, fornecem indicações precisas e a respetiva certidão permanente. Já a determinação do administrador de facto pode levantar algumas dificuldades.
Segundo Coutinho de Abreu, é administrador de facto quem, sem título bastante, exerce, directa ou indirectamente e de modo autónomo (não subordinadamente), funções próprias de administrador de direito da sociedade.
Assim, é administrador de facto a pessoa que actua notoriamente como se fosse administrador de direito, mas sem título bastante. Cabem aqui os casos em que a designação da pessoa como administrador é nula, os casos em que o título, originariamente válido, caducou ou foi extinto e, ainda, os casos em que não existe qualquer título, válido ou inválido (administradores de facto aparentes).
Como resulta do art. 186º, nº1 do CIRE são puníveis tanto os administradores de direito como de facto, sendo que nesta sede a gerência de direito é incompatível como o seu não exercício, assim pelo menos haverá sempre a incumbência de fiscalizar os actos praticados em nome da sociedade.
(…)
A atuação dos gerentes da insolvente integrará a conduta tipificada nas als.b) e d) do nº2 do art.186º do CIRE.
(…)
Deste modo, a insolvência da sociedade «EMP01... – Comércio e Serviços Têxteis, Unipessoal, Lda.» deve ser qualificada de culposa, com afetação dos seus gerentes:
- BB.
- AA.».
Nesta sentença, foram ainda fixadas as sanções do art.189º/2-b), d) e e) do CIRE, de forma equivalente e com as mesmas indemnizações.
No recurso de AA, este invocou um erro de direito da decisão:
a) Quanto à sua afetação, por entender: que é necessária a prova do nexo de causalidade previsto no nº1 do art.186º do CIRE, quer nos casos do nº2, quer com maior acuidade nos casos do nº3 do art.186º do CIRE (conclusões 19 a 13); que não está demonstrado o nexo de causalidade entre a conduta do recorrente e a criação ou o agravamento da situação de insolvência do devedor (porque a gerência de direito do recorrente foi apenas formal e não material, tendo sido assumida a pedido de seu irmão e sem exercício de funções correspondentes à nomeação; porque não era gerente de direito desde há 5 meses antes da insolvência; porque não interveio no negócio, limitando-se a assinar o pedido pelo irmão) (conclusões 14 a 25).
b) Quanto à indemnização: por ser desproporcional ao grau de culpa menor do recorrente (por ter renunciado à gerência na véspera da dação, não desempenhar poderes de facto e não se deslocar às instalações da insolvente desde 2019), pois nesta altura também já não exercia poderes de facto de gerente; por dever ser fixada apenas em 1% do valor de € 241 456, 80 a que foi solidariamente condenado, o que equivaleria ao valor de € 2 414, 69 (conclusões 27 a 29).
O Ministério Público/recorrido opôs-se à pretensão.
Impõe-se apreciar o recurso.
Por um lado, não assiste razão ao recorrente em defender que, verificada qualquer uma das previsões do nº2 do art.186º do CIRE, presume-se apenas a culpa mas não se presume o nexo de causalidade, que deveria ser expresso em factos alegados e provados.
De facto, a qualificação da insolvência como culposa exige, como regra geral, que se encontrem preenchidos os factos constitutivos de que o art.186º/1 do CIRE faz depender essa qualificação («1 - A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.»), factos estes que se podem elencar como: uma atuação ou omissão do devedor ou dos seus administradores (de direito ou de facto), nos 3 anos anteriores ao início do processo de insolvência; a censurabilidade dessa atuação ou omissão a título de culpa qualificada (de dolo ou culpa grave); um nexo causal entre a atuação e a criação ou o agravamento da situação de insolvência (que deve ter sido causada por aquela atuação)[ii].
A qualificação da insolvência pode ocorrer, no entanto, nos termos do art.186º/2 e 3 do CIRE, nos seguintes termos:
«2 - Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;
b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas;
c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação;
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
e) Exercido, a coberto da personalidade colectiva da empresa, se for o caso, uma actividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa;
f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto;
g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;
h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;
i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração previstos no artigo 83.º até à data da elaboração do parecer referido no n.º 6 do artigo 188.º
3 - Presume-se unicamente a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido:
a) O dever de requerer a declaração de insolvência;
