Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2187/23.5T8BCL.G1
Relator: ANTÓNIO FIGUEIREDO DE ALMEIDA
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR
COMODATO
INVERSÃO DO CONTENCIOSO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/25/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1) O decretamento de uma providência cautelar depende da verificação de vários requisitos: a) que muito provavelmente exista o direito tido como ameaçado - objeto de ação declarativa - ou que venha a emergir de decisão a proferir em decisão constitutiva, já pendente ou a propor, ou seja, a probabilidade de existência do direito na esfera jurídica do requerente no momento em que deduz a pretensão; b) que haja fundado receio que outrem cause lesão grave no mesmo direito, antes de proferida a decisão de mérito; c) que a providência proposta seja adequada a remover o periculum in mora concretamente verificado e a assegurar a efetividade do direito ameaçado; d) que o prejuízo resultante da providência não exceda o dano que com ela se pretende evitar;
2) Tendo sido requerida a inversão do contencioso, o caráter abreviado dos indícios exigíveis, para a generalidade das providências cautelares, não é compatível com as exigências probatórias, por força do disposto no artigo 369º nº 1 NCPC, que impõe a formação de uma convicção segura acerca da existência do direito acautelado, pelo que, se se concluir não estarem verificados os requisitos da inversão, a consequência é o indeferimento da mesma e a subsistência das exigências gerais características dos procedimentos cautelares;
3) No comodato, se os contraentes não convencionaram prazo certo para a restituição da coisa, mas esta foi emprestada para uso determinado, o comodatário deve restituí-la ao comodante logo que o uso finde, independentemente de interpelação e, não tendo sido convencionado prazo para a restituição nem determinado o uso da coisa, o comodatário é obrigado a restituí-la logo que lhe seja exigido.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

A) AA veio intentar, no Juízo Local Cível ..., procedimento cautelar comum, contra BB, CC e Banco 1..., SA, onde conclui entendendo que deve o presente procedimento cautelar comum ser julgado procedente, por provado e, em consequência, com a inversão do contencioso:
a) Reconhecer o direito de propriedade da requerente sobre o prédio descrito no artigo 1º, assim como do ... andar do prédio urbano;
b) Ser restituída a posse da ora requerente de todo o prédio urbano supra identificado no artigo 1º.
Mais devem os requeridos ser condenados a abster-se de adotar qualquer tipo de conduta ou comportamento que a posse da requerente sob o referido prédio urbano ou contribua de qualquer outra forma para impedir ou limitar o exercício do direito da requerente.
E, condenar o requerido Banco 1..., S.A. a extinguir a garantia dada pela requerente do seu prédio identificado no artigo 1º ao contrato de mútuo junto como Doc. ....
Caso assim não se entenda, condenar o requerido Banco 1... S.A. à paralisação do acionamento da garantia bancária caso os requeridos deixem de efetuar o pagamento das prestações mensais relativas ao contrato de mútuo.
Para tanto alega a requerente, em síntese, que é dona do prédio urbano que identifica, sendo o requerido seu filho e a requerida sua nora, razão pela qual permitiu que os requeridos, juntamente com os filhos menores, vivessem no ... andar do prédio (prédio urbano composto por casa de habitação, com dois pisos e logradouro), tendo, a dada altura requerente e requeridos começado a dar-se mal, tendo estes trocado a fechadura da porta de acesso ao piso superior, onde os requeridos residem, morando a requerente no ....
Entretanto os requeridos cortaram o fornecimento de energia elétrica à casa da requerente, há cerca de um mês, e a ... - Electricidade ..., SA não consegue resolver o problema, afirmando que a origem do problema estará no piso superior, onde os requeridos residem, não podendo efetuar a reparação, por não ter acesso a esse piso; acresce que os requeridos têm desligado o fornecimento de água à requerente, tendo esta saído de casa, por não conseguir cozinhar nem tomar banho, embora visite a sua casa todos os dias e permaneça lá algum tempo e, quando a requerida se cruza com a requerente chama-lhe bruxa e o neto mais velho deu-lhe um encontrão, o que a deixa transtornada e desgostosa.
Mais refere que os requeridos lhe furtaram objetos que se encontravam na casa e anexo, tendo o requerido arrastado a requerente pelos cabelos para longe da requerida, encontrando-se aquela, provisoriamente, num quarto emprestado que terá de abandonar em breve, o que, face ao valor da sua reforma, levará a que tenha de viver na rua.
Foi proferido despacho que declarou a incompetência do Juízo Local Cível ... e determinou a remessa dos autos para os ....
Foi igualmente proferido novo despacho que entendeu que o pedido formulado pela requerente relativamente ao requerido Banco 1..., S.A., é manifestamente improcedente e, como tal, foi o mesmo liminar e parcialmente indeferido.
Foi formulado despacho a convidar a requerente a concretizar matéria alegada no requerimento inicial, tendo esta esclarecido que os requeridos residem no imóvel desde 2007, que os problemas surgidos entre requerente e requeridos se iniciaram em abril deste ano, que reside na casa de uma pessoa amiga, que tinha a casa vazia, que tem dois pisos com entradas autónomas e ligação interior, através de umas escadas, entre os dois pisos.
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Foi proferida a decisão que consta a fls. 32 e segs, onde se refere, nomeadamente, que:

“Estabelece o art. 362º, nº 1, do CPC que “sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado”.
Assim, o decretamento de providências cautelares não especificadas está dependente da conjugação dos seguintes requisitos: probabilidade séria da existência do direito invocado; fundado receio de que outrem, antes da ação ser proposta ou na pendência dela, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito; adequação da providência à situação de lesão iminente; não existência de providência específica que acautele aquele direito.
Ora, in casu, estão alegados factos que concretizam a probabilidade séria da existência do direito (direito de propriedade da requerente sobre o imóvel em causa) e o fundado receio (ainda que, quanto a este requisito, alguns dos factos imputados à 1ª requerida já se tenham consumado, o que dificilmente permitirá sustentar o receio a que se refere a norma, não se tratando de uma agressão iminente) de que os requeridos causem lesão ao direito invocado pela requerente.
No entanto, já não foram alegados factos quanto à lesão grave de difícil reparação.
Como escreve ABRANTES GERALDES, “o fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável constitui nas medidas cautelares atípicas a manifestação do requisito comum a todas as providências: o periculum in mora.
