Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | ANABELA LUNA DE CARVALHO | ||
Descritores: | CESSÃO DE QUOTA ARRESTO JUSTO RECEIO DE PERDA OU DIMINUIÇÃO DA GARANTIA PATRIMONIAL | ||
Data do Acordão: | 09/14/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Sumário: | - A possibilidade do exercício do direito de preferência numa cessão de quotas não previne o risco de perda da garantia patrimonial que o valor pecuniário da quota representa. - Tal como o não previne a necessidade de consentimento da sociedade numa cessão a estranhos, se a cessão for consentida ou, não consentida, mas efetivada a um sócio proponente. - A cessão de quotas, mesmo entre sócios, não impede o risco de fuga da contrapartida pecuniária, logo, a possibilidade do exercício do direito de preferência não é impeditivo do arresto nas quotas do sócio requerido. (Sumário da Relatora) | ||
Decisão Texto Integral: | Apelação n.º 3739/23.9T8STB-A.E1 2ª Secção Acordam no Tribunal da Relação de Évora I Clínica..., Lda., sociedade comercial por quotas, com sede na Av. ..., Edifício ..., Escritório ..., ... ..., veio intentar o presente procedimento cautelar de arresto contra AA, residente na Rua ..., ... ..., pedindo o arresto das quotas da titularidade deste na sociedade requerente. Alegou, em síntese, que: - O requerido é sócio e foi gerente de facto da requerente desde a sua fundação e até 27/10/2015, tendo sido também gerente de facto e de direito desde esta data até 10/03/2021; - No desempenho dessas funções e através de várias atuações, o requerido ter-se-á apropriado, ao longo do tempo, de vários montantes pertença da sociedade, em seu proveito próprio e em prejuízo da sociedade e demais sócios, cujo valor computam em € 1.523.347,04; - O requerido terá, desse modo, causado à requerente, prejuízo no valor correspondente; - Os bens que lhe são conhecidos são insuficientes para liquidar o referido valor e a sociedade tem receio que o mesmo deles se despoje a fim de privar os credores de qualquer possibilidade de cobrança da aludida quantia; - As quotas detidas pelo requerido na sociedade ascendem ao valor nominal de € 47.500,00, € 21.250,00 e € 1.250,00. Procedeu-se à fase de instrução, após o que foi proferida sentença que julgou a providência improcedente “por não se mostrar indiciariamente provado o justo receio de perda da garantia patrimonial”.
Inconformada com tal decisão veio a requerente recorrer, assim concluindo as suas alegações de recurso: A – Efetuada a análise circunstanciada e pormenorizada da decisão ora recorrida, nos termos supra descritos, entende a Recorrente impugnar a decisão proferida sobre as al. b) e c) dos factos não provados, nos termos do artigo 640.º, n.º 1, alíneas a), b) e c) e impugnar a douta sentença nos termos do artigo 639.º, n.º 2, alínea a), do C.P.C. por errónea interpretação dos artigos 368.º, n.º 1, 391.º, n.º 1, ambos do C.P.C. e 619.º, n.º 1, do C.C., porquanto: B – Resulta dos documentos 43 a 46, que o requerido é detentor de outros bens para além das quotas sobre as quais recai o pedido de arresto, sendo que dos referidos documentos consta que os valores dos mesmos são de € 3.080,00, € 850,00 e € 2.500,00, todos inferiores aos valores destas quotas, que têm, um valor nominal total de € 70.000,00, por isso, valor manifestamente superior a qualquer outro dos bens detidos pelo requerido. C – Considerando a Meritíssima Juiz a quo na motivação, todos os documentos juntos, entre outros, as certidões de registo comercial e de registo predial, para concluir que o requerido era proprietário de outros bens, deveria da mesma forma ter concluído, que os bens a arrestar são os de maior valor e por essa razão deverá dar-se como provado o facto constante da alínea b) dos factos não provados. D – Das declarações de parte da representante legal BB e do depoimento da testemunha CC, resulta que o requerido após a realização da Assembleia Geral da Requerente, realizada em 20 de Outubro de 2021, assembleia