Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1194/22.0T8EVR.E1
Relator: ALBERTINA PEDROSO
Descritores: COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
MUNICÍPIO
Data do Acordão: 07/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
Versando o objeto do litígio sobre a execução específica de um contrato de opção de compra, de natureza privada, não é o mesmo subsumível em qualquer das hipóteses previstas no artigo 4.º, n.º 1, do ETAF, apesar de o réu ser um Município, pelo que, a competência material para conhecer da causa incumbe ao foro comum.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
Processo n.º 1194/22.0T8EVR.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Évora[1]
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Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[2]:

I – RELATÓRIO
1. CLUBE DE TIRO DE SOUSEL intentou a presente ação comum contra o MUNICÍPIO DE SOUSEL, pessoa coletiva de direito público, pedindo que seja “proferida sentença que substitua a declaração negocial do Réu, declarando que vende ao Autor o prédio urbano em propriedade total sem andares nem divisões de utilização independente sito no Poço do Vieira, Sousel, inscrito, na matriz predial urbana da freguesia de Sousel, concelho de Sousel, sob o artigo nº1514 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Sousel sob a descrição 1696, pelo valor declarado no pacto de opção, operando-se a transmissão para o Autor da propriedade do referido imóvel” e que seja “proferida sentença que substitua a declaração negocial do Réu, declarando que vende ao Autor o prédio rustico, denominado Olival ao poço dos Vieiras, sito no Poço do Vieira, Sousel, inscrito, na matriz predial rustica da freguesia de Sousel, concelho de Sousel, sob o artigo 87, secção M e descrito na Conservatória do Registo Predial de Sousel sob a descrição 1696, pelo valor declarado no pacto de opção, operando-se a transmissão para o Autor da propriedade do referido imóvel”.
Para tal alegou, em síntese, ser o réu Município o atual proprietário de prédio cuja parte urbana lhe foi entregue através de contrato de arrendamento, já em 2004, o qual foi outorgado pelos anteriores proprietários do mesmo. Em novembro de 2011 tal prédio foi adquirido pelo réu o qual passou a ocupar a posição contratual de senhorio, sendo que a aquisição do prédio por parte do réu teve como “propósito de o manter afeto à atividade e aos fins estatutários do autor e de o transmitir a este no futuro”, porque este já havia “ponderado a aquisição do referido prédio, todavia, não possuía capacidade financeira para suportar o valor da aquisição do prédio juntamente com os custos relativos às inúmeras obras de conservação urgentes de que o prédio urbano carecia”, motivo pelo qual, “atenta a natureza do objeto e atividade do autor servir o interesse associativo e coletivo do concelho, assim como a atividade de tiro desportivo field target poder vir a constituir interesse para o turismo”.
Mais invocou que, em virtude do aludido interesse, tal prédio seria mantido na posse e afeto à atividade do autor, mediante um contrato de comodato, com a possibilidade e garantia de o prédio ser adquirido pelo autor no futuro, assim se salvaguardando os investimentos feitos no prédio pelo mesmo, vindo tal contrato de comodato a ser celebrado em fevereiro de 2013, pelo período de 20 anos, contendo uma cláusula que estipula que “após ter decorrido 1/5 de tempo previsto no comodato, pode o segundo outorgante exercer opção de compra do imóvel ora comodatado pelo valor pago pela Câmara Municipal de Sousel no momento da aquisição, acrescido da taxa de inflação entretanto ocorrida em cada um dos anos até ao ano imediatamente anterior à opção de compra”.
Alegou ainda que, tendo decorrido o aludido prazo de 4 anos, em novembro de 2021 remeteu missiva ao réu em que comunicou o exercício do direito de opção, solicitando o cálculo do valor a pagar para a aquisição, tendo sido confrontado com um ofício emanado pelo réu de recusa de celebração do contrato de compra e venda por se suscitarem “reservas” quanto ao direito de opção reconhecido em sede contratual.
Em face do conteúdo do contrato de comodato a que se reporta o autor, o qual contém em si o aludido direito de opção de compra pede, então, que o Tribunal se substitua ao réu na emissão da declaração negocial faltosa nos termos supra expostos (após resposta a convite de aperfeiçoamento do Tribunal).

2. Regularmente citado, o Réu contestou, arguindo, no que importa ao objeto do recurso, a exceção de incompetência absoluta dos tribunais judicias em razão da matéria, invocando, designadamente, que o teor do contrato celebrado, por ter como parte outorgante o Município e respeitar a venda do património privado das autarquias locais, reveste matéria cuja apreciação é da competência dos tribunais administrativos e fiscais. Defendeu ainda, na parte relevante para o conhecimento da aludida exceção, a verificação da nulidade do contrato em razão de ser ilegal a cláusula de opção de compra nele inserida, mencionando a aplicabilidade de normas referentes ao procedimento de contratação pública que foram preteridas e, bem assim, reportando-se a nulidades de índole procedimental administrativista.

3. O autor respondeu à matéria de exceção deduzida na contestação, pugnando pela improcedência da exceção de incompetência absoluta.

4. Por despacho proferido em 29.12.2022, foi julgada improcedente a arguida exceção dilatória de incompetência absoluta em razão da matéria dos Tribunais da jurisdição comum[3].

5. Inconformado, o Réu Município apelou, encerrando as suas alegações com as seguintes conclusões:
«1. O art. 4º do CCP constitui uma norma que exaustivamente enumera os contratos que estão excluídos da sua aplicação, sendo certo que os contratos de direito privado que o CCP exclui da sua aplicação são os enumerados no art. 4º nº 2 c), mas nem naqueles aí especificamente identificados, nem nos outros a que a norma alude como contratos similares se pode incluir o contrato de comodato.
2. Tendo por referência a mencionada norma, no que concerne a este tipo de contratos de índole mais privada, a sua exclusão do âmbito de aplicação do CCP apenas se pode fazer pela subsunção do contrato em causa a um dos segmentos do art. 4º nº 2 c): ou o contrato é qualificado pelo tribunal como um contrato de compra e venda, doação, permuta ou arrendamento de bens imóveis, ou como um contrato similar a estes, sendo certo que, para tal, estaria o tribunal a quo obrigado a discorrer sobre aspetos do contrato que demonstrem essa similitude, o que, de todo, não aconteceu.