Tal como ocorre com a generalidade das providências, o receio tanto pode manifestar-se antes de proposta a ação como na sua pendência. Em qualquer das situações, pode o autor solicitar a adoção da medida que julgue mais adequada a acautelar o efeito útil que através do processo principal pretende ver reconhecido ou satisfeito.
Mas não é toda e qualquer consequência que previsivelmente ocorra antes de uma decisão definitiva que justifica o decretamento de uma medida provisória com reflexos imediatos na esfera jurídica da contraparte.
Compreende-se, na verdade, o cuidado posto pelo legislador ao restringir a concessão da tutela provisória. É esse mesmo cuidado que deve guiar o juiz quando se debruça sobre a situação sujeita à apreciação jurisdicional.
De facto, tratando-se de uma tutela cautelar decretada, por vezes, sem audiência contraditória, não é qualquer lesão que justifica a intromissão na esfera jurídica do requerido com a intimação para se abster de determinada conduta ou com a necessidade de adotar determinado comportamento ou de sofrer um prejuízo imediato e relativamente ao qual não existem garantias de efetiva compensação em casos de injustificado recurso à providência cautelar” (in “Temas da Reforma do Processo Civil”, III Volume, 2ª Edição, Almedina, Coimbra, 2000, pp. 82 e 83).
Como se decidiu no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 13.06.1991, não é de decretar a providência cautelar não especificada caso não se tenha determinado o montante minimamente aproximado do prejuízo do requerente e nem sequer se tal prejuízo é ou não superior ao interesse prosseguido pelo requerido (in BMJ 408º/673).
No Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18.11.2019, sustentou-se que “para que se possa dizer que ocorre fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável, não basta um qualquer ato que perturbe, que dificulte ou, simplesmente, incomode. É imprescindível que seja capaz de gerar uma dificuldade notável, importante para o exercício do direito”.
O receio do requerente tem de ser objetivo e apoiar-se em factos de que decorra a seriedade da ameaça de uma lesão ainda não consumada, mas iminente, ou já verificada, mas de previsível repetição. O mesmo é dizer que «não bastam (…) simples dúvidas, conjeturas ou receios meramente subjetivos ou precipitados, assentes numa apreciação ligeira da realidade (…)” (relatado por Joaquim Moura, publicado in www.dgsi.pt).
E no Acórdão do mesmo Tribunal da Relação do Porto de 22.11.2011, processo nº 1408/11.1TJPRT.P1: “para a concretização do que se deve entender por lesão dificilmente reparável podem ser apontados dois critérios. Um critério subjetivo que atende às possibilidades concretas do requerido para suportar economicamente uma eventual reparação do direito do requerente. E, um critério objetivo, aferido em função do tipo de lesão que a situação de perigo pode vir a provocar na esfera jurídica do requerente, o que significa que dependerá da natureza do direito alvo dessa lesão e da sanção que a ordem jurídica impõe para reparação do dano decorrente da lesão, sendo admissível o recurso à tutela cautelar, sempre que a reparação da lesão possa implicar a chamada reintegração por sucedâneo”.
Acompanhando agora o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 13.05.2021, “(…) só lesões graves e dificilmente reparáveis têm a virtualidade de permitir ao Tribunal, mediante iniciativa do interessado, a tomada de uma decisão que o coloque a coberto da previsível lesão. O facto de o legislador ter ligado as duas expressões com a conjunção copulativa “e” deve levar-nos a refletir que não é apenas a gravidade das lesões previsíveis que justifica a tutela provisória, do mesmo modo que não basta a irreparabilidade absoluta ou difícil.
O legislador incumbiu o juiz da função de proceder à integração de tais abstrações normativas pelas diversas situações da vida real carecidas de tutela rápida e eficaz. É o juiz quem, confrontado com a realidade projetada pelas partes nos procedimentos cautelares, está em melhores condições de ponderar a conexão entre a previsão normativa e a mesma realidade.
Devem, pois, ser ponderadas as condições económicas do requerente e da requerida e a maior ou menor capacidade de reconstituição da situação ou de ressarcimento dos prejuízos eventualmente causados.
Também se determina que o receio deve ser fundado, ou seja, apoiado em factos que permitam confirmar com objetividade e distanciamento a seriedade e atualidade da ameaça e a necessidade de serem adotadas medidas tendentes a evitar o prejuízo.
Não bastam dúvidas, conjeturas ou receios meramente subjetivos ...” (cf. neste sentido Abrantes Geraldes em Temas da Reforma do Processo Civil, III Vol. pp 83 e sgs).
O terceiro requisito é a adequação de providência para evitar o prejuízo, daí que a celeridade seja uma das características necessárias desta providência, a fim de ser adequada à conjugação do perigo.
O carácter subsidiário da providência resulta do art.º 362º nº 3 mencionado.
A regra do menor prejuízo do/a(s) requerente(s) acha-se consagrada no art.º 368º nº2.
Isto é a providência só deverá ser decretada quando o prejuízo do/a(s) requerente(s) não seja inferior ao do requerido.
Por último para o decretamento da providência exige-se a verificação cumulativa de todos aqueles requisitos, pelo que a falta de um deles determina o indeferimento da providência” (relatado por Purificação Carvalho, disponível in www.dgsi.pt).
E concluindo com o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 07.02.2013, “o correto entendimento será, pois, o de que a providência deve ser decretada, sempre que, se esteja ante uma lesão grave, atenta importância patrimonial ou extrapatrimonial do direito ou do bem que aquele incide (objeto mediato) e que está em risco de ser sacrificado, e não seja razoável exigir que tal risco seja suportado pelo titular do direito ameaçado, na medida em que a reparação de tal dano seja avultada ou mesmo impossível” (relatado por Isoleta Almeida Costa, disponível in www.dgsi.pt).
In casu, verifica-se que os requeridos residem no ... andar da casa de habitação da requerente desde 2007 e que, por força das más relações entre requerente e requeridos, iniciadas em abril deste ano, a requerente saiu da sua casa e passou a residir na casa de pessoa amiga.
Os factos alegados pela requerente indiciam um contrato de comodato entre as partes, sem prazo, e com uso determinado, o da habitação do filho, mulher e netos, o que vem acontecendo desde 2007.
Assim, o direito de propriedade da requerente encontra-se comprimido pelo uso que os requeridos fazem da sua casa de habitação, mas esse uso foi permitido pela requerente.
Entretanto, e por força das más relações sobrevindas entre as partes, a requerente quer pôr termo a esse contrato, recuperando a posse da totalidade do prédio.
