Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3311/18.5T8FAR-E1
Relator: MARIA AMÉLIA AMEIXOEIRA
Descritores: ADMINISTRAÇÃO DA HERANÇA
CABEÇA DE CASAL
PRESTAÇÃO DE CONTAS
Data do Acordão: 10/26/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I- A obrigação de prestação de contas pelo cabeça-de-casal “deriva da administração da herança, como garantia de que essa administração será exercida com diligência, competência e honestidade e de que o administrador não se afastará das regras que a prudência indica e a probidade impõe. “O cabeça-de-casal tem, pois, de ser prudente, cauteloso e honesto e é necessário tomar-lhe contas para exame da administração a seu cargo, dado que gere património que não é exclusivamente seu, incumbindo-lhe satisfazer o que se lhe mostrar devido ou exigir o saldo que, porventura, haja a favor da herança
II- A cabeça de casal tem o dever de informar as demais herdeiras das receitas e despesas relativas à administração da herança, das quais as mesmas não prescindiram, após a data do óbito do titular da herança.
III- A contitularidade, pelas herdeiras, de conta bancária e acesso aos respectivos extractos bancários não é sinónimo do cumprimento desse dever, tanto mais que apenas a cabeça de casal podia movimentar a conta referida isoladamente, sem autorização das demais herdeiras, suas filhas e do de cujus, sendo que estas apenas podiam movimentar a conta conjuntamente e consultar os respectivos extractos.
IV- Passando a cabeça de casal e mãe das demais herdeiras a necessitar de medida de acompanhamento de representação geral, deixando de administrar, de facto, a herança aberta por óbito do seu cônjuge, foi-lhe nomeada curadora, e acompanhante, a quem caberá, nessa qualidade, apresentar, em 20 dias, as contas da administração dos bens do acervo hereditário por óbito do autor da herança, referente ao período em que tal prestação incumbiria à cabeça de casal inicial, em forma de conta corrente, sob pena de, não o fazendo, não poder contestar as que a Autora apresente.
V- A actual acompanhante não pode eximir-se à prestação de contas em representação da acompanhada, alegando desconhecimento e incapacidade de tal realização, por a obrigação não ter natureza pessoal, mas sim patrimonial.
VI- Tal obrigação não é pessoal e pode ser cumprida por outrem que não o próprio administrador em caso de impossibilidade deste, como é o caso dos autos, com recurso, se necessário, ao auxílio do tribunal.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

RELATÓRIO:

AA, casada, contribuinte fiscal n.º ..., residente na ... Maia, intentou a presente acção especial de prestação de contas, no Tribunal Judicial de Faro, contra BB, viúva, contribuinte fiscal n.º ..., residente na Rua ..., ..., ..., ... Faro, peticionando que a Ré preste contas da gestão dos bens do acervo hereditário de CC, desde a data do óbito deste, e seja condenada a pagar o saldo que daí se venha apurar, requerendo desde logo a intervenção das interessadas DD, divorciada, contribuinte fiscal n.º ..., residente na Rua ..., ..., ... Vila Nova de Gaia, e EE, divorciada, contribuinte fiscal n.º ..., residente na Rua ..., ..., ..., ... Faro.

Para tanto, alegou que a Ré é cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de CC, seu cônjuge falecido em .../.../2002, sucedendo-lhe como suas únicas herdeiras, para além da Ré e Autora, as restantes filhas, DD e EE.

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Regularmente citada, a Ré contestou, alegando, em síntese, que após o falecimento de CC, as herdeiras deste abriram, por comum acordo, uma conta bancária à ordem, espelhando tal conta todas as receitas e despesas da referida herança, sendo, por isso, do conhecimento da Autora que com elas sempre se conformou. Mais alegou que a Ré e demais herdeiras prescindiram de receber da Herança a distribuição dos rendimentos, sem, contudo, serem coartadas da informação respeitante aos rendimentos e despesas da herança, tendo tal acordo sido, porém, condicionado em 23.05.2018, através de missiva enviada pela Autora à Ré. Por fim que, por motivos de saúde, pediu escusa do cargo de cabeça de casal.

-Em resposta às excepções invocadas, a Autora reiterou tudo o vertido na petição inicial, acrescentando, contudo, que, não obstante reconhecer a existência da abertura da conta bancária, desconhece as receitas e despesas obtidas, bem como os débitos e créditos da referida conta.

-O incidente de intervenção provocada das restantes herdeiras foi julgado procedente e a intervenção admitida.

-Citadas, as Intervenientes Principais nada disseram.

-Foi admitida a ampliação do pedido, no sentido de as contas a prestar pela Ré abrangerem os anos de 2018 a 2022.

-Foi determinado que os autos seguissem a tramitação do processo comum, e fixado o objecto do litígio e os temas da prova.

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Foi nomeada curadora provisória da Ré, DD, atestada que foi a incapacidade daquela, no âmbito do processo especial de Maior Acompanhado n.º 3537/21.4T8FAR, que correu os seus termos Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Local Cível de Faro – Juiz 2.

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-Realizou-se a Audiência Final com respeito pelas formalidades legais, conforme resulta da respectiva acta.

-Proferiu-se sentença que decidiu:

A. Declarar ter a ré, BB, obrigação de prestar contas da administração dos bens do acervo hereditário por óbito de CC, referente ao período compreendido entre .../.../2002 e 31.12.2017, à autora, AA (e às intervenientes principais).

B. Absolver a Ré do pedido de prestação de contas relativamente à administração dos bens do acervo hereditário por óbito de CC ocorrida a partir de 01.01.2018.

Ordenou-se a notificação da Ré na pessoa da curadora (e Acompanhante) para apresentar, em 20 dias, as contas da administração dos bens do acervo hereditário por óbito de CC, referente ao período compreendido entre .../.../2002 e 31.12.2017, em forma de conta corrente, sob pena de, não o fazendo, não poder contestar as que a Autora apresente – cfr. artigo 942.º, n.º 5, do CPC.

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DD, Interveniente Principal nos autos em epígrafe

identificados, veio, na qualidade de curadora e acompanhante da Ré, BB, não se conformando com o teor da douta sentença, interpor recurso da mesma, concluindo da forma seguinte:

- Realizada a produção de produção de prova, o Tribunal a quo decidiu, na douta sentença

recorrida: “A. Declarar ter a ré, BB, obrigação de prestar contas da administração dos bens do acervo hereditário por óbito de CC, referente ao período compreendido entre .../.../2002 e 31.12.2017, à autora, AA (e às intervenientes principais).”

