Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
347/23.8T9STB.E1
Relator: LAURA GOULART MAURÍCIO
Descritores: RECURSO DE CONTRAORDENAÇÃO
RECURSO PARA A RELAÇÃO
RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
REJEIÇÃO DO RECURSO
Data do Acordão: 11/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I. As garantias de processo criminal previstas no art. 32.º da CRP, são aplicáveis ao processo de contraordenação por força do seu n.º 10, quanto aos direitos de audiência e defesa, mas não comportam um direito ao duplo grau de jurisdição.
II. O recurso nas contraordenações em segunda instância é, assim, restrito à matéria de direito (art. 51º, nº 1, da Lei 107/2009, de 14.09, salvo se se verificar a existência dos vícios no julgamento da matéria de facto previstos no art. 410º, n.º 2, do CPP, caso este em que, mesmo no recurso penal restrito à matéria de direito, a Relação deles deverá, ainda que oficiosamente, conhecer, podendo e devendo alterar a matéria de facto, se dispuser de todos os elementos probatórios necessários para o efeito; ou, não dispondo desses elementos, reenviando os autos à 1.ª instância, para sanação do vício de acordo com o artigo 426º do CPP.
III. Não havendo norma no âmbito do Regime Geral das Contraordenações que admita o recurso relativo a matéria de facto, com exceção dos casos de processamento das contraordenações juntamente com crimes, em que lhes é aplicável o regime de recursos vigente para os ilícitos penais (cf. artigo 78.º), prevalece o n.º 1 do artigo 75.º do citado diploma, que restringe o recurso no domínio das contraordenações a matéria de direito.
IV. Daí que, no caso, esteja legalmente vedado a este Tribunal da Relação a sindicância da matéria de facto que o tribunal a quo deu como provada. Consequentemente, a matéria de facto fixada tem que considerar-se inalterável, sendo de rejeitar o recurso intentado.
Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora
Relatório
No âmbito dos autos com o n.º 347/23.8T9STB, no Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, Juízo Local Criminal de Setúbal - Juiz 1, foi, em 25 de maio de 2023, proferida sentença, com o teor seguinte:
“ – RELATÓRIO
AA, solteiro, vendedor de material geriátrico (atualmente desempregado), filho de (…), nascido em 1984-06-05, NIF - …., titular da identificação civil n.º …, residente na Rua …, 2955-189 Pinhal Novo, veio interpor o presente recurso de impugnação judicial da decisão administrativa proferida em 10/11/2021 pela «ANSR – AUTORIDADE NACIONAL DE SEGURANÇA RODOVIÁRIA», no âmbito do processo de contraordenação n.º 939232391, que determinou a aplicação ao arguido da coima de € 450 (quatrocentos e cinquenta euros) e da sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 60 (sessenta) dias, devendo o arguido entregar o seu título de condução, no prazo e local indicados, sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência, nos termos do n.º 3, do artigo 160.º do Código da Estrada.
A decisão administrativa proferida no referido processo de contraordenação imputa ao ora arguido/recorrente o ilícito contraordenacional previsto pelo disposto nos artigos 27.º, n.ºs 1, 2/al. a)/§ 3.º, 138.º e 146.º, al. i), todos do Código da Estrada, ou seja, alega a autoridade administrativa que o recorrente no dia 20/04/2020, pelas 17h34m, no local EN 379-2, sentido Palmela/Moita, ao km 3,4, na localidade da Lagoinha, mediante condução de veículo automóvel ligeiro de passageiros, com matrícula XX-XX-XX, circulava dentro da referida localidade pelo menos à velocidade de 96km/h (correspondente à velocidade instantânea registada de 102km/h, deduzido o erro máximo admissível), sendo o limite máximo de velocidade no local para o veículo em apreço de 50km/h.
Para tanto alegou, em síntese, que:
- na data da prática dos factos não reconhece que seguisse em excesso de velocidade, acreditando ter cumprido o limite de velocidade imposto; e
- só uma avaria do sistema de medição de velocidade (radar fotográfico) utilizado pela entidade autuante poderá justificar a errónea leitura da velocidade.