No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05/07/2018, relatado por Olindo Geraldes, proc. 1281/13.5TBTMR.E1.S1, com base na proteção legal da família, entendeu-se que, vigorando um contrato de comodato sem prazo para uso de habitação familiar, não há obrigação de restituir o andar, enquanto continuar a ter esse uso.
No caso apreciado nesse acórdão, o imóvel discutido havia sido cedido pelos pais do aí recorrente ao casal formado pelo próprio recorrente e pela aí recorrida, para sua utilização temporária como habitação e casa de família. Esse contrato não tinha prazo certo mas tinha uso determinado e específico, consistente no da habitação efetiva do casal em termos de ser considerada a casa de morada de família, sendo este o elemento que foi relevado, não só importante como decisivo, quando se sublinha que “Faltando um prazo certo, mas destinando-se a cedência do prédio a habitação, a sua restituição tem lugar quando finde o uso a que foi destinado, sem necessidade de interpelação, como decorre do disposto no art. 1137º, nº 1, do CC. De modo que, se o comodato tiver prazo certo, a restituição deve ser realizada até ao termo do prazo previsto; não tendo o comodato prazo, a restituição deve ocorrer logo que finde o uso do prédio (PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, II, 2ª edição, 1981, págs. 595 e 596).
A duração do comodato depende, pois, do termo do prazo estipulado ou de findo o uso determinado, sendo irrelevante, para a sua vigência, a motivação presente no momento da sua celebração.”
Desta circunstância, que envolve a confirmação de existência de um uso especificamente acordado e com incidência familiar é retirada a conclusão de que “Tratando-se, no caso, de contrato sem prazo e para uso de habitação familiar, não há obrigação de restituir o andar do prédio identificado, enquanto continuar a ter esse uso, atento o disposto no art. 1137º, nº 1, do CC.
A necessidade da proteção familiar pode, por isso, estender-se à casa objeto de um contrato de comodato, para habitação. (cfr. também o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04/02/2021, relatado por Manuel Capelo, publicado in www.dgsi.pt).
Assim, e apesar do indiciado direito de propriedade da requerente sobre todo o prédio urbano, prevalece aqui o direito à habitação dos requeridos, adquirido de forma legítima, por força de um contrato de comodato, sem prazo.
Quanto ao facto da requerida ter saído da sua própria casa, por força da conduta dos requeridos, estando a residir em casa emprestada, importa verificar aquele critério objetivo, aferido em função do tipo de lesão que a situação de perigo pode vir a provocar na esfera jurídica da requerente.
Deste modo, ainda que os requeridos tenham praticado os atos alegados pela requerente, mas estando assegurado o direito desta à habitação, não se pode afirmar que a lesão da requerente, o seu prejuízo, não é inferior aos dos requeridos, que residem no prédio da requerente desde 2007.
E a providência só deverá ser decretada quando o prejuízo do requerente não seja inferior ao do requerido.
No caso, apesar de estar indiciada lesão do direito da Requerente, essa lesão não é grave, atenta a importância patrimonial ou extrapatrimonial do direito que está em risco de ser sacrificado, e é razoável exigir que tal risco seja suportado pela titular do direito ameaçado, a requerente, porque o direito da requerente, a existir, será reparado, não tendo sido alegado que tal reparação será avultada ou mesmo impossível.
Na verdade, a requerente não alega quaisquer factos que permitam concluir que a lesão do seu direito, a existir, dificilmente será reparável pelos requeridos, e que o prejuízo por si sofrido não é inferior ao prejuízo sofrido por estes.
A requerente não alegou factos que permitam a prova, ainda que sumária, da difícil reparação das consequências danosas da manutenção do status quo.
Finalmente, e como se conclui do pedido formulado, a requerente pretende ver protegido o seu direito de propriedade sobre todo o imóvel, querendo recuperar o ... andar, e não ser perturbada a sua posse sobre o mesmo, pelo que entendemos que os factos alegados quanto ao perigo para a sua integridade física não são causa de pedir, atendendo ao pedido formulado.
Em suma, os factos que alega não configuram lesões graves e dificilmente reparáveis, nos termos supra expostos (sendo eventualmente merecedores de tutela jurídica, não justificam, porém, uma antecipação da mesma, em sede de procedimento cautelar).
Impõe-se, assim, necessária e inequivocamente, concluir, desde já e sem necessidade de produção de prova, que a factualidade alegada no requerimento inicial e que poderia revelar para a apreciação do requisito em causa é insuscetível de integrar o requisito fundado receio de lesão grave e de difícil reparação.
Pelas razões referidas, o Tribunal entende que o pedido formulado pela requerente é manifestamente improcedente e, como tal, julga improcedente o presente procedimento cautelar.
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B) Inconformada com a decisão, veio a requerente AA interpor recurso que foi admitido como sendo de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito suspensivo (fls. 67).
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C) Nas alegações de recurso da apelante AA, são formuladas as seguintes conclusões:
I) A recorrente não se pode conformar com a sentença que julgou manifestamente improcedente o procedimento cautelar interposto para que “a) se reconheça o seu direito de propriedade sobre o prédio descrito no art. 1º do requerimento inicial; b) ser restituída a posse de todo o prédio à requerente; serem os requeridos condenados a abster-se de adotar qualquer tipo de conduta ou comportamento que limitem o direito da requerente sobre esse prédio.”.
II) A aqui recorrente rejeita, assim, veementemente, a decisão que indeferiu o procedimento cautelar, nomeadamente, na imediata entrega judicial provisória do imóvel pertencente à recorrente, livre de pessoas e bens, para, assim, ser posto termo à continuada, repetida situação gravemente lesiva causada pelos recorridos à aqui recorrente.
III) O tribunal a quo entendeu que não se encontravam preenchidos os requisitos necessários para o decretamento da provisão, que, apesar de estarem alegados os factos que concretizam a probabilidade séria da existência do direito e o fundado receio (apesar de alguns factos já se tenham consumado) não foram alegados factos quanto à lesão grave de difícil reparação.
IV) Na senda de uma posição divergente daquela que a recorrente defende, a decisão recorrida considerou que as situações alegadas por ela, em sede de Providência Cautelar, indiciavam um contrato de comodato entre as partes, sem prazo e que apesar do indicado direito de propriedade da requerente sobre todo o prédio urbano, prevalece o direito à habitação dos requeridos, adquirido de forma legitima, pro força de um contrato de comodato, sem prazo.