3. O contrato dos autos está sujeito à disciplina do CCP porque o ora Apelante é uma autarquia local e, nessa medida, à luz do art. 2º nº 1 c) e do art. 3º nº 1 a) do CCP, assume a qualidade e entidade adjudicante e de contraente público, dispondo o art. 1º nº 2 do CCP que aos contratos celebrados por uma entidade adjudicante se aplica a parte II do diploma e o art. 280º nº 1 d) do CCP que aos contratos celebrados por um contraente público e submetidos – ou que o podem ou deveriam ter sido – a procedimentos de formação regulados por normas de direito público, como a parte II do CCP, se aplica a parte III do diploma.
4. As disposições da parte III do CCP relativas à invalidade do contrato sempre seriam aplicáveis ao contrato dos autos por se tratar de contrato público, na medida em que é celebrado por entidade adjudicante, independentemente da sua qualificação do contrato como administrativo: “As disposições do presente título relativas à invalidade, limites à modificação objetiva, cessão da posição contratual e subcontratação são aplicáveis, com as devidas adaptações e sem prejuízo do disposto em lei especial, a todos os contratos públicos, independentemente da sua qualificação como contratos administrativos nos termos do n.º 1” – art. 280º nº 3 CCP.
5. Essa aplicação das normas da parte III do CCP relativas, nomeadamente, à invalidade do contrato tem especial relevância nos autos, dado que um dos argumentos de defesa do Apelante é precisamente a invalidade da deliberação que antecedeu a outorga do contrato, enquanto vício procedimental do art. 283º nº 1 do CCP.
6. Aplicando-se assim ao contrato dos autos um regime de direito público administrativo, tanto procedimental como substantivo e, neste último, tanto por sua qualificação como contrato administrativo, como, independentemente disso, por ser um contrato público para efeitos da parte II do CCP, a competência material para julgar esta ação está cometida aos tribunais administrativos e fiscais e não aos tribunais comuns, nos termos do art. 4º nº 1 e) do ETAF.
7. É preciso notar-se que a resolução desta questão deve centrar-se em redor da aplicação ou não da disciplina do CCP ao contrato em causa em função da natureza jurídica do apelante, e daí, partir-se para a incompetência em razão da matéria deste tribunal, já que, com a aplicação do CCP ao contrato em causa, não estamos a ver como será possível o litígio manter-se nos tribunais comuns.
8. Além do exposto, sempre será de aplicar aos contratos da administração pública não submetidos a um regime procedimental ou substantivo de direito público o regime do Decreto-Lei n.º 280/2007, de 07 de Agosto (Regime Jurídico do Património Imobiliário Público), concretamente o seu capítulo III, relativo ao regime jurídico da gestão dos bens imóveis do domínio privado do Estado e dos institutos públicos, nos termos do art. 10.º do Código Civil, por existir uma lacuna de regulamentação nessa área, com fundamento na preocupação do legislador com um possível extravio do exercício da função administrativa para fins não servientes do interesse público no âmbito contratual, já que manda aplicar os princípios gerais da atividade administrativa mesmo aos referidos contratos (art. 202º nº 2 do Código do Procedimento Administrativo), sem que se tenha estabelecido o necessário procedimento pré-contratual para a sua celebração.
9. É necessária uma regulação da disposição de imóveis das autarquias locais para assegurar que os respetivos atos dispositivos servem o interesse público e não são utilizados para desbaratar património das pessoas coletivas públicas que o devem prosseguir, o que, na falta de regulamentação, se consegue melhor através da aplicação, aos atos dispositivos de património imobiliário privado das autarquias locais, do referido regime jurídico da gestão dos bens imóveis do domínio privado do Estado e dos institutos públicos, com as necessárias adaptações.
10. Nos termos do art. 202º nº 2 do Código do Procedimento Administrativo, mesmo a tais contratos privados da administração pública não sujeitos a um regime de direito público (procedimental ou substantivo), são aplicáveis os referidos princípios, como sejam os princípios da prossecução do interesse público (art. 4º do CPA), da boa administração (art. 5º CPA), e da imparcialidade (art. 9º), os quais são especialmente relevantes no caso dos autos, uma vez que o Apelado, ora Autor, afirma expressamente na sua P.I. que os negócios de arrendamento e comodato celebrados entre ele e o Município de Sousel ao longo do tempo – através do anterior executivo municipal e não do atual – tiveram como único e exclusivo intuito “manter afeto à atividade e aos fins estatutários do autor” o prédio objeto desses negócios “e de o transmitir a este no futuro”, porquanto “não possuía capacidade financeira para suportar o valor da aquisição”, o que dificilmente é compatível com o respeito por tais princípios.
11. Pela sujeição do Município de Sousel nesse contrato a princípios de direito administrativo conformadores da sua atuação, terá de se considerar a relação contratual do comodato como relação jurídica administrativa para os efeitos do art. 4º nº 1 o) do ETAF, que atribui à jurisdição administrativa e fiscal a competência para a sua apreciação.
12. De um modo ou outro e salvo melhor entendimento, o contrato dos autos está aqui sujeito a regulação pública administrativa ou, pelo menos, constitui uma relação jurídica administrativa, sendo competente para o apreciar a respetiva jurisdição administrativa e fiscal, pelo que, ao entender de modo contrário, o tribunal “a quo” fez uma interpretação incorreta das citadas normas e, nessa medida, violou as disposições dos artigos 1º nº 2, 2º nº 1 c), 3º nº 1 a) e 280º nº 1 a) e nº 3 do CCP, 202º nº 2 do CPA e 4º nº 1 e) do ETAF, impondo-se a sua revogação e, consequentemente, o reconhecimento da procedência da exceção da incompetência absoluta dos tribunais comuns, em razão da matéria, para julgar a presente ação, absolvendo-se o Apelante da instância, nos termos do art. 99º nº 1 do CPC».

6. O Apelado apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência da apelação.

7. Observados os vistos, cumpre decidir.
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II. O objeto do recurso.
Com base nas disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil[4], é pacífico que o objeto do recurso se limita pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo evidentemente daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Assim, a única questão colocada para apreciação no presente recurso de apelação consiste em determinar qual a jurisdição competente para decidir o pedido de execução da cláusula de opção de compra inserida no contrato de comodato celebrado entre as partes: se a dos tribunais administrativos, conforme sustenta o Apelante, se a dos tribunais comuns, como decidiu a primeira instância.
