Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
357/21.0T8BJA.E1
Relator: PAULA DO PAÇO
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
DESCARACTERIZAÇÃO DO ACIDENTE
VIOLAÇÃO DAS REGRAS DE SEGURANÇA NO TRABALHO
Data do Acordão: 10/26/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I - A descaracterização do acidente prevista na segunda parte da alínea a) do n.º 1 do artigo 14.º da LAT exige a verificação cumulativa dos seguintes requisitos: (i) existência de condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei; (ii) ato ou omissão do sinistrado que importe a violação dessas condições de segurança; (iii) inexistência de causa justificativa para tal violação; (iv) nexo causal entre o ato ou omissão do sinistrado e o acidente.
II - A prova dos factos integrantes da descaracterização, enquanto impeditivos do direito à reparação, recai sobre quem a invoca, em conformidade com a regra consagrada no n.º 2 do artigo 342.º do Código Civil.
III - Não sendo possível, com arrimo nos factos assentes, deduzir que ficou demonstrado que o sinistrado violou condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei, mostra-se inviabilizada a descaracterização do acidente com fundamento na alínea a) do n.º 1 do artigo 14.º da LAT.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora

I. Relatório
Na ausência de acordo na fase conciliatória dos presentes autos de acidente de trabalho, veio AA apresentar petição inicial contra Fidelidade Companhia de Seguros, S.A., Generali Companhia de Seguros SPA, Teixeira Duarte – Engenharia e Construções, S.A. e Somincor – Sociedade Mineira de Neves Corvo, S.A., pedindo que a ação seja julgada procedente, e , em consequência, seja declarado que foi vítima de um acidente de trabalho causado por inobservância de regras sobre segurança e saúde no trabalho por parte da 3ª e 4ª Rés e, por via disso, serem as seguradoras, a Ré empregadora e a 4ª Ré condenadas, na medida da responsabilidade infortunística de cada uma delas, a pagar ao Autor:
a) Uma pensão anual, vitalícia e atualizável, nos termos dos artigos 18.º, n.º 4, alínea b) e 48.º, n.º 3, alínea b) da LAT, com início no dia seguinte ao da alta definitiva, no valor de 15.766,38€;
b) Subsídio de elevada incapacidade, nos termos do disposto no artigo 67.º, n.º 3, da LAT, no valor de 4.696,07€;
c) O valor de 1.656,52€ a título de quantia remanescente ainda não paga referente à indemnização por incapacidades temporárias nos termos do artigo 18.º, n.º 4, alínea c) da LAT;
d) O valor de 25,00€ por cada deslocação, referente a despesas de transportes, sendo atualmente devido o montante de 50,00€;
e) Danos patrimoniais (dano biológico) - 200.000,00€
f) Danos patrimoniais (dano patrimonial futuro) 250.000,00€
ou em alternativa;
Na hipótese de julgar-se inexistir omissão de observância de regras de segurança e saúde no trabalho por parte das 3º R empregadora, deverão as Rés seguradoras serem condenadas a pagar ao Autor:
a) Uma pensão anual, vitalícia e atualizável com início no dia seguinte ao da alta definitiva no valor de 11.159,14€ parcialmente remível;
b) Subsídio de elevada incapacidade nos termos do disposto no artigo 67.º, n.º 3 da LAT no valor de 4.696,07€;
c) O valor de 1.656.52€ a título de quantia remanescente ainda não paga referente à indemnização por incapacidades temporárias;
d) O valor de 25,00€ por cada deslocação referente a despesas de transporte, atualmente no valor de 50,00€;
e) E ainda as demais quantias indicadas no pedido principal.
Em qualquer dos casos serem condenadas as Rés a pagar juros de mora à taxa legal sobre todas as peticionadas quantias, contados desde a data dos respetivos vencimentos – artigo 135º do C.P.T.
A ação seguiu a tramitação que resulta dos autos e, após a realização da audiência final, foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:
«Por tudo o exposto, o Tribunal decide julgar parcialmente procedente a ação e, consequentemente:
A. Absolver a ré TEIXEIRA-DUARTE-ENGENHARIA E CONSTRUÇÕES, S.A. dos pedidos formulados pelo autor e pelo ISS-IP, Centro Distrital de Beja;
B. Fixar ao autor AA uma incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual com capacidade residual de 36,9151%, desde a data da alta (08.05.2021) e, consequentemente, condenar as rés FIDELIDADE COMPANHIA DE SEGUROS S.A., e GENERALI, COMPANHIA DE SEGUROS SPA a pagar ao sinistrado:
a. uma pensão anual, vitalícia e atualizável no valor de € 11.290,21 (onze mil, duzentos e noventa euros e vinte e um cêntimos), sendo a responsabilidade da ré Fidelidade de 70% e a da ré Generali de 30% do aludido valor, devida desde o dia seguinte à data da alta, ou seja, 09.05.2021, acrescida dos juros de mora à taxa legal civil desde o referido dia até efetivo e integral pagamento;
b. subsídio de elevada incapacidade permanente, no valor de € 4.696,07 (quatro mil, seiscentos e noventa e seis euros e sete cêntimos), sendo a responsabilidade da ré Fidelidade de 70% e a da ré Generali de 30% do aludido valor, devido desde o dia seguinte à data da alta, acrescido dos juros de mora à taxa legal civil desde o referido dia até efetivo e integral pagamento;
c. indemnização por incapacidades temporárias para o trabalho no valor global de €15.464,68 (quinze mil quatrocentos e sessenta e quatro euros e sessenta e oito cêntimos), sendo a responsabilidade da ré Fidelidade de 70% e a da ré Generali de 30% do aludido valor, descontados os valores que as seguradoras vierem a demonstrar ter pago ao sinistrado a tal título e as quantias que por via da presente sentença as seguradoras deverão pagar à Segurança Social, acrescidos dos juros de mora à taxa civil, vendidos desde a data da presente sentença até efetivo e integral pagamento.
d. o valor global de € 100,00 (cem euros) a título de despesas com deslocações do sinistrado a diligências obrigatórias no âmbito dos presentes autos (em número de quatro até à data), sendo a responsabilidade da ré Fidelidade de 70% e a da ré Generali de 30% do aludido valor, acrescidos dos juros de mora à taxa civil vencidos desde a data da tentativa de conciliação - quanto às despesas ocorridas na fase conciliatória - e desde a data da presente sentença, quanto ao valor remanescente (despesas com deslocações obrigatórias a Julgamento), até efetivo e integral pagamento.
