Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4073/10.0TBGMR-A.G1
Relator: ROSA TCHING
Descritores: EXONERAÇÃO
PASSIVO
RENDIMENTO
DEVEDOR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/03/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1º- A exclusão prevista no art. 239º, nº3, al. b) i) do CIRE, tem como critério de referência “ o razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor”.

2º- E, sobre o que se deve entender por “razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor”, adoptou o legislador, quanto ao limite máximo, um critério objectivamente quantificável – ou seja, o montante equivalente a três salários mínimos nacionais-, deixando ao Juiz a tarefa de, caso a caso e atentas as circunstâncias específicas de cada devedor, concretizar e quantificar o limite mínimo

3º- Daí considerar-se inadequado a escolha do salário mínimo nacional como critério-base de referência para a determinação do limite mínimo do que se deve entender por “o razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e seu agregado familiar”.

4º- Todavia, consabido que o salário mínimo nacional contém em si a ideia de que é a remuneração básica estritamente necessária indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador, nada impede que, em determinada situação concreta, o montante equivalente ao do salário mínimo nacional possa corresponder ao valor “razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor insolvente”.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
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SUMÁRIO:

1º- A exclusão prevista no art. 239º, nº3, al. b) i) do CIRE, tem como critério de referência “ o razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor”.

2º- E, sobre o que se deve entender por “razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor”, adoptou o legislador, quanto ao limite máximo, um critério objectivamente quantificável – ou seja, o montante equivalente a três salários mínimos nacionais-, deixando ao Juiz a tarefa de, caso a caso e atentas as circunstâncias específicas de cada devedor, concretizar e quantificar o limite mínimo

3º- Daí considerar-se inadequado a escolha do salário mínimo nacional como critério-base de referência para a determinação do limite mínimo do que se deve entender por “o razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e seu agregado familiar”.

4º- Todavia, consabido que o salário mínimo nacional contém em si a ideia de que é a remuneração básica estritamente necessária indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador, nada impede que, em determinada situação concreta, o montante equivalente ao do salário mínimo nacional possa corresponder ao valor “razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor insolvente”.
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Luísa... veio apresentar-se à insolvência e requerer a exoneração do passivo restante.

Decretada que foi a respectiva insolvência, por sentença datada de 18.11.2010, já transitada em julgado, elaborado o relatório a que alude o art. 155.º CIRE e realizada a competente assembleia de credores, a. Sra. Administradora da Insolvência pronunciou-se favoravelmente à pretensão da insolvente, tendo dois dos credores presentes deduzido oposição.

Foi, então, proferida decisão que, declarou que a exoneração requerida será concedida desde que durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência (período da cessão), o rendimento disponível que o insolvente venha a auferir se considere cedido ao fiduciário abaixo indicado, com exclusão do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e respectivo agregado familiar, com o limite máximo do triplo do salário mínimo nacional.
Durante o período de cessão fica a devedora obrigada a:
- Não ocultar ou dissimilar quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado;
- Exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto;
- Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos que exceda os €350;
- Informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respectiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego;
- Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores

