Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
493/23.8T8ORM-A.E1
Relator: JOSÉ ANTÓNIO MOITA
Descritores: INVENTÁRIO
CABEÇA DE CASAL
HERDEIRO
Data do Acordão: 11/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Assiste razão à Apelante que requer o inventário em que alega expressamente no requerimento inicial pretender ser confirmada como cabeça de casal justificando viver há pelo menos um ano com os Inventariados à data dos respectivos óbitos, resultando tal, além do mais, fortemente indiciado por escritura de habilitação de herdeiros junta com o dito requerimento, por aplicação do disposto no n.º 3 do artigo 2080.º do Código Civil que estabelece um critério que prefere ao critério do herdeiro (filho) mais velho prevenido no n.º 4 desse mesmo artigo.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 493/23.8T8ORM-A.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Santarém
Juízo Local Cível de Ourém.
Apelante: (…)
Apelado: (…)
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Sumário do Acórdão
(Da exclusiva responsabilidade do relator – artigo 663.º, n.º 7, do CPC)
(…)
***
Acordam os Juízes na 1ª Secção do Tribunal da Relação de Évora no seguinte:
I – RELATÓRIO
Em 07/06/2023 (…) instaurou no Tribunal a quo acção especial de inventário através de requerimento inicial, cujo conteúdo se passa a transcrever:
“1.º
No dia 15 de fevereiro de 2006, na freguesia de (…), concelho de Ourém, faleceu (…), NIF (…), natural da mesma freguesia, onde teve a sua última residência habitual na Rua dos (…), n.º 57, (…), no estado de casada em primeiras núpcias de ambos e sob o regime de comunhão geral com (…) – conforme certidão que se junta como doc. 1.
2.º
A falecida não deixou testamento ou qualquer outra disposição de sua última vontade, tendo deixado como seus únicos herdeiros:
a) O cônjuge sobrevivo, (…), viúvo, abaixo melhor identificado;
b) Seus únicos filhos:
1) (…), NIF (…), à data da abertura da herança, casado sob o regime da comunhão geral com (…), natural da freguesia de (…), concelho de Ourém, residente na Rua do (…), n.º 2, (…), (…), Batalha – vide certidão de nascimento que se junta como doc. 2.
2) (…), NIF (…), casado sob o regime de comunhão de adquiridos com (…), natural da freguesia de (…), concelho de Ourém, onde residia na Rua dos (…), n.º 57, (…) – vide certidão de nascimento que se junta como doc. 3.
3) A requerente (…), NIF (…), solteira, maior, natural da freguesia de (…), concelho de Ourém, onde reside na Rua dos (…), n.º 57, (…) – vide certidão de nascimento que se junta como doc. 4.
3.º
No dia 24 de fevereiro de 2020, na freguesia de (…), concelho de Leiria, faleceu (…), NIF (…), natural da freguesia de (…), concelho de Ourém, onde teve a sua última residência habitual na Rua dos (…), n.º 57, (…), no estado de viúvo de (…) – vide doc. 1 junto e Assento de óbito que se junta como doc. 5.
4.º
O falecido deixou testamento lavrado no Cartório Notarial de (…), a cargo da Notária (…), no dia 08 de maio de 2014, a folhas 26, do livro n.º 2-T, no qual instituiu herdeiras da quota disponível de seus bens, em partes iguais:
a) A sua filha (…), acima identificada;
b) Suas netas:
1) (…), NIF (…), solteira, maior, natural da freguesia de (…), concelho de Ourém, onde reside na Rua dos (…), n.º 57, (…) – vide certidão civil online e comprovativo de pagamento que se juntam respetivamente como docs. 6 e 7;
2) (…), NIF (…), solteira, maior, natural da freguesia de (…), concelho de Ourém, onde reside na Rua dos (…), n.º 57, (…) – vide certidão civil online e comprovativo de pagamento que se juntam respetivamente como docs. 8 e 9;
3) (…), NIF (…), solteira, maior, natural da freguesia de (…), concelho de Ourém, onde reside na Rua dos (…), n.º 57, (…) – vide certidão civil online e comprovativo de pagamento que se juntam respetivamente como docs. 10 e 11.
E sucederam a (…), seus únicos herdeiros legitimários, seus únicos filhos, (…), divorciado, (…) e (…) – vide docs. 1, 2, 3 e 4, acima juntos.