V) Para além disso, como se não bastasse refere o tribunal a quo, que a requerente não alega quaisquer factos que permitam concluir que a lesão do seu direito, e que a existir, dificilmente será reparável pelos requeridos, e que o prejuízo por si sofrido não é inferior ao prejuízo sofrido por estes.
VI) Tudo isto a revelar que a decisão recorrida, num total autismo, olvidou ou fez tábua rasa de tudo o alegado pela aqui recorrente na Providência Cautelar, fazendo um incorreto enquadramento conclusivo e jurídico dos factos alegados por esta.
VII) A aqui recorrente intentou uma providência cautelar não especificada para entrega do imóvel, objeto da presente contenda dado os recorridos não permitirem que a mesma habite no seu próprio imóvel e se recusem a sair do mesmo.
VIII) Para além do mais, os recorridos levaram a recorrente ao engano da mesma dar de hipoteca o seu imóvel, utilizando neste momento como chantagem, deixarem de pagar o empréstimo bancário concedido pelo Banco 1... S.A. caso a recorrente os consiga expulsar de casa.
IX) Ora, já reconheceu o tribunal a quo que quanto à probabilidade séria da existência do direito, se encontrava devidamente preenchido, visto estarem alegados factos que concretizam a probabilidade séria da existência do direito, ou seja, o direito de propriedade sobre o imóvel em causa.
X) Tal como mencionado na Providência Cautelar, para além de todos os estragos que os requeridos, ora recorridos causaram até à data da interposição da mesma, todos os dias os estragos se tornam mais avultados.
XI) Pelo que acabarão por destruir todo o imóvel da recorrente por mera vingança.
XII) Bem como, todas as coisas da mesma que ainda se encontram na sua habitação.
XIII) Como bem se decidiu no Acórdão da Relação de Lisboa de 18/01/2007, CJ Tomo I, pág. 80, “estão dentro da proteção concedida pelo procedimento cautelar comum as lesões continuadas ou repetidas, nada obstando a que seja proferida decisão que previna a continuação ou a repetição de atos lesivos”.
XIV) Foi em subsequência de todo esse circunstancialismo, que, atendendo à morosidade que uma ação declarativa teria e à persistência da situação lesiva e continuada, tornou-se imprescindível a propositura de uma providência cautelar não especificada para restituição provisória da posse.
XV) Impondo-se alegar, nesta conformidade, o que afirma o Prof. Alberto dos Reis, in Bol. Min. Just., 3-42: “o traço típico do processo cautelar está, por um lado, na espécie de perigo que ele se propõe conjurar ou na modalidade de dano que pretende evitar, e, por outro, no meio de que se serve para conseguir o resultado a que visa (…) O perigo especial que o processo cautelar remove é este: periculum in mora, isto é, o perigo resultante na demora a que está sujeito um outro processo (o processo principal) ou, por outras palavras, o perigo derivado do caminho, mais ou menos longo, que o processo principal tem de percorrer até a decisão definitiva para se dar satisfação à necessidade impreterível de justiça, à necessidade de que o julgamento final ofereça garantias de ponderação e acerto”.
XVI) A propositura de tal providência cautelar prepara o terreno, toma precauções para evitar a continuação de lesões graves e reiteradas, como está a acontecer no caso sub judice.
XVII) Também como se afirmou no Acórdão da Relação de Évora de 03/02/2005, Proc. 2460/04-3. Dgsi.net: “os procedimentos cautelares visão proteger o justo receio de algum se ver prejudicado por uma conduta de terceiro, inquietação que poderá ser agravada de forma efetiva com as delongas normais do pleito judicial”.
XVIII) Receio esse que, no caso in mérito, existe e é justo.
XIX) Sem conceder, não é o facto de no momento em que se requer a providência, já terem ocorrido lesões do direito que, de per si, obsta a que a providência seja decretada, e, ela deve sê-lo, desde logo, quando as lesões do direito já verificadas constituam, elas próprias, indício de que se lhe podem seguir futuras lesões do mesmo direito.
XX) Num tal caso, a ocorrência da lesão dá maior consistência ao receio de verificação das ofensas do direito que se pretendem evitar/acautelar.
XXI) A aqui recorrente é a comprovada dona e legítima proprietária do prédio urbano composto por casa de habitação de dois pisos e logradouro, sito no Lugar ..., inscrito na matriz predial urbana sob o número ...85, ... (...), e nela inscrito a seu favor nos termos da respetiva inscrição AP ...06, de 20 de outubro de 2010.
XXII) O requerido, ora recorrido é filho da recorrente.
XXIII) Atendendo à relação de parentalidade e ao gosto do filho, nora e netos, em habitar no referido prédio, a recorrente permitiu que fossem para lá residir com a sua família.
XXIV) Em virtude dessa mesma relação familiar, não foi celebrado qualquer tipo de contrato a propósito da concessão do gozo desse imóvel.
XXV) Apesar dos recorridos haverem ocupado o referido prédio em maio de 2007, a recorrente sempre teve a chave e o pleno acesso a todo o imóvel.
XXVI) Em virtude da deterioração entretanto sofrida pelas relações entre recorrente e recorridos, a recorrente solicitou a estes que abandonassem o imóvel.
XXVII) Todavia, os recorridos recusaram-se a proceder à respetiva entrega e continuaram a habitar no mesmo imóvel, sem autorização e contra a vontade da recorrida.
XXVIII) Tendo cortado o fornecimento de água e luz à recorrente para que a mesma não pudesse continuar a habitar na sua própria casa, nem usufruiu de uma propriedade que é sua por direito.
XXIX) Após todos os insultos verbais e agressões físicas, nas quais já se encontram a correr os respetivos processos-crime, a recorrente foi obrigada a abandonar a sua própria casa por já não ser um local seguro para a mesma habitar.
XXX) Temendo até pela sua própria vida.
XXXI) Assim a requerida pede a condenação dos requeridos no reconhecimento do direito de propriedade sobre o referido imóvel e, por consequência, na sua restituição.
XXXII) Com efeito, desde abril de 2023 que os recorridos ocupam o imóvel contra a vontade da recorrente, estando esta impedida de retirar qualquer benefício do prédio, designadamente de o de habitar no mesmo, nem sequer tendo direito a exercer um dos maiores direitos consagrados da Constituição da Républica, o direito de propriedade.