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III. – O mérito do recurso
Pretende o Apelante que, ao invés do decidido pelo tribunal a quo, o litígio em presença seja dirimido pela jurisdição administrativa e fiscal, uma vez que “o contrato dos autos está aqui sujeito a regulação pública administrativa ou, pelo menos, constitui uma relação jurídica administrativa”.
No polo inverso, defende o Apelado que “[t]rata-se de um contrato de índole puramente civilista, em que o recorrente intervém despido de poderes de autoridade (ius imperrii), negociando e clausulando um contrato ao nível do sujeito privado, tendo presente a confiança criada com o recorrido, mercê do desenvolvimento da sua atividade e do interesse desta para o concelho, assim como da relação concreta da atividade do recorrido com os referidos prédios, uma vez que já detinha o seu gozo exclusivo, eram essenciais para o prosseguimento desta e apenas este mantinha interesse dos mesmos. Livre, pois, de procedimentos prévios atinentes à observância das regras da contratação pública e da concorrência.”.
Vejamos[5].
Em face do disposto no artigo 211.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa[6], os Tribunais Judiciais são os tribunais comuns em matéria civil e criminal, e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens jurídicas, estabelecendo os artigos 64.º do CPC e 40.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26/08 – Lei da Organização do Sistema Judiciário[7] –, que os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, tendo consequentemente também competência residual no confronto com as outras ordens de tribunais.
Como evidenciam ANTUNES VARELA, MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO e NORA[8], «[p]ara que possa decidir sobre o mérito ou fundo da questão, requer-se que o tribunal, perante o qual a acção foi proposta, seja competente». Por isso, a competência é «um dos pressupostos processuais mais importantes, relativo ao tribunal», e «resulta do facto de o poder jurisdicional ser repartido, segundo critérios diversos, por numerosos tribunais», que no plano interno se organizam em diferentes categorias de tribunais, a cada uma das quais estão cometidas determinadas matérias de direito.
Prosseguem, ensinando que «[a] competência em razão da matéria distribui-se deste modo por diferentes espécies ou categorias de tribunais que se situam no mesmo plano horizontal, sem nenhuma relação de hierarquia (de subordinação ou dependência) entre elas. Na base da competência em razão da matéria está o princípio da especialização, com o reconhecimento da vantagem de reservar para órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores do Direito, pela vastidão e pela especificidade das normas que os integram».
Esclarecem ainda JOSÉ LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE[9], que o critério da competência em razão da matéria não atua «apenas no plano da contraposição dos tribunais judiciais aos outros tribunais, mas também, como resulta do art. 65, no plano da contraposição dos vários tribunais de 1.ª instância entre si». Porém, salientam, para o regime da incompetência, «esse plano é mais gravoso (…) quando sejam violadas as regras da competência em razão da matéria que respeitem à delimitação entre os tribunais judiciais e os outros tribunais (entre os quais figura a norma do art. 64)».
Distinguindo ambas as situações, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA[10], não deixando de «reconhecer que as questões da delimitação do âmbito da jurisdição administrativa não deixam, em bom rigor, de ser, de acordo com os quadros tradicionais, questões de competência em razão da matéria, pois que se trata de distribuir competências entre tribunais de acordo com um critério de especialização em função da natureza dos litígios a dirimir», considera, «no entanto, justificado diferenciar as questões de (mera) competência em razão da matéria» que se colocam dentro do âmbito da mesma jurisdição, «daquelas que se colocam no âmbito das jurisdições, reservando, desse modo, o conceito de competência em razão da matéria (em sentido estrito) apenas para aquele primeiro plano e falando, a propósito deste último, de competência em razão da jurisdição».
Vem apontado à decisão recorrida este erro mais grave, ou seja, o erro na determinação da competência entre jurisdições, in casu, entre o tribunal a quo, de competência especializada em matéria cível, e os tribunais administrativos, tribunais qualificados como especiais por terem as suas competências limitadas às matérias que lhes são especialmente atribuídas pelo legislador.
Portanto, cumpre aferir qual a jurisdição competente em razão da matéria para julgar a execução específica da cláusula de opção de compra de imóvel pertencente ao Município, inserida em contrato de comodato celebrado entre este e a Associação “Clube de Tiro de Sousel”, e concretamente se tal competência está legalmente cometida ao âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, porque somente em caso de resposta positiva fica afastada a competência material genérica ou residual dos tribunais comuns.
Conforme enfatizam JOÃO DE CASTRO MENDES e MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA[11], «[a] competência é, grosso modo, a adstrição a certo tribunal de certa categoria de processos. Vista pelo ângulo do tribunal, a competência pertence à organização judiciária e como tal é regulada pelas leis de organização judiciária (art. 37.º, n.º 1, 40.º, 41.º e 42.º, n.º 1 e 2 da LOSJ) e, por vezes, pelo CPC (art. 65.º e 66.º)».
Ora, relativamente aos tribunais administrativos e fiscais, o artigo 212.º, n.º 3, da CRP, e o artigo 1.º, n.º 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais[12], estabelecem respetivamente que aquela categoria de tribunais tem competência para o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, «nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto», sendo essa competência aferida à data da propositura da ação[13].
Como nota VIEIRA DE ANDRADE[14], a lei não define o que se entende por “relação administrativa”, questão que «sendo fulcral, devia ser resolvida expressamente pelo legislador. Mas, na falta de uma clarificação legislativa, parece-nos que será porventura mais prudente partir do entendimento do conceito constitucional de “relação jurídica administrativa”, no sentido estrito tradicional da “relação jurídica de direito administrativo”, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a Administração».
Porém, enfatizando que o principal mérito que resultou da revisão de 2015 a respeito do artigo 4.º do ETAF, foi o de tornar claro, em termos metodológicos, que o ponto de referência para determinar se um caso concreto deve ser submetido à apreciação dos tribunais administrativos ou dos tribunais judiciais «não reside, em primeira linha, no critério constitucional da relação jurídica administrativa ou fiscal», que «passou a ser enunciado numa alínea final do n.º 1 do artigo 4.º, como um critério de aplicação subsidiária e residual», MÁRIO AROSO DE ALMEIDA[15], adverte que «o que, em primeiro lugar, cumpre indagar é se, sobre a específica matéria em causa, existe disposição legal que, independentemente desse critério, dê resposta expressa à questão da jurisdição competente», concluindo que «só em relação às matérias que, nem em legislação avulsa, no artigo 4.º do ETAF são objecto de específica atenção do legislador, [é] que cumpre lançar mão do critério da alínea o) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF. Isto, na prática, significa que só em relação a um universo residual de situações se torna necessário resolver a questão da delimitação do âmbito da jurisdição por aplicação directa desse critério».