B - Existem factos dados como provados e factos dados como não provados, os quais, sempre com o muito e devido respeito por diferente entendimento, não são consentâneos com a prova produzida nos autos e que impõem decisão diferente: A) Dos pontos 11 e 15 dos factos provados; B) Dos pontos A) e B) dos factos não provados.

Assim,

C – Como resulta da douta sentença recorrida, foi dado como provado, o seguinte ponto: “11. E a Autora e as Intervenientes Principais apenas podiam movimentar a conta referida em 6) conjuntamente.”

D – Acontece que, resultou cabalmente provado que a A., tal como as demais herdeiras, aqui Intervenientes Principais, para além de terem a qualidade de contitulares da conta bancária identificada no ponto 6 dos factos provados, e de poderem movimentar a conta conjuntamente (como resultou provado), podiam consultar a conta bancária, de forma individual e sem necessidade de autorização ou intervenção de qualquer outra contitular.

E – Este é um ponto fundamental para a boa decisão da causa, mas que o tribunal olvidou,

muito embora exista prova bastante para o efeito, decorrente quer dos depoimentos prestados por todas as partes e, bem assim, da testemunha indicada pela A., seu marido, quer de prova documental junta aos autos.

Vejamos,

F – Do depoimento de EE, Interveniente Principal, cujas declarações foram gravadas em formato digital (com início pelas 14h13m52s e termo pelas 14h57m08s, do dia 28.06.2022 - minutos 00.00.01 a 00.43.16, cfr. Acta de audiência de julgamento de 28.06.2022), que é uma das contitulares da conta bancária em causa, resulta que todas as herdeiras, incluindo a A., podiam consultar a conta bancária - minutos 2:10 a 3:38 e 14:12 a 15:45, sendo que afirmou que nunca consultou a conta, nem quis saber como funcionava porque entendia que o dinheiro existente naquela conta bancária era da mãe e servia para a mãe gastar conforme necessitasse.

G - Igualmente, do depoimento prestado pela testemunha FF, cujas declarações foram gravadas em formato digital (com início pelas todas as herdeiras, incluindo a A., podiam consultar a conta bancária - minutos 2:10 a 3:38 e 14:12 a 15:45, sendo que afirmou que nunca consultou a conta, nem quis saber como funcionava porque entendia que o dinheiro existente naquela conta bancária era da mãe e servia para a mãe gastar conforme necessitasse.

G - Igualmente, do depoimento prestado pela testemunha FF, cujas declarações foram gravadas em formato digital (com início pelas 15h01m16s e termo pelas 15h43m49s, do dia 28.06.2022 - minutos 00.00.01 a 00.42.32, cfr. Acta de audiência de julgamento de 28.06.2022), marido da A., resulta a possibilidade de consulta por esta última, da conta bancária - minutos 9:50 a 10:55 e 31:10 a 33:35, tendo a testemunha afirmado que a A. tinha acesso à conta bancária, designadamente, nos últimos anos, através da internet e que a consultou várias vezes, ao longo do tempo.

H – Atente-se, ainda, no depoimento prestado pela própria A., AA, A., cujas declarações foram gravadas em formato digital (com início pelas 14h11m54s e termo pelas 14h12m25s, do dia 09.09.2022 - minutos 00.00.01 a 00.30.00, cfr. Acta de audiência de julgamento de 09.09.2022), no qual afirmou aquela que podia consultar a conta bancária - minutos 19:00 a 20:45, concluindo que não o tinha feito porque “não era nada comigo”.

I – Finalmente, impunha-se ao tribunal recorrido atender à informação fornecida pelo próprio banco onde se encontra a conta bancária identificada no ponto 6 dos factos provados, da qual resulta que os extractos requeridos pela A., nos presentes autos, “estão ao alcance da parte” – conforme informação do Banco Montepio junta aos autos em 23.11.2021.

J - Donde resulta provado que, todas as contitulares da conta tinham acesso à mesma, podendo consultar individualmente, a conta, sempre que o entendessem fazer, ou seja, não havia impossibilidade para a. em consultar a conta e aferir todos os movimentos, caso o tivesse pretendido fazer ao longo dos anos.

K – Consequentemente, o ponto 11 dos factos provados deverá ser alterado aditando-lhe o seguinte facto “podendo as mesmas contitulares, consultar a conta bancária, individualmente”.

L – Foi dado como provado, o seguinte ponto: “15. Não prescindindo, porém, de serem informadas dos rendimentos e despesas advenientes dos bens que compõem o acervo hereditário.”, tendo o tribunal recorrido dado por não provado, o seguinte facto: “B. As receitas e despesas referidas em A) são do conhecimento da Autora, que sempre as aceitou e com elas se conformou.”

M – Resulta, porém, dos depoimentos prestados pelas partes que, após a morte do pai da A. e Intervenientes Principais, todas estas entenderam que fosse a mãe a gerir, como entendesse, o património da herança, o que motivou a abertura da conta identificada em 6) dos factos provados, todas tendo referido em sede de depoimento, que o dinheiro era da mãe e que, por isso, não lhes dizia respeito a movimentação feita pela mãe.

N – Pelo que, não só, não foi feita prova tendente ao facto vertido sob o ponto 15 dos factos provados, resultando sim, como provado o ponto B) dos factos não provados, isto é, que a A., tal como as Intervenientes Principais, aceitaram e conformaram-se com as contas geridas pela mãe, que incluem as receitas e despesas da herança.

Assim,

O – Veja-se o depoimento prestado por EE, Interveniente Principal, cujas declarações foram gravadas em formato digital (com início pelas 14h13m52s e termo pelas 14h57m08s, do dia 28.06.2022 - minutos 00.00.01 a 00.43.16, cfr. Acta de audiência de julgamento de 28.06.2022), do qual resulta a convicção que a conta bancária identificada em 6 dos factos provados, contendo receitas da herança, era para ser usufruída e gerida pela mãe “como entendia” – minutos 3:15 a 3:25 e 5:45 a 10:20.