XXXIII) A requerente neste momento devido ao medo de estar na sua casa, propriedade sua, encontra-se provisoriamente num quarto que lhe está a ser emprestado para a mesma fazer face às suas necessidades básicas, e não a título de comodato, pois a mesma em breve terá de abandonar este quarto.
XXXIV) Ora, esta situação é de facto irreparável uma vez que o valor da sua reforma é de €430,00 (quatrocentos e trinta euros) mensais, não lhe permite arrendar um local para viver.
XXXV) Assim não se entende o tribunal a quo quando alega a falta de periculum in mora.
XXXVI) Qual será o periculum in mora mais gravoso que poderá existir do que a possibilidade de um Ser Humano, mais concretamente uma senhora com 68 anos que trabalhou toda a sua vida para pagar uma habitação para puder residir os últimos anos de vida, ficar provavelmente sem numa situação de sem abrigo, não lhe restando outra hipótese senão a de ir viver para a rua?
XXXVII) Ademais, reitera-se o facto de devido ao comportamento por parte dos recorridos, nomeadamente a estes não abandonarem o imóvel conforme já lhes fora solicitado verbalmente na época, a recorrente não pode usufruir do seu direito de propriedade.
Caso assim não se entenda, o que só por mero dever de patrocínio se concede,
XXXVIII) O contrato em apreço foi qualificado pelo tribunal a quo como um contrato de comodato.
XXXIX) Admitindo que, no caso sub judice, estamos perante um contrato de comodato sem prazo para uso de habitação familiar.
XL) Tal contrato não preenche o pressuposto legal de determinação do uso da coisa ao afirmar que o comodatário pode habitar ou viver na casa. (Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 06-10-2016, Processo nº 3268/11.3TJVNF.G1).
XLI) Só o preenche se a determinação do uso “…delimitar a necessidade temporal que o comodato visa satisfazer”.
XLII) Assim, tratando-se de um contrato de comodato sem prazo para uso de habitação familiar, facto é que não poderá considerar-se esse uso como “determinado” não se sabendo por quanto tempo vai durar. (Acórdão do TRC de 14-09-2010, Processo n.º 1275/05.4TBCTB.C1).
XLIII) Uma vez que não foi convencionado prazo certo nem determinado o uso da coisa, existe o direito de exigir dos comodatários a entrega da casa a todo o tempo (Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 06-10-2016, Processo n.º 3268/11.3TJVNF.G1).
XLIV) Pelo que, não constitui comodato para uso determinado o mero empréstimo de uma casa para habitação. (Acórdão do TRE de 19-11-2020, Processo n.º 1564/19.0T8BJA.E1).
XLV) E, por isso, não obsta à restituição da coisa comodada a circunstância de esse específico fim ainda ocorrer. (Acórdão do TRE de 19-11-2020, Processo n.º 1564/19.0T8BJA.E1).
XLVI) O que significa que, a cedência, a título gratuito, de prédio urbano para habitação, sem fixação de prazo de vigência do contrato e sem delimitação temporal da necessidade do respetivo uso, pode ser denunciada, a todo o tempo, pelo comodante, resultando os comodatários obrigados a restituir o prédio, ao abrigo do disposto no nº 2 do artigo 1137.º do Código Civil. (Acórdão do TRE de 28-09-2023, Processo nº 94/22.8T8ALR.E1).
XLVII) Que assim sendo a recorrente o denunciou, ao informar os recorridos para abandonarem o imóvel.
XLVIII) No entanto, os mesmo permanecem lá, contra a sua vontade.
XLIX) Para além da ofensa ao direito de propriedade da recorrente, existe uma severa probabilidade de a mesma ficar sem abrigo e sem um direito fundamental consagrado na Constituição Portuguesa no artigo 65º, desde 1976, que é o direito à habitação, segundo o qual «todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.»
L) Para além de que, a situação económica da requerida, ora recorrente, com o devido respeito, certamente não fora ponderada, visto que a mesma aufere uma reforma no valor de €430,00 (quatrocentos e trinta euros) e se encontra atualmente desalojada.
LI) Face às situações atuais do país em que vivemos e também da inflação que se faz sentir, bem sabemos que qualquer Homem Médio não conseguirá sobreviver dignamente com um valor tão baixo de reforma, sem pelo menos, ter uma habitação própria onde se possa alojar.
LII) Como é o caso da ora recorrente, cuja vida toda trabalhou para adquirir a sua habitação para puder viver até à sua morte na mesma.
LIII) No entanto, vê-se despejada da sua propriedade pelo seu próprio filho, nora e netos.
LIV) Que para além de todo o encargo emocional que esta situação em si já comporta, acarreta um elevado encargo económico, face às despesas que a mesma terá de suportar.
LV) Ademais, mesmo que se admita a existência de um contrato de comodato, como poderá o suposto comodato dos recorridos prevalecer sobre o direito de propriedade da recorrente?
LVI) Para além disso, como pode o tribunal a quo avaliar qual é o direito à habitação que mais tem importância?
LVII) O dos recorridos que vivem numa casa cuja propriedade não é sua?
LVIII) Ou o da recorrente que está na eminência de se tornar sem-abrigo?
LIX) Salienta-se o facto da mesma ter 68 anos, uma reforma de €430,00 (quatrocentos e trinta euros mensais) e ter trabalhado toda a sua vida para conseguir comprar uma habitação para puder passar o resto dos seus dias, sabendo que sempre terá um teto onde morar.
LX) O que não tem acontecido.
LXI) Refere também neste seguimento o tribunal a quo que o direito à habitação da aqui recorrida está assegurado, quando, no entanto, a mesma apenas se encontra provisoriamente num quarto que lhe está a ser emprestado.
LXII) Com o devido respeito, que é muito, parece-nos que o tribunal recorrido estará à espera que a recorrente se torne sem-abrigo para que assim o seu prejuízo se torne manifestamente superior ao suposto prejuízo que os recorridos teriam.
LXIII) Vejamos que, apesar dos requeridos, ora recorridos residirem no prédio desde 2007, a recorrente também residia no prédio desde que o adquiriu, muito antes dos recorridos residirem no mesmo.
LXIV) De resto, mais uma vez se refere que, é a natureza pessoal do contrato que justifica a disciplina consagrada no artigo 1140º do Código Civil, que, perante a deterioração das suas relações com o comodatário, confere ao comodante o direito de resolução.
LXV) Tudo isto a revelar que a sentença recorrida carece totalmente de fundamentação válida.