Não se conformando com esta decisão, dela apelou a insolvente, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que se transcrevem:
1ª. O tribunal a quo decidiu admitir o pedido de exoneração do passivo restante, obrigando a insolvente a entregar ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos que excedam os € 350,00;
2ª.O valor fixado não tem qualquer sustentação no despacho recorrido;
3ª.A recorrente tem um vencimento médio mensal líquido de cerca de € 700,00 acrescido da pensão de sobrevivência do seu falecido marido no montante de € 148,00;
4ª.A recorrente tem despesas mensais na ordem dos € 573,00 (renda, água, luz, gás, medicamentos, alimentação e vestuário);
5ª.O tribunal a quo entendeu atribuir à insolvente a quantia de € 350,00 levando em consideração, nomeadamente, que a insolvente reside sozinha, sem ninguém a seu cargo e não ter demonstrado nos autos ter uma doença crónica que importava um custo mensal de € 70,00 (acta de assembleia de apreciação do relatório);
6ª.O tribunal a quo não levou em consideração as despesas mensais suportadas pela insolvente;
7ª.O rendimento que a recorrente aufere é absolutamente indispensável e necessário ao sustento minimamente digno desta, devendo ser integralmente excluído do rendimento susceptível de cessão, ou quando muito, ser reduzida a cessão do rendimento disponível a 1/3 dos rendimentos da recorrente, mas nunca inferior ao salário mínimo nacional;
8ª.A exclusão prevista na subalínea i), alínea b), do nº 3 do art. 239º do CIRE visa a salvaguarda das necessidades e exigências da subsistência e sustento do devedor insolvente e do seu agregado familiar;
9ª.Cumprindo-se assim a doutrina constitucional titulada pelo princípio da dignidade humana, inserto no princípio do Estado de direito, afirmado no art. 1º da CRP e aludido também no artigo 59º, nº 1, a) da CRP;
10ª.Fixando a lei processual civil um limite de impenhorabilidade do salário e outros rendimentos correspondente a 1/3 do seu valor, deve ser este, também, o limite mínimo a respeitar no conceito a que alude o art.º 239.º, n.º 3, aI. b), i) do CIRE;
11ª.Deve ser conjugado o art.º 239.º, n.º 3, aI. b), i) do CIRE, com o conceito de massa insolvente que vem definido legalmente no art.º 46.º, n.ºs 1 e 2, do mesmo diploma, na referência aos bens isentos de penhora, os quais só farão parte da massa insolvente se o devedor voluntariamente os apresentar e a impenhorabilidade não for absoluta;
12ª.E concatenando estes dois artigos do mesmo diploma legal, com a epígrafe do art.º 824.º do CPC, "Bens parcialmente penhoráveis" e o n.º 1 aI. b), deste normativo que estabelece "a contrario" que dispõe que apenas 1/3 das pensões de aposentação são penhoráveis, ficando os restantes 2/3 isentos de penhora, conclui-se que o legislador quis, expressamente, manter o regime de impenhorabilidade da lei processual civil, excluindo da massa este quantitativo;
13ª.Assim, o despacho recorrido violou, para além de outros, o disposto nos art.ºs 46º e 239º nº 3 do CIRE, 824º do CPC, artigo 1º, 59º nº 1, a), 62º nº 1 e 63º nº 1 e 3 da CRP.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir:

FUNDAMENTAÇÃO:

Como é sabido, o âmbito do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente – art. 660º, n.º2, 684º, n.º3 e 690º, n.º1, todos do C. P. Civil - , só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, ainda que outras, eventualmente, tenham sido suscitadas nas alegações propriamente ditas.

Assim, a única questão a decidir traduz-se em saber qual o limite mínimo da exclusão do rendimento disponível prevista no art. 239º, nº3, al. b) e subal. i) do C.I.R.E.