C. Condenar as rés FIDELIDADE COMPANHIA DE SEGUROS S.A., e GENERALI, COMPANHIA DE SEGUROS SPA a pagar ao ISS-IP – Centro Distrital de Beja, o valor de € 378,24 (trezentos e setenta e oito euros e vinte e quatro cêntimos), sendo a responsabilidade da ré Fidelidade de 70% e a da ré Generali de 30% do aludido valor, acrescidas de juros de mora à taxa legal a contar da data da notificação do pedido até efetivo e integral pagamento, a título de reembolso pelas quantias pagas por este Instituto ao sinistrado referente a subsidio de doença no período de 17.03.2020 a 01.04.2020.
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Valor da causa: €217.135,51 (duzentos e dezassete mil, cento e trinta e cinco euros e cinquenta e um cêntimos) – artigo 120º do Código de Processo do Trabalho.
Custas a cargo das rés seguradoras– cfr. artigo 527º do Código de Processo Civil.
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Registe e notifique.».
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Inconformadas, vieram as seguradoras, em conjunto, interpor recurso da sentença, rematando as suas alegações com as conclusões que, seguidamente, se transcrevem:
«a) Perante os factos 15, 16, 58, 60, 61, 65, 66 e 67 integrantes da factualidade dada como provada, não compreendem as Recorrentes de que forma pôde o Tribunal a quo concluir pela não violação de regras de segurança por parte do Recorrido.
b) Desconsiderando os procedimentos de substituição do motor, vertidos no procedimento n.º 01, de Outubro de 2011, do Departamento de Manutenção da Mina da “Somincor – Sociedade Mineira de Neves-Corvo, S.A.”, assim como a ficha «Análise de Perigos Pré Tarefa (APPT)».
c) Isto porque, perante a remoção de um dos três cavaletes metálicos (preguiças) que suportavam o motor, impunha-se ao Recorrido a suspensão do motor, com recurso à ponte rolante, ao invés de se socorrer de um calço e barrote, que não conferiram a estabilidade necessária à execução da tarefa, conduzindo ao resvale e queda do motor sobre a sua mão direita.
d) Situação que se teria evitado se o Recorrido tivesse efetuado uma avaliação da estabilidade do motor, previamente à execução da tarefa, assim como refletido sobre a tarefa em mãos, com vista a realizá-la em segurança, eliminando todos os perigos.
e) Aliás, pela Testemunha BB foi expressamente referido que era obrigatório os trabalhadores zelarem pela segurança na execução de qualquer tarefa, enquanto pelas Testemunhas CC e DD foi transmitido que, do seu ponto de vista, o erro na execução da tarefa partiu do Recorrido, ao não se socorrer da ponte rolante na execução daquela tarefa em específico.
f) Assim, cremos ser notório que o Recorrido adotou uma conduta irrefletida e contrária às regras impostas em documentação interna, levando a cabo uma desadequada operação, porquanto não estabilizou adequadamente o motor, nem manteve o sistema de elevação como medida de proteção apta a evitar o sucedido.
g) Sendo que estava amplamente capacitado para proceder a tal avaliação, uma vez que recebeu formação, além de que nunca ter manifestado qualquer dúvida ou reserva quanto à tarefa destinada.
h) Termos em que, consideram as Recorrentes que devia o Tribunal a quo ter concluído pela descaracterização do acidente de trabalho, nos termos previstos no artigo 14.º, n.º 1, al. a), da Lei n.º 98/2009, de 04.09, até porque, pese embora alegada pela 3.ª Ré, resultou manifestamente da prova produzida em sede de Audiência de Discussão e Julgamento.
i) Em virtude da omissão do Recorrido, nomeadamente de adoção de uma medida alternativa adequada, que conduziu à violação, sem causa justificativa, das regras de segurança estabelecidas, sendo que dispunha de instrução e, bem assim, tinha acesso a informação, pelo que o seu comportamento deve ser havido como uma causa de exclusão de responsabilidade.
j) Até porque, o Tribunal a quo entendeu ter resultado demonstrado que, se o Recorrido tivesse usado a ponte rolante para suspender o motor na operação levada a cabo, este não teria resvalado e, consequentemente, caído e atingido a sua mão direita (Cfr. Facto 67 integrante da factualidade dada como provada), pelo que não se compreende o desfecho desta ação.
Nestes termos, e nos que V. Exas. muito doutamente suprirão,
Deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença recorrida, com as legais consequências, concluindo-se pela descaracterização do acidente de trabalho, nos termos previstos no artigo 14.º, n.º 1, al. a), da Lei n.º 98/2009, de 04.09.».
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Contra-alegou o Autor, pugnando pela improcedência do recurso.
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A 1.ª instância admitiu o recurso, com subida imediata, nos próprios autos, atribuindo-lhe efeito meramente devolutivo.
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O processo subiu à Relação e foi dado cumprimento ao disposto no n.º 3 do artigo 87.º do Código de Processo do Trabalho.
A Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, favorável à manutenção da decisão recorrida.
Não foi oferecida resposta.
O recurso foi mantido e foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
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II. Objeto do Recurso
É consabido que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, com a ressalva da matéria de conhecimento oficioso (artigos 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do Código de Processo Civil, aplicáveis por remissão do artigo 87.º n.º 1 do Código de Processo do Trabalho).
Em função destas premissas, a única questão que importa dirimir e resolver é a de saber se o acidente que vitimou o Autor deve ser descaracterizado.
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III. Matéria de Facto
A 1.ª instância julgou a seguinte factualidade provada:
1) O Autor celebrou contrato de trabalho a termo incerto desde 01/02/2017 com a 3ª Ré detendo a categoria profissional de serralheiro mecânico de 2ª.
2) A 3ª Ré celebrou com as 1ª e 2ª Rés um contrato de seguro, titulado pela apólice ...25 para transferência da responsabilidade civil emergente de acidentes laborais dos trabalhadores, na modalidade de co-seguro, em que a Ré Fidelidade assumiu a responsabilidade de 70% e a Ré Generali 30%, por reporte à retribuição declarada à data do acidente de: 865,00€×14 - referente a salários; 8,51€×242 - referente a subsídio de alimentação; 216,25€×14 - referente a subsídios de turno; 1156,25€×1 - referente a viagens diárias; 1322,00€×1 - referente a trabalho suplementar.