P – Também do depoimento prestado pela A., AA, A., cujas declarações foram gravadas em formato digital (com início pelas 14h11m54s e termo pelas 14h12m25s, do dia 09.09.2022 - minutos 00.00.01 a 00.30.00, cfr. Acta de audiência de julgamento de 09.09.2022), ficou claro que também esta filha e herdeira, teve o entendimento que não tinha que consultar a conta e obter informações sobre a mesma, e no geral, sobre o património da herança, por pertencer/ser da mãe, donde teremos que concluir pela conformação da mesma com a gestão que foi feita ao longo dos vários anos, por parte da Ré - minutos 8:05 a 13:50 e 16:05 a 18:00.

Q – Aliás, do referido depoimento da A., resulta também que foi a própria que durante vários anos, de acordo a própria, até 2014, que era a mesma quem recebia as rendas, emitia recibos e tratava dos arrendamentos dos imóveis da herança, ou seja, teve intervenção directa, na gestão parcial da herança.

R – Mais, atento o depoimento da A., fica esclarecido que a mesma apenas pretende conhecer as contas da herança a partir de 2018, data em que deixou de ser a mãe a gerir ou administrar a herança, porquanto até então, até ser a mãe a fazê-lo, a A, confiou plenamente e entendia que cabia à mãe fazê-lo como entendesse, conformando-se com a actuação da mãe relativamente à administração da herança e aceitando todas as decisões tomadas pela mesma - minutos 26:25 a 28:25.

S – Veja-se, ainda, o teor do depoimento da Interveniente Principal, DD, Interveniente Principal, cujas declarações foram gravadas em formato digital (com início pelas 15h53m29s e termo pelas 16h38m34s, do dia 28.06.2022 - minutos 00.00.01 a 00.45.04, cfr. Acta de audiência de julgamento de 28.06.2022), do qual resultou, de forma esclarecedora, por um lado, que a finalidade da abertura da conta, nos moldes que resultam dos pontos 6 e 10 a 13 dos factos provados, tinha subjacente a ideia de ser a mãe, aqui Ré, a movimentar a conta conforme entendesse, gerindo a mesma, de acordo com as necessidades do dia-a-dia e, por outro, que todas as irmãs, aqui A. e Intervenientes Principais, ao longo dos vários anos, nunca procuraram obter informações, por entenderem que, cabendo à mãe gerir os rendimentos e despesas, como próprios, não tinha aquela que lhes dar informações sobre tal - minutos 5:10 a 5:55, 6:45 a 10:55 e 21:55 a 23:30.

T – Conjugando pois, os depoimentos das partes, atrás enunciados, com os factos vertidos sob os pontos 13 a 14 dos factos provados, sempre se impunha considerar que foi entendimento da A. e das Intervenientes Principais prescindir da informação sobre os créditos e débitos gerados pela mãe, ao longo dos anos, referentes à herança e, concomitantemente, aceitaram e conformaram-se aquelas, pelo menos, até ao ano de 2018, com as contas geridas pela mãe, nelas se incluindo as receitas e despesas da herança.

U – Percebemos, assim, que as conclusões resultantes dos vários depoimentos atrás identificados, sendo incompatíveis com o facto dado como provado sob o ponto 15, que deverá ser dado como não provado, mostram-se bastantes para dar como provado o facto vertido sob o ponto B. dos factos não provados.

Finalmente,

W – Entendeu o tribunal recorrido dar como não provado, o seguinte facto (ponto A. dos factos não provados): “A. Os extractos da conta bancária 032.10.35125-6, aludida em 6) dos Factos Provados, espelha na íntegra todas as rendas dos imóveis indicados nos pontos 4.1) e 4.2), identifica os inquilinos depositantes bem como todas as despesas a eles inerentes.”

X – Resulta porém, suficientemente provado, quer dos extractos bancários juntos aos autos, quer dos depoimentos prestados, que se irão passar a identificar infra, que os extractos em causa, referentes à conta bancária identificada no ponto 6) dos factos provados, contêm todas os movimentos a crédito e a débito feitos em nome da herança, por ser a conta escolhida, logo após a morte do autor da herança, para serem depositadas todas as rendas da herança e contendo as mesmas, ser usada para pagar todas as despesas.

Y – Nesse sentido, veja-se o depoimento de DD, Interveniente

Principal, cujas declarações foram gravadas em formato digital (com início pelas 15h53m29s e termo pelas 16h38m34s, do dia 28.06.2022 - minutos 00.00.01 a 00.45.04, cfr. Acta de audiência de julgamento de 28.06.2022), que depôs de forma clara, desinteressada e esclarecedora e do qual resulta que eram naquela conta bancária (identificada no ponto 6 dos factos provados) depositadas todos os rendimentos da herança - minutos 4:00 a 5:15.

Z – O qual foi, uma vez mais, confirmado pela própria A., AA, no seu depoimento, cujas declarações foram gravadas em formato digital (com início pelas 14h11m54s e termo pelas 14h12m25s, do dia 09.09.2022 - minutos 00.00.01 a 00.30.00, cfr. Acta de audiência de julgamento de 09.09.2022) - minutos 21:55 a 22:23.

AA – Também confrontados os documentos juntos aos presentes autos, em 29.09.2021, pela Interveniente Principal, DD, e em 7.12.2021, pelo Banco Montepio Geral, verificamos que se mostra possível aferir quais as receitas resultantes das rendas da herança, face aos valores das mesmas e periocidade mensal dos mesmos.

AB – Impunha-se pois, ao tribunal recorrido, dar como provado o facto vertido no ponto A) dos factos não provados.

Consequentemente,

AC – A materialidade que deverá ser dada como provada nos pontos 11 dos factos provados, A. e B., que o tribunal recorrido deu erradamente como não provados e dando como não provado o facto do ponto 15, dos factos provados, nos termos supra alegados, atentos os elementos carreados para os autos, impunha e sustentava uma decisão diversa, no sentido de absolver a Ré de prestar contas, considerando-se as mesmas prestadas, através da consulta da conta bancária identificada no ponto 6 dos factos provados, passível de ser feita por todas as herdeiras, a todo o tempo.