b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória de registo comercial.»
A demonstração do preenchimento de situações objetivas previstas no nº2 do art.186º do CIRE, leva a que se presuma a insolvência culposa, uma vez que se presume, de forma absoluta[iii], inilidível[iv], iure et de iure[v],: a culpa qualificada prevista no nº1; e, também, de acordo com o que se tem entendido pelo menos no que se refere às das als. a) a g) do nº2 do art.186º do CIRE, o nexo de causalidade entre a atuação ou omissão e a criação ou o agravamento da situação da insolvência (podendo as previsões das als.h) e i) configurar verdadeiras ficções legais)[vi].
A demonstração do preenchimento de situações objetivas previstas no nº3 do art.186º do CIRE (pelos quais se presume a culpa grave, de forma ilidível por prova contrária, e não se presume o nexo de causalidade entre o comportamento e a consequência da criação ou agravamento da situação de insolvência) e dos factos demonstrativos do nexo de causalidade exigido no nº1 do art.186º do CIRE, implicam, também, a qualificação da insolvência como culposa. Apesar do âmbito da presunção ter sido controverso (com Catarina Serra a ter entendido, contra a posição maioritária da Doutrina e da Jurisprudência, que se tratava de uma presunção ilidível de insolvência culposa e não apenas de uma presunção de culpa)[vii], a referida controvérsia foi resolvida pela nova redação do nº3 do art.186º do CIRE, dada pela Lei nº9/2022, de 11.01., que passou a mencionar que «Presume-se unicamente a existência de culpa grave quando…», tal como reconhece a própria Catarina Serra, que defendera posição distinta ao abrigo da redação pretérita[viii].
Por outro lado, examinando os factos provados na perspetiva dos atos do requerido/recorrente com vista a apreciar a sua afetação e a indemnização contestada, verifica-se que, ao contrário do defendido pelo requerido:
a) A dação em pagamento, que preencheu a previsão do art.186º/2-d) do CIRE nos termos referidos em III-2.1. supra, foi celebrada a 28.04.2021 por ambos os sócios gerentes- quer por BB, quer por AA (factos provados em 1) e 3) de III-1.3. supra), e em altura que já se presumia o estado de insolvência da sociedade (como se apreciou e concluiu em III- 2.1. supra).
b) AA apenas renunciou à gerência a 29.04.2021, correspondendo ao dia seguinte à dação em pagamento (e não à véspera da mesma, conforme afirmado nas conclusões), na altura em que foi também alterado o contrato de sociedade, levado a registo apenas a 04.05.2021 (factos provados em 5) de III-1.3. supra).
O ato de AA de 28.04.2021 preenche claramente, em igualdade de circunstâncias com o do outro gerente BB: quer a previsão do art.186º/1 e 2-d) do CIRE (apreciada em III-2.1. supra); quer a previsão do art.189º/2-a) do CIRE («Identificar as pessoas, nomeadamente administradores, de direito ou de facto, técnicos oficiais de contas e revisores oficiais de contas, afectadas pela qualificação, fixando, sendo caso disso, o respetivo grau de culpa»), em relação à qual operam as sanções do art.189º/2-c), d) e e) do CIRE («2- Na sentença que qualifique a insolvência como culposa, o juiz deve: (…) c) Declarar essas pessoas inibidas para o exercício do comércio durante um período de 2 a 10 anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa; d) Determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelas pessoas afectadas pela qualificação e a sua condenação na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos. e) Condenar as pessoas afetadas a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos, considerando as forças dos respetivos patrimónios, sendo tal responsabilidade solidária entre todos os afetados»).
De facto, sendo o requerido/recorrente gerente de direito- antes e à data da prática do ato de dação de 28.04.2021- tinha responsabilidades que lhe eram deferidas pela lei, nomeadamente: de representação e vinculação da sociedade, nos termos dos arts.252º/1 e 260º do C. S. Comerciais; de observância de deveres de cuidado, nos termos do art.64º/1-a) do C. S. Comerciais («Deveres de cuidado, revelando a disponibilidade, a  competência técnica e o conhecimento da actividade da sociedade adequados às suas funções e empregando nesse âmbito  a diligência do gestor criterioso e ordenado;»). Assim, é irrelevante juridicamente que o gerente de direito AA tenha assumido estas funções a pedido do seu irmão ou que não praticasse atos efetivos de gerência da sociedade, atos e omissões que apenas a si se imputam e responsabilizam.
Desta forma, improcede o recurso apresentado, quer quanto à afetação do recorrente, quer quanto à graduação de um grau de culpa inferior à atendida em relação ao gerente BB.