3) No dia 17.03.2020, pelas 8:45, nas instalações da Somincor – Sociedade Mineira de Neves Corvo, S.A. sita nas Oficinas Centrais da Mina Neves Corvo, Santa Bárbara de Padrões, concelho de Castro Verde, decorriam trabalhos de substituição do motor da Pá Carregadora PC-65 pelo motor da Dumper de Carregamento DC-21(fora de produção).
4) Na sequência dos aludidos trabalhos o autor sofreu amputação dos dedos indicador e médio da mão direita e múltiplas fraturas nas falanges dos outros dedos.
5) O autor, nascido em .../.../1996, à data do acidente tinha 23 anos de idade e era destro.
6) O autor sofreu de incapacidade temporária absoluta para o trabalho até 23.04.2021 e incapacidade temporária parcial de 40% de 24.04.2021 a 07.05.2021.
7) A Ré empregadora nada pagou ao autor relativamente a incapacidades temporárias.
8) Em resultado do acidente o autor padece de incapacidade absoluta para o trabalho habitual, com incapacidade residual de 36,9151%.
9) A 23 de julho de 2021 o autor foi submetido a perícia médica do GML no âmbito da fase conciliatória dos presentes autos.
10) Procedeu-se a Tentativa de Conciliação no dia 28.03.2022, à qual compareceu o sinistrado, com os resultados que da mesma constam, tendo a seguradora declarado reconhecer-se devedora ao sinistrado do valor de € 25,00 por cada deslocação do sinistrado ao Tribunal e ao GML.
11) No dia 17.03.2020, o A. a trabalhar nas Oficinas Centrais da Mina Neves Corvo, procedia à troca de apoios dos motores para que os mesmos pudessem ser aplicados nos respetivos equipamentos, tendo já colocado um dos apoios no motor da PC-65 e apertado os parafusos do mesmo com o pneumático.
12) Quando estava a apertar os parafusos manualmente com uma chave de força, o motor resvalou e caiu, atingindo o Autor na mão direita, com o que produziu as lesões já referidas.
13) No dia anterior - 16 de março de 2020 - o motor da PC-65 havia sido retirado da máquina e colocado sobre três cavaletes metálicos (preguiças), os quais dispõem de certificado de conformidade.
14) Estas estruturas de suporte estavam instaladas sob os pontos de apoio naturais do motor e garantem a sua estabilidade.
15) A operação em curso pelo A. no momento da ocorrência consistia na substituição de uma peça de «apoio do motor».
16) Para proceder à substituição da aludida peça o autor necessitou de remover uma das preguiças que suportava o motor e antes de o fazer e a fim de estabilizar o motor colocou um calço e um barrote para garantir a estabilidade e equilíbrio do motor.
17) Consta na Ficha de Análise de Acidente nº 04/2022 elaborado pelos serviços de Segurança e Higiene do Trabalho da 3ª R., «o colaborador (…) durante a tarefa de substituição dos apoios do motor da PC-65, necessitou de remover uma das preguiças que suportava um dos apoios. Antes de remover a preguiça instalou um calço e um barrote de madeira para garantir a estabilidade e equilíbrio do motor, tendo este resvalado e caído após a força exercida pelo colaborador no aperto de apoio do mesmo».
18) O Autor encontrava-se a trabalhar sem a companhia de colegas da mesma empresa.
19) Um supervisor da Somincor e um trabalhador da mesma empresa encontravam-se a trabalhar no mesmo espaço que o autor, no dia do acidente.
20) Na sequência do acidente supra descrito, o Autor foi assistido no SUB de Castro Verde, transferido para o Hospital de Beja e para o Centro Hospital Lisboa Central onde ficou aí internado durante três dias.
21) Tendo sido sujeito a uma cirurgia, na qual se procedeu a: D1-desbridamento, reposicionamento do retalho distal, sutura de matriz unguel germinativa, recolocação da placa ungueal e sutura da ferida; D2-regualização do coto ósseo e encerramento com retalhos locais; D3:amputação pela diafase de F1; encerramento com retalhos locais D4:redução respetiva foi sujeito de imediato a uma cirurgia para regularização do coto do D2(1ª falange e encerramento com retalhos locais)D3- amputação pela diáfise de F1 encerramento com retalhos locais-redução aberta da luxação da MCF e sutura da placa palmar, D5 redução e cerclagem.
22) Aquando da alta hospitalar o autor recebeu indicações para: manter penso limpo e seco; cumprir medicação prescrita; manter mão elevada; deverá ser seguido pelos serviços clínicos da companhia de seguros- observação dentro dos próximos 8 dias, tem alta orientado para os serviços clínicos da companhia de seguros;
23) Após a mencionada alta do C.H. Universitário Lisboa Central-São José, o Autor, por indicação e a expensas da R seguradora, passou a ser acompanhado em consultas de cirurgia plástica em regime de ambulatório, no Hospital do Alvor.
24) Também por indicação e a expensas da R seguradora iniciou em tratamentos de fisioterapia, com periodicidade diária junto da referida entidade hospitalar;
25) Sendo que estes tratamentos se mantiveram até maio de 2021.
26) Também de setembro de 2020 a março de 2021 o Autor foi acompanhado em consultas de psicologia na referida unidade hospitalar;
27) Para efetuar os referidos tratamentos e ser acompanhado nas mencionadas consultas o Autor efetuava viagens entre Almodôvar e Alvor e regresso, percorrendo uma distância, ida e volta de cerca de 210Km por viagem;
28) Também por indicação e a expensas da Ré seguradora o Autor passou a ser seguido nas consultas de ortopedia no Hospital da Luz, em Lisboa.
29) Tendo aí sido submetido, no dia 6 de julho de 2020, a uma nova intervenção cirúrgica de ortopedia
30) Do relatório médico de alta, entre as demais informações, consta que o Autor apresentava o seguinte quadro clínico: “Fratura de F1D5 consolidada com rigidez mais luxação 4ª metacorpofalangica da mão direita” “Realizou-se tenolise dos extensores de D5 e extração de fio de arame mais redução aberta da 4ª MCF com artropexia com fio de k após abordagem volar e dorsal com tenolise dos flexores e extensores de D4, que decorreu sem intercorrenciais. Cirurgias: 2020-07-06 - Extração de material de F1D5 e tenolise e redução aberta da 4ª MCF e tenolise”.