AD – A factualidade provada é pois, concludente no sentido de que todas as herdeiras, aqui A. e Intervenientes Principais, decidiram que seria a Ré a usar as receitas resultantes da conta bancária identificada em 6 dos factos provados, quer fossem decorrentes da herança, ou próprias da Ré, para as suas despesas quotidianas, sem ter que dar justificações ou pedir qualquer autorização às filhas, aceitando todas estas, o resultado ou saldo final que daí adviesse.

AE – Por outro lado, percorridos todos os depoimentos das partes, prestados em sede de

julgamento e conjugando com os factos provados, percebemos que todas as herdeiras, filhas da Ré, tinham presente que as contas, reflectidas na conta bancária identificada no ponto 6 dos factos provados, apenas respeitavam à Ré, e não à herança e a todas as herdeiras, donde se tem que concluir, que a A. prescindiu dessa prestação de contas da herança.

Finalmente,

AF – Perante os factos provados vertidos nos pontos 10 a 14 e 19, resulta que até ao ano de 2018, era a Ré quem geria as contas, receitas e despesas e usava a conta bancária identificada sob o ponto 6 dos factos provados, em exclusivo e sem dar quaisquer informações ou justificações a nenhuma das outras herdeiras, aqui incluindo a recorrente, pelo que, face à total incapacidade da mesma, a partir de 2018, ou seja, provado está que, apenas a Ré era conhecedora de todos os movimentos a crédito e a débito feitos ao longo de mais de 20 anos, o que, consequentemente, impossibilita a recorrente de o fazer em nome daquela.

AG - Pelo que, ao decidir conforme douta sentença recorrida, o tribunal a quo, violou o disposto nos artigos 2093.º do C.C. e 941.º do C.P.C..

AH – Requer-se pois, seja revogada a decisão constante da sentença recorrida e a sua substituição por outra que absolva a Ré da instância, desobrigando a recorrente de prestar

contas com referência aos anos anteriores a 2018.

Conclui no sentido de que deve o presente recurso ser julgado procedente.

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A Recorrida AA veio apresentar contra-alegações pugnando pela manutenção da sentença, quer na sua fundamentação, quer na sua decisão, sendo escorreita, aplica criteriosamente o direito, fazendo uma correta subsunção dos factos ao mesmo.

Soçobram, portanto, todas as conclusões da alegação do Recorrente, o que terá, necessariamente, que conduzir ao não provimento da Apelação e à manutenção da douta sentença recorrida.

Conclui no sentido de ser negado provimento ao recurso e, em consequência, confirmada, integralmente, a douta sentença recorrida.

Colhidos os vistos legais, cumpre conhecer.

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QUESTÕES A CONHECER:

É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do Tribunal ad quem (artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).

Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação de:

-Da Impugnação da decisão de facto.

- Se a A. prescindiu da prestação de contas por parte da Ré à herança.

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FUNDAMENTAÇÃO

A)-DE FACTO:

Estão provados os seguintes factos:

1. No dia .../.../2002 faleceu, na freguesia da Sé, concelho de Faro, sem testamento ou qualquer outra disposição de última vontade, CC, natural da freguesia de Venteira, concelho de Amadora, no estado de casado com a Ré, no regime da comunhão geral de bens.

2. À morte de CC sobreviveram-lhe como únicas e universais herdeiras: a Ré, cônjuge; a Autora e as Intervenientes Principais, filhas.

3. Na escritura de habilitação de herdeiros lavrada a 8 de Janeiro de 2003 no Primeiro Cartório Notarial de Faro, ficou a constar como cabeça de casal da herança aberta por óbito de CC, a Ré, cônjuge sobreviva.

4. Fazem parte da herança os seguintes imóveis:

4.1. - Fracção autónoma designada pela letra “A”, rés do chão, do prédio constituído em propriedade horizontal, sito na Rua ..., Freguesia de Paranhos, concelho do Porto, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n.º ...13... e inscrito na matriz predial sob o artigo ...88;

4.2. - Fracção autónoma designada pela letra “B”, 1º andar, do prédio constituído em propriedade horizontal, sito na Rua ..., descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n.º ...13... e inscrito na matriz predial sob o artigo ...88;

4.3. - Prédio Urbano, sito na Rua ..., freguesia de Montenegro, concelho de Faro descrito na Conservatória do Registo Predial de Faro sob o n.º ...20 e inscrito na matriz predial sob o artigo ...33.

5. À data de .../.../2002 os imóveis referidos em 4.1. e 4.2. encontravam-se arrendados.

6. Em 23.12.2002, Autora, Intervenientes Principais e Ré, conjuntamente, procederam à abertura de conta de depósito à ordem (tipo PARTICULARES) e conta de depósito a prazo (tipo MG FAMÍLIA (1A1D)), no Banco Montepio Geral, às quais foi atribuído o número ... e o número ..., respectivamente.

7. A 31.12.2002 a conta de depósito à ordem referida em 6) apresentava um saldo de €420,54.

8. A 31.12.2002 a conta de depósito a prazo referida em 6) apresentava um saldo de €174.000,00.

9. Na conta descrita em 6) sempre figuraram como contitulares a Autora, a Ré e as Intervenientes Principais, sendo que,

10. A Ré podia movimentar a conta referida em 6) isoladamente, sem autorização das demais;

11. E a Autora e as Intervenientes Principais apenas podiam movimentar a conta referida em 6) conjuntamente. (aditado)

12. Após o falecimento de CC, a Autora, a Ré e as Intervenientes Principais acordaram que todas as receitas da herança, e rendimentos próprios da Ré, seriam depositados na conta de depósito à ordem identificada em 6).

13. E acordaram, ainda, que a Ré poderia usar e fruir dos valores existentes nas contas bancárias aludidas em 6) para satisfação das suas necessidades quotidianas, sem necessidade de autorização das demais contitulares.

14. A Autora e Intervenientes Principais prescindiram dos valores despendidos para satisfação das necessidades quotidianas da Ré,

15. Não prescindindo, porém, de serem informadas dos rendimentos e despesas advenientes dos bens que compõe o acervo hereditário.