Assim, perante um caso concreto em que se suscite a questão da delimitação da jurisdição competente, a primeira tarefa é determinar qual a específica matéria em causa, já que é por esta que se afere a competência.
Ora, as incidências processuais relevantes para a decisão da competência material, para além do que já consta nos pontos 1. e 2. do relatório, encontram-se sintetizadas na decisão recorrida, pelo que se transcreve parcialmente, também quanto aos fundamentos:
«O pedido formulado na ação estriba-se na celebração de um contrato de comodato o qual contém em si uma cláusula de opção de compra em que é parte o Município de Sousel, uma pessoa coletiva territorial dotada de órgãos representativos que visam a prossecução de interesses próprios das populações respetivas (cf. artigo 235.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa), que se rege pelo Regime Jurídico das Autarquias Locais aprovado pela Lei n.º 75/2013, de 12 de setembro».
Seguidamente, tendo presente o disposto no artigo 212.º, n.º 3, da CRP, a decisão recorrida, depois de pôr em relevo que a competência dos tribunais administrativos está substancialmente prevista no artigo 4.º do ETAF, cujas alíneas do n.º 1 transcreveu, e avançando na alegação formulada pelo Réu, concluiu que «contrariamente ao pugnado pelo réu, não será de entender estarmos no âmbito de aplicação da alínea e), do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, nem d), do mesmo artigo. Com efeito, verifica-se que a causa de pedir conforme formulada pelo autor não se subsume a nenhum dos normativos ínsitos no artigo 4.º, do ETAF».
Dispõe, nessa parte, o referido preceito legal que:
«1. Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objeto: d) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos praticados por quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, no exercício de poderes públicos; (…) e) Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes».
Em fundamento de tal conclusão, a primeira instância ponderou que:
«Nos presentes autos, pretende o autor ver ser emitida judicialmente uma declaração negocial de venda de bem imóvel em substituição do réu Município, alegando que foi celebrado entre as partes um contrato de comodato com uma cláusula de opção de compra o qual se demonstrou incumprido pelo réu ao recusar-se a desencadear os efeitos típicos de tal cláusula (a venda do imóvel com a correspetiva transmissão da sua propriedade para a esfera jurídica do autor).
Pois bem, analisando a causa de pedir formulada nos autos e o pedido que é sua consequência, verifica-se que a mesma se reporta à celebração de um contrato de comodato que é sujeito a normas que o são de índole civilista. Tal contrato de comodato tem em si inserida uma cláusula que permite ao autor exercer um direito potestativo de compra de um bem imóvel que é propriedade do domínio privado da autarquia local.
Assim, tal venda não se encontra sujeita ao Código dos Contratos Públicos nem ao Decreto-Lei n.º 280/2007, de 7 de agosto, regime jurídico do património imobiliário público que não abarca tais bens imóveis do domínio privado, cf. artigo 1.º, al. a), sendo apenas aplicável aos bens imóveis dos domínios públicos do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais e aos bens imóveis do domínio privado do Estado e dos institutos públicos, cf. artigos 77.º a 106.º. (…)
Ressalta, pois, da motivação da decisão recorrida que o tribunal a quo aferiu a competência material dos tribunais comuns para o julgamento da causa, não só, mas essencialmente, por reporte à alegação do autor, mais concretamente, na pretensão deduzida e nos seus fundamentos, de harmonia com o que uniformemente tem observado a jurisprudência, mormente do Tribunal de Conflitos[16].
Com efeito, a propósito dos elementos determinativos da competência material para conhecer do litígio, MANUEL DE ANDRADE[17] nota que “são vários esses elementos também chamados índices de competência (CALAMANDREI). Constam das várias normas que proveem a tal respeito. Para decidir qual dessas normas corresponde a cada um, deve olhar-se aos termos em que foi posta a ação – seja quanto aos seus elementos objetivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou ato donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjetivos (identidade das partes). A competência do tribunal – ensina REDENTI, «afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)»; é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do autor. E o que está certo para os elementos da acção está certo ainda para a pessoa dos litigantes. A competência do tribunal não depende, pois, da legitimidade das partes nem da procedência da acção”.
Ainda a respeito da aferição da competência, JOÃO DE CASTRO MENDES e MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA[18] sublinham que «a situação mais frequente é constituída pelos chamados casos sic-non, que são aqueles em que os factos alegados pelo autor só permitem uma qualificação jurídica e em que o tribunal só é competente se essa qualificação couber no âmbito da sua competência material. Por exemplo: o tribunal comum só é competente se a relação alegada pelo autor puder ser qualificada como privada (e não, por hipótese, como administrativa). Os factos que relevam para a aferição da competência material do tribunal são igualmente relevantes para a apreciação do mérito da causa, ou seja, são factos duplamente relevantes; por isso, para aferir essa competência, basta pressupor a veracidade desses factos, mas, se depois de realizada a sua prova, eles não forem considerados verdadeiros, a acção é julgada improcedente. (…)
Também nos casos aut-aut e et-et basta a pressuposição da existência dos factos alegados pelo autor para aferir a competência do tribunal: o que releva, para este efeito, é apenas a qualificação jurídica desses factos. Se esses factos forem suficientes para assegurar a competência do tribunal, mas forem impugnados pelo réu, cabe ao autor fazer a prova deles (cf. art. 342.º, n.º 1, CC); na falta desta prova, a acção é julgada improcedente».
Na esteira da mais autorizada doutrina, a jurisprudência dos Tribunais Superiores, e designadamente do Tribunal de Conflitos, tem repetidamente enfatizado que «[a] competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo»[19].
In casu, o Autor exprimiu em juízo a respetiva pretensão e fundou-a especificamente no facto de ter celebrado em fevereiro de 2013, com o Município Réu, um contrato de comodato pelo período de 20 anos, contendo uma cláusula que estipula que “após ter decorrido 1/5 de tempo previsto no comodato, pode o segundo outorgante exercer opção de compra do imóvel ora comodatado pelo valor pago pela Câmara Municipal de Sousel no momento da aquisição, acrescido da taxa de inflação entretanto ocorrida em cada um dos anos até ao ano imediatamente anterior à opção de compra”. Mais invocou que, decorridos mais de 4 anos, em novembro de 2021, remeteu missiva ao réu em que comunicou o exercício do direito de opção, solicitando o cálculo do valor a pagar para a aquisição, tendo sido confrontado com um ofício emanado pelo réu de recusa de celebração do contrato de compra e venda por se suscitarem “reservas” quanto ao direito de opção reconhecido em sede contratual. E é com fundamento neste direito de opção de compra que pede ao Tribunal que se substitua ao réu na emissão da declaração negocial do faltoso, nos termos supra reproduzidos no ponto 1. do relatório.