6.º
Porém, no dia 2l de fevereiro de 2021, na freguesia de (…), concelho de Ourém, faleceu (…), no estado de casado sob o regime de comunhão de adquiridos com (…), natural da freguesia de (…), concelho de Ourém, onde residia na Rua dos (…), n.º 57, (…) – vide certidões civil online e respetivos comprovativos de pagamento que se juntam como docs. 12,13,14 e 15.
7.º
O falecido (…), não deixou testamento ou qualquer outra disposição de sua última vontade, tendo deixado como seus únicos herdeiros:
a) A sua referida mulher (…), atualmente dele viúva; e
b) As suas três filhas, (…), (…) e (…), acima melhor identificadas.
8.º
Assim, são atualmente herdeiros de (…) e de (…), os seus filhos:
a) (…);
b) (…);
c) (…);
d) (…);
e) (…);
E em representação do filho (…):
A sua mulher: (…), atualmente dele viúva; e as suas três filhas: (…), (…) e (…).
9.º
Para desempenhar as funções de Cabeça de Casal deverá ser nomeada a aqui Requerente, por ser a herdeira legal que vivia com os falecidos há pelo menos um ano à data das mortes, nos termos do disposto no artigo 2080.º, n.º 3, do Código Civil.
10.º
Para o efeito, e nos termos do artigo 1097.º, n.º 3, alínea e), do Código de Processo Civil, junta aos autos compromisso de honra do fiel exercício das funções do cargo de cabeça de casal.
11.º
E, em cumprimento do disposto na alínea c) do mesmo dispositivo, requer-se a junção aos autos da relação de bens devidamente assinada pela Requerente (Cabeça de Casal).
Termos em que, e pelos fundamentos acima expostos, se requer a V. Exa. a abertura do processo de inventário e partilha, com vista a fazer cessar a comunhão hereditária, por morte de (…) e de (…).
Valor do processo: € 5.000,01 (cinco mil euros e um cêntimo).”

Concluso o processo foi proferido em 21/06/2023 no Tribunal a quo despacho com o seguinte teor:
“Por se considerar regular, admite-se liminarmente o requerimento inicial apresentado pelo requerente.
Nos termos do artigo 1100.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil, na versão introduzida pela Lei n.º 117/2019, nomeio para o cargo de cabeça-de-casal da herança dos inventariados (…) e (…), o sr. (…), por ser o filho mais velho daqueles, conforme resulta das certidões dos assentos de nascimento juntas aos autos (cfr. artigo 2080.º, n.º 1, alínea c) e n.º 4, do Código Civil).
Notifique o requerente.
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Nos termos do artigo 1100.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, proceda à citação da cabeça de casal agora nomeada para o presente inventário.
Nos termos do artigo 1102.º do Código de Processo Civil, deverá advertir a cabeça de casal agora nomeada que, no prazo de 30 dias, deverá juntar aos autos requerimento em que confirme, corrija ou complete o requerimento inicial do inventário. Além disso, no mesmo prazo deverá juntar a relação de todos os bens que pertençam à herança dos inventariados e que hão-de figurar no inventário, e ainda dos créditos e das dívidas da herança. Deverá juntar ainda o compromisso de honra do fiel exercício das suas funções.
Caso a herança seja composta por bens imóveis deverá juntar certidões matriciais e de registo predial referentes aos mesmos”.
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Inconformada com o despacho, veio a Requerente (…) interpor em 10/07/2023 recurso de Apelação do mesmo para este Tribunal da Relação de Évora, alinhando as seguintes:
“CONCLUSÕES:
1) Conforme resulta de fls., no âmbito do presente processo de inventário, para partilha de bens da herança por morte de (…) e de (…), a Requerente apresentou requerimento de inventário, nos termos acima reproduzidos;
2) Por Despacho com a referência 936465348, decidiu o Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo: “Nos termos do artigo 1100.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil, na versão introduzida pela Lei n.º 117/2019, nomeio para o cargo de cabeça-de-casal dos inventariados (…) e (…), por ser o filho mais velho daqueles, conforme resulta das certidões dos assentos de nascimento juntas aos autos (cfr. artigo 2080.º, n.º 1, alínea c) e n.º 4, do Código Civil)”;
3) Salvo o devido respeito, a Requerente não concorda com a decisão acabada de reproduzir;
4) A decisão recorrida não está conforme a lei;
5) O artigo 2080.º do Código Civil dispõe sobre a matéria a quem incumbe o cargo de cabeça-de-casal para a administrar a herança, e que refere o seguinte: “1. O cargo de cabeça-de-casal defere-se pela ordem seguinte: a) Ao cônjuge sobrevivo, não separado judicialmente de pessoas e bens, se for herdeiro ou tiver meação nos bens do casal; b) Ao testamenteiro, salvo declaração do testador em contrário; c) Aos parentes que sejam herdeiros legais; d) Aos herdeiros testamentários. 2. De entre os parentes que sejam herdeiros legais, preferem os mais próximos em grau. 3. De entre os herdeiros legais do mesmo grau de parentesco, ou de entre os herdeiros testamentários, preferem os que viviam com o falecido há pelo menos um ano à data da morte. 4. Em igualdade de circunstâncias, prefere o herdeiro mais velho.”