Em consequência, considera não ter sido por si praticada a contraordenação que lhe é imputada, devendo por isso ser revogada a decisão administrativa que vem impugnar e, em consequência, ser absolvido da contraordenação que lhe é imputada.
Pese embora se tenha oposto à decisão por mero despacho, não arrolou testemunhas nem juntou documentos.
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II – SANEAMENTO
O Tribunal é competente e o processo é o próprio.
Inexistem quaisquer nulidades, questões prévias ou exceções que cumpra apreciar.
Procedeu-se a audiência de julgamento com observância de todas as formalidades legais.
Inexistem questões que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
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III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:
3.1 – Factos provados:
Considerando o acervo probatório (de índole documental e declaracional) constante dos autos, tem o Tribunal por assente a seguinte factualidade:
1) No dia 24/04/2020, pelas 17h34m, no local EN 379-2, sentido Palmela/Moita, ao km 3,4, na localidade da Lagoinha, mediante condução de veículo automóvel ligeiro de passageiros, com matrícula XX-XX-XX, o arguido/recorrente AA circulava dentro da referida localidade pelo menos à velocidade de 96 km/h (correspondente à velocidade instantânea registada de 102 km/h, deduzido o erro máximo admissível), sendo o limite máximo de velocidade no local para o veículo em apreço de 50 km/h.
2) A velocidade foi verificada pelo Cinemómetro Radar MULTINOVA MR-6FD n.º 09-92-953 aprovado pelo IPQ – Instituto Português da Qualidade, conforme Desp. de Ap. de Mod. n.º 111.20.12.3.09 e uso pelo Desp. n.º 1863/2014 ANSR, com verificação periódica do IPQ a 16/03/2020.
3) Com a conduta descrita em 1) o arguido revelou desatenção e irrefletida inobservância das normas de direito rodoviário, atuando com manifesta falta de cuidado e prudência que o trânsito de veículos aconselha e no momento se lhe impunham.
4) Tendo agido de forma livre e consciente, bem sabendo que a referida conduta é proibida e sancionada pela lei contraordenacional.
5) O arguido/recorrente confessou integralmente os factos em julgamento.
6) (…) Está atualmente desempregado, auferindo € 619 de subsídio de desemprego.
7) (…) Vive com a sua companheira em casa adquirida com recurso a crédito bancário, com uma prestação associada que ronda os € 200 mensais.
8) (…) Não tem filhos nem encargos fixos de relevo.
9) (…) Tem o 12.º ano de escolaridade.
10) (…) No seu RIC constam averbadas três infrações estradais por condução em excesso de velocidade.
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3.2 – Factos não provados:
Nada de relevante para a decisão a proferir ficou por provar.
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3.3 – Motivação de facto:
A convicção do Tribunal quanto à factualidade dada como provada a fundou-se, desse logo, nas declarações prestadas em julgamento pelo arguido AA, confessórias quanto aos factos que lhe são imputados porquanto, de forma humilde e correta, admitiu integralmente a respetiva prática, concatenadas com a análise crítica e ponderada do teor dos elementos documentais carreados para os autos, designadamente do auto de contraordenação de fls. 1-1v.º, da fotografia constante de fls. 2, do certificado de verificação do “Radar” de fls. 3 e do Registo Individual de Condutor de fls. 31v.º a 33.
Perante tais elementos de prova não se suscitaram no julgador quaisquer dúvidas quanto à prova cabal e inequívoca da factualidade dada como assente nos moldes supra elencados [factos provados 1) a 10)].
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IV – ENQUADRAMENTO JURÍDICO
Apurados os factos, cabe, agora, proceder ao seu enquadramento jurídico.
Nos termos do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro (RGCO), “constitui contraordenação todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima”.
Em conjugação com este princípio geral, determina o artigo 2.º do mesmo diploma:
“Só será punido como contraordenação o facto descrito e declarado passível de coima por lei anterior ao momento da sua prática”.