Liminarmente, porém, impõe-se ao tribunal a apreciação dos pressupostos processuais e designadamente da sua competência para o decidir, momento que não prescinde do enquadramento jurídico substantivo da pretensão deduzida, ou seja, da qualificação jurídica da obrigação assumida contratualmente na cláusula ajuizada, e da (im)possibilidade da sua execução específica in casu, por via da substituição pelo tribunal comum da declaração negocial do faltoso.
Vejamos.
Distinguindo o contrato-promessa de compra e venda de outras figuras, CALVÃO DA SILVA[20] enfatiza que “o pacto de opção é um contrato – e nisto se distingue da proposta irrevogável –, tal como a promessa unilateral, sendo, todavia, diverso o mecanismo de realização do direito ao contrato emergente de ambos: na segunda, fonte de uma obrigação de contratar, tem de haver nova declaração contratual de ambas as partes para que o contrato definitivo se conclua – direito de crédito, portanto, o do promissário, já que exige a cooperação ou colaboração do promitente; no primeiro, para a conclusão do contrato é suficiente a declaração de vontade do beneficiário: se este aceita, exercendo o seu direito potestativo, o contrato, aperfeiçoa-se, inelutavelmente, sem necessidade de nova declaração da contraparte”.
ALMEIDA COSTA[21], distinguindo “o contrato-promessa unilateral do chamado pacto de opção”, precisa que este “consiste no acordo em que uma das partes se vincula à respetiva declaração de vontade negocial, correspondente ao negócio visado, e a outra tem a faculdade de aceitá-la ou não, considerando-se essa declaração da primeira uma proposta irrevogável”, advertindo mais adiante que convém “não confundir o pacto de preferência (celebrado na previsão de um eventual contrato futuro) com a proposta irrevogável derivada de um pacto de opção (em que só falta a aceitação do destinatário para que o novo contrato seja concluído).
ANTUNES VARELA[22], também a respeito da distinção com a promessa unilateral, enfatiza que “do pacto de opção deriva um direito potestativo à aceitação da proposta contratual emitida e mantida pela outra parte”.
TIAGO SOARES DA FONSECA[23], sintetiza que “o contrato de opção consiste na convenção mediante a qual, uma das partes (concedente) emite a favor da outra (optante) uma declaração negocial, que se consubstancia numa proposta contratual irrevogável referida a um certo contrato (principal), fazendo nascer, nesta última, o direito potestativo de decidir unilateralmente sobre a conclusão ou não do mesmo.”
Interpretando a cláusula contratual que foi aposta no contrato de comodato à luz destes ensinamentos, fácil é de ver que a mesma configura um pacto de opção, colocando o concedente na dita posição de sujeição em face da aceitação pelo optante da sua proposta contratual.
Isto dito, é tempo de avançar para a segunda questão relevante para a determinação do tribunal competente, que é a de saber se o pacto de opção deve ser judicialmente exercido por via da execução específica do contrato.
Dispõe o artigo 830.º, n.º 1, do CC que “Se alguém se tiver obrigado a celebrar certo contrato e não cumprir a promessa, pode a outra parte, na falta de convenção em contrário, obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso, sempre que a isso não se oponha a natureza da obrigação assumida.”
Como se ponderou no Acórdão da Relação de Lisboa de 09.04.2019[24] «o contrato de opção não corresponde a nenhum tipo contratual legalmente consagrado no nosso ordenamento jurídico. Sendo um contrato atípico, podemos defini-lo como preparatório ou instrumental, “na medida em que é através dele que as partes regulam diversos aspectos que irão conduzir ao surgimento de um outro contrato.”([14][25])», sendo “razoável aplicar-lhe, por analogia, a disciplina de outros contratos ou figuras afins. (…)
Constituindo a execução específica, prevista no art. 830 do C.C., solução indiscutível no incumprimento do contrato promessa previsto nos arts. 410 e ss. do C.C., cremos que a mesma não poderá deixar de responder, em particular na situação sub judice, à efetiva necessidade do beneficiário do contrato de opção de aquisição, por argumento de maioria de razão.
Na verdade, a pré-existente vinculação do faltoso não satisfaz, por si só, a indispensável formalização/concretização do contrato de compra e venda, com a inerente transmissão da propriedade do imóvel (entrega do bem e pagamento do preço), sendo a aceitação do beneficiário insuficiente, nestas condições, à perfeição do negócio.
Há que suprir, afinal, a declaração negocial do faltoso, irremediavelmente vinculado à venda, no ato da formalização do contrato.
E, se assim é, só a execução específica responde diretamente à necessidade do beneficiário da opção (…). Tanto mais que também assegura, dessa forma, ao concedente o correspondente pagamento do preço a que tem direito.
Em suma, o referido regime tem inteira aplicação ao caso em análise, não se afigurando que a tanto se oponha a natureza da obrigação assumida”.
Subscrevendo este entendimento a respeito da aplicabilidade do regime da execução específica ao contrato de opção tanto mais que, também no caso em presença o contrato principal, optativo, é a compra e venda de um bem imóvel, sujeito, portanto, à formalização da declaração de vontade das partes, em regra mediante escritura pública, sob pena de nulidade (artigos 875.º e 220.º do CC), resta aquilatar se, sendo o concedente um Município, e decorrendo da execução específica desse contrato a alienação de património que lhe pertence, se o tribunal competente para o efeito é, como defende o Réu, o tribunal administrativo, atenta a sua qualidade, e, por via da mesma, ser ilegal a cláusula de opção de compra, atenta a aplicabilidade de normas referentes ao procedimento de contratação pública que foram preteridas, e à existência de nulidades de natureza procedimental administrativa.
Vejamos.