em que foram levantadas as suspeitas quanto à gestão do requerido e quanto à verdadeira situação financeira da sociedade (factos 13 a 30 dos factos provados), procedeu à venda da sua casa de habitação, na Quinta ... e a duas tentativas de venda das quotas (factos 50 e 51 dos factos provados), que se pretendem ver arrestadas. E – Ora, a recente venda (2022) efetuada pelo requerido, da sua casa de habitação e as tentativas de cedência das quotas, sendo todos estes atos posteriores às suspeitas sobre a conduta do requerido, são reveladores da verdadeira intenção do requerido, de se ver livre dos bens que possam garantir algum ressarcimento do prejuízo causado à recorrente. F – Mas mais do que reveladores da verdadeira intenção do requerido, são indubitavelmente bastantes, para justificar o justo receio da recorrente de vir a perder algumas das garantias que tem para o seu ressarcimento, como sejam o caso das quotas cujo arresto se requereu. G – Não obstante a Meritíssima Juiz ter considerado relevante o depoimento daquela testemunha para confirmar a existência do direito de preferência dos sócios nas cedências das quotas, descurou a informação prestada pelo mesmo, quanto à recente venda do imóvel, o que releva para se determinar a existência do justo receio, não merecendo qualquer menção na motivação. H – Ora em face das declarações de parte e do depoimento indicado e dos factos 13 a 30, 50 e 51 já dados como provados, deve ser alterada a decisão que recaiu sobre o facto constante da alínea c) e passar o mesmo a integrar a lista dos factos provados: I – Na douta sentença in crise é efetuada uma errónea interpretação dos artigos 368.º, n.º 1, 391.º, n.º 1, ambos do C.P.C. e 619.º, n.º 1, do C.C., ao considerar que: “…não logrou a requerente fazer prova de modo minimamente consistente do justo receio de perda de garantia patrimonial, porquanto a garantia cujo arresto se pretende é composta pelas quotas, relativamente às quais os demais sócios gozam do direito de preferência em qualquer negócio de venda, pelo que, se torna muito difícil a execução e qualquer alienação pelo requerido, das quotas sociais com o desconhecimento da requerente ou dos demais sócios”. J – Ora com todo o devido respeito, que é muito, não andou bem o julgador, ao não avaliar corretamente o conceito de justo receio previsto pelo legislador e ao confundir o que são os bens dos sócios com os bens da sociedade. L – A Meritíssima Juiz a quo define, e bem, que os elementos constitutivos do fundamento para que seja decretado o arresto são: c) A probabilidade da existência de um crédito por parte da requerente e d) O justo receio da perda da garantia patrimonial. M – Na situação em apreço, temos um requerido, contra quem foi provado ter o requerente um crédito, no montante de € 1.523.347,04. N – Quanto aos bens detidos pelo requerido: a) Resulta dos documentos juntos ao requerimento inicial, que o requerido é proprietário, para além das quotas na sociedade recorrente, com o valor nominal de € 70.000,00, de mais duas quotas, em duas outras sociedades comerciais, com os valores nominais de € 850,00 e € 2.500,00 respetivamente e de um terreno com o valor patrimonial de € 3.080.69, sendo que as quotas na sociedade recorrente são o bem de maior valor propriedade do requerido; b) Resulta dos documentos e dos factos 50 e 51 dos factos provados, que já por duas vezes o requerido tentou ceder as quotas, a não sócios. c) Resulta das declarações de parte da Representante Legal BB, que a venda da casa ocorreu após a realização da Assembleia de 20 Outubro de 2021. d) Resulta ainda do depoimento da testemunha Dr. CC, que o requerido em 2022 vendeu a sua casa de habitação da qual era proprietário. e) Resulta dos nºs 13 a 30 dos factos provados, que foi do conhecimento do requerido as suspeitas à sua atuação, como gerente, e à fiabilidade das contas da sociedade e que essa suspeita se iniciou em outubro de 2021, ou seja, que tanto a venda do imóvel