6) O lugar do último domicílio de ambos os inventariados é na Rua dos (…), n.º 57, (…), freguesia de (…) e concelho de Ourém;
7) E a residência da Requerente era, é, e sempre foi, na Rua dos (…), n.º 57, (…), freguesia de (…) e concelho de Ourém – vide doc. 1, junto no requerimento (início do processo);
8) (…), à data da morte de ambos os inventariados, vivia na Rua do (…), n.º 2, (…), freguesia de (…), concelho da Batalha – vide doc. 1, junto no requerimento (início do processo);
9) A Requerente também é herdeira testamentária do inventariado (…);
10) Embora, tal não fosse alegado pela Requerente, tal resulta dos documentos juntos aos autos (cfr. testamento junto ao doc. 1 do requerimento inicial);
11) Também por aqui, por ser a Requerente simultaneamente a herdeira legal que vivia com os inventariados, há pelo menos um ano, à data da sua morte e herdeira testamentária, o cargo de cabeça-de-casal deveria ter sido deferido à Requerente;
12) Nos casos em que o processo destinado a fazer cessar a comunhão hereditária se inicia com o requerimento inicial apresentado pelo cabeça-de-casal, como é o presente, o requerimento é submetido a despacho liminar, para, além das demais previstas na lei, a finalidade de confirmação ou designação do cabeça de casal (cfr. artigos 1097.º, n.ºs 1 e 2 e 1100.º, n.º 1, alínea b), do CPC);
13) Cabia, assim, ao Meritíssimo Juiz confirmar e designar a Requerente como cabeça-de-casal, uma vez que, de acordo com o artigo 2080.º, n.º 1, alíneas c) e d) e n.º 3, do Código Civil, sendo ela, de entre os herdeiros legais, quem vivia com os inventariados há, pelo menos, um ano, à data da sua morte, e por ser também herdeira testamentária, conforme resulta da certidão de habilitações de herdeiros junta aos autos como doc. 1, é à Requerente quem incumbe o cargo de cabeça de casal, e não ao filho mais velho, conforme foi erradamente decidido;
14) A Requerente no requerimento inicial procedeu conforme dispõe o n.º 2 do 1097.º;
15) E conforme resulta do despacho, o requerimento inicial apresentado pela Requerente foi considerado regular;
16) Não se percebe, assim, por que razão o Meritíssimo Juiz não confirmou a Requerente como cabeça de casal nomeando antes e contra os citados normativos e contra o pedido da Requerente, Sérgio Silva dos Santos, para o cargo de cabeça-de-casal;
17) O Despacho recorrido é nulo, nulidade que ora se invoca com todos os efeitos legais;
18) Por violar designadamente o disposto nos referidos normativos legais, deve o Despacho ser revogado e substituído por outro que confirme e nomeie para o cargo de cabeça de casal a Requerente (…);
19) Nos termos do disposto no artigo 154.º, n.º 1, do CPC, “As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas”;
20) E nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, “É nula a sentença quando: (…)
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento; (…);
21) Neste caso em concreto, o Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo não fundamentou de facto e de direito a sua decisão;
22) E fez uma interpretação errada dos factos e consequente errada subsunção jurídica;
23) O Meritíssimo Juiz a quo, na decisão sob recurso, também não apreciou a totalidade das questões que devia apreciar, designadamente nomeando a Requerente como cabeça-de-casal, uma vez que esta questão lhe foi colocada;
24) A decisão recorrida viola, assim, o disposto nas alíneas b), c) e d) do artigo 615.º do Código do Processo Civil, uma vez que não fundamentou de facto e de direito a decisão, nem apreciou a totalidade das questões como o deveria ter feito, sendo por isso nula, nulidade que aqui ora se invoca, com todos os efeitos legais;
25) Pelo que se impõe a revogação do despacho recorrido.