Em primeiro lugar, impõe-se precisar que na presente ação não está em causa apurar da (i)legalidade do contrato de comodato celebrado aos 17 dias do mês de fevereiro de 2013 nos Paços do Município de Sousel, entre o primeiro outorgante, o Município de Sousel, representado no ato pelo Senhor Presidente da respetiva Câmara Municipal, e o segundo outorgante, Clube de Tiro de Sousel, representado no ato pelo Presidente de Direção, mas apenas aferir se os tribunais comuns, são ou não competentes para julgar a ação interposta pelo autor, com fundamento na dita cláusula de opção de compra inserida no mesmo.
Começando pela dita competência dos tribunais administrativos tal como lhes é conferida pela alínea d) do artigo 4.º do ETAF, respeitante à fiscalização da legalidade dos atos jurídicos ínsitos no contrato em apreço, por alegada invalidade da deliberação que antecedeu a outorga do contrato, enquanto vício procedimental, diremos desde já que tal alegação, atento o pedido formulado na ação e a causa de pedir que não incide sobre a mesma, não configuraria causa de atribuição do competência à jurisdição administrativa.
Subscrevemos, pois, o entendimento vertido na decisão recorrida que à alínea d) do artigo 4.º do ETAF respeita, quando ressaltou que a configuração dada à relação material controvertida na petição inicial não incide sobre a invalidade da deliberação que precedeu a outorga do contrato, louvando-se na decisão proferida no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7.02.2019[26], assim sumariado.
“I– Em sede de aferição do tribunal materialmente competente, se o comum ou antes o administrativo, o que importa é ter em atenção qual a relação jurídica que está na base do litígio e qual a natureza das normas que a disciplinam, e tal como se mostra aquela configurada nos autos pelo requerente.
II– Aos tribunais administrativos está reservado o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais (cfr artº. 212º., nº. 3, da CRP), e sendo estas últimas as reguladas por normas de direito administrativo.
III– Estando o pedido dos AA – de condenação no pagamento de uma indemnização com fundamento em responsabilidade civil contratual – dirigido para o réu Município ancorado em causa petendi relacionada com contrato de permuta de bens imóveis, outorgado entre as partes e não sendo o mesmo regulado por normas de DIREITO PÚBLICO [ao invés, mostra-se o pedido formulado e respectiva causa de pedir alicerçados em contrato de natureza exclusivamente civil e privado celebrado pelas partes, a permuta], não é o Tribunal Administrativo o competente para julgar a subjacente acção.”
Vemos, assim, que na decisão proferida nesse aresto, estando em causa um contrato de permuta, se considerou serem os tribunais comuns os competentes para a ação[27].
Mas mais, ainda que configure questão decidenda por ter sido suscitada pelo Réu como meio de defesa, a mesma pode ser decidida incidentalmente pelos tribunais comuns, nos termos previstos no artigo 91.º, n.º 1, do CPC.
Veja-se, a título meramente exemplificativo do que vimos de afirmar – por ser caso respeitante a incumprimento de contrato-promessa de compra e venda, em processo onde foram também suscitadas questões atinentes aos poderes de representação do Presidente do Município para o efeito –, como tal questão foi decidida no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10.10.2013[28], nos seguintes termos:
“I – Tendo o contrato promessa de compra e venda sido celebrado e assinado pelo Presidente da Câmara Municipal no exercício das funções de gestão e de representação que lhe estavam confiadas enquanto órgão de representação do Município e para os fins desejados, quer pela própria Câmara Municipal quer pelo Município, tal acto deve ser considerado como um acto do próprio Município;
II – Provando-se que ao acordar e assinar o aludido contrato promessa como promitente comprador, o Presidente da Câmara, enquanto órgão de gestão e de representação da pessoa colectiva Município, tinha poderes mas que tais poderes eram insuficientes para o acto, tal facto consubstancia uma incompetência relativa geradora de anulabilidade e que é sanável pelo decurso do tempo e por confirmação, sanação/ratificação ou aceitação;
III – Sendo o Presidente da Câmara Municipal um órgão de gestão e representação do Município, e tendo, nessa qualidade, assinado o contrato promessa de compra e venda dentro dos seus poderes legais de representação do Município, é indiferente que ele tenha ultrapassado as suas competências”.
Vejamos, agora, da atribuição de competência aos tribunais administrativos, por via do enquadramento do caso em presença na alínea e) do artigo 4.º do ETAF, quando esteja em causa a apreciação da validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes.
Ponderou-se a este respeito na decisão recorrida que «tal venda não se encontra sujeita ao Código dos Contratos Públicos nem ao Decreto-Lei n.º 280/2007, de 7 de agosto, regime jurídico do património imobiliário público que não abarca tais bens imóveis do domínio privado, cf. artigo 1.º, al. a), sendo apenas aplicável aos bens imóveis dos domínios públicos do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais e aos bens imóveis do domínio privado do Estado e dos institutos públicos, cf. artigos 77.º a 106.º.
Desta forma, e contrariamente ao pugnado pelo réu, não será de entender estarmos no âmbito de aplicação da alínea e), do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, nem d), do mesmo artigo.
Com efeito, verifica-se que a causa de pedir conforme formulada pelo autor não se subsume a nenhum dos normativos ínsitos no artigo 4.º, do ETAF.
O contrato de comodato em causa nos autos foi celebrado a 17 de fevereiro de 2013, estando então em vigor o Código dos Contratos Públicos na versão no Decreto-Lei n.º 149/2012, de 12 de julho, que, à semelhança da redação atualmente em vigor, exclui diretamente do seu âmbito de aplicação objetivo e, portanto, quer no que à sua formação, quer no que ao seu regime substantivo concerne, os “contratos de compra e venda, de doação, de permuta e de arrendamento de bens imóveis ou contratos similares” (cf. artigo 4.º, n.º 2, al. c), do CCP).
Quanto aos contratos administrativos abrangidos pela jurisdição administrativa diga-se, como referido no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do STJ de 26.04.2022, processo n.º 51012/18.6YIPRT-A.P1.S1-A que :
“Efetivamente, de acordo com as 4 alíneas do art. 280.º/1 do CCP (idênticas às do inicial art. 1.º/6 do CCP) são qualificáveis como contrato administrativo[14]:
a) Os contratos administrativos por natureza, que são submetidos a um regime de direito administrativo em razão da natureza pública do seu objeto ou do seu fim, integrando este grupo os contratos a que se referem as alíneas b), c) e d) do art. 280.º/1 do CCP;
b) Os contratos administrativos por determinação da lei, que abrange os tipos contratuais que, ainda que não sejam contratos administrativos por natureza, a própria lei opta por qualificar como administrativos, submetendo-os a um regime substantivo de direito público (cfr. alínea a) do art. 280.º/1 do CCP): são os contratos administrativos típicos previstos no título II da parte III do CCP e os demais contratos administrativos típicos ou nominados previstos na legislação avulsa; e
c) Os contratos administrativos por qualificação das partes, que abrange contratos administrativos atípicos que poderiam ser contratos de direito privado, mas são contratos administrativos apenas porque assim as partes o querem e determinam (cfr. alínea a) do art. 280.º/1 e 3.º/1/b) e 8.º do CCP).”