como as tentativas de cedência das ações foram posteriores a estas suspeitas. O – Assim, provado o valor do prejuízo, o valor dos bens que se pretendem arrestar, que são os bens de maior valor atualmente pertença do requerido, que se tem conhecimento, e os atos de disposição, ou tentativas de disposição, praticados pelo requerido sobre os bens que lhe pertencem, nomeadamente sobre o bem de maior valor que atualmente detém (quotas da sociedade requerente), resta apurar se se encontra verificado o fundado receio do recorrente perder a garantia patrimonial do seu crédito, conforme previsto nos artigos 619.º, n.º 1, do C.C., 368.º e 391.º ambos do C.P.C.. P – A recorrente alegou e provou no seu requerimento inicial a situação de dificuldade económica confessada pelo próprio requerido, que o levou a retirar dinheiro da sociedade, para prover às suas necessidades financeiras e que procedeu à venda da sua casa de habitação em 2022, ocorrendo este ato de disposição, assim como as tentativas de cedência das quotas, após a suspeita levantada pelos sócios quanto à conduta do requerido e à situação financeira da sociedade. Q – A recorrente alegou e provou que caso as tentativas de venda das quotas perpetradas pelo recorrido, se venham a concretizar, fazem com que a recorrente perca o bem de maior valor do requerido, que lhe permitia reduzir o crédito que detém sobre este, o que pode vir a acontecer se um dos sócios exercer o direito de preferência e o requerido aceitar a venda ao sócio. R – A quota é um bem que pertence ao sócio e não à sociedade, o que significa que uma vez cedido a outro sócio, ou a terceiro, a sociedade deixa de poder contar com ele para se ressarcir do prejuízo causado pelo requerido. S – Assim o facto de os sócios serem detentores do direito de preferência na aquisição das quotas dos outros sócios, não é garantia para a sociedade de que pode contar com essas quotas para o ressarcimento dos prejuízos causados por quem as detém, uma vez que tal só ocorre se na data em que for executado o requerido, o mesmo mantiver na sua posse a referida quota. T – Logo o argumento de que com este direito de preferência assegurado, torna-se muito difícil a execução de qualquer alienação pelo requerido das quotas sociais com o desconhecimento da requerente ou dos demais sócios, não releva para o justo receio que a recorrente tem de ver desaparecer estes bens do património do devedor. U – Estes bens podem ser alienados a algum sócio ou a terceiro, sempre com o conhecimento da requerente, mas encontrando-se esta impotente para impedir tal alienação e vendo desaparecer à sua frente a principal garantia do ressarcimento de parte do seu crédito. V – O valor do prejuízo em causa é muito elevado e já constatámos que o requerido está a desfazer-se, ou a tentar desfazer-se dos bens mais valiosos que tem, ficando sem qualquer capacidade para ressarcir a requerente do valor de € 1.523.347,04. X – Refira-se ainda que a jurisprudência é unânime ao considerar que consubstancia o justo receio “o perigo de serem praticados atos de ocultação, disposição, alienação ou oneração do património do devedor.” Z – A correta interpretação do justo receio previsto nos artigos 368.º, n.º 1, 391.º, n.º 1, ambos do C.P.C. e 619.º, n.º 1, do C.C, conjugada com a factualidade dada como provada, só poderia concluir que estavam preenchidos os dois requisitos necessários ao decretamento da providência requerida. AA – Por todo o exposto deverá ser concedido provimento ao presente recurso e, consequentemente ser revogada a sentença recorrida por outra que considere procedente o procedimento de Arresto, assim se fazendo Justiça. II Na consideração de que o objeto dos recursos se delimita pelas conclusões das alegações (artigos 635.º, n.º 3 e 639.º, n.os 1 e 2, CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 608.