31) Em 09 de Março de 2021 também por indicação e a expensas da 1ª e 2ª RR o Autor foi sujeito a 3ª intervenção cirúrgica plástica de exploração, com anestesia geral constando da nota de alta médica:
“Problema/Diagnóstico/Motivo de admissão: Coto D3 MD imóvel;
Resumo do episódio: Sob anestesia geral procedeu-se a exploração cirúrgica.
Libertação de aderências do aparelho flexor ao nível da palma da mão.
Libertação de aderências do aparelho extensor pela mesma incisão.
Artrotomia da articulação MP.
Verifica-se inviabilidade de reinserção do tendão flexor ao nível do P1 e considera-se que o ganho de um enxerto de tendão ou transferência tendinosa não compensa o dano cirúrgico necessário para criar um novo canal palmar para realizar um enxerto de tendão ou transferência tendinosa.
Tem Alta com as seguintes indicações:
-Antibioterapia;
-Analgesia;
-Mão elevada;
-Penso 2 vezes/semana.”
32) No dia 18 de março de 2020, a Ré Seguradora, através dos seus serviços atribuiu ao autor incapacidade temporária absoluta, com impossibilidade de retomar o trabalho.
33) Tal situação haveria de ser revista a 6 de abril, a 13 de abril, a 27 de abril, a 12 de maio, a 10 de junho, a 24 de junho, a 21 de julho, a 4 de agosto, a 19 de agosto, a 8 de setembro, a 29 de setembro, a 27 de outubro, a 18 de novembro e 22 de dezembro de 2020, 21 de janeiro, 3 de fevereiro de 2021, mantendo-se a mesma ITA.
34) A partir de 24 de abril de 2021 os serviços clínicos da seguradora atribuíram ao Autor incapacidade temporária parcial de 40%.
35) A 7 de Maio de 2021 foi elaborado pelo médico dos serviços clínicos das RR seguradoras relatório médico que conferiu ao Autor alta clínica e refere, quanto ao estado do Autor: “Apresenta-se consciente, com boa orientação e colaborante, sendo bom o estado geral.
Queixas: Dores de incidência matinal que agravam com as alterações climatéricas e com a realização de esforços, medicado com Voltarem em SOS.
Refere perda de força na mão e dificuldade para agarrar objetos e escrever. As suas tarefas laborais habituais consistem em revisão de motores, substituição de motores, rodas. Não retomou estas tarefas tendo sido despedido pela entidade patronal.
-Exame objetivo: amputação de F2XF3 de D2 e D3, com cotos cicatrizados, com aumento ligeiro da sensibilidade ao toque. D4 e D5 em garra não realizando extensão completa e com défice de flexão na MCF+++IFP++e IFD+D1sem limitações da mobilidade não conseguindo oponência com D4 e D5(faz pinças grosseiras e finas por aproximação)
Conclusão do relatório médico:
-Face ao quadro clínico atrás descrito, considera-se que a situação clínica se encontra estabilizada;
-Atribui-se a alta a partir de 08.05.2021, com incapacidade permanente;
- A funcionalidade/capacidade restante não é compatível com o seu posto de trabalho(IPATH)”.
36) A 23 de junho de 2021 o Autor foi submetido a perícia médica no GML.
37) A 3ª R opôs-se à renovação do acordo que havia celebrado com o autor, tendo o mesmo cessado em 10-10-2020.
38) Só em 15 de março de 2022 é que o Autor voltou a conseguir trabalho.
39) Após o seu regresso a casa, em 20.02.2020 o Autor teve muitas dificuldades em retomar o seu quotidiano.
40) Os tratamentos de fisioterapia causaram dores e sofrimento ao autor.
41) Por causa deste acidente, o autor viu os seus hábitos e modo de vida completamente modificados, deixando de fazer diversas atividades sociais e lúdicas de que gostava de fazer.
42) O Autor, durante o primeiro ano após o acidente, reduziu bastante o convívio com conhecidos ou amigos, evitando deslocar-se aos cafés que habitualmente frequentava pelo motivo de ser observado e comentado por terceiros.
43) Passou a esconder a mão direita dentro dos bolsos do seu vestuário.
44) A impossibilidade de voltar a exercer a sua atividade profissional habitual provocou no Autor enorme frustração porque estando no início de carreira tudo fez para poder ascender profissionalmente sendo que vendo as suas legítimas expectativas goradas sentiu-se muitíssimo triste e desalentado.
45) Acresce que o Autor é destro e o facto de ter ficado sem dois dedos na mão direita provocou-lhe grandes dificuldades, até para assinar o seu nome.
46) Mercê desta incapacidade de exercer a sua profissão e de ter uma vida de uma pessoa normal, o Autor desenvolveu uma depressão que durante muitos meses o incapacitou para a sua vida pessoal e profissional.
47) Antes do acidente o Autor não padecia de qualquer doença ou deformidade que o impedisse de poder trabalhar na sua profissão, era um jovem saudável com uma vida social e laboral intensa.
48) Quando do acidente o Autor vivenciou momentos de angústia e forte abalo psíquico que ainda hoje, por vezes, o aflige.
49) Por esse motivo teve de solicitar às RR seguradoras que lhe fosse dado acompanhamento em consultas de psicologia o que aconteceu entre 1 setembro de 2020 a 17 de março de 2021.
50) Não obstante, e apesar da psicóloga do seguro lhe ter dado alta o Autor teve de continuar, a expensas suas, a ter tratamento psicológico, situação que mantem até ao momento, atendendo a angústia e ansiedade, ligadas com as preocupações profissionais e pessoais e todo o sofrimento que padeceu desde o dia do acidente nomeadamente com as três intervenções cirúrgicas a que foi submetido, a necessidade de ser submetido durante mais de um ano a tratamentos dolorosos, o ter durante esse período de tempo a fazer diariamente cerca de 200Km para poder efetuar as sessões de fisioterapia, o facto de ter estado durante mais de dois anos sem exercer qualquer atividade profissional, só tendo reingressado na vida laboral em meados de Março do ano de 2022.