No caso sub judice encontra-se o recorrente AA acusado do cometimento da contraordenação p. e p. pelos artigos 27.º, n.ºs 1, 2/al. a)/§ 3.º do Código da Estrada, sancionável com coima de € 300 a € 1.500, e ainda com sanção acessória de inibição de conduzir de 2 a 24 meses por força do disposto nos artigos 138.º, 146.º, al. i) [ex vi do artigo 145.º, n.º 1, al. c)] e 147.º, n.º 2, todos do Código da Estrada.
Dito isto.
Nos termos do mencionado n.º 1 do art.º 27.º do Código da Estrada «Sem prejuízo do disposto nos artigos 24.º e 25.º e de limites inferiores que lhes sejam impostos, os condutores não podem exceder as seguintes velocidades instantâneas (em quilómetros/hora): (…) automóveis ligeiros de passageiros sem reboque, dentro das localidades: 20km/h».
Já o n.º 2, alínea a), § 3.º determina que quem exceder os limites máximos de velocidade é sancionado de € 300 a € 1500 se exceder em mais de 40 km/h e até 60 km/h, dentro das localidades, ou mais de 60 km/h e até 80 km/h, fora das localidades.
Por sua vez o art.º 145.º, alínea c), do mesmo diploma, prevê que:
“c) O excesso de velocidade praticado dentro das localidades superior a 20 km/h sobre os limites legalmente impostos, quando praticado pelo condutor de motociclo ou de automóvel ligeiro, ou superior a 10 km/h, quando praticado por condutor de outro veículo a motor;(…)” constitui contraordenação grave que, nos termos do art.º 138.º também do Código da Estrada, é sancionável com coima e com sanção acessória.
Porém, de acordo com o previsto no art.º 146.º, n.º 1, alínea i), do CE, “i) A infração prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo anterior, quando o excesso de velocidade for superior a 60 km/h ou a 40 km/h, respetivamente, bem como a infração prevista na alínea c) do n.º 1 do mesmo artigo, quando o excesso de velocidade for superior a 40 km/h ou a 20 km/h, respetivamente, e a infração prevista na alínea d) do mesmo número, quando o excesso de velocidade for superior a 40 km/h; (…)” constitui contraordenação muito grave que, naturalmente, é igualmente sancionável com coima e com sanção acessória. (sublinhados nossos)
A decisão administrativa puniu o arguido por ter praticado contraordenação muito grave na coima de € 450 (quatrocentos e cinquenta euros) e na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 60 (sessenta) dias, o que, face aos factos provados no caso concreto apreciados à luz das previsões normativas dos artigos 27.º e 139.º do CE, se mostra correto.
De facto, dispõe o n.º 1 do art.º 139.º, com a epígrafe “Determinação da medida da sanção”, que:
«1 – A medida e o regime de execução da sanção determinam-se em função da gravidade da contraordenação e da culpa, tendo ainda em conta os antecedentes do infrator relativamente ao diploma legal infringido ou aos seus regulamentos.».
Por sua vez, com a epígrafe “Atenuação especial da sanção acessória” o art.º 140.º estabelece o seguinte:
«Os limites mínimo e máximo da sanção acessória cominada para as contraordenações muito graves podem ser reduzidos para metade tendo em conta as circunstâncias da infração, se o infrator não tiver praticado, nos últimos cinco anos, qualquer contraordenação grave ou muito grave ou facto sancionado com proibição ou inibição de conduzir e na condição de se encontrar paga a coima.».
Por seu turno, o art.º 141.º, n.º 1 do mesmo diploma legal prescreve que:
«1 – Pode ser suspensa a execução da sanção acessória aplicada a contraordenações graves no caso de se verificarem os pressupostos de que a lei penal geral faz depender a suspensão da execução das penas, desde que se encontre paga a coima, nas condições previstas nos números seguintes.
2 – Se o infrator não tiver sido condenado, nos últimos cinco anos, pela prática de crime rodoviário ou de qualquer contraordenação grave ou muito grave, a suspensão pode ser determinada pelo período de seis meses a um ano.