º, in fine), importa apreciar se houve erro na apreciação de facto e/ou de direito do requisito “justificado receio de perda da garantia patrimonial”. III Foram os seguintes os factos dados como indiciariamente provados com relevância para a decisão: 1. A A. é uma sociedade por quotas com um capital social de € 250.000,00, dividido pelas seguintes quotas (de acordo com certidão permanente que se junta como doc. n.º 1 e cujo código de acesso é … e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido): 1- AA, titular de três quotas, com os valores nominais de € 47.500,00, € 21.250,00 e € 1.250,00; 2- DD, titular de uma quota com o valor nominal de € 22.500,00; 3- BB, titular de uma quota com o valor nominal de € 22.500,00; 4- EE, titular de uma quota com o valor nominal de € 22.500,00; 5- FF, titular de uma quota com o valor nominal de € 22.500,00; 6- CC, titular de uma quota com o valor nominal de € 22.500,00; 7- GG, titular de uma quota com o valor nominal de € 22.500,00; 8- HH, titular de uma quota com o valor nominal de € 22.500,00 (vinte e dois mil e quinhentos euros); 9- Clínica..., Lda., titular de uma quota com o valor nominal de € 22.500,00. 2. No dia 23 de novembro de 2022 foi deliberado em Assembleia Geral da A., regularmente convocada, a necessidade de se requerer judicialmente o arresto das quotas do II, ora R. para garantir o ressarcimento à sociedade dos prejuízos por si causados e ainda que quem representaria a sociedade na providência cautelar e na ação principal a intentar contra aquele sócio, eram as sócias DD e BB. 3. A deliberação foi aprovada por 45% dos votos presentes, contra 18% que votaram contra. 4. A gerente de direito da sociedade A. desde a data da sua constituição 20-02-1997, até 27-10-2015, foi BB. 5. Em 10 de Março de 2005, por deliberação transcrita na ata nº 19, os sócios aprovaram que o II, em conjunto com a sócia HH ou com um dos não sócios JJ, KK e CC, podiam representar a sociedade perante qualquer entidade bancária, assinando e endossando cheques e o mais que se mostrasse adequado aos indicados fins. 6. Posteriormente, por deliberação de 12 de Setembro de 2005, transcrita na ata 22, e na sequência da deliberação anterior, foi aprovado pelos sócios que a gerente BB outorgasse procuração a favor dos indicados procuradores para representar e obrigar a sociedade perante quaisquer entidades bancárias, podendo assinar endossar cheques e o mais que se tornasse necessário à movimentação de quaisquer contas bancárias da sociedade. 7. A pessoa que ordenava transferências e pagamentos e, perante os clientes, recebia diretamente os valores destinados à A. era o ora R.. 8. Em assembleia geral de 27 de Outubro de 2015, com a justificação das distâncias entre a residência e local de trabalho da gerente BB e a Clínica e as dificuldades daí resultantes, deliberaram os sócios alterar a gerência da sociedade, nomeando um novo gerente, o ora R.. 9. Na verdade, durante todo o período de gerência da sócia BB, a gerência de facto foi exercida pelo sócio AA, pessoa que estava diariamente na clínica. 10. O R. utilizou a sua conta pessoal, para receber os valores do SNS, através do factoring e que posteriormente transferia para a conta da clínica. 11. O R. só não foi gerente de direito desde a constituição a sociedade, por tal lhe estar vedado legalmente, pelo facto de exercer, em simultâneo, funções no SNS e só após terminar essas funções poder assumir a gerência de direito. 12. Desde o início da sociedade quem assumiu a gerência de facto da mesma e a partir de 27 de Outubro de 2015 e até 10 de Março de 2021, a gerência de facto e de direito foi o R.. 13. Em 20 de Outubro de 2021, na Assembleia Geral, para a qual foi lavrada a ata com o n.º (…) e que posteriormente vieram a ser declaradas nulas as deliberações sociais aí tomadas, o R. à data gerente, declarou que era devedor da empresa de um montante que se encontrava registado na contabilidade, no montante de € 213.344,77, sob a conta 27.8.8.05, do Balancete Analítico de 2020. 