Termos em que se requer a V. Exas., a revogação da sentença recorrida, com todos os efeitos legais daí decorrentes, fazendo-se a costumada JUSTIÇA”.
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Não foi apresentada no prazo disponível resposta ao recurso interposto.
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O recurso foi admitido na 1ª Instância como de apelação, com subida imediata, em separado dos autos principais e com efeito meramente devolutivo.
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O recurso é o próprio e foi correctamente admitido quanto ao modo de subida e efeito fixados.
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Correram Vistos, cumprindo de seguida reapreciar e decidir.
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II – QUESTÕES OBJECTO DO RECURSO
Nos termos do disposto no artigo 635.º, n.º 4, conjugado com o artigo 639.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil (doravante apenas CPC), o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recurso, salvo no que tange à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas ao caso e quando se trate de matérias de conhecimento oficioso que, no âmbito de recurso interposto pela parte vencida, possam ser decididas com base em elementos constantes do processo, pelo que no caso em apreço impõe-se apenas apreciar o seguinte:
1 - Nulidades da decisão;
2 - Saber se a Apelante deveria ter sido confirmada cabeça-de-casal no inventário instaurado, conforme o requereu, em lugar da pessoa que foi designada.
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III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A factualidade com interesse para a decisão do recurso decorre do teor do relatório da presente decisão singular.
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IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
1- Nulidades do despacho.
A Apelante atribui ao despacho recorrido três vícios que enquadra em outras tantas nulidades.
Todavia, como veremos já de seguida, não tem razão, pois as apontadas patologias não se verificam.
Diz-nos o artigo 615.º do CPC, que:
1- É nula a sentença quando:
[…]
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
Comecemos por abordar a nulidade prevista na alínea b).
Decorre do artigo 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa que:
As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.
Por seu turno, resulta do artigo 154.º do CPC, epigrafado “Dever de fundamentar a decisão”, o seguinte:
1- As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas.
2- A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade”.
Acrescente-se que por força da previsão do n.º 3 do artigo 613.º do aludido CPC dúvidas não subsistem de que o normativo constante do mencionado artigo 615.º, n.º 1, b), (o mesmo sucedendo relativamente às restantes alíneas), se aplica, também, a outras decisões, incluindo despachos, sem prejuízo do previsto no já mencionado n.º 2 do artigo 154.º do CPC.
Ora, se é certo que a consequência do vicio da falta de especificação dos fundamentos de facto e/ou de direito alicerçantes da decisão é a nulidade, não é menos certo que alinhamos com a doutrina e jurisprudência dominantes que consideram que apenas a falta absoluta de motivação e não a motivação meramente deficiente, incompleta, ou não convincente, conduz àquela nulidade.
Lembrando a lição do Prof. Alberto dos Reis (“Código de Processo Civil Anotado”, Vol. V, pág. 140), só a falta absoluta de motivação constitui nulidade, sendo que a insuficiência ou a mediocridade da motivação afecta o valor doutrinal da sentença, mas não produz nulidade.
Por seu turno, em douto Parecer (Col. Jur., 1995, 1º-7), o Prof. Calvão da Silva defendeu que na sentença, o tribunal tem de indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, sob pena de se verificar falta de fundamentação de direito.
Na jurisprudência podemos destacar, a este respeito, entre outros, os acórdãos do STJ de 05/05/2005 (Proc. 05B839); de 21/12/2005 (Proc. 05B2287); de 18/05/2006 (Proc. 06B1441); de 19/12/2006 (Proc. 06B3791); de 10/04/2008 (Proc. 08B396) e de 06/07/2017 (Proc. 121/11.4TVLSB.L1.S1), todos acessíveis para consulta in www.dgsi.pt., reportando-se os indicados, à excepção do último, ao artigo 668.º, n.º 1, alínea b), do CPC, anterior ao NCPC, cuja redacção, todavia, é idêntica à do actual artigo 615.º, n.º 1, alínea b).
Revertendo ao caso concreto, verificamos que a Apelante entende que o Tribunal a quo “não fundamentou de facto e de direito a sua decisão”.