3 – A suspensão pode ainda ser determinada, pelo período de um a dois anos, se o infrator, nos últimos cinco anos, tiver praticado apenas uma contraordenação grave, devendo, neste caso, ser condicionada, singular ou cumulativamente:
a) (Revogada.)
b) Ao cumprimento do dever de frequência de ações de formação, quando se trate de sanção acessória de inibição de conduzir;
c) Ao cumprimento de deveres específicos previstos noutros diplomas legais.
4 – A caução de boa conduta é fixada entre (euro) 500 e (euro) 5000, tendo em conta a duração da sanção acessória aplicada e a situação económica do infrator.
5 – Os encargos decorrentes da frequência de ações de formação são suportados pelo infrator.». (sublinhado e negrito nosso)
Quer isto dizer que, ainda que verificados todos os demais requisitos legais, apenas poderá ser suspensa a execução da sanção acessória nas situações em que esteja em causa a prática de contraordenações graves (conforme limite consagrado pelo legislador no citado n.º 1 do art.º 141.º).
Sendo que a questão da não admissibilidade da suspensão da execução da sanção acessória de inibição de conduzir aplicada a contraordenação muito grave parece estar pacificada na jurisprudência, sendo incontornável tal conclusão Veja-se, a título de exemplo, os Acórdãos da Relação de Coimbra, de 13/06/2007, proferido no processo n.º 346/06.4TBGVA.C1 e de 21/11/2007, proferido no processo n.º 3974/06.4TBVIS.C1, da Relação de Lisboa de 17/01/2013 proferido no processo n.º 593/12.0PEAMD.L1-9 e de 21/05/2015 proferido no processo n.º 82/14.8T8TVD.L1-9 e da Relação de Évora, de 8/9/2008 proferido no processo n.º 1713/08-1, todos disponíveis em www.dgsi.pt e mencionados no Acórdão da Relação de Évora de 15/11/2016, proferido no processo n.º 16/14.0T8MMN.E1, igualmente consultável no referido sítio da internet.”.
Ora, uma vez que a contraordenação rodoviária a que se reportam os autos é classificada como muito grave, a conduta do arguido não é suscetível de beneficiar do regime de suspensão da execução da sanção acessória, o que, de resto, nem sequer foi peticionado pelo recorrente na impugnação judicial da decisão administrativa.
Em suma, a decisão administrativa não merece qualquer reparo e o presente recurso terá de improceder.
Termos em que, por correta, deverá manter-se a decisão recorrida, nos seus precisos termos.
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V – DECISÃO:
Por tudo o exposto e considerando a fundamentação acima consignada o Tribunal julga o presente recurso totalmente improcedente e, em consequência, decide manter integralmente a decisão administrativa recorrida.
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Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 1,5 UC (cfr. art.º 93.º, n.º 3, do Regime Geral das Contraordenações).
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Notifique, sendo o recorrente de que, para cumprimento da sanção em que foi condenado, e no prazo de 15 (quinze) dias após trânsito em julgado da presente decisão, deverá entregar a sua carta de condução na secretaria deste tribunal ou em qualquer posto policial, advertindo-se que, assim não procedendo, incorrerá na prática de um crime de desobediência – cfr. art.º 160.º, n.º 3 do Código da Estrada.
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Proceda-se ao depósito da presente decisão, nos termos do art.º 372.º, n.º 5 do C.P. Penal, ex vi art.º 41.º, n.º 1 do RGCO.
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Após trânsito, comunique a presente decisão à autoridade administrativa (cfr. art.º 70.º, n.º 4 do RGCO).
(…)
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Inconformado com o assim decidido, AA interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:
I. O Arguido, ora Recorrente, foi condenado pelo Tribunal a quo no pagamento de coima no valor de 450,00€ e na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 60 dias.
II. No entato, arguido não reconhece que seguisse em excesso de velocidade.
III. O suposto “infractor” sempre foi um condutor diligente e com elevado sentido de responsabilidade, pautando-se pelas normas legais estradais vigentes e preocupando-se com o cumprimento das mesmas, não tendo, por isso mesmo, consciência de ter praticado tal infração.
IV. De facto, o ora arguido esteve envolvido, no passado, em acidente rodoviário de gravidade elevada, razão pela qual ficou bastante afetado no seu psicológico.