Destarte, é de afastar a recondução da questão sub judice à alínea e), do n.º 1, do artigo 4.º do ETAF.».
Insurge-se o Apelante contra o decidido, sublinhando que “é preciso notar-se que a resolução desta questão deve centrar-se em redor da aplicação ou não da disciplina do CCP ao contrato em causa em função da natureza jurídica do apelante, e daí, partir-se para a incompetência em razão da matéria deste tribunal, já que, com a aplicação do CCP ao contrato em causa, não estamos a ver como será possível o litígio manter-se nos tribunais comuns”.
Cremos, porém, que a decisão recorrida não merece a censura que lhe é dirigida.
Na verdade, como se afirmou no aresto do Tribunal da Relação de Coimbra, de 26.11.2019[29], onde se concluiu que competência material para a decisão era do tribunal cível e não do administrativo, em situação em que, tal como no caso em apreço estava em causa a venda de um bem privado do município, “dos autos não emerge estarmos perante um contrato administrativo ou de compra e venda objecto de contrato celebrado nos termos de legislação sobre contratação pública: há contratos públicos que não são contratos administrativos, como por exemplo, os contratos qualificados pela lei ou pelas partes como contratos de direito privado ou submetidos a um regime de direito privado, mesmo que celebrados por “contraentes públicos” no exercício da função administrativa – assim, o regime da Parte III do Código dos Contratos Públicos (DL 18/2008, de 29.1) não se aplica a contratos de compra e venda, doação, permuta e arrendamento de bens imóveis (do património privado dos entes públicos) e a contratos similares, nos termos do art. 4º, nº 2, c), do referido código”.
Como acima já precisámos, aquando da caracterização do contrato de opção de compra e da possibilidade da sua execução específica, que se trata do exercício de um direito potestativo por banda do autor que visa a substituição pelo tribunal da declaração negocial irrevogável do município. Trata-se, portanto, sem margem para quaisquer dúvidas, de um contrato similar ao de compra e venda, ou seja, de um contrato que o Código dos Contratos Públicos expressamente afasta do seu âmbito.
CARLA AMADO GOMES[30], adverte que “não pode deixar de observar-se que, no âmbito dos contratos a que alude a alínea f) sempre cumprirá averiguar se a utilização do Direito privado surge a título instrumental relativamente à prossecução da função administrativa, de natureza pública e ponderativa de interesses supra-individuais – sendo aí plenamente justificada a intervenção dos tribunais administrativos[31] –, ou se o Direito privado desempenha um papel principal, co-essencial, na regulação da situação jurídica, desde logo pela sua subtracção ao domínio funcional do núcleo de tarefas de natureza pública – devendo a questão ser apreciada junto da jurisdição comum. No caso dos contratos, a interdependência com procedimentos e vinculações de Direito público pode tornar difícil esta destrinça, registando-se uma eventual maior tendência da jurisdição administrativa para absorver a apreciação de relações não materialmente administrativas”.
Salvo o devido respeito pela opinião em contrário sustentada pelo Apelante, a verdade é que, tal como a ação foi estruturada, não obstante ser incontroverso que o réu Município é uma entidade pública, uma pessoa coletiva de direito público (artigo 235.º, n.º 2, da CRP), tal por si só não confere competência aos tribunais administrativos para a decisão de toda e qualquer litígio em que tome parte mas apenas daqueles a que o artigo 4.º do ETAF se refere.
In casu, conforme se pode verificar pelo pedido formulado e causa de pedir que os sustenta, o autor apenas alude a um contrato de natureza exclusivamente civil e privada, a opção de compra a que o réu Município se vinculou, sem qualquer característica de contrato administrativo, e sem qualquer sujeição a normas de direito administrativo mormente de um procedimento administrativo na sua formação[32].
Pelo contrário, as partes inclusivamente inseriram cláusula contratual na qual expressaram o seu comum acordo na eleição do “foro da Comarca de Estremoz, renunciando a qualquer outro, para dirimir conflitos oriundos do presente instrumento contratual”. Donde, a sua expressa intenção não foi a qualificação do contrato de opção, tipicamente de direito privado, como um contrato administrativo apenas porque assim as partes o querem e determinam (cfr. alínea a) do art. 280.º/1 e 3.º/1/b) e 8.º do CCP), mas inversamente, quiseram submete-lo ao foro comum, e tanto basta para que improceda a conclusão do Apelante de que, pela sua qualidade, o contrato ajuizado configura um contrato administrativo.
Finalmente, também não se vislumbra que exista qualquer lacuna de regulamentação que imponha a aplicação ao caso, nos termos do artigo 10.º do CC, do regime do Decreto-Lei n.º 280/2007, de 07.08 (Regime Jurídico do Património Imobiliário Público), concretamente o seu capítulo III, relativo ao regime jurídico da gestão dos bens imóveis do domínio privado do Estado e dos Institutos Públicos. Efetivamente, na fixação do sentido e alcance da lei, diz-nos o n.º 3 do artigo 9.º do CC, que o interprete presumirá que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados e consagrou as soluções mais acertadas. Assim, não pode ser considerado pelo intérprete um pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência expressa (n.º 2 do artigo 9.º do CC). Nestes termos, não desconhecendo o legislador a existência dos Municípios e da titularidade por estes de imóveis, e tendo expressamente previsto aquele regime jurídico apenas quanto à gestão dos bens do domínio privado do Estado e dos Institutos Públicos, deixando de fora os Municípios, não se vê como possa o intérprete considerar agora a sua aplicação por analogia, por procederem as mesmas razões justificativas do interesse público.