14. O R. disse ter passado por algumas dificuldades e desculpou-se com as despesas de duas viaturas, não tendo apresentado qualquer justificação válida financeiramente para a A., nem ter apresentado autorização por parte desta, para a utilização daquele montante. 15. Acrescentou ainda que a situação acabou por se arrastar no tempo e que chegados a Outubro de 2021 ainda não tinha conseguido reembolsar a sociedade. 16. Esta declaração levantou suspeitas na maioria dos sócios, as quais foram reforçadas pela seguinte circunstância: 17. Os sócios da A., com exceção do sócio CC, são igualmente sócios da sociedade comercial por quotas Clínica... Lda., com o NIPC ...10, com sede na mesma morada, conforme certidão Comercial com o Código de Acesso ...10. 18. As duas sociedades têm o mesmo Contabilista Certificado, irmão do R. e tiveram sempre o mesmo gerente, exceto a partir de 27 de Dezembro de 2021, data em que o R. renunciou à gerência da A, mas mantém-se até ao presente como gerente da Clínica... Lda.. 19. Mais se esclarece que o Contabilista Certificado das duas sociedades, irmão do R. foi, até 2015-10-09, sócio maioritário da empresa. 20. No mesmo dia em que ocorreu a Assembleia da A., precedente a esta, ocorreu a Assembleia da Clínica... Lda., na qual havia sido aprovado o Relatório de gestão e contas do exercício de 2020, onde não constava qualquer dívida daquela sociedade, à sociedade A., conforme se comprova pelo respetivo Relatório de gestão e Balanço de 2020, cuja anulação de deliberação já foi judicialmente decretada. 21. Na assembleia da A., analisando o relatório de contas constatam os sócios a existência de um crédito sobre a sociedade Clínica... Lda., no valor de € 259.076,85, que consta da conta 27.8.8.01, quando do Balanço daquela sociedade não consta qualquer passivo, nem em 2019, nem em 2020. 22. Questionado o sócio gerente à data, ora R. nenhuma explicação foi dada para a divergência contabilística verificada. 23. As situações supra descritas levaram os sócios a duvidar da contabilidade da A. e da sua real situação financeira. 24. Nessa altura alguns dos sócios da A.A. resolveram pedir ao gerente a consulta a uma listagem de documentos contabilísticos da empresa, que entre outros incluíam os extratos bancários, a fim de tentar avaliar o que se passava com a sociedade. 25. Foi agendado pelo R. então gerente a consulta à documentação solicitada, para o dia 15 de Novembro de 2021 (a data de 15 de Outubro tratou-se de um lapso de escrita). 26. Por email de 12/11/2021, o R. confirma que toda a documentação estará disponível inclusive extratos bancários. 27. No dia aprazado deslocou-se às instalações, a sócia da A., DD, acompanhada de advogada e do ROC LL. 28. Da documentação disponibilizada não existiam as pastas com os extratos bancários, mas apenas uma ou outra folha solta de um extrato bancário. 29. Questionado o R., disse que não dispunha dos extratos bancários, nem estava obrigado a tê-los, nem tão pouco os mesmos são necessários à contabilidade da empresa. 30. Face à não apresentação dos extratos bancários foi solicitada em 2021 por alguns dos sócios uma auditoria aos anos de 2011 a 2020 e ainda que fossem solicitados aos bancos todos os extratos bancários das contas das clínicas. 31. Foram sempre colocados entraves anteriormente pelo R. e depois pela atual gerente, para a obtenção dos referidos extratos, a qual só os veio a solicitar em 18 de Março de 2022, tendo tal pedido de extratos bancários sido suportado por alguns sócios e não pela A.. 32. As despesas com os extratos bancários e com a auditoria foram suportados, na íntegra, pelos sócios: DD, BB, CC, GG e HH. 33. Foram entregues aos sócios, pela atual gerente da clínica, os extratos das contas por estes solicitados, que se aceitaram corresponder às contas da Clínica ao longo destes 10 anos, as quais, ou seja: a. Conta da Caixa Geral de depósitos com o n.º ...30; b. Conta do Banco (…), com o n.º ...09 ; c. Conta do (…) Banco (ex …) até 2016 com o n.º ...40 e após Outubro de 2016 com o n.º ...20. 