V. Actualmente, a condução automóvel é uma tarefa algo traumática para o “infractor”, pelo que, quando se demonstra necessário deslocar-se no seu veículo, o faz de forma prudente e a velocidades moderadas e adaptadas à via em que circula.
VI. Ora, pelos motivos já expostos, acredita ter cumprido rigorosamente o limite de velocidade imposto, não podendo, em momento algum, ter circulado à velocidade pela qual vem, no presente auto, acusado de conduzir.
VII. Apenas uma avaria do sistema de medição de velocidade utilizado pela entidade autuante, o radar fotográfico supra identificado, poderá justificar tal errónea leitura da velocidade.
VIII. Impugna expressamente o arguido que, nas condições de tempo e lugar constantes do auto, circulasse à velocidade referida.
Nestes termos e nos demais de direito, sempre com o douto Suprimento de V. Exª deve o presente recurso judicial ser julgado procedente e, em consequência revogada a sentença recorrida e absolvido o Recorrente dos presentes autos.
Assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!
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O recurso foi admitido.
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O Ministério Público respondeu ao recurso interposto, pugnando pela improcedência do mesmo e formulando as seguintes conclusões:
1. O arguido AA, não se conformando com a douta Sentença proferida no processo supra identificado (cfr. ref.ª citius 97177484), que julgou o recurso de contra-ordenação totalmente improcedente e, em consequência, decidiu manter integralmente a decisão administrativa recorrida, veio dela interpor recurso para o Tribunal da Relação de Évora.
2. Da leitura da motivação apresentada pela Recorrente e respectivas conclusões, que, como é sobejamente sabido, delimitam o objecto do recurso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso constata-se, em síntese, que se reconduzem a duas, a saber: do não cometimento da contra-ordenação que lhe é imputada; e da nulidade da prova obtida.
3. O arguido impugnou judicialmente a decisão administrativa proferida em 10.11.2021 pela «ANSR – AUTORIDADE NACIONAL DE SEGURANÇA RODOVIÁRIA», no âmbito do processo de contraordenação n.º 939232391, que determinou a aplicação ao arguido da coima de € 450 (quatrocentos e cinquenta euros) e da sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 60 (sessenta) dias, devendo o arguido entregar o seu título de condução, no prazo e local indicados, sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência, nos termos do n.º 3, do artigo 160.º do Código da Estrada.
4. Na audiência de discussão e julgamento, realizada no dia 19.04.2023 (cfr. acta sob a ref.ª 97121447), o arguido requereu a sua toma de declarações tendo admitido a autoria dos factos que lhe eram imputados.
5. Nessa sequência, foi proferida Sentença que julgou o recurso de contra-ordenação totalmente improcedente e, em consequência, decidiu manter integralmente a decisão administrativa recorrida.
6. Ora, o arguido admitiu a prática dos factos que lhe são imputados, conforme bem resulta das declarações por aquele prestadas em sede de audiência, vindo agora em sede de Recurso negar a sua autoria.
7. Na averiguação das declarações do arguido, confessórias ou outras, sempre o tribunal deverá exercer a devida apreciação crítica quanto à sua consistência, pertinência e fidedignidade. Mas esse limite não lhe retira o sentido de consenso, ou torna irrelevante a confissão enquanto «afirmação pessoal de transmissão de conhecimentos e de interpretação de um conjunto de factos, que ‘converge’ com aquilo que é descrito na acusação, pelo que, por esta via, se transforma numa concreta forma de contribuição para a realização do Direito»
8. E, na situação em apreço, a confissão transmitiu exactamente esse consenso do arguido, o qual não fundou dúvidas ao tribunal a quo, e não vemos porque não deveria ter sido aceite e valorada, como foi.
9. O arguido conduzia, no dia e hora e local constante da matéria provada o veículo automóvel ligeiro de passageiros, com a matrícula XX-XX-XX, pelo menos à velocidade de 96km/h (correspondente à velocidade instantânea registada de 102km/h, deduzido o erro máximo admissível), o que foi detectado através do aparelho de radar fotográfico MULTINOVA MR-6FD n.º 09-92-953, sendo a velocidade máxima permitida para o local de 50 km/h.