Porém, se atentarmos no segmento decisório objecto do presente recurso, deparamos com o seguinte:
Nos termos do artigo 1100.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil, na versão introduzida pela Lei n.º 117/2019, nomeio para o cargo de cabeça-de-casal da herança dos inventariados (…) e (…), o sr. (…), por ser o filho mais velho daqueles (realce a itálico nosso).
Percebemos com mediana facilidade que foi indicada a fundamentação fáctica (“por ser o filho mais velho”) e jurídica (“artigo 1100.º, n.º 1, alínea b)”, do CPC).
Se tal fundamentação é a correcta e/ou suficiente é matéria que se integra já no âmbito do eventual erro in judicando.
Certo é, porém, que de acordo, aliás, com a posição doutrinária e jurisprudencial acima explanada não é caso para considerar como verificada a nulidade prevista na alínea b), que assim se considera improcedente.
Relativamente à nulidade definida na alínea c), diz-nos António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa (in “Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, artigos 1.º a 702.º”, 2ª edição atualizada, Almedina, 2020), em anotação ao referido artigo 615.º, o seguinte:
“A nulidade a que se reporta a 1ª parte da alínea c) ocorre quando existe incompatibilidade entre os fundamentos e a decisão, ou seja, em que a fundamentação aponta num sentido que contradiz o resultado final. Situação que sendo violadora do chamado silogismo judiciário, em que as premissas devem condizer com a conclusão, também não se confunde com um eventual erro de julgamento, que se verifica quando o juiz decide contrariamente aos factos apurados ou contra norma jurídica que lhe impõe uma solução jurídica diferente” (cfr. pág. 763).
A este respeito decidiu-se no acórdão proferido no STJ em 14/06/2011 no Processo 214/10.5YRLSB.S1 (acessível para consulta in “Sumários”, 2011, pág. 501), o seguinte:
“A nulidade por oposição entre os fundamentos e a decisão, na acepção da existência de uma contradição real entre os fundamentos e a respectiva parte dispositiva, acontece quando os fundamentos referidos pelo juiz conduziriam, necessariamente, a uma decisão de sentido oposto ou, pelo menos, de sentido diferente, mas não já quando se verifica uma errada subsunção dos factos à norma jurídica aplicável, nem, tão pouco, quando se verifica uma errada interpretação da mesma, situações essas que configuram antes um erro de julgamento”.
Na mesma linha de orientação (adoptada, aliás, pacificamente noutros arestos do mesmo Tribunal) surge o acórdão proferido pelo STJ de 03/02/2011 no Processo n.º 1045/04.7TBALQ.L1.S1 (acessível para consulta in www.dgsi.pt), quando refere que:
“A nulidade por contradição entre a fundamentação e a decisão supõe um vício intrínseco à sua própria lógica, traduzido em a fundamentação em que se apoia não poder suportar o sentido da decisão que vem a ser proferida”.
Baixando de novo ao caso concreto percebemos que a Apelante se limita, no tocante à verificação deste suposto vício, a concluir que o Tribunal a quo terá feito uma “interpretação errada dos factos e consequente errada subsunção jurídica”.
Sucede, porém, que ainda que assim tenha sido, o que veremos infra, essa eventual errada interpretação não é passível de integrar, conforme já constatámos pelo excurso doutrinário e jurisprudencial acima exposto, a nulidade prevenida na alínea c), mas antes um erro de julgamento, considerando-se, em consequência, improcedente a verificação de tal nulidade.
Já no tocante à nulidade prevista na alínea d) do n.º 1 do identificado artigo 615.º do CPC, concretamente a chamada “omissão de pronúncia” a que alude a primeira parte da dita alínea, diz-nos António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa, em anotação ao mencionado artigo (in obra acima citada, pág. 764), que a omissão de pronúncia afere-se “seja quanto às questões suscitadas, seja quanto à apreciação de alguma pretensão”.
E acrescentam ainda que “[…] o dever de decidir tem por referência as questões suscitadas e bem assim as questões de conhecimento oficioso”, não obrigando, todavia,“[…] a que se incida sobre todos os argumentos , pois que estes não se confundem com «questões» […]”.
Neste sentido saliente-se, entre vários outros, os acórdãos do STJ de 27/03/2014, proferido no Proc. 555/2002 e de 08/02/2011, proferido no proc. n.º 842/04TBTMR.C1.S1 (ambos acessíveis para consulta in www.dgsi.pt).