16. Por carta registada datada de 23 de Março de 2018, a Ré comunicou à Autora o seguinte: “(…) a) os recibos de renda, referentes às indicadas fracções, no ano de 2017 foram emitidos electronicamente, directamente no portal das Finanças, em cumprimento das regras para declaração de rendas junta da Autoridade Tributária.

b) A Autoridade Tributária imputa, em sede de IRS, às herdeiras, a parte proporcional das rendas. Valor a declarar na apresentação do IRS modelo 3 Anexo F.

c) O valor anual da renda da fracção A (loja) é de 4.464,00 (3.348,00 após a retenção na fonte de 25%). O valor do IMI em 2017 é de 258,87;

d) o valor anual da renda da fracção “B” (1.º andar) é de 3.230,00. O valor do IMI em 2017 é de 138,35;

e) a divisão/distribuição dos valores será na proporção de

i. BB 5/8 (1/2 +1/4x1/2) ou 62,50%

ii DD 1/8 ou 12,5%

iii AA 1/8 ou 12,5%

iv EE 1/8 ou 12,5%

3. Não obstante a obrigatoriedade de declaração do proporcional do valor das rendas na declaração do IRS a D. BB não vai fazer a transferência do valor correspondente para as suas irmãs. Contudo caso seja sua intenção receber tal montante muito agradeço me indique IBAN para que lhe seja efectuada a respectiva transferência.”.

17. Por carta datada de 19 de Abril de 2018, a Autora comunicou à Ré o seguinte: “Na sequência da vossa interpretação, através da missiva em referência, e por forma a tomar a decisão, solicito informação quanto (i) aos rendimentos (rendas/pensões/subsídios) mensais auferidos pela minha Mãe, bem como (ii) indicação das despesas mensais que a mesma suporta. Sem prescindir, e uma vez que o Sr. Dr. GG assume o patrocínio de minha mãe, agradecia que me informasse se o estado de saúde da minha mãe permite o exercício do cargo de cabeça de casal”.

18. No âmbito dos presentes autos, por despacho datado de 07.07.2021, DD foi nomeada curadora provisória da Ré.

19. Por sentença proferida em 26.01.2022, no âmbito do processo especial de maior acompanhado n.º 3537/21.4T8FAR, a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Local Cível de Faro – Juiz 2, com referência à pessoa da aqui Ré, foi decidido: “a) decretar o acompanhamento de BB por motivo da sua saúde; b) designar como acompanhante da beneficiária, DD, filha da requerida; c) decretar que a requerida passa a beneficiar das seguintes medidas de acompanhamento: i- a acompanhante agora designada assumirá representação geral da beneficiária; ii- A beneficiária não pode exercer livremente os direitos pessoais de casar, constituir situações de união, testar nem doar nem celebrar quaisquer negócios da vida corrente. d) As medidas de acompanhamento agora definidas tornaram-se convenientes desde 1.01.2018; e) Consigna-se que a beneficiária não celebrou testamento vital nem outorgou procuração para cuidados de saúde (art. 900º/3, do CPC). f) Para integrar o conselho de família, nomeia-se EE e AA, filhas da requerida, como 1ª e 2ª vogais, respectivamente (…)”

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FACTOS NÃO PROVADOS

O Tribunal considera não provados os seguintes factos com relevância para a decisão:

A. Os extractos da conta bancária 032.10.35125-6, aludida em 6) dos Factos Provados, espelha na íntegra todas as rendas dos imóveis indicados nos pontos 4.1) e 4.2), identifica os inquilinos depositantes bem como todas as despesas a eles inerentes.

B. As receitas e despesas referidas em A) são do conhecimento da Autora que sempre as aceitou e com elas se conformou.

C. A Ré administrou todos os bens que constituem o acervo hereditário de CC a partir de 01.01.2018.

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DE DIREITO

Em sede de impugnação da decisão de facto, a recorrente suscita ao tribunal a apreciação das questões seguintes:

a) Erro na resposta dada no ponto n.º 11 e 15 dos factos provados;

b) Erro na resposta dada nos pontos A) e B) dos factos não provados.

A impugnação da decisão de facto, feita perante a Relação, não se destina a que este tribunal reaprecie, global e genericamente, a prova valorada em primeira instância, o que justifica que se imponha ao recorrente um especial ónus de alegação, no que respeita à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação.
O ónus de impugnação previsto no art. 640º, nº 1, al. b) do C.P.C. exige que o recorrente: especifique os meios probatórios que determinariam decisão diversa da tomada em primeira Instância para cada um dos factos que pretende impugnar, não sendo suficiente a genérica indicação dos ditos meios de prova (isto é, desacompanhada do reporte a cada um dos facto sindicados, e antes oferecida para a totalidade da matéria de facto sob recurso); a decisão que deve ser proferida sobre cada um dos factos impugnados, esclarecendo sobre o seu exacto teor (isto é, a exacta redacção que pretende para cada um deles); e a indicação das passagens da gravação em que funda a sua sindicância, de novo para cada um dos depoimentos em causa.

Esse ónus mostra-se observador nas conclusões do presente recurso.

Outra questão prende-se com a natureza da prova que subjaz à apreciação dos factos.

Lê-se no art. 607.º, n.º 5, I parte, do CPC que o «juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto».

Contudo, esta «livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes» (II parte, do n.º 5, do art. 607.º do CPC citado).
Distingue-se, assim, entre os casos de: prova legal (vinculada, tabelada ou tarifada), isto é, meios de prova cuja força probatória se impõe ao juiz, não tendo este qualquer margem de valoração acerca da factualidade expressa por tais meios probatórios. (É o que sucede, em geral, na prova por documentos autênticos (art. 371.º, n.º 1 do CC), autenticados (art. 377.º do CC) e particulares (art. 376.º, n.º 1 do CC), por confissão (art. 358.º do CC), ou por acordo das partes (art. 574.º, n.º 2 do CPC), e prova livre, isto é, meios de prova cujo valor probatório é livremente apreciado pelo juiz.

É o que sucede na prova pericial (art. 389.º do CC e art. 489.º do CPC), na prova por inspecção judicial (art. 391.º do CC), na prova por verificação não judicial qualificada (art. 494.º, n.º 3 do CPC), na prova testemunhal (art. 396.º do CC), e na prova por depoimento/declarações de parte (arts. 463.º a 466.º, n.º 3 do CPC).