51) Do relatório da avaliação psicológica referente ao autor consta o seguinte:
“(…) Após o acidente começou a ter muitos medos com relação à sua saúde, o que o levou a ir constantemente ao médico de família pedir exames. Possível hipocondria? Períodos de revolta e agressividade frequentes (…); Autoestima muito baixa” sentia-se um inútil, que nunca iria voltar a ter uma vida normal, que nunca voltaria a trabalhar, nunca iria constituir família pois ninguém iria querer um homem com uma mão defeituosa. Problemas de sono: muitos pesadelos ”vejo o momento do acidente, o momento em que olho para a minha mão e vejo os dedos amputados. (…) desde que ficou lesionado isolou-se em casa, não querendo estar com os amigos pois sentia vergonha do estado da sua mão.
De acordo com o que descreveu, procedeu-se a uma avaliação do seu estado psicológico e emocional. Para isso foram aplicadas variadas escalas (…)
Nestas escalas, apresenta episódio depressivo num nível de sintomas considerado moderado. (…) apresenta um nível de ansiedade severa(generalizada)
Verificou-se de igual forma, a presença de perturbação de pânico e autoestima baixa…”;
52) O autor sofre ainda de dores na mão direita que se acentuam com as mudanças climatéricas.
53) Em 15 de março de 2022, o autor foi contratado para exercer as funções de escriturário de 3ª, o que faz com dificuldades.
54) Como habilitações literárias o Autor possui o 12º ano de escolaridade.
55) Com o atual contrato de trabalho o Autor recebe mensalmente a quantia ilíquida mensal de 850€, acrescida de subsídio de alimentação no valor diário de 6€.
56) A 3ª R. foi adjudicatária, em 25 de janeiro de 2010, do contrato de prestação de serviços designado por «Contrato de Prestação de Serviços de Manutenção e Reparação de Pás e Dumpers» desenvolvido na oficina de superfície da Mina de Neves-Corvo, sita em Santa Bárbara de Padrões, Castro Verde celebrado com a SOMINCOR – SOCIEDADE MINEIRA DE NEVES-CORVO S.A., enquanto concessionária da Mina.
57) A 3ª R. alocou à execução do referido acordo, na oficina de superfície da Mina de Neves Corvo, uma equipa composta (em 2020) por quatro elementos: três Oficiais serralheiros mecânicos, entre os quais o ora autor, e um Oficial serralheiro mecânico Chefe de Equipa.
58) O A., aquando do seu ingresso na 3ª R., no âmbito de uma ação de acolhimento, recebeu e teve acesso ao (i) manual de acolhimento; (ii) folheto de prevenção de riscos; (iii) nota divulgativa da responsabilidade social (iv) circular sobre prevenção e controlo de alcoolemia; (v) informação sobre os riscos da atividade; (vi) atuação em caso de emergência e (vii) ficha individual de segurança do trabalho (FIST).
59) A 31 de janeiro de 2017 a 3ª ré entregou ao A. dos equipamentos de proteção individual necessários ao desempenho da sua atividade.
60) A 3ª Ré ministrou ao autor, de 22.03.2017 a 27.02.2020, 22 formações de sensibilização em matéria de higiene e segurança no trabalho.
61) Da ficha denominada «Análise de Perigos Pré Tarefa (APPT)», datada de 16 de março de 2020, e onde consta o nome do ora autor como trabalhador, consta que o trabalhador identificou o risco de lesão por «entalamento» resultante de «queda de componentes», descrevendo no campo “O que vou fazer para tornar a minha tarefa mais segura?”: “analisar a tarefa”, “trabalho em equipa”, tendo apontado estar em condições de realizar a tarefa em segurança, assinalando com SIM os seguintes campos: *Tenho os equipamentos ferramentas adequados?”, “”Os meus equipamentos e ferramentas estão em condições seguras?”, “Eliminei todos os perigos de lesão nas mãos e dedos?”, “Isolei ou descarreguei toda a energia armazenada?”, “Identifiquei e corrigi todos os perigos de escorregadelas, tropeções e quedas?” e “Estou a usar o EPI requerido?” ;
62) A atividade de troca de acessórios dos motores foi precedida de «Autorização de trabalho - Elevação de cargas – Pontes rolantes e guinchos», emitida pela 4ª R., no dia 16 de março de 2020, constando da mesma assinalados com a resposta SIM, os seguintes campos referentes às “condições de permissão para elevação de cargas com pontes rolantes e guinchos”: “Todos os trabalhadores conhecem as regras instituídas para a execução desta tarefa de forma segura e fizeram APPT?”; “O Operador está autorizado para trabalhar com a máquina (por escrito*)”, “A máquina foi inspecionada antes de uso e possui verificação conforme o DL50/2005?”, “Os acessórios de elevação são certificados e possuem inspeção mensal registada?”, os acessórios foram inspecionados antes de uso e são adequados ao tipo de carga?”, “A área de perigo está devidamente sinalizada e o acesso interditado?”, “A carga está devidamente acondicionada e amarrada para evitar a sua queda?”, “O local de depósito/descarga é resistente e estável?”, necessitam de ser guiadas com ajuda de cordas?” e no campo das “condições a ter em conta após a movimentação da carga”: “A carga foi depositada e ficou devidamente acondicionada sem que haja potencial risco de queda?”, “No caso de constituir um obstáculo (condição de curta duração) à normal circulação de pessoas e veículos e/ou ao desenrolar normal de trabalhos, a carga ficou devidamente sinalizada ou balizada?”;
63) Através do serviço de Segurança e Saúde no Trabalho existia a elaboração de uma Plano Geral de Empreitada onde foi realizada uma análise de riscos, com identificação dos riscos inerentes a cada tarefa, entre as quais a tarefa de “diagnóstico e reparação de avarias”;
64) Este tipo de atividade estava prevista numa Ficha de Segurança elaborada no âmbito do Plano de Gestão da Empreitada, designada «Ficha de Segurança 6
- Diagnóstico e reparação de avarias», com identificação dos riscos associados, incluindo o de «queda da máquina/viatura em reparação», constando da referida ficha como medidas preventivas, entre outras: “estabilize corretamente os equipamentos em reparação, usando calços, sapatas, ou caso estejam suspensos utilizar cavaletes adequados ao peso do equipamento”;
65) O A. declarou ter tomado conhecimento do teor da Análise de Risco do Plano de Gestão da Empreitada aprovado pela Somincor, relativa aos serviços de manutenção nas Oficinas de Superfície;
66) Os procedimentos de substituição do motor encontravam-se vertidos no Procedimento nº 01, de outubro de 2011, do Departamento Manutenção Mina da 4ª R., de conhecimento do A., com referência à utilização de sistemas de elevação durante a operação, através do uso de ponte rolante para elevar o motor e colocá-lo sobre o suporte específico para o efeito, seguida de lavagem do motor e troca de componentes do motor retirado para o motor a montar.