34. Após obtenção de todos os extratos das referidas contas, que demoraram entre 3 e 4 meses, manteve-se a dificuldade na obtenção de documentação por parte do Contabilista Certificado. 35. Agendada a data para a Auditoria, de acordo com a disponibilização de instalações por parte da Clínica, os trabalhos tiveram o seu início em 12/12/2022. 36. Da auditoria realizada, cujo relatório se mostra junto como Doc. n.º 27, e respetivos anexos cujos teores aqui se dão por reproduzidos, verificam-se várias irregularidades. 37. Além das contas que foram indicadas como sendo as da sociedade, para o período em causa, 2011 a 2020, foi apurado por exame aos documentos contabilísticos, que durante esses anos a sociedade também era titular das seguintes contas, que movimentavam os valores recebidos nomeadamente pela ADSE e SNS: a. Conta da Caixa Geral de Depósitos com o n.º ...30; b. Conta Banco Santander com o n.º ...20. 38. A atual gerente apesar de ter como denominação da função Consultora Comercial, na prática era a Secretária que coordenava juntamente com o R. toda a movimentação de dinheiros da A. e 39. Por essa razão o R. propôs a nomeação da referida colaboradora como gerente e desta forma garantiu que continuava a ter o controle sobre a gestão da A., mesmo após a sua saída. 40. Sendo o R. sócio maioritário, conseguiu aprovar com mais dois sócios a nomeação dessa gerente. 41. Apesar de não terem os sócios acesso a todas as contas da empresa, conseguiram apurar uma série de irregularidades praticadas pelo R. ao longo dos diversos anos, de 2011 a 2020, corroboradas pela documentação que suportou a contabilidade e a que não suportou. 42. Da análise da contabilidade resulta a total inexistência de reconciliações bancárias, entradas de valores em contas superiores aos contabilizados, saídas de valores de contas superiores aos contabilizados, a contabilização de valores sem documento de suporte, a não contabilização de valores apesar da documentação existente e a incorreta contabilização. 43. A diferença líquida entre as entradas e saídas de dinheiro em bancos (nas contas conhecidas), é superior ao que a contabilidade regista e o responsável por todas as movimentações era o R.. 44. A diferença total apurada é de € 1.396.589,00. 45. Ao longo destes 10 anos, com um valor cujo destino se desconhece de € 1.396.589,00, que não existe nas contas bancárias da A.. 46. A este valor acrescem os empréstimos que o sócio reconhece ter efetuado, que no final de 2020 totalizavam € 213.344,77. 47. A sociedade teve de recorrer a diversos empréstimos bancários, na modalidade de conta corrente caucionada e à constituição de leasing para compra de instalações e equipamentos, que custaram à empresa em juros o valor de € 126.758,04. 48. Os juros discriminados pelo período em causa na presente ação tiveram os seguintes valores: Ano ------------- Juros 2020------------ € 4.669,62 2019------------ € 6.107,84 2018------------ € 5.944,78 2017------------ € 5.932,71 2016------------ € 11.538,17 2015------------ € 11.524,20 2014------------ € 12.794,19 2013------------ € 11.364,01 2012----------- € 22.790,00 2011----------- € 34.092,52 Total € 126.758,04 49. O R. é proprietário das quotas que detém na sociedade A. identificadas em 1 dos factos. 50. Desde final de 2020 que o R. tenta ceder/vender as quotas que detém na R. primeiro através de uma cedência de quotas efetuada a favor do marido de uma das sócias, conforme Menção Dep. 2791/2020-12-24 e 2792/2020-12-24, as quais não se concretizaram. 51. Posteriormente, em 10 de Dezembro de 2021, o R., na altura como gerente, enviou convocatória para assembleia geral a realizar no dia 27 de Dezembro de 2021, onde no ponto 2 da ordem de trabalhos inclui a cedência de duas das quotas detidas pelo R., a quota no valor de € 47.500,00 e que tem o valor de € 21.250,00, a um não sócio, que depois vem a retirar quando alguns dos sócios exercem o seu direito de preferência. 52. Os demais sócios têm direito de preferência na alienação ou transferência da titularidade das quotas detidas pelo R..