A regra geral será, então, a livre apreciação da prova pelo Tribunal, sem prejuízo dos casos de apreciação vinculada, como acontece com a confissão judicial escrita (art. 358.º, n.º 1 do CC), com a confissão extrajudicial constante de documento dirigida à parte contrária (art. 358.º, n.º 2 do CC), e com certa prova documental (arts. 371.º, n.º 1, 376.º, n.º 1 e 377.º, todos do CC).

Mais se lê, no art. 662.º, n.º 1 do CPC, que a «Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa».

Logo, quando os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas, a dita modificação da matéria de facto - que a ela conduza - constitui um dever do Tribunal de Recurso, e não uma faculdade do mesmo (o que, de algum modo, também já se retiraria do art. 607.º, n.º 4 do CPC, aqui aplicável ex vi do art. 663.º, n.º 2 do mesmo diploma). (Defendendo este poder oficioso do Tribunal de Recurso, António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, Julho de 2013, págs. 225 e 226).
Estarão, nomeadamente, aqui em causa, situações de aplicação de regras vinculativas extraídas do direito probatório material (regulado, grosso modo, no CC), onde se inserem as regras relativas ao ónus de prova, à admissibilidade dos meios de prova, e à força probatória de cada um deles, sendo que qualquer um destes aspectos não respeita apenas às provas a produzir em juízo.

Quando tais normas sejam ignoradas (deixadas de aplicar), ou violadas (mal aplicadas), pelo Tribunal a quo, deverá o Tribunal da Relação, em sede de recurso, sanar esse vício; e de forma oficiosa. Será, nomeadamente, o caso em que, para prova de determinado facto tenha sido apresentado documento autêntico - com força probatória plena - cuja falsidade não tenha sido suscitada (arts. 371.º, n.º 1 e 376.º, n.º 1, ambos do CPC), ou quando exista acordo das partes (art. 574.º, n.º 2 do CPC), ou quando tenha ocorrido confissão relevante cuja força vinculada tenha sido desrespeitada (art. 358.º do CC, e arts. 484.º, n.º 1 e 463.º, ambos do CPC), ou quando tenha sido considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficiente (vg. presunção judicial ou depoimentos de testemunhas, nos termos dos arts. 351.º e 393.º, ambos do CC).

No caso em apreço, começa a Recorrente por pretender que seja aditado ao facto 11º provado, o seguinte:

“podendo as mesmas contitulares, consultar a conta bancária, individualmente”.

Resulta provado que:

9. Na conta descrita em 6) sempre figuraram como contitulares a Autora, a Ré e as Intervenientes Principais, sendo que,

10. A Ré podia movimentar a conta referida em 6) isoladamente, sem autorização das demais;

11. E a Autora e as Intervenientes Principais apenas podiam movimentar a conta referida em 6) conjuntamente.

O Tribunal considerou provados estes factos com base no seguinte:

Os factos descritos em 6. e 9., 10. e 11. foram dados como provados com base quer do depoimento de parte das intervenientes principais EE e DD, quer ainda do teor da declaração bancária datada de 30.10.2018, fls. 13. Acresce a Autora ter reconhecido a existência desta conta e respectiva contitularidade no articulado “Resposta”.

Os saldos bancários das respectivas contas obtiveram ganho de prova com base na análise do extracto integrado emitido em 31.12.2002, fls 147 (factos descritos em 7. e 8.).

Ou seja, estando provado que a Autora reconhece a existência da conta e a sua contitularidade, é manifesto que pode consultá-la.

Em vida da Ré, quer na qualidade de depositante, quer como co-depositante, podia a Autora pedir as informações que tivesse por convenientes, tanto relativamente ao depósito individual, como relativamente ao depósito conjunto.

De facto, o titular ou co-titular de uma conta bancária, para aceder às informações sobre os seus movimentos ou obter um qualquer extracto bancário, não necessita, para além de comprovar que é titular ou co-titular da conta, de demonstrar um qualquer interesse concreto na obtenção de informações ou documentos.

O direito à informação e, designadamente, o direito à obtenção de informações documentadas sobre os movimentos bancários resulta directamente da lei e do contrato bancário celebrado com vista à abertura da conta.

(Neste sentido, cfr. Ac. STJ de 7/10/2020, Proc. nº 26/08.6TBVCD.P1S1, Relator Azevedo Ramos).

Aliás, foi a Autora a própria a admitir que se a sua assinatura consta da conta é porque assinou a mesma. E que, quando passou a ter uma conta no Montepio, deixando a CGD, foi-lhe dito, ai pelo ano de 2016 ?, que tinha lá outra conta, que não consultou porque não era nada consigo.

Se durante os anos em que a mãe geria a conta a não consultava e confiava, tal como as suas irmãs, foi uma escolha pessoal das mesmas.

Sendo assim, como é, aceita-se aditar ao facto 11º a expressão “podendo as mesmas contitulares, consultar a conta bancária, individualmente”.

Pelo exposto, adita-se ao facto 11º a expressão, “podendo as mesmas contitulares, consultar a conta bancária, individualmente”.

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Quanto ao facto 15º.

Foi dado como provado, o seguinte ponto: “15. Não prescindindo, porém, de serem informadas dos rendimentos e despesas advenientes dos bens que compõem o acervo hereditário.”, tendo o tribunal recorrido dado por não provado, o seguinte facto: “B. As receitas e despesas referidas em A) são do conhecimento da Autora, que sempre as aceitou e com elas se conformou.”

Considerou o Tribunal que a factualidade descrita em 12., 13., 14. e 15. resultou provada com base nos depoimentos de parte, quer da Autora, quer das Intervenientes Principais, unânimes e coerentes em si e entre si nesta matéria. Não obstante a Autora não ter sido tão assertiva, dizendo-se algo esquecida, condição que atribuiu ao abalo emocional em que ficou à data da morte do seu pai, nada disse em concreto que contraditasse o que foi dito pelas irmãs, corroborando, relativamente aos imóveis que se encontravam arrendados, e cuja localização era próxima da sua residência (no Porto), ter sido a própria a ficar incumbida de receber as rendas e emitir os respectivos recibos, por vários anos (desde a morte do pai até aproximadamente 2014), assim como a depositá-los na conta bancária aberta para o efeito.