67) Se o autor tivesse usado a ponte rolante para suspender o motor, este não teria resvalado.
68) A caducidade do contrato de trabalho mantido com o A. ocorreu pelo facto da 4ª R., em resultado da forte paralisação económica motivada pela pandemia resultante da doença COVID-19 ter restringido ao máximo a sua atividade em Neves Corvo, suspendendo parcialmente os serviços contratados.
69) A 4ª R. no cumprimento de medidas sanitárias excecionais determinou a redução das cargas de mão-de-obra, organização de equipas em espelho, divididas em turnos, limitando ao máximo a confluência de trabalhadores.
70) Tal circunstancialismo impeditivo da manutenção de vários postos de trabalho foi confirmado e comunicado pela 3ª R. à 4ª R. em 18 de junho de 2020.
71) Nesse contexto, a 3ª R. fez cessar, cumpridos os períodos de pré-aviso respetivos, os contratos de trabalho a termo incerto que vigoravam à data no contexto da operação desenvolvida em Neves Corvo (que englobava três contratos distintos).
72) O ISS-IP – Centro Distrital de Beja, pagou ao sinistrado o valor de € 378,24 a título de subsídio de doença, em virtude do acidente dos autos, no período de 17.03.2020 a 01.04.2020.
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E considerou que não se provou a seguinte factualidade:
a) No dia anterior ao acidente o motor da PC5 havia sido estabilizado com um calço e um barrote de madeira.
b) O chefe de equipa BB, havia sido dispensado na véspera de forma a reduzir o número de trabalhadores nas instalações, devido ao plano de contingência aplicado pela Somincor, perante a situação pandémica do Covid 19.
c) O tipo de cavaletes metálicos utilizados pelo Autor não possibilita o encaixe do motor, o que levou a que o motor resvalasse.
d) O A. não estabilizou o motor.
e) O A. tinha consciência da eficácia da utilização de meios de suspensão do motor, até porque utilizou a mesma metodologia para a retirada dos calços do motor do Dumper DC-21, bem como na operação de alteração dos apoios do motor do PC-25.
f) O Autor não possui preparação técnica ou outra formação profissional no âmbito da atividade profissional que desenvolvia até à data do acidente.
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IV. Da visada descaracterização do acidente
Em sede de recurso, sustentam as apelantes que, ao contrário do que foi decidido pela 1.ª instância, o acidente ocorrido com o apelado deve ser descaracterizado, ao abrigo do artigo 14.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro[2].
Para melhor compreensão da questão em debate, vejamos como a mesma foi apreciada pela 1.ª instância. Escreveu-se na sentença recorrida:
«(i) Da (des)caracterização do acidente
O direito dos trabalhadores à prestação do trabalho em condições de higiene, segurança e saúde encontra-se reconhecido no plano constitucional na alínea c) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição da República Portuguesa, prevendo a alínea f) do n.º 1 do mesmo preceito, o direito dos trabalhadores à assistência e justa reparação, quando vítimas de acidente de trabalho ou doenças profissionais.
Atenta a data do acidente colhe aplicação a Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro (que aprovou a nova Lei dos Acidentes de Trabalho), cfr. artigos 187.º e 188.º, do mesmo diploma.
De acordo com o disposto no art.º 8.º n.º 1, do referido diploma, «é acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza direta ou indiretamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte».
Assim, o conceito de acidente de trabalho é delimitado por três elementos cumulativos: um espacial – o local de trabalho – outro temporal - o tempo de trabalho – e, por último, um causal – o nexo de causa e efeito entre o evento e a lesão, perturbação ou doença.
Em conclusão dir-se-á que «acidente de trabalho é pois uma cadeia de factos em que cada um dos respetivos elos estejam entre si sucessivamente interligados por um nexo causal: o evento naturalístico tem que resultar da relação de trabalho; como a lesão, perturbação ou doença, terão que resultar daquele evento; e, finalmente, a morte ou incapacidade para o trabalho deverão filiar-se causalmente na lesão, perturbação ou doença» (Vítor Ribeiro, in Acidentes de Trabalho, Reflexões e Notas Práticas, Rei dos Livros, 1984, pág. 219 e seguintes).
Considerando a matéria de facto provada nos pontos 1, 3, 4, 11 e 12, concluímos que o autor sofreu amputação dos dedos indicador e médio da mão direita e múltiplas fraturas nas falanges dos outros dedos, quando se encontrava a efetuar a troca de apoios entre motores, no exercício das suas funções de serralheiro mecânico de 2ª para a ré empregadora, no tempo e local de trabalho.
O autor e as rés seguradoras alegaram que o acidente ocorreu por culpa da entidade empregadora, que não adotou as medidas de segurança necessárias a evitar o acidente dos autos, não deu formação ao autor quanto às regras de segurança a observar na tarefa em causa e não vigiou o trabalho do mesmo.
Por sua vez a ré empregadora alega que o autor teve formação, sabia os riscos que corria e não adotou as medidas corretas e necessárias a evitar o acidente dos autos, que ocorreu por tal motivo.
A propósito da culpa do trabalhador “descaracterizadora” do acidente de trabalho, estatui o art.º 14.º, n.º 1, da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, que «[O] empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que: a) For dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu ato ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei; b) Provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado; c) Resultar da privação permanente ou acidental do uso da razão do sinistrado, nos termos do Código Civil, salvo se tal privação derivar da própria prestação do trabalho, for independente da vontade do sinistrado ou se o empregador ou o seu representante, conhecendo o estado do sinistrado, consentir na prestação.»