LXVI) Atendo o alegado, deve ser julgado procedente o presente recurso, e revogada a decisão que julgou improcedente o requerimento inicial da Providência Cautelar apresentada pela ora recorrente, por estarem verificados os requisitos principais, os pressupostos que a lei refere nos artigos 362º e 368º do CPC.
LXVII) Pelo que devem V./Exas., Venerandos Desembargadores julgar procedente o presente recurso e revogar a decisão recorrida, declarando que não há qualquer fundamento de improcedência do procedimento cautelar, o qual deverá prosseguir os seus ulteriores termos com as legais consequências daí advenientes.
LXVIII) Como com toda a certeza o farão, realizando como sempre a Justiça material.
Termina entendendo que deverá julgar-se totalmente procedente o recurso interposto, e em consequência, revogada a decisão proferida pelo tribunal a quo, declarando que não há qualquer fundamento de improcedência do procedimento cautelar, devendo o mesmo ser deferido.
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Pelos requeridos e apelados BB e CC foi apresentada resposta onde entende que deverão as alegações e respetivas conclusões serem julgadas totalmente improcedentes e, consequentemente, ser negado provimento ao recurso, confirmando-se, na íntegra, a decisão recorrida, que não merece qualquer reparo.
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D) Foram colhidos os vistos legais.
E) A questão a decidir na apelação é a de saber se deverá ser revogada a decisão proferida pelo tribunal recorrido e o recurso julgado totalmente procedente.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

A) Os factos a considerar são os que constam do relatório que antecede.
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B) O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente, não podendo o tribunal conhecer de outras questões, que não tenham sido suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
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C) Como acima se referiu, a autora e ora apelante conclui entendendo que deve o presente procedimento cautelar comum ser julgado procedente, por provado e, em consequência, com a inversão do contencioso, deve(m):
a) Reconhecer o direito de propriedade da requerente sobre o prédio descrito no artigo 1º, assim como do ... andar do prédio urbano;
b) Ser restituída a posse da ora requerente de todo o prédio urbano supra identificado no artigo 1º.
c) Os requeridos ser condenados a abster-se de adotar qualquer tipo de conduta ou comportamento que a posse da requerente sob o referido prédio urbano contribua de qualquer outra forma para impedir ou limitar o exercício do direito da requerente.
O tribunal entendeu que a factualidade alegada no requerimento inicial, que poderia relevar para apreciação é insuscetível de integrar o requisito do fundado receio de lesão grave e de difícil reparação, pelo que julgou o pedido formulado pela requerente manifestamente improcedente, julgando o presente procedimento cautelar improcedente.
Vejamos.
Conforme se refere no Acórdão desta Relação de 13/05/2021, no processo 328/20.3T8VPA.G1, relatado pela Desembargadora Purificação Carvalho, disponível em www.dgsi.pt “tal como refere António Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, volume III, pág. 35, "os procedimentos cautelares constituem um instrumento processual privilegiado para proteção eficaz de direitos subjetivos e de outros interesses juridicamente relevantes. A sua importância advém não da capacidade de resolução definitiva de interesses, mas da utilidade na prevenção de violação grave ou dificilmente reparável de direitos, na antecipação de determinados efeitos das decisões judiciais e na prevenção de prejuízos que podem advir da demora na decisão do processo principal".
Com a consagração dos procedimentos cautelares o legislador pretendeu estabelecer um equilíbrio entre dois interesses: o de uma justiça rápida, mas correndo o risco de ser precipitada e o de uma justiça ponderada, mas com o risco de chegar "fora de horas".
Os procedimentos cautelares consubstanciam como que uma garantia da utilidade ou de possibilidade de eficácia da decisão a proferir no âmbito do processo principal.
É que os procedimentos cautelares são instrumentais em relação à ação principal conexa (artº 364º nº 1 do CPC).
Decorrentemente os requisitos da petição inicial relativa aos primeiros são idênticos aos legalmente exigidos para a segunda. Assim, são requisitos da petição inicial nos procedimentos cautelares, além do mais, a exposição dos factos e das razões de direito que servem de fundamento ao pedido neles formulado (arts 549º nº 1 e 552º nº 1 als c) e d) do CPC).
Ora o decretamento de uma providência cautelar depende da verificação de vários requisitos, a saber: a) que muito provavelmente exista o direito tido como ameaçado - objeto de ação declarativa - ou que venha a emergir de decisão a proferir em decisão constitutiva, já pendente ou a propor, ou seja, a probabilidade de existência do direito na esfera jurídica do requerente no momento em que deduz a pretensão; b) que haja fundado receio que outrem cause lesão grave no mesmo direito, antes de proferida a decisão de mérito (ou porque a ação não está proposta ou porque ainda se encontra pendente); c) que a providência proposta seja adequada a remover o periculum in mora concretamente verificado e a assegurar a efetividade do direito ameaçado; d) que o prejuízo resultante da providência não exceda o dano que com ela se pretende evitar.
Tais requisitos traduzem-se no seguinte:
O primeiro encontra-se previsto no art.º 362º do CPC, cabendo, pois, ao (s) requerente (s) o ónus de provar a existência do direito que se diz ameaçado(s), sendo que não se exige a prova da certeza do direito, bastando um juízo de probabilidade séria desse direito, conforme resulta do nº 1 do art.º 368º do CPC.
O perigo da insatisfação do direito supõe que o seu titular se encontra perante simples ameaça de violação desse direito. Se a ameaça já se consumou então não há perigo, mas sim violação efetiva do direito. Em tal caso, a providência cautelar careceria de utilidade. Por isso no art.º 368º do diploma citado se refere “fundado receio”.
É necessário ainda que o perigo seja de uma lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito.
Com efeito, só lesões graves e dificilmente reparáveis têm a virtualidade de permitir ao Tribunal, mediante iniciativa do interessado a tomada de uma decisão que o coloque a coberto da previsível lesão.
O facto de o legislador ter ligado as duas expressões com a conjunção copulativa “e” deve levar-nos a refletir que não é apenas a gravidade das lesões previsíveis que justifica a tutela provisória, do mesmo modo que não basta a irreparabilidade absoluta ou difícil.
O legislador incumbiu o juiz da função de proceder à integração de tais abstrações normativas pelas diversas situações da vida real carecidas de tutela rápida e eficaz.
É o juiz quem, confrontado com a realidade projetada pelas partes nos procedimentos cautelares, está em melhores condições de ponderar a conexão entre a previsão normativa e a mesma realidade.