Considerou o tribunal que a factualidade descrita em A. e B. não obteve ganho de prova por ausência de prova produzida no sentido da sua real ocorrência. Atente-se que da leitura dos extractos bancários, a fls. 109 a 144 e 164, não se consegue extrair as receitas/despesas advenientes da administração da herança. São parcelas e números que lá constam sem correspondência ao facto concreto que originou o crédito ou o débito. Por outras palavras, da mera leitura dos extractos bancários apenas se consegue aferir o destino ou proveniência de algumas quantias, sendo precária a informação (veja-se, por exemplo, o movimento “levantamento bancário”.

Para além disso, as Intervenientes Principais, em depoimento de parte, disseram que a Ré não prestava tais informações – do dever e haver – a ninguém, desde logo por ser consensual o entendimento de que “o dinheiro era da mãe”.

Contrapõe a Recorrente que “Resulta dos depoimentos prestados pelas partes que, após a morte do pai da A. e Intervenientes Principais, todas estas entenderam que fosse a mãe a gerir, como entendesse, o património da herança, o que motivou a abertura da conta identificada em 6) dos factos provados, tendo todas referido em sede de depoimento, que o dinheiro era da mãe e que, por isso, não lhes dizia respeito a movimentação feita pela mãe.

Pelo que, não só, não foi feita prova tendente ao facto vertido sob o ponto 15 dos factos provados, resultando sim, como provado o ponto B) dos factos não provados, isto é, que a A., tal como as Intervenientes Principais, aceitaram e conformaram-se com as contas geridas pela mãe, que incluem as receitas e despesas da herança.

Impere nesta sede o principio da livre apreciação do juiz, com os contornos acima expostos.

O que para nós resultou da conjugação do depoimento de parte da Autora e das intervenientes, suas irmãs, é que, durante os primeiros anos, após a morte do pai, era a mãe quem geria tudo e todas aceitaram esse facto, sem pedir contas à mesma.

A DD e a EE disseram que não pediram contas, porque era tudo da mãe.

Já a AA nos primeiros anos, até 2014, parece não se ter importado, tanto mais que participava na gestão dos bens hereditários através dos recebimentos das rendas, o que evidencia que aceitava a situação vigente.

No mais, a Autora AA sempre foi passar o mês de Agosto junto da mãe.

Referiu que confiava na mãe enquanto ela geria tudo e achava que não lhe devia dizer nada.

Devia ter sido mais presente, mas confiava na mãe.

Já em 2014/2015, quando a mãe a retirou dessa função de receber as rendas dos apartamentos do Porto e deu à sua irmã essa função, não gostou.

Percebemos pelo depoimento conjugado entre esta parte e as suas irmãs que começaram a surgir problemas no relacionamento entre as mesmas, que não se falam.

A mãe tinha uma outra conta onde recebia a reforma de viuvez que lhe veio a ser atribuída e passaram a fazer parte dessa conta as irmãs EE e DD.

Cabe salientar que a mãe vivia com a irmã DD.

Esta referiu que a mãe passou a ter medo que a AA lhe tirasse todos os bens da herança.

No ano de 2017 chegou a levar a mãe para a escola, porque a mesma tinha medo da irmã.

Daqui se percebe a mudança de atitude da Autora em relação aos bens, à mãe e às irmãs, resultante do facto de saber que passou a existir uma outra conta da qual não fazia parte, de as irmãs, a certa altura, ou por pedido da mãe, ou mais tarde, para acolher a necessidades desta quando ficou incapaz, usarem o cartão multibanco para compras de supermercado e outras e para pagar impostos.

No ano de 2018 a situação da mãe foi-se agravando e acabou por vir a ser proposta a acção de maior acompanhada, que está provada nos autos.

Deixaram de poder utilizar o cartão.

A Autora refere que, em 2018, com a situação de agravamento da situação da mãe que deixou de conseguir gerir os seus bens, Intentou esta acção porque é um direito que lhe assiste. Não sabe do dinheiro da mãe e como é gerido.

Este facto resulta também demonstrado na data da propositura da acção, apenas em 17 de Outubro de 2018.

Só nesta data a Autora se interessou por propor a acção de prestação de contas, pese embora o pai tenha falecido em .../.../2002, porque foi o ano em que o Alzheimer se agravou, deixando a mãe de poder gerir os bens.

Aliás, já no final do ano de 2017, o advogado constituído por sua mãe enviou à Autora uma carta onde presta contas das rendas e refere que a mãe não vai fazer a transferência da parte correspondente ao valor das irmãs, pedindo o IBAN, caso a Autora pretenda receber a sua quota parte.

A própria teve intervenção na gestão, em relação ao recebimento e depósito das rendas dos prédios do Porto, tendo nessa parte conhecimento dos valores em causa.

Daqui se conclui que a Autora não prescindiu de ser informada dos rendimentos e despesas advenientes dos bens que compõem o acervo hereditário.

Apenas condescendeu durante os anos em que a mãe geriu os bens e colaborou na gestão.

E as suas irmãs também não prescindiram, o que resulta demonstrado de todo o procedimento que tiveram ao abrir outra conta com a mãe e ao usarem o cartão multibanco para fazerem levantamentos para as despesas da casa e para pagar os impostos.

Em consequência do exposto, decidimos manter como provado o facto 15º.

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Em relação ao facto não provado em B), também não podemos dizer que os factos demonstrados são suficientes para dar como provado o facto vertido sob o ponto B. dos factos não provados, ou seja, que as receitas e despesas referidas em A) são do conhecimento da Autora que sempre as aceitou e com elas se conformou.

Apenas resulta demonstrado que a Autora teve conhecimento das rendas dos prédios do Porto em determinado lapso temporal e que podia ter consultado a conta. Nada mais.

Por isso, considera-se não provado o facto B), tal como assim o considerou o tribunal recorrido.

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A recorrente insurge-se ainda contra o facto não provado A., com a seguinte redacção “Os extractos da conta bancária 032.10.35125-6, aludida em 6) dos Factos Provados, espelha na íntegra todas as rendas dos imóveis indicados nos pontos 4.1) e 4.2), identifica os inquilinos depositantes bem como todas as despesas a eles inerentes.”