À luz da Lei n.º 2127 de 3 de agosto de 1969, mais concretamente da sua Base VI, sob a epígrafe “Descaracterização do Acidente” Carlos Alegre (in Acidentes de Trabalho, 995, Almedina, pág. 49) notava que «[C]contrariamente com o teor da sua epígrafe, a Base VI parece, assim, continuar a aceitar que os acidente ocorridos nas circunstâncias das suas quatro alíneas são acidentes de trabalho, apenas, não dão direito a reparação. Em rigor, portanto, um acidente de trabalho somente porque não dá direito a reparação, não deixa de ser aquilo que é: e não é o facto de não haver lugar a reparação que o descaracteriza. (…)
Ao fim e ao cabo o que se pretende significar é que, apesar do acidente ter todas as características de um acidente de trabalho, algo no comportamento da própria vítima ou no caso da Natureza faz com que o direito à reparação, genericamente atribuído na Base I, não tenha lugar. Só isso.»
Tal nota manteve-se atual face à epígrafe e redação do art.º 7.º, n.º 1, da Lei n.º 100/97, de 13 de setembro, como se mantém válida face à epígrafe e redação do artigo 14.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro.
A prova dos pressupostos que permitem a “descaracterização” (chamemos-lhe assim por ter sido essa a nomenclatura utilizada pelo legislador) do acidente cabe, nos termos do disposto no art.º 342.º n.º 2 do Código Civil, à entidade responsável (neste sentido, entre outros, os acórdãos do STJ, de 28.06.1994, 16.06.2004 e 13.07.2004, todos in www.dgsi.pt).
Em face do que dispõe a alínea a) o acidente que provier de ato ou omissão do sinistrado só não dará direito a reparação se se verificarem cumulativamente as seguintes condições: (i) que sejam voluntariamente violadas as condições de segurança, aqui se exigindo a intencionalidade ou dolo na prática ou omissão do ato, o que, naturalmente, exclui as denominadas culpas leves ou provenientes de mera inadvertência, imperícia, distração, esquecimento ou outras atitudes que se prendem com os denominados atos involuntários; (ii) que a violação das condições de segurança não assente em qualquer causa que a justifique, o que passa pelo claro conhecimento do perigo que possa resultar do ato ou omissão; (iii) que as condições de segurança sejam estabelecidas pela entidade empregadora ou derivem da lei; (iv) finalmente, o acidente há de ser consequência necessária do ato ou omissão do sinistrado (neste sentido, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13 de Abril de 2005, proc. nº 9978/2004-8, in, www.dgsi.pt. e exatamente nos mesmos moldes Carlos Alegre, in Ob. Cit. pág. 50 e 51).
Conforme referimos já o preenchimento da citada alínea pressupõe que sejam voluntariamente violadas as condições de segurança, aqui se exigindo a intencionalidade ou dolo na prática ou omissão do ato, o que, naturalmente, exclui as denominadas culpas leves ou provenientes de mera inadvertência, imperícia, distração, esquecimento ou outras atitudes que se prendem com os denominados atos involuntários.
No caso, porém, não foram identificadas ou provadas as concretas normas de segurança impostas por lei ou pela entidade empregadora que teriam sido violadas pelo trabalhador/autor/sinistrado, improcedendo, desde logo, esta linha argumentativa.
Na realidade a observância daquilo que são as boas práticas não pode confundir-se com regras de segurança impostas por lei ou pela entidade empregadora.
No caso mostra-se provado que o autor estava a efetuar a troca de apoio de motores sendo que o motor onde o autor se encontrava a trabalhar tinha sido colocado sobre preguiças devidamente certificadas e que, para efetuar a tarefa em causa, o autor teve que tirar um desses apoios, tendo usado, em substituição do mesmo e por forma a estabilizar o aludido motor, um calço, do qual o motor resvalou e atingiu a mão do autor.
Mais se mostra provado que se o autor tivesse usado a ponte rolante para suspender o motor, o aludido acidente não teria ocorrido.
Mas a questão a colocar é se o autor estava obrigado, por lei ou em face dos regulamentos da empresa, a utilizar essa ferramenta na operação em causa e o que resultou provado é que tal ferramenta apenas era imposta pelo procedimento de reparação de máquinas na operação de retirada do motor da máquina e colocação sob os apoios necessários à sua estabilização (facto 66) e que na ficha de segurança elaborada no âmbito do Plano de Gestão da Empreitada, como medidas preventivas da queda da máquina em reparação consta apenas a necessidade de estabilização do equipamento pela utilização de calços, sapatas ou, em caso de suspensão, de cavaletes adequados ao efeito (facto 65).
Assim cremos que não podemos concluir que o autor tenha violado qualquer norma imposta por lei ou pela entidade empregadora.
Por outro lado, e quanto à negligência grosseira, dispõe o n.º 3 do preceito em análise que esta deve ser entendida como um comportamento temerário em alto e relevante grau por parte do sinistrado e que o acidente tenha resultado exclusivamente desse comportamento.
Porém e também quanto a esta alegação, entende o tribunal que as circunstâncias em que ocorreu o acidente não permitem concluir que o sinistrado tenha atuado com negligência grosseira (o sinistrado cuidou de tomar medidas para estabilização do motor apesar de estas se terem revelado não serem as mais adequadas) e que o acidente tenha resultado exclusivamente de tal comportamento.
Assim sendo é de concluir que não resultaram demonstrados factos que permitam concluir por estarem reunidos os pressupostos de “descaracterização” do acidente em causa.».
Desde já adiantamos que a decisão recorrida, no nosso entender, não merece censura.
De harmonia com o preceituado no artigo 14.º, n.º 1, alínea a), da LAT, inexiste direito de reparação dos danos decorrentes do acidente que «for dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu ato ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei.»
Para efeitos do disposto na alínea a) do n.º 1, estipula o n.º 2 do normativo que se considera «que existe causa justificativa da violação das condições de segurança se o acidente de trabalho resultar de incumprimento de norma legal ou estabelecida pelo empregador da qual o trabalhador, face ao seu grau de instrução ou de acesso à informação, dificilmente teria conhecimento, ou tendo-o, lhe fosse manifestamente difícil entendê-la».
No caso que se aprecia, a visada descaracterização do acidente apoia-se na segunda parte da alínea a) do n.º 1 do referido artigo 14.º[3], pelo que, focaremos a nossa atenção, exclusivamente, neste segmento do artigo.