Devem, pois, ser ponderadas as condições económicas do requerente e da requerida e a maior ou menor capacidade de reconstituição da situação ou de ressarcimento dos prejuízos eventualmente causados.
Também se determina que o receio deve ser fundado, ou seja, apoiado em factos que permitam confirmar com objetividade e distanciamento a seriedade e atualidade da ameaça e a necessidade de serem adotadas medidas tendentes a evitar o prejuízo.
Não bastam dúvidas, conjeturas ou receios meramente subjetivos ...” (cf. neste sentido Abrantes Geraldes em Temas da Reforma do Processo Civil, III Vol. pp 83 e sgs).
O terceiro requisito é a adequação de providência para evitar o prejuízo, daí que a celeridade seja uma das características necessárias desta providência, a fim de ser adequada à conjuração do perigo.
O carácter subsidiário da providência resulta do art.º 362º nº 3 mencionado.
A regra do menor prejuízo do/a(s) requerente(s) acha-se consagrada no art.º 368º nº 2. Isto é a providência só deverá ser decretada quando o prejuízo do/a(s) requerente(s) não seja inferior ao do requerido.
Por último para o decretamento da providência exige-se a verificação cumulativa de todos aqueles requisitos, pelo que a falta de um deles determina o indeferimento da providência.”
Vejamos.
O primeiro requisito traduz-se na probabilidade da existência do direito ameaçado e aqui coloca-se a questão de saber qual é o direito ou direitos ameaçados pela requerente, tendo em conta os pedidos formulados que, necessariamente, condicionam os direitos a considerar.
De acordo com a matéria alegada e, portanto, carecida de ser demonstrada, terão sido violados direitos de personalidade da requerente e terá sido perturbado o direito desta ao uso e fruição do imóvel de que é proprietária e, mais especificamente, à parte do imóvel que habita (ou habitava), mas que esta continua a visitar todos os dias, aí permanecendo algum tempo.
Relativamente às alegadas violações dos direitos de personalidade da requerente pelos requerido, naturalmente que esta tem direito à sua proteção, quer civil, quer penal, tendo aliás alegado ter procedido à apresentação de duas queixas-crime.
Recorde-se que a requerente peticionou [1] o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o prédio descrito no artigo 1º, assim como do ... andar do prédio urbano, [2] a restituição da posse da requerente de todo o prédio urbano supra identificado no artigo 1º, bem como [3] a condenação dos requeridos na abstenção de adotarem qualquer tipo de conduta ou comportamento que impeça ou limite a posse da requerente sobre o referido prédio urbano.
Como refere Marco Carvalho Gonçalves in Providências Cautelares, 2016, a páginas 180 e segs., “o recurso à tutela cautelar implica, desde logo, que o requerente se arrogue titular de um direito e que este se encontre em risco de sofrer uma lesão grave e irreparável ou de difícil reparação. O mesmo é dizer que a tutela cautelar exige a verificação de indícios razoáveis quanto à “existência de direito ou interesse a tutelar”.
( … )
Em suma, não se exige uma prova da realidade jurídica, mas apenas manifestações externas; não se requer um direito certo, mas um direito aparente, um fumus bonis iuris.”
Importa, porém, que se tenha em consideração que, tendo sido requerida a inversão do contencioso, o caráter abreviado dos indícios exigíveis, para a generalidade das providências cautelares, não é compatível com as exigências probatórias, por força do disposto no artigo 369º nº 1 NCPC, que impõe a formação de uma convicção segura acerca da existência do direito acautelado, pelo que, se se concluir não estarem verificados os requisitos da inversão, a consequência é o indeferimento da mesma e a subsistência das exigências gerais características dos procedimentos cautelares.
E como refere Marco Carvalho Gonçalves, ibidem, página 203, “só as lesões graves e dificilmente reparáveis é que são suscetíveis de tutela em sede cautelar, já que, podendo as providências cautelares ser concedidas sem a audiência prévia do requerido, só uma lesão suficientemente forte e grave é passível de justificar a agressão da sua esfera jurídica sem o seu conhecimento. Na verdade, tratando-se de uma tutela cautelar decretada muitas vezes sem a audiência da parte contrária, não se poderia conceber que fosse qualquer lesão a justificar a ingerência na esfera jurídica do demandado, acaso lhe produzindo dano de que não pudesse ser ressarcido em caso de injustificado recurso à providência cautelar.
Os requisitos da gravidade e da dificuldade da reparação são cumulativos. Consequentemente, ficam afastadas da tutela cautelar as lesões que sejam facilmente reparáveis ou que, apesar de serem irreparáveis ou de difícil reparação, não revistam uma gravidade suficientemente forte que justifique o recurso à tutela cautelar.”
Quanto ao ponto [1] acima referido, não obstante não pareça existir obstáculo a que se reconheça o direito de propriedade da requerente ao prédio em questão, envolvendo, naturalmente o ... andar, a verdade é que no que se refere ao ponto [2] a pretensão dependerá da possibilidade legal de a requerente poder solicitar a devolução da coisa comodatada.
Conforme bem se refere na decisão recorrida, a factualidade alegada indicia a existência de um contrato de comodato entre as partes, sem convenção expressa de prazo, tendo por objeto o ... andar do prédio em questão, usado para habitação do filho, nora e netos da requerente, desde 2007, consentido por esta.
Vejamos.
Conforme se refere no Acórdão do STJ de 21/03/2019, no processo 2/16.5T8MGL.C1.S1, relatado pela Conselheira Maria do Rosário Morgado in www.dgsi.pt “Nos termos do art.º 1129º do Cód. Civil, "comodato é o contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com a obrigação de a restituir".
Trata-se de um contrato real (quoad constitutionem) que se aperfeiçoa apenas com a entrega da coisa, a fim de que a pessoa a quem o seu gozo é cedido se possa servir dela, e não sinalagmático, pois que não há correspectividade entre as obrigações dele emergentes para as partes contratualizantes, ou seja, o uso da coisa não beneficia de contraprestação.
Como se colhe da sua própria definição, é da natureza do contrato de comodato a obrigação de restituir a coisa.
A precariedade do uso facultado ao comodatário transparece, ainda, claramente, quer das obrigações específicas do comodatário, quer do regime estabelecido para a restituição da coisa (cf. arts. 1135º e 1137º, do CC). [Cf. Rodrigues Bastos, in Notas ao Código Civil, Vol. IV, Almedina, págs. 242-243; Antunes Varela, RLJ, ano 119º, nºs 3747 e 3748 e Menezes leitão, Direito das Obrigações, Vol. II, Contratos em Especial, 11ª edição, págs. 361 e ss.].