E foram dados como indiciariamente não provados os seguintes factos: a) Não são conhecidos quaisquer outros bens do R. que possam servir para garantir o crédito que a A. detém sobre o mesmo. b) As quotas que o R. detém na sociedade A. são as mais valiosas do património que lhe é conhecido e apesar de não serem suficientes para garantir a totalidade do prejuízo que causou à A., são a forma de garantir pelo menos uma parte desse prejuízo. c) Com as tentativas de cedência de quotas pelo R., a A. tem o justo receio de vir a perder todo o património que ainda resta ao R., que apesar de não perfazer o valor do prejuízo causado a A. irá servir para ressarcir substancialmente o mesmo (Conclusivo). IV Apreciando o recurso. Face ao objeto do recurso importa antecipar que, tendo embora ocorrido impugnação da matéria de facto relativamente às alíneas c) e d) do elenco da “matéria não indiciada”, tal impugnação se afigura irrelevante, constituindo ato inútil o seu conhecimento, que se dispensa (artigo 6.º CPC), por ser outra a lógica do raciocínio e a conclusão jurídica a que neste recurso se chegará, partindo das premissas factuais dadas como “indiciadas”, sem discussão. Vejamos pois. Lê-se na sentença, em fundamentação sumária, que: “No caso dos autos, embora resulte indiciado o valor do crédito, não logrou a requerente fazer prova de modo minimamente consistente do justo receio de perda de garantia patrimonial, porquanto a garantia cujo arresto se pretende é composta pelas quotas, relativamente às quais os demais sócios gozam de direito de preferência em qualquer negócio de venda, pelo que, se torna muito difícil a execução de qualquer alienação pelo requerido, das quotas sociais com o desconhecimento da requerente ou dos demais sócios. Em suma, a matéria alegada não integra o justo receio a que alude a lei. Há um aparente direito de a requerente ser paga, não há requisitos para desencadear a presente providência. Impõe-se, pois, a improcedência da providência, por não se mostrar indiciariamente provado o justo receio de perda da garantia patrimonial.» Assentou este raciocínio na ideia de que, tendo sido pedido o arresto das quotas sociais do requerido devedor e, ocorrendo a necessidade de conceder direito de preferência aos demais sócios na eventualidade de alienação das quotas pelo sócio devedor, não será fácil ao requerido, ocultar da sociedade e dos demais sócios uma pretensão de alienação, logo, indemonstrado fica o receio de perda de garantia patrimonial, que (sempre) pressupõe o risco de ocultação. Vejamos da justeza desta conclusão. Está efetivamente provado que os demais sócios têm direito de preferência na alienação ou transferência da titularidade das quotas detidas pelo R.. Um direito que lhes advém do pacto social. A lei comercial não prevê qualquer direito de preferência legal nem dos sócios nem da sociedade em caso de cessão de quotas, mas prevê a possibilidade de o contrato social estipular cláusulas relativamente à cessão de quotas, que podem ir da dispensa de toda e qualquer autorização por parte da sociedade, até à proibição total da cessão, passando pelo direito de preferência dos sócios, conforme resulta do artigo 229.º do Código das Sociedades Comerciais. A par desse regime estatutário, estabelece ainda o artigo 228.º, n.º 2, do Código das Sociedades Comerciais, uma outra condicionante, relativamente à livre cessão de quotas a terceiros: “A cessão de quotas não produz efeitos para com a sociedade enquanto não for consentida por esta, a não ser que se trate de cessão entre cônjuges, entre ascendentes e descendentes ou entre sócios». Assim, nas cessões de quotas a favor de estranhos (ou seja, fora da categoria acima elencada) pode conceber-se um direito de preferência dos sócios, quando previsto no pacto social e, uma necessidade legal de autorização da cessão por parte da sociedade. Num plano teórico importa