Assim, decorrendo do artigo 64.º do CPC que “[s]ão da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”. Fazendo-se a delimitação da competência material dos tribunais judiciais pela negativa, tratando-se, como antedito, de uma competência residual, cabendo a estes tribunais julgar os feitos que não estejam cometidos a outras ordens jurisdicionais, não estando a pretensão do autor abrangida pelo âmbito da competência material da jurisdição administrativa, a sua apreciação e julgamento cabe aos tribunais comuns.
Improcede, pois, a apelação.
Porque vencido, de harmonia com o princípio da causalidade previsto no artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, incumbe ao Réu, ora Apelante, suportar as custas de parte devidas neste recurso (artigos 529.º e 533.º do CPC).
*****
IV - Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação, na improcedência da apelação, em confirmar a decisão recorrida.
Custas pelo Apelante.
*****
Évora, 12 de julho de 2023
Albertina Pedroso [33]
Francisco Xavier
Maria João Sousa e Faro

__________________________________________________
[1] Juízo Central Cível e Criminal de Évora – Juiz 2.
[2] Relatora: Albertina Pedroso; 1.º Francisco Xavier; 2.ª Adjunta: Maria João Sousa e Faro.
[3] Foi ainda julgada procedente a exceção dilatória de incompetência relativa do tribunal em razão do território, tendo os autos sido remetidos ao Juízo Central Cível e Criminal junto do Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre, após trânsito desse segmento do despacho saneador.
[4] Doravante abreviadamente designado CPC.
[5] Reproduzimos o enquadramento genérico constante no recente acórdão desta conferência de 16.03.2023, proferido no processo n.º 2660/22.2T8PTM.E1, disponível em www.dgsi.pt, sítio onde pode ser consultada a jurisprudência doravante citada, sem menção de outra fonte.
[6] Doravante abreviadamente designada CRP.
[7] Doravante abreviadamente designada LOSJ.
[8] In Manual de Processo Civil, 2.ª edição, revista e atualizada, Coimbra Editora, 1985, págs. 194, 195 e 207.
[9] In Código de Processo Civil Anotado, vol. 1.º, 4.ª edição, Almedina, 2018, pág. 165.
[10] In Manual de Processo Administrativo, 3.ª edição, Almedina, 2017, pág. 157.
[11] In Manual de Processo Civil, vol. I, AAFDL EDITORA, Lisboa, 2022, págs. 141.
[12] Doravante abreviadamente designado ETAF, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, retificada pela Declaração de Retificação n.º 18/2002, de 12 de abril, alterada pela Lei 107-D/2003, de 31 de dezembro, que entrou em vigor em 01.01.2004, e cuja redação atual promana da alteração introduzida pela Lei n.º 114/2019, de 12 de setembro, que modificou designadamente o n.º 1 do artigo 1.º e as alíneas l) e m) do n.º 1 do artigo 4.º, e que entrou em vigor em 11 de novembro de 2019.
[13] De harmonia com o disposto no artigo 5.º, n.º 1, do ETAF, de acordo com cuja estatuição «a competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal fixa-se no momento da propositura da causa, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente».
[14] In Justiça Administrativa, 9.ª Edição, Almedina, Coimbra 2007, pág. 55.
[15] Obra citada, pág. 160.
[16] Cfr., a título meramente exemplificativo, o recente Acórdão do Tribunal de Conflitos, de 01.03.2023, proferido no processo n.º 01301/22.2T8SRE.S1.
[17] In Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, págs. 90 e 91.
[18] Obra citada, págs. 142 e 143.
[19] Cfr., Acórdão de 01.10.2015, proferido no processo n.º 08/14, e mais recentemente, evidenciando a dita uniformidade, o já acima indicado aresto.
[20] In “Sinal e Contrato-Promessa”, 14.ª edição revista e aumentada, ALMEDINA, Coimbra, 2017, págs. 22 e 23.
[21] In “Direito das Obrigações”, 4.ª edição, COIMBRA EDITORA, 1984, pág. 260, e nota de rodapé 1, pág. 289.
[22] In “Das Obrigações em Geral”, vol I, 5.ª edição, revista e atualizada, ALMEDINA, Coimbra, 1986, pág. 291.
[23] In “Do Contrato de Opção - Esboço de Uma Teoria Geral”, LEX, Lisboa, 2001, pág. 21.
[24] Proferido no processo n.º 9286/16.8T8ALM.L1-7.
[25] Tiago Soares da Fonseca, ob. cit., pág. 36.
[26] Processo n.º 13312/17.5T8LSB.L1-6.
[27] Também no recente acórdão do 18.04.2023, proferido no processo n.º 030/22, o Tribunal de Conflitos, se julgou que “É da competência dos Tribunais Judiciais julgar um litígio no qual se discute a titularidade do direito de propriedade sobre o imóvel em questão”.
[28] Processo n.º 887/11.1TBOAZ.P1.
[29] Processo n.º 279/18.1T8TCS.C1.
[30] In O artigo 4.º do ETAF: Um exemplo de “Creeping Jurisdiction?”, in “Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Armando Marques Guedes”, 2004, págs. 102/403.
[31] Exemplo do que se afirma pode ver-se no recente Acórdão do Tribunal de Conflitos de 22.03.2023, proferido no processo n.º 023/22, no qual estava em causa um contrato de compra e venda e se julgou que “Se na acção, tal como configurada pelo Autor Município, tendo presente o pedido e a causa de pedir, estamos perante poderes de autoridade deste, com imposições de interesse público e deveres impostos ao Réu perante o Autor, tanto na celebração do contrato de compra e venda como na obrigação de cumprir as regras impostas pelo Regulamento, característicos de uma relação jurídica administrativa, sendo o litígio subsumível no art. 4º, nº 1, al. o) do ETAF, para o respectivo conhecimento é competente a jurisdição administrativa”.
[32] A relevância da existência desse procedimento prévio na determinação da competência do Tribunal mostra-se evidenciada no recente aresto do Tribunal de Conflitos de 22.03.2023, proferido no processo n.º 020/21, no qual se julgou que “Compete aos tribunais administrativos conhecer de um litígio no qual se discute uma questão de responsabilidade civil contratual decorrente da execução de um contrato de arrendamento outorgado entre um senhorio e o inquilino Estado, sujeito a um procedimento administrativo de formação previsto na lei – o Decreto nº 38202 – e, por isso, subsumível na alínea e) do nº 1 do art. 4º do ETAF (na versão vigente à data)”.
[33] Texto elaborado e revisto pela Relatora, e assinado eletronicamente pelos três juízes desembargadores que compõem esta conferência.