Efetivamente, dispõe-se no art. 1135º, al. h), do CC que o comodatário deve restituir a coisa ao comodante findo o contrato.
Por sua vez, quanto à restituição da coisa, estabelece-se no art.º 1137º, nº 1, do mesmo Código, que "se os contraentes não convencionaram prazo certo para a restituição da coisa, mas esta foi emprestada para uso determinado, o comodatário deve restituí-la ao comodante logo que o uso finde, independentemente de interpelação"; e acrescenta o nº 2 que "se não foi convencionado prazo para a restituição nem determinado o uso da coisa, o comodatário é obrigado a restituí-la logo que lhe seja exigida".
A propósito da duração do uso da coisa refere Rodrigues Bastos [Ob. cit., págs. 251-252] que “o uso da coisa, no comodato, deve durar por todo o tempo estabelecido no contrato. Discute-se se será admissível um comodato por mais de trinta anos, dado o que preceitua o art. 1025º (para a locação). Embora a lei não marque, para esta hipótese, um limite à duração do uso, a verdade é que tem de considerar-se a cedência sempre limitada a certo período de tempo, sob pena de desrespeitar a função social preenchida por este contrato, cuja causa é sempre uma gentileza ou favor, não conciliável com o uso muito prolongado do imóvel. Bastará para isso pensar que um comodato muito prolongado de um imóvel converter-se-ia em doação (indireta) do gozo da coisa, ou, se fosse para durar por toda a vida da outra parte, o comodato descaracterizar-se-ia em direito de uso e habitação“.
Em razão dessa nota de temporalidade, assumida como traço essencial do comodato, a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem entendido que o «uso determinado», a que se alude no art. 1137º, do CC, pressupõe uma delimitação da necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, não podendo considerar-se como determinado o uso de certa coisa se não se souber, quando aquele uso não vise a prática de atos concretos de execução isolada mas antes atos genéricos de execução continuada, por quanto tempo vai durar, caso em que se deve haver como concedido por tempo indeterminado. Assim, o uso só é determinado se o for também por tempo determinado ou, pelo menos, determinável. [Cf., neste sentido, entre muitos outros, os acórdãos do STJ de 13.5.2003, revista nº 1323/03, Relator: Silva Salazar; de 27.5.2008, revista nº 1071/08, Relator: Alberto Sobrinho; 31-03-2009; de 31.3.2009, revista nº 359/09, Relator: Pereira da Silva; de 16.11.2010, revista nº 7232/04.0TCLRS.L1.S1, Relator: Alves Velho, disponíveis in www.dgsi.pt]
Trata-se de orientação que também acolhemos, por se nos afigurar que, no quadro normativo vigente, não seria de aceitar um comodato que subsistisse indefinidamente, seja por falta de prazo, seja por ele ter sido associado a um uso genérico, de tal modo que o comodatário pudesse manter gratuitamente e sem limites o gozo da coisa.
Esta posição que sufragamos é, além disso, a nosso ver, a mais consentânea com o princípio geral emanado do art. 237º, do CC, segundo o qual, em caso de dúvida, nos contratos gratuitos deve prevalecer o sentido da declaração menos gravoso para o disponente.
Dir-se-á, finalmente, que, a vingar a tese dos (aí) recorrentes, o comodatário ficaria numa posição bem mais sólida e favorável do que se tivesse, por exemplo, celebrado um contrato de arrendamento (cf., quanto à duração do contrato de locação o art. 1025º, do CC), solução que, salvo o devido respeito, a ordem jurídica não poderia tolerar.”
Neste mesmo sentido, cfr, ainda, o Acórdão do STJ de 26/11/2020, no processo 3233/18.0T8FAR.E1.S1, relatado pela Conselheira Maria da Graça Trigo, in www.dgsi.pt.
Assim sendo resulta que não tendo sido convencionado prazo para a restituição nem determinado o uso da coisa, os comodatários são obrigados a restituí-la logo que lhe seja exigida, direito que assiste à requerente, sendo certo que sendo esta titular do direito de propriedade do imóvel, tal implicará [3] a condenação dos requeridos na abstenção de adotarem qualquer tipo de conduta ou comportamento que impeça ou limite a posse da requerente sobre o referido prédio urbano.
Resta apenas apreciar se se verificam os demais requisitos relativos à providência cautelar comum.
Resultando demonstrada a existência do direito, igualmente se encontra verificado o requisito do fundado receio da lesão grave antes de proferida a decisão provisória, uma vez que a resolução da questão se não compadece com a normal demora da tramitação do processo principal com a contínua lesão do direito da requerente e apelante, que não se mostra cessada e que é objetivamente grave face à natureza da lesão e as consequências da mesma para a requerente.
Do exposto resulta também a adequação da providência, para evitar o prejuízo, o que já resulta do exposto, na medida em que permite fazer cessar a continua violação do direito da apelante.
Confrontados os interesses em jogo, é manifesta a superioridade do prejuízo da requerente que, na prática, está continuamente impedida de habitar a sua casa, estando a esgotar-se a possibilidade de acolhimento provisório num quarto que, brevemente, terá de abandonar, sem dispor de condições para arranjar uma alternativa, pelo que também este requisito se mostra preenchido, importando recordar, novamente, que a matéria de facto a que se faz referência, se mostra apenas alegada e carece de demonstração.
Também se dirá que inexiste providência cautelar específica, que acautele a situação.
Por todo o exposto, sem necessidade de ulteriores considerações, resulta que a apelação terá de proceder e, em consequência, revogar-se a douta decisão, determinando o prosseguimentos dos autos com a produção de prova, oportunamente.
Face ao procedimento da pretensão, resulta que os apelados, que decaíram, terão de suportar as custas do processo (artigo 527º nº 1 e 2 NCPC), sem prejuízo do apoio judiciário.
*
III. DECISÃO

Em conformidade com o exposto, acorda-se em julgar a apelação procedente, revogando a douta decisão recorrida, determinando o prosseguimento dos autos com a produção de prova, oportunamente.
Custas pelos apelados.
Notifique.
Guimarães, 25/01/2024

Relator: António Figueiredo de Almeida
1ª Adjunta: Desembargadora Maria dos Anjos Nogueira
2ª Adjunta: Desembargadora Carla Sousa Oliveira