Neste último aresto de 08/02/2011 decidiu-se, de forma bastante clara, o seguinte:
“Não há que confundir as questões colocadas pelas partes com os argumentos ou razões que estas esgrimem em ordem à decisão dessas questões em determinado sentido: as questões submetidas à apreciação do tribunal identificam-se com os pedidos formulados, com a causa de pedir ou com as excepções invocadas, desde que não prejudicadas pela solução de mérito encontrada para o litígio. Coisa diferente são os argumentos, as razões jurídicas alegadas pelas partes em defesa dos seus pontos de vista, que não constituem questões…”.
E acrescenta-se ainda no dito acórdão que “Se na apreciação de qualquer questão submetida ao conhecimento do julgador este não se pronuncia sobre algum ou alguns dos argumentos invocados pelas partes, tal omissão não constitui qualquer nulidade da decisão por falta de pronúncia”.
Correlacionado ainda com a questão ora em tratamento diz-nos o artigo 608.º, n.º 2, do CPC, que:
O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras […]”.
Voltando mais uma vez ao caso concreto, verificamos que a Apelante entende, a propósito da nulidade ora em apreciação, que “O Mmo. Juiz a quo na decisão sob recurso, também não apreciou a totalidade das questões que devia apreciar, designadamente nomeando a Requerente como cabeça-de-casal, uma vez que esta questão lhe foi colocada”.
Ora, salvo o devido respeito por opinião diversa, percebe-se, sem dificuldade, do despacho recorrido que o Tribunal a quo não nomeou a Apelante como cabeça-de-casal, porque nomeou outra pessoa, justificando que o fazia por ser o filho mais velho dos Inventariados.
Não houve, assim, qualquer omissão de pronúncia relativamente à questão sobre a qual havia que decidir, a saber a da designação do cabeça-de-casal.
Por conseguinte, improcedem ainda as conclusões recursivas também quanto à invocada nulidade prevista na alínea d).

2- Saber se a Apelante deveria ter sido nomeada cabeça-de-casal no inventário instaurado.
Impõe-se de seguida aferir do mérito da designação como cabeça de casal feita no despacho recorrido.
No aludido despacho o Tribunal a quo designou cabeça-de-casal o herdeiro (…) por ser o filho mais velho do casal de Inventariados (…) e (…).
A Apelante (…) entende que a decisão padece de um erro, considerando que o cargo de cabeça de casal lhe deveria ter sido deferido.
Vejamos de que lado está a razão.
Estatui o artigo 1100.º do CPC, o seguinte:
1. O requerimento é submetido a despacho liminar para, além das demais previstas na lei, as seguintes finalidades:
[…]
b) Confirmação ou designação do cabeça de casal”.
Já do artigo 2080.º do Código Civil (doravante apenas CC), epigrafado “A quem incumbe o cargo”, resulta que:
1. O cargo de cabeça de casal defere-se pela ordem seguinte:
a) Ao cônjuge sobrevivo, não separado judicialmente de pessoas e bens, se for herdeiro ou tiver meação nos bens do casal.
b) Ao testamenteiro, salvo declaração do testador em contrário;
c) Aos parentes que sejam herdeiros legais;
d) Aos herdeiros testamentários.
2. De entre os parentes que sejam herdeiros legais, preferem os mais próximos em grau.
3. De entre os herdeiros legais do mesmo grau de parentesco, ou de entre os herdeiros testamentários preferem os que viviam com o falecido há pelo menos um ano à data da morte.
4. Em igualdade de circunstâncias, prefere o herdeiro mais velho”.
De acordo com o previsto no artigo 2132.º do CC resulta que:
São herdeiros legítimos o cônjuge, os parentes e o Estado, pela ordem e segundo as regras constantes do presente título”.
Por seu turno, estatui o artigo 2133.º do mesmo CC que:
1. “A ordem por que são chamados os herdeiros, sem prejuízo do disposto no título da adoção, é a seguinte:
a) Cônjuge e descendentes;
b) Cônjuge e ascendentes;
c) Irmãos e seus descendentes;
d) Outros colaterais até ao quarto grau;
e) Estado.
[…]
Prevendo o artigo 2134.º do referido diploma legal que:
Os herdeiros de cada uma das classes de sucessíveis preferem aos das classes imediatas”.