2.3. Sobre a indemnização a que os afetados foram condenados, face à alteração da redação do facto provado em 11 da sentença recorrida:

A sentença recorrida, na al. d) da decisão, condenou os afetados AA e BB em indemnização («d) Condenam-se os afetados a indemnizar os credores do devedor declarado insolvente, solidariamente, até ao máximo de € 241.456,80 e das forças dos respetivos patrimónios, considerando um valor de venda do imóvel (a ocorrer) de 318.000,00 e caso o venha a ser por valor inferior deverá ser deduzida diferença ao mencionado montante de 241.456,80 em exata medida.»), com os seguintes fundamentos prévios: «Também a conclusão impõe a condenação prevista no art. 189º, nº2, al. e) do CIRE, sendo que por aplicação do seu nº4 tal responsabilidade deve ser fixada, numa primeira fase, na diferença entre o valor do imóvel: 318.000,00 (facto 11) e € 76.643,20 (facto 4). Todavia, porquanto as depreciações do imóvel podem ser relevantes, justifica-se a indexação da sua responsabilidade ao valor que caso o mesmo venha a ser alienado em sede de liquidação do ativo, se tal ocorrer, com o limite máximo determinado por aquele valor.».
Os critérios da fixação desta indemnização (valor do imóvel dado em pagamento, passível de redução se for vendido por valor menor no processo de liquidação, deduzido do valor dos pagamentos feitos de créditos com hipotecas legais e voluntária) não foram expressamente discutidos no recurso.
Todavia, o valor de mercado do imóvel que se encontrava provado no facto 11 da sentença recorrida foi alterado, em decisão da impugnação à matéria de facto, para valor não expressamente determinado, mas compreendido entre um valor mínimo e um máximo.
Ora, o legislador prevê que «Ao aplicar o disposto na al. e) do nº2, o juiz deve fixar o valor das indemnizações devidas ou, caso tal não seja possível, em virtude de o tribunal não dispor dos elementos necessários para calcular o montante dos prejuízos sofridos, os critérios a utilizar para a sua quantificação, a efetuar em liquidação de sentença» (art.189º/4 do CIRE).

Desta forma a condenação realizada pelo Tribunal a quo deve ser adaptada, de forma a corresponder ao valor a liquidar dentro dos seguintes pressupostos, pelos quais:
a) Ao valor da fração ... dada em pagamento (referida em 2) e 3) dos factos provados de III-1.3. supra) deduz-se o valor de € 76 643, 20 (pago ao IGFSS e à Banco 2..., SA, detentores de hipotecas legais e voluntária sobre o imóvel a 28.04.2021).
b) O valor da fração referido em a) supra, corresponderá: ao valor de mercado da fração na data de 28.04.2021, a determinar face à sua configuração jurídica exata e ao seu estado concreto nessa data de 28.04.2021 (com um valor mínimo de € 235 000, 00 e um valor máximo inferior a € 318 000, 00); ou ao valor inferior pelo qual for vendida na fase de liquidação do processo de insolvência (caso seja vendida por valor inferior ao valor de mercado de 28.04.2021).