10. O arguido devia ter requerido no recurso de impugnação judicial as diligências, que em seu entender, eram pertinentes para pôr em dúvida a fiabilidade do radar ou que este não se encontrava em situação regular, o que não fez.
11. E, os elementos constantes dos autos são bastantes para concluir pela fiabilidade do aparelho.
12. Na verdade, do auto de contra-ordenação e da decisão administrativa consta, a identificação do radar (cinemómetro) utilizado, do despacho que o aprovou, e bem assim a referência à data em que ocorreu a sua verificação como resulta dos seguintes dizeres “A velocidade foi verificada pelo Cinemómetro Radar MULTINOVA MR-6FD n.º 09-92-953 aprovado pelo IPQ – Instituto Português da Qualidade, conforme Desp. de Ap. de Mod. n.º 111.20.12.3.09 e uso pelo Desp. n.º 1863/2014 ANSR, com verificação periódica do IPQ a 16/03/2020”.
13. A verificação periódica é válida até 31 de Dezembro do ano seguinte ao da sua realização (artigo 4.º, nº 5 do Decreto-Lei nº 291/90, de 20-09). Deste modo, o radar que verificou a velocidade do veículo conduzido pelo arguido estava devidamente aprovado e revisto nos termos exigidos por lei, por isso é fiável.
14. Dos nºs 3 e 4 do artigo 170.º do Código da Estrada resulta que fazem fé os elementos de prova obtidos através de aparelhos ou instrumentos aprovados nos termos legais e regulamentares, o que não se confunde com a notificação do artigo 5.º do Decreto-Lei nº 207/2005, de 29/11.
15. Portanto, para que os elementos de prova recolhidos pelo equipamento de radar façam fé é necessário que tal equipamento seja aprovado e verificado de acordo com a disciplina do Decreto-Lei nº 291/90, de 20-09 e da Portaria nº 1542/07 de 6-12, o que se verifica no caso em análise.
16. A notificação à CNPD não tem nada ver com aqueles requisitos de aprovação e verificação do radar e não há disposição legal que comine qualquer consequência para a ausência desta notificação como implicando ilegalidade ou impossibilidade de utilização dos mesmos para os efeitos de controlo de velocidade dos veículos automóveis na via pública. Muito menos que comine a nulidade da prova por falta da referida notificação.
17. A falta de notificação em causa, mesmo que tenha ocorrido, não tem qualquer relevância probatória e em nada influencia a decisão em causa, já que os elementos constantes do processo relativos à aprovação e verificação do radar bastam para se concluir pela fiabilidade e legalidade do aparelho que mediu a velocidade a que circulava o veículo conduzido pelo arguido.
Termos em que deverá o recurso ser julgado improcedente e manter-se a decisão recorrida.
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Em 24 de outubro de 2023 foram os autos remetidos eletronicamente ao Tribunal da Relação de Évora para distribuição.
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No Tribunal da Relação o Exmº Procurador-Geral Adjunto apôs visto.
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Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
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Cumpre decidir.
Fundamentação
- Delimitação do objeto do recurso
O âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, só sendo lícito ao Tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. Ac. do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19/10/1995, DR I-A Série, de 28/12/1995 e artigos 403º, nº1 e 412º, nºs 1 e 2, ambos do CPP).
A motivação de recurso deve identificar, com clareza e precisão, quais as exatas razões da discordância do recorrente relativamente à decisão, ou seja, os fundamentos do recurso, devendo as conclusões, tal como decorre do art.º 412º, n.º1 CPP, resumir as razões do pedido que o recorrente formula relativamente à decisão recorrida.
São as conclusões de recurso que irão habilitar o tribunal superior a conhecer dos motivos que levam o recorrente a discordar da decisão recorrida, quer no campo dos factos quer no plano do direito.
As conclusões destinam-se, assim, a resumir essas razões que servem de fundamento ao pedido, não podendo confundir-se com o próprio pedido nem podendo ser tão extensas e exaustivas como a motivação, e destinam-se a permitir que o tribunal conheça, de forma imediata e resumida, qual o âmbito do recurso e os seus fundamentos.