que se assinale que a expressão «cessão» constitui uma designação genérica que abarca várias situações: compra e venda, doação e outros negócios diversos, típicos e atípicos do domínio da autonomia privada. Concordamos, pois, com a Mmª Julgadora, não ser fácil a ocultação da alienação das quotas perante os demais sócios, face à imposição “estatutária” de conceder a estes o direito de preferência nessa alienação, bem como, acrescentamos nós, face à necessidade de sujeitar os efeitos cessionários ao consentimento por parte da sociedade, a menos que se trate de cedência a cônjuge, ascendente, descendente ou a outro sócio. Mas essa dificuldade de ocultação não resolve todos os contornos da questão. O que se pretende prevenir com o arresto é não só que não ocorram atos de ocultação, mas também de disposição, alienação ou oneração dos bens do devedor, no entendimento da melhor jurisprudência, e não apenas de ocultação. O exercício do direito de preferência é um exercício livre para quem dele beneficia. Os demais sócios a quem tal exercício deve ser facultado não estão onerados com tal exercício. São livres de o exercer. Se um sócio declarar pretender preferir nos moldes que lhe forem propostos e a cessão for onerosa, o cedente receberá a contrapartida pecuniária e fará dela o que entender. Se nenhum sócio preferir e, a cessão for feita a terceiros, com autorização da sociedade, o cedente fará igualmente o que entender da contrapartida pecuniária, logo a receba. Existe assim risco de dissipação do património que o valor das quotas representa. O risco de dissipação do património existirá igualmente se a cessão for gratuita, não havendo sequer contrapartida a receber. A possibilidade do exercício do direito de preferência numa cessão de quotas não previne, pois, o risco de perda da garantia patrimonial que o valor pecuniário da quota representa. Tal como o não previne a necessidade de consentimento da sociedade numa cessão a estranhos, se a cessão for consentida ou, não sendo consentida, seja efetivada a um sócio proponente. A cessão de quotas, mesmo entre sócios, não impede o risco de fuga da contrapartida pecuniária, logo, a possibilidade do exercício do direito de preferência não basta para acautelar a preservação da integridade patrimonial do devedor e invalidar que seja prudente o arresto nas quotas do sócio requerido. Face ao risco de tais consequências para a credora, contrariada está a conclusão da sentença de que não se verifica o justificado receio de perda de garantia patrimonial com uma eventual cessão de quotas da iniciativa do requerido. Tem a recorrente, por isso, legítimo interesse na preservação da integridade da quota do requerido no património pessoal deste. Sendo pressupostos do arresto, a demonstração por parte do requerente da provável existência do crédito e do justificado receio de perda de garantia patrimonial (artigo 392.º, n.º 1, do CPC), e uma vez demonstrado um núcleo factual forte indiciador do direito de crédito da requerente em milhares de euros, por prática ao longo dos anos, de deslocações patrimoniais em proveito próprio, de valores da requerente, de forma não consentida por esta e ocultada pelo requerido, bem como atos de alienação de bens do seu património pessoal (consumados uns, tentados outros), sendo pouco expressivo o seu património pessoal para solver tal avultado crédito, dúvidas não haverá de que estão verificados os pressupostos legais para o arresto das quotas do requerido ser decretado. Procedendo o recurso.
Em suma: (…) V Pelo exposto, acorda-se em conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar a decisão final, substituindo-a por outra que ordena o arresto das quotas da titularidade do requerido na sociedade requerente. Custas pela requerente, a atender a final na ação respetiva (artigos 527.º, 1 e 539.º, 2, do CPC). * Évora, 14/09/2023 Anabela Luna de Carvalho (Relatora) Ana Margarida Leite (1ª Adjunta) Vítor Sequinho dos Santos (2º Adjunto) |