De modo pacífico, a jurisprudência dos tribunais superiores tem sustentado que esta causa excludente do direito do direito à reparação do acidente, exige a verificação cumulativa dos seguintes requisitos: (i) existência de condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei; (ii) ato ou omissão do sinistrado que importe a violação dessas condições de segurança; (iii) inexistência de causa justificativa para tal violação; (iv) nexo causal entre o ato ou omissão do sinistrado e o acidente.[4]
A prova dos factos integrantes da descaracterização, enquanto impeditivos do direito à reclamada reparação, recai sobre quem a invoca, em conformidade com a regra consagrada no n.º 2 do artigo 342.º do Código Civil.[5]
Ora, no vertente caso, e com arrimo nos factos assentes, não é possível deduzir, desde logo, que ficou demonstrado que o sinistrado violou condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei.
Defendem as apelantes que os factos revelam que o sinistrado desrespeitou os procedimentos internos de substituição do motor, ao não ter utilizado um sistema de elevação, através do uso de ponte rolante, que lhe permitisse suspender o motor e, desta forma, evitar que o mesmo resvalasse e caísse sobre a sua mão. Mais declaram, que o sinistrado violou o imposto pela ficha de «Análise de Perigos Pré-Tarefa (APPT)».
Assim não sucedeu, no entanto.
Preliminarmente, importa salientar que a ficha de «Análise de Perigos Pré-Tarefa (APPT)», não constitui nenhuma fonte de instruções de segurança que devessem ser seguidas pelo sinistrado.
Em causa está apenas uma ficha[6], preenchida pelo sinistrado, na véspera do sinistro, na qual o mesmo respondeu às questões de segurança ali colocadas.[7]
Como a designação da ficha indicia, trata-se de uma avaliação, feita pelo próprio sinistrado, dos perigos da tarefa que iria realizar.
Não se trata, pois, de qualquer regra de segurança estabelecida pelo empregador.
Já no que respeita ao Procedimento n.º 1, de outubro de 2011, aplicável à atividade de substituição do motor[8] , o mesmo prevê condições de segurança que devem ser observadas.
Todavia, o que aí se refere é que durante a operação de elevação do motor, devem ser usados sistemas de elevação, nomeadamente ponte rolante.
De seguida, o motor deve ser colocado sobre suporte específico para o efeito.
Ora, estas essenciais condições de segurança eram conhecidas do sinistrado e foram por ele respeitadas, conforme se infere da factualidade descrita nos pontos 13 e 14 dos factos provados.
Sucede que no momento em que ocorreu o acidente, o sinistrado não estava a realizar qualquer tarefa de elevação e colocação em suporte estável do motor.
A operação que estava em curso, no crucial momento, consistia na substituição de uma peça de «apoio do motor», pelo que, a regra de segurança consagrada no Procedimento n.º 1 já não era aplicável.
Para o trabalho que estava a ser realizado, a condição de segurança exigida para a estabilização do motor – porque uma das preguiças que suportava o motor teve de ser removida – era a utilização de calços, conforme estava previsto na «Ficha de Segurança n.º 6 – Diagnóstico e Reparação de Avarias», elaborada no âmbito do Plano de Gestão da Empreitada.[9]
E o que resultou demonstrado foi que o sinistrado para proceder à substituição da peça de «apoio do motor», necessitando para tanto de remover uma das preguiças que o suportava, antes de o fazer e a fim de estabilizar o motor, colocou um calço e um barrote para garantir a estabilidade e equilíbrio do motor.[10] [11]
Portanto, o sinistrado cumpriu exatamente o que a regra de segurança para a situação com que se deparava lhe impunha.
Não ocorreu, por parte do sinistrado, qualquer violação das condições de segurança estabelecidas para a atividade que estava a realizar.
É certo que resultou demonstrado que se o sinistrado tivesse usado a ponte rolante para suspender o motor, este não teria resvalado.
Porém, a obrigação de utilização desse equipamento, no âmbito da tarefa que estava a ser realizada quando se deu o acidente, não estava prevista nas regras de segurança que o sinistrado devia cumprir.
Em suma, acompanhamos o juízo decisório da 1.ª instância de que o sinistrado não violou qualquer norma de segurança estabelecida pelo empregador ou prevista na lei, o que inviabiliza a descaracterização do acidente pretendida pelas apelantes.
Concluindo, o recurso improcede, devendo as custas do mesmo serem suportadas pelas apelantes, na proporção das respetivas responsabilidades.
*
V. Decisão
Nestes termos, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente, e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.
Custas a cargo das apelantes, na proporção das respetivas responsabilidades.
Notifique.
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Évora, 26 de outubro de 2023
Paula do Paço (Relatora)
Mário Branco Coelho (1.º Adjunto)
Emília Ramos Costa (2.ª Adjunta)

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[1] Relatora: Paula do Paço; 1.º Adjunto: Mário Branco Coelho; 2.ª Adjunta: Emília Ramos Costa
[2] Doravante, designada por LAT.
[3] As apelantes não alegam que o acidente foi dolosamente provocado pelo sinistrado.
[4] A título de exemplo, referem-se as seguintes decisões: Acórdão da Relação de Lisboa, de 19/12/2012, proferido no Proc. n.º 686/10.8TTLRS.L1-4; Acórdão da Relação de Guimarães de 12/02/2015, relativo ao Proc. n.º 679/11.8TTVNF.P1.G1; Acórdão desta Secção Social da Relação de Évora de 09/02/2023, respeitante ao Proc. n.º 257/20.0T8TMR.E1, todos publicados em wwwdgsi.pt.
[5] Neste sentido, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 20/10/2011 e de 10/02/2021, proferidos, respetivamente, no Proc. n.º 1127/08.6TTLRA.C1.S1 e no Proc. n.º 2267/18.9T8LRA.C1.S1, ambos consultáveis em www.dgsi.pt.
[6] Cfr. E-mail apresentado em 13/12/2021, Documento 3, Foto 2.
[7] Cfr. Ponto 61 dos factos provados.
[8] Cfr. Ponto 66 dos factos provados.
[9] Cfr. Ponto 64 dos factos provados.
[10] Realce e sublinhado da nossa responsabilidade.
[11] Cfr. E-mail apresentado em 13/12/2021, Documento 3, Fotos 6 e 7.