Essa definição compete exclusivamente ao recorrente e tem a finalidade útil e garantística de permitir que não existam dúvidas de interpretação acerca dos motivos que levam o recorrente a impugnar a decisão, o que poderia acontecer perante a mera leitura das alegações, por natureza mais desenvolvidas, definindo-se claramente quais os fundamentos de facto e/ou de direito, já que é através das conclusões que se conhece o objeto do recurso.
Ora, “sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões (art.412º, nº1, CPP), às quais o tribunal se deve restringir (ACSTJ de 09.12.98, BMJ 482, 68), não basta que na motivação se indique, de forma genérica, a pretensão do recorrente pois a lei impõe a indicação especificada de fundamentos do recurso, nas Conclusões (…)”, as quais constituem 2ª enunciação resumida dos fundamentos do recurso, as proposições sintéticas que emanam naturalmente do que se expôs e considerou ao longo da alegação, sendo elas que delimitam o objecto do recurso” (ACRL de 20.05.04, P. 4010/04-9ª Secção, Rel. Trigo Mesquita).
No mesmo sentido se pronunciara igualmente o Acórdão do Tribunal Constitucional nº189/2003, de 8 de Abril de 2003, ao referir que “…As conclusões são proposições sintéticas que emanam do que se expôs e considerou ao longo das alegações, devendo constituir um discurso lógico, uma síntese das razões, quer de facto quer de direito, explanadas ao longo da alegação…” (P.266/2000, DR II série, de 24.06.03).
Nesta conformidade, atentando nas conclusões formuladas pelo recorrente, no caso sub judice a questão suscitada limita-se ao erro de julgamento da matéria de facto.
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Apreciando
O Regime Geral das Contra-Ordenações prevê que a decisão de autoridade administrativa que aplica uma coima é suscetível de impugnação judicial (artigo 59.º, n.º 1), podendo recorrer-se para o Tribunal da Relação das decisões judiciais que apreciem aquela impugnação nos casos previstos nos nºs 1 e 2 do artigo 73.º do RGCO.
Com este regime fica assegurado o direito à apreciação jurisdicional das decisões sancionatórias administrativas que apliquem coimas pela prática de contra-ordenações, e, nalguns casos, admite-se a existência de um duplo grau de jurisdição na reapreciação dessas decisões.
Conforme referiu Eduardo Correia, “a contra-ordenação é um aliud que se diferencia qualitativamente do crime na medida em que o respetivo ilícito e as reações que lhe cabem não são diretamente fundamentáveis num plano ético-jurídico, não estando, portanto, sujeitas aos princípios e corolários do direito criminal”( - Direito penal e de mera ordenação-social, no B.F.D.U.C., n.º XLIX (1973), pág. 268.).
Dispõe o art.66º do RGCO que, salvo disposição em contrário, a audiência em 1.ª instância obedece às normas relativas ao processamento das transgressões e contravenções, não havendo lugar à redução da prova a escrito.
E dispõe o art. 75º, nº1 do mesmo diploma legal que se o contrário não resultar deste diploma, a 2.ª instância apenas conhecerá da matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões.
Assim, da conjugação dos artigos 66º e 75º, nº1, do RGCO extrai-se a norma geral impeditiva do recurso da matéria de facto.
Com efeito, no processo contra-ordenacional, o tribunal de 1ª instância que conhece da impugnação judicial funciona como instância de recurso em matéria de facto, sendo de considerar como uma decisão já em grau de reapreciação a sentença que profere, representando, assim, o recurso dessa sentença para o Tribunal da Relação uma segunda reapreciação da matéria.