Conforme resulta do disposto no ponto 45 do Preâmbulo do DL nº 53/2004, de 18 de Março, o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, acolhendo o princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica.
Este benefício consagrado nos arts. 235º e seguintes do CIRE, segundo Carvalho Fernandes e João Labareda , traduz-se “na liberação definitiva do devedor quanto ao passivo que não seja integralmente pago no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento nas condições fixadas no incidente” e, no dizer de Catarina Serra , o seu objectivo final é permitir que, uma vez “aprendida a lição”, o devedor não fique inibido de começar de novo e de, eventualmente, retomar o exercício da sua actividade económica”.
A efectiva obtenção de tal benefício depende da observância dos requisitos e trâmites processuais estabelecidos nos arts. 236º a 238º do C.I.R.E., pressupondo, de harmonia com o disposto no art. 239º, nº2 do CIRE, que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de cinco anos - designado período da cessão - ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos.
Durante esse período, ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível a um fiduciário (entidade designada pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência), que, nos termos do art. 241º do CIRE, afectará os montantes recebidos ao pagamento das custas do processo de insolvência ainda em dívida, ao reembolso ao Cofre Geral dos Tribunais das remunerações e despesas do administrador da insolvência e do próprio fiduciário que por aquele tenham sido suportadas, ao pagamento da remuneração vencida do fiduciário e despesas efectuadas e, por fim, à distribuição do remanescente pelos credores no processo de insolvência.
No termo desse período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento, sem excepção das que não tenham sido reclamadas e verificadas ( cfr. art. 245º, nº1) .
Expostos, em traços gerais, o regime da exoneração do passivo, e porque para a resolução do presente recurso interessa averiguar qual o limite mínimo da exclusão do rendimento disponível prevista no art. 239º, nº3, al. b) e subal. i) do C.I.R.E., centraremos a nossa atenção na interpretação deste preceito legal.
Segundo este artigo “ Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor com exclusão do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional”.
Mas se da simples leitura deste artigo pode-se concluir, com relativa facilidade, ter o legislador adoptado um critério objectivo na determinação do que deve entender-se por sustento minimamente digno , estabelecendo como limite máximo, para a exclusão do rendimento disponível a ceder pelo insolvente ao fiduciário, o montante equivalente a três vezes o salário mínimo nacional, afigura-se-nos já mais difícil a tarefa de determinar o seu limite mínimo.
A este respeito, defende a insolvente/apelante que, visando tal exclusão, em respeito ao princípio da dignidade humana consagrado nos arts 1º e 59º, nº1, al. a) da CRP, a salvaguarda das necessidades e exigências de subsistência e sustento do devedor insolvente e do seu agregado familiar e fixando a lei processual civil (art. 824º, nsº1 e 2) um limite de impenhorabilidade do salário e outros rendimentos correspondente a 1/3 do seu valor, os quais de harmonia com o disposto no art. 46º, nº 2 do CIRE são também de considerar excluídos da massa insolvente, deve ser este o limite mínimo a respeitar, que, todavia, nunca poderá ser inferior ao salário mínimo nacional.
Cremos que só parcialmente assiste-lhe razão.
Senão vejamos.
É inquestionável que, quer o regime estabelecido no art. 824º, nsº 1 e 2 do C. P. Civil, quanto à impenhorabilidade de bens, na execução singular, quer o regime da exclusão do rendimento disponível a que alude o art. 239º, nº3, al. b) i) do CIRE, reportando-se à chamada função interna do património enquanto suporte de vida económica do seu titular e garantindo o direito a um mínimo de subsistência, traduzem ambos uma manifestação do princípio da dignidade humana consagrado no art. 1º da CRP e aludido também no art. 59º, nº1, al. a) do mesmo diploma.
Mas se é certo, no que respeita ao limite máximo do valor que se deve entender como sendo “ o razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor”, ter o legislador adoptado, num e noutro regime, um critério objectivamente quantificável – ou seja, o montante equivalente a três salários mínimos nacionais - , o mesmo não acontece quanto ao limite mínimo.
Assim, enquanto o citado art. 824º, nº2 estabelece como limite mínimo para a impenhorabilidade dos rendimentos do executado o salário mínimo nacional, o citado art. 239º, nº3, al. b) i) não indica qualquer limite mínimo, fazendo apenas referência ao referido conceito geral e abstracto – “o razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e seu agregado familiar” –, deixando ao Juiz a tarefa de, caso a caso e atentas as circunstâncias específicas de cada devedor, concretizar e quantificar esse mesmo conceito.
E bem se compreende que seja assim, pois que, conforme já se deixou dito, o traço característico da concessão do benefício da exoneração do passivo restante ao devedor insolvente radica na conciliação entre o ressarcimento dos credores e a garantia do mínimo necessário ao sustento digno do devedor e do seu agregado familiar.
Daí considerar-se inadequada a escolha do salário mínimo nacional como critério-base ou de referência para a determinação do limite mínimo do que se deve entender por “o razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e seu agregado familiar”.
Todavia, isso não significa que, em determinadas situações concretas, o montante equivalente ao do salário mínimo nacional não possa corresponder ao valor “razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor insolvente”, tal como julgamos dever acontecer no caso dos autos.
É que, para além do Tribunal a quo ter-se limitado a determinar a entrega da parte dos rendimentos da insolvente que exceda os €350 mensais, sem indicação de quaisquer factos ou fundamentos que permitam concluir ser esse valor suficiente para o sustento condigno da insolvente, o que nos é dado conhecer, através do relatório apresentado pela Srª Administradora da insolvência, junto a fls. 33 a 38 dos presentes autos, é tão só que “A insolvente aufere cerca de € 550,00 líquidos como auxiliar de acção médica no Centro Hospitalar do Alto Ave, recebendo, ainda, uma pensão no valor de 148,00€ por morte do marido”, que “Vive sozinha, em casa arrendada, pelo valor de 200,00 euros e não possui quaisquer outros bens ou rendimentos” e que “não possui viatura própria”.
Daí que, considerando a escassez de rendimentos da devedora insolvente ( no montante global de € 698,00) e o valor da renda mensal a pagar por esta e consabido que o salário mínimo nacional contém em si a ideia de que é a remuneração básica estritamente necessária indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador, entendemos que, no caso dos autos, deve ser fixado para o sustento digno da insolvente o montante mensal de € 485,00, correspondente ao valor do salário mínimo nacional ao tempo da prolação da decisão recorrida ( cfr. Dl nº 143/2010, de 31 de Dezembro), pelo que, em substituição do valor fixado na decisão recorrida, determina-se que a insolvente fica obrigada a entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos que exceda a quantia mensal de €485,00.

Procedem, por isso, nos termos referidos, as conclusões da insolvente/apelante.

DECISÃO:
Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação e, consequentemente, revogando-se, nesta parte, a decisão recorrida, determina-se que a insolvente fica obrigada a entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos que exceda a quantia mensal de €485,00.
Sem custas, por não serem devidas pela apelante.



Guimarães, 3 de Maio de 2011