E prevenindo ainda o artigo 2157.º, sempre do CC, que:
São herdeiros legitimários o cônjuge, os descendentes e os ascendentes, pela ordem e segundo as regras estabelecidas para a sucessão legítima”.
Ora, perante o que foi alegado no requerimento inicial do presente processo especial de inventário e decorre dos documentos anexos ao mesmo percebemos, confrontando com as normas acabadas de mencionar supra, que a Requerente e a pessoa que foi designada pelo Tribunal a quo como cabeça de casal são ambos herdeiros legítimos e legitimários dos Inventariados, integrando a mesma classe de sucessíveis (descendentes) e no mesmo grau (filhos).
Por conseguinte, a escolha sobre quem deverá assumir as funções de cabeça de casal no caso vertente resultará dos critérios prevenidos nos nºs 3 e 4 do acima transcrito artigo 2080.º do CC, sendo certo que da letra de ambos os preceitos decorre que a previsão do n.º 3 prevalecerá sobre a do n.º 4, visto que a redacção deste último começa com a expressão “Em igualdade de circunstâncias….”, reportando-se nesta parte inequivocamente ao estabelecido no número anterior (n.º 3).
Em conformidade com o acabado de expor, no caso de dois filhos de Inventariado(s), se um deles residia com este(s) último(s) há pelo menos um ano contado da data do decesso, ainda que não seja o herdeiro mais velho deve ser-lhe deferida a qualidade de cabeça de casal.
E bastará apenas que no requerimento inicial justifique essa qualidade.
Com efeito, resulta do artigo 1097.º do CPC que:
[…]
2. O requerimento inicial apresentado pelo cabeça de casal deve:
[…]
a) Justificar a qualidade de cabeça de casal”.
Afigura-se, assim, desnecessária a apresentação de meio probatório apto a comprovar essa vivência em comum com o falecido há pelo menos um ano à data do decesso, até porque na sequência da respectiva citação para o inventário os interessados directos na partilha poderão, além do mais, “impugnar a competência do cabeça de casal ou as indicações constantes das suas declarações” (cfr. artigo 1104.º, n.º 1, c), do CPC).
Dito isto, considerando os endereços correspondentes às respectivas residências / domicílios fornecidos pela Apelante no requerimento inicial do processo de inventário atinentes a si mesma, aos Inventariados (...) e (…), bem como ao herdeiro designado como cabeça de casal no despacho censurado, … (cfr. intróito e artigos 1.º a 3.º do requerimento inicial), elementos esses que surgem confirmados na totalidade pela escritura de habilitação de herdeiros junta pela Apelante com o aludido requerimento inicial, a que acresce o que esta última alegou expressamente no artigo 9.º do dito requerimento inicial, temos de convir que assiste razão à Apelante uma vez que vivendo a mesma há pelo menos um ano com os Inventariados à data dos respectivos óbitos (o que como vimos até já resulta fortemente indiciado nos autos), deveria ter sido, como requereu, confirmada como cabeça de casal por aplicação do disposto no n.º 3 do artigo 2080.º do CC que estabelece um critério que se sobrepõe/prefere ao critério do herdeiro (filho), mais velho prevenido no n.º 4 desse mesmo artigo e que foi o considerado no despacho recorrido pelo Tribunal a quo.
Procedem, assim, as conclusões recursivas, o que implicará a revogação do despacho recorrido.
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V – DECISÃO
Termos em que, face a todo o exposto, acorda-se em conceder provimento ao recurso de Apelação interposto pela Apelante (…) e, consequentemente, decidir:
1- Revogar o despacho recorrido substituindo-se por outro com o seguinte teor:
“Nos termos do disposto no artigo 1100.º, n.º 1, b), do CPC e artigo 2080.º, n.ºs 1, c), 2 e 3, do CC, defere-se o cargo de cabeça de casal à Requerente do presente inventário, (…), por ser a herdeira (filha), dos Inventariados que com eles residia há pelo menos um ano à data da respectiva morte”;
2- Não fixar custas a cargo do cabeça de casal designado no despacho recorrido uma vez que o mesmo em nada concorreu para o presente recurso, ao qual, aliás, nem sequer respondeu (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, a contrario, do CPC).
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Notifique-se.
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Évora, 07/11/2023
José António Moita (Relator)
Albertina Pedroso (1ª Adjunta)
Elisabete Valente (2ª Adjunta)