É a diferente natureza dos ilícitos criminais e de mera ordenação social e a menor ressonância ética dos segundos que tem reflexos nos regimes processuais próprios de cada um deles, nomeadamente a não aplicabilidade direta e global aos processos contra-ordenacionais dos princípios constitucionais próprios do processo criminal, não sendo constitucionalmente imposto ao legislador a equiparação das garantias em ambos esses regimes; o direito ao recurso atualmente consagrado no nº 1 do artº 32º da C.R.P, enquanto meio de defesa contra a prolação de decisões jurisdicionais injustas, assegurando-se ao arguido a possibilidade de as impugnar para um segundo grau de jurisdição, apenas se encontra constitucionalmente exigido em processo penal, não tendo aplicação direta aos demais processos sancionatórios, nomeadamente ao processo de contra-ordenação. Na contra-ordenação o substrato da valoração jurídica não é constituído apenas pela conduta axiológico-socialmente neutra, sendo a proibição legal da mesma que lhe confere a qualificação de ilícita. Daí que a natureza puramente patrimonial da sanção que lhe é aplicável (a coima) se diferencia claramente, na sua essência e finalidades, das penas criminais, inclusive da multa.
Esta variação do grau de vinculação aos princípios do direito criminal, e a autonomia do tipo de sanção previsto para as contra-ordenações, repercute-se a nível adjetivo, não se justificando que sejam aplicáveis ao processo contra-ordenacional duma forma global e cega todos os princípios que orientam o direito processual penal.
As garantias de processo criminal previstas no art.32.º da CRP, são aplicáveis ao processo de contra-ordenação por força do seu n.º 10, quanto aos direitos de audiência e defesa, mas não comportam um direito ao duplo grau de jurisdição.
O recurso nas contra-ordenações em segunda instância é, assim, restrito à matéria de direito (art. 51º, nº 1, da Lei 107/2009, de 14.09, salvo se se verificar a existência dos vícios no julgamento da matéria de facto previstos no art. 410º, n.º 2, do CPP, caso este em que, mesmo no recurso penal restrito à matéria de direito, a Relação deles deverá, ainda que oficiosamente, conhecer, podendo e devendo alterar a matéria de facto, se dispuser de todos os elementos probatórios necessários para o efeito; ou, não dispondo desses elementos, reenviando os autos à 1.ª instância, para sanação do vício de acordo com o artigo 426º do CPP.
Com efeito, dispõe o citado art. 410º, nº 2, que:
“2. Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.”
E o Acórdão do STJ de 19.10.1995, publicado no DR I Série, de 28.12.95, fixou jurisprudência no sentido de que é oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos referidos vícios, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.
Ora, no caso sub judice, constata-se que o recorrente, em todas as conclusões, tenta atacar o julgamento da matéria de facto feito na primeira instância.
Porém, como já acima ficou dito, a propósito dos poderes de cognição deste Tribunal da Relação, o recurso interposto pelo recorrente está limitado, por imperativo legal, a matéria de direito.
Quanto aos factos, o Tribunal da Relação, como também já supra se disse, apenas poderá sindicar o que respeita aos vícios previstos nas diversas alíneas do art. 410º, n.º 2, do CPP. E, a este propósito, nada vem arguido pelo recorrente e afigura-se, feito o exame da sentença em apreço, que nada há que justifique qualquer reparo por parte desta instância.
Mas, sendo assim, quanto à discordância do recorrente sobre a fixação da matéria de facto provada não lhe assiste a possibilidade de impugnação da matéria de facto fixada.
Não havendo norma no âmbito do Regime Geral das Contra-Ordenações que admita o recurso relativo a matéria de facto, com exceção dos casos de processamento das contra-ordenações juntamente com crimes, em que lhes é aplicável o regime de recursos vigente para os ilícitos penais (cfr. artigo 78.º), prevalece o n.º 1 do artigo 75.º do citado diploma, que restringe o recurso no domínio das contra-ordenações a matéria de direito.
Daí que esteja legalmente vedado a este Tribunal da Relação a sindicância da matéria de facto que o tribunal a quo deu como provada.
Consequentemente, a matéria de facto fixada tem que considerar-se inalterável, sendo de rejeitar o recurso intentado.
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Decisão
Face ao exposto, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:
- Rejeitar o recurso interposto pelo recorrente.
- Condenar o recorrente em custas, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.
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Elaborado e revisto pela primeira signatária
Évora, 7 de Novembro de 2023
Laura Goulart Maurício
Margarida Bacelar
Artur Vargues