IV. Decisão:

Pelo exposto, as Juízes Desembargadoras da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam em:
1. Julgar improcedentes os recursos quanto ao pedido de declaração de insolvência fortuita (formulado por BB) e de não afetação de AA ou redução da indemnização a 1% (defendidos por este).
2. Alterar a condenação de d) da sentença recorrida, face à alteração do facto provado em 11 da sentença recorrida (em decisão da impugnação feita por BB), para os seguintes termos:
«d) Condenam-se os afetados a indemnizar os credores do devedor declarado insolvente, solidariamente, e pelas forças dos respetivos patrimónios, no valor que se liquidar achado pelos seguintes pressupostos:
b1) Ao valor da fração ... dada em pagamento (referida em 2) e 3) dos factos provados de III-1.3. supra) deduz-se o valor de € 76 643, 20 (pago ao IGFSS e à Banco 2..., SA, detentores de hipotecas legais e voluntária sobre o imóvel a 28.04.2021).
b2) O valor da fração b1) referido supra, corresponderá: ao valor de mercado da fração na data de 28.04.2021, a determinar face à sua configuração jurídica exata e ao seu estado concreto nessa data de 28.04.2021 (com um valor mínimo de € 235 000, 00 e um valor máximo inferior a € 318 000, 00); ou ao valor inferior pelo qual for vendida na fase de liquidação do processo de insolvência (caso seja vendida por valor inferior ao valor de mercado de 28.04.2021).»
*
Custas do recurso do recorrente AA por este (art.527º do C. P. Civil).
Custas do recurso do recorrente BB por este (art.527º do C. P. Civil).
*
Guimarães, 26-10-2023

Elaborado, revisto e assinado eletronicamente pelas Juízes Relatora, 1ª Adjunta e 2ª Adjunta
Alexandra Viana Lopes
Rosália Cunha
Lígia Venade



[i] Neste sentido, respetivamente: António Santos Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, II Volume, Almedina, 1999, págs. 147-148, Ac. RG de 17.02.2022 encontra-se disponível in http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/bd1ea2a905306c0e802588000040a0bd?OpenDocument
[ii] Vide:
Alexandre de Soveral Martins, in “Um Curso de Direito da Insolvência, Vol. I, Almedina, 2021, 3ª Edição Revista e Atualizada”, pág. 508 e 509;
Ana Prata, Jorge Morais e Rui Simões, in Código da Insolvência e Recuperação de Empresas Anotado, Almedina, 2013, pág. 506 (em que citam: o Ac. RP de 7.1.2008, proferido no processo nº4886/07, relatado por Anabela Figueiredo Luna de Carvalho; Catarina Serra).
[iii] Ana Prata, Jorge Morais e Rui Simões, in ob., citada, nota 4, pág.509.
[iv] Vide Alexandre de Soveral Martins, in ob. citada, pág.509.
[v] Vide Maria do Rosário Epifânio, in Manual do Direito da Insolvência, Almedina, 7ª edição, outubro de 2020, pág.151 ss.
[vi] Vide Luís Manuel Menezes Leitão, in Código da Insolvência e Recuperação de Empresas Anotado, Almedina, 10ª edição, 2018, nota 1 ao art.186, pág. 235, em que refere «A lei institui no art.186, nº2, uma presunção iuris et de iure, quer da existência de culpa grave, quer do nexo de causalidade desse comportamento para a criação e agravamento da situação da insolvência, não admitindo prova em sentido contrário.».
Catarina Serra, in Lições de Direito da Insolvência, Almedina, setembro de 2019, pág.301- «Se as als. a) a g) do n.º2 do art.186.º correspondem indiscutivelmente a presunções (absolutas) de insolvência culposa (ou de culpa na insolvência), as als. h) e i), do n.º2 do art.186.º mais parecem ser ficções legais- dado que a factualidade descrita não é de molde a fazer presumir com segurança o nexo de causalidade entre o facto e a insolvência, que é, a par da culpa (dolo ou nexo de causalidade), o requisito fundamental da insolvência culposa, segundo a cláusula geral do n.º1 do art.186.º».
[vii] Ana Prata, Jorge Morais e Rui Simões, in ob., citada, nota 6 ao art.186º do CIRE, págs.511 e 512; Catarina Serra, in obra citada, pág.301 e 302.
[viii] Catarina Serra, in «O incidente de qualificação da insolvência depois da Lei nº9/2022- Algumas observações ao regime com ilustrações da jurisprudência», in Julgar, nº48, Setembro de 2022, Almedina, ponto 2, págs.20 ss.