O tribunal considerou este facto não provado, com base no seguinte:

A factualidade descrita em A. e B. não obteve ganho de prova por ausência de prova produzida no sentido da sua real ocorrência. Atente-se que da leitura dos extractos bancários, a fls. 109 a 144 e 164, não se consegue extrair as receitas/despesas advenientes da administração da herança. São parcelas e números que lá constam sem correspondência ao facto concreto que originou o crédito ou o débito. Por outras palavras, da mera leitura dos extractos bancários apenas se consegue aferir o destino ou proveniência de algumas quantias, sendo precária a informação (veja-se, por exemplo, o movimento “levantamento bancário”.

Considera a recorrente que, resulta porém, suficientemente provado, quer dos extractos bancários juntos aos autos, quer dos depoimentos prestados, que se irão passar a identificar infra, que os extractos em causa, referentes à conta bancária identificada no ponto 6) dos factos provados, contêm todas os movimentos a crédito e a débito feitos em nome da herança, por ser a conta escolhida, logo após a morte do autor da herança, para serem depositadas todas as rendas da herança e contendo as mesmas, ser usada para pagar todas as despesas.

Para a recorrente, o facto em causa deve ser considerado provado com base no depoimento de DD. Ora esta interveniente referiu que existiam rendas de prédios da herança e rendas provenientes de prédios que estavam em nome das três irmãs, mas que a mãe tinha o usufruto. Se inicialmente todas as rendas eram todas depositadas na mesma conta, a partir de certa altura abriram uma conta só com as duas irmãs EE e DD e a mãe, porque a irmã lhe pediu ajuda e aí foram depositadas as rendas do usufruto.

Não é esta a versão da irmã AA, que chega a insinuar que todo o dinheiro da herança está depositado nesta outra conta só em nome das três.

Em face desta dúvida gerada pela existência de mais do que uma conta, que as três intervenientes admitiram e pela próprio conteúdo dos extractos da conta bancária 032.10.35125-6, aludida em 6) dos Factos Provados, não se pode concluir que esta espelha na íntegra todas as rendas dos imóveis indicados nos pontos 4.1) e 4.2), identifica os inquilinos depositantes bem como todas as despesas a eles inerentes.”

Dai que se considere não provado o facto A), como não o considerou o tribunal recorrido.

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Em face do exposto, procede parcialmente a impugnação da decisão de facto com o aditamento da expressão “podendo as mesmas contitulares, consultar a conta bancária, individualmente”, ao facto 11º, que assim passará a ter a seguinte redacção.
11. E a Autora e as Intervenientes Principais apenas podiam movimentar a conta referida em 6) conjuntamente, podendo as mesmas contitulares, consultar a conta bancária, individualmente.

Improcede no mais a impugnação dos factos.

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Perante os factos provados, vejamos o direito aplicável.

A prestação de contas é uma manifestação da obrigação de informação, consagrada no artigo 573.º do Código Civil, com referência ao artigo 941.º do Código de Processo Civil.

Estruturalmente, a prestação de contas é uma obrigação de informação que existe sempre que o titular dum direito tenha dúvida fundada acerca da sua existência ou do seu conteúdo e outrem esteja em condições de prestar as informações necessárias e cujo fim é o de estabelecer o montante das receitas cobradas e das despesas efectuadas, de modo a obter-se a definição de um saldo e a determinar a situação de crédito ou de débito
E, no plano finalístico, o referido procedimento impõe a obrigação de informação detalhada das receitas e das despesa acompanhada da justificação e documentação de todos os actos de que é uso exigir e guardar documentos e que visa determinar o quantitativo que uma parte deve a outra.

O presente processo especial destina-se assim «a alcançar, por um lado (função puramente declarativa), o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios; e, por outro lado (função condenatória), a alcançar a eventual condenação do requerido no pagamento do saldo que se venha a apurar».

(Neste sentido cfr. Ac da RE de 25-01-2023, Proc. nº 1043/18.3T8STC.E1)

“Incumbe àquele que se arroga o direito de ser informado o ónus da prova de todos os factos que conduzem à aplicação da norma jurídica que serve de fundamento à sua pretensão – artigos 342.º, n.º 1, e 573.º do Código Civil.

O cumprimento da obrigação de informação deve ser exigido com observância dos princípios da boa fé, da proporcionalidade e da razoabilidade, ponderando-se – designadamente – a sua onerosidade para o vinculado (…).

A jurisprudência tem enfatizado que a acção especial de prestação de contas é uma das formas de exercício deste direito de informação, afirmando designadamente que a obrigação de prestação de contas é estruturalmente uma obrigação de informação, que existe sempre que o titular de um direito tenha dúvida fundada acerca da sua existência ou do seu conteúdo e outrem esteja em condições de prestar as informações necessárias (artigo 573.º do Código Civil) e cujo fim é o de estabelecer o montante das receitas cobradas e das despesas efectuadas, de modo a obter-se a definição de um saldo e a determinar a situação de crédito ou de débito” (assim, Luís Filipe Pires de Sousa; Acções Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas; Coimbra Editora, 2011, pp. 122-123).

Ou seja, conforme se sublinhou no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 27-06-2019 (Pº 3587/16.2T8ENT.E1, rel. MARIA DOMINGAS): “Por um lado, a obrigação de prestação de contas filia-se no amplo dever de informação que onera aquele que gere o que não é seu, que o obriga a dar informação detalhada das receitas e despesas efectuadas, acompanhada dos documentos justificativos; e, por outro, o direito de exigir que outrem lhe preste contas provém do facto desse terceiro estar investido na administração de bens que lhe não pertencem, podendo resultar da lei ou dos próprios termos do negócio celebrado, assentando na ideia básica de que quem administra os bens estará em posição de saber e provar quais os créditos e as despesas da sua administração”.

No caso, a requerente peticionou que a requerida fosse citado para prestar contas da administração da herança do seu marido e pai da Autora (requerente e requerido), atento o desempenho das suas funções de cabeça-de-casal (cfr. artigo 2093.º, n.º 1, do CC) da referida herança.

A obrigação de prestação de contas pelo cabeça-de-casal “deriva da administração da herança, como garantia de que essa administração será exercida com diligência, competência e honestidade e de que o administrador não se afastará das regras que a prudência indica e a probidade impõe” (cfr. Lopes Cardoso; Partilhas Judiciais, vol. II, 7.ª ed., Almedina, 2018, p. 243).

“O cabeça-de-casal tem, pois, de ser prudente, cauteloso e honesto e é necessário tomar-lhe contas para exame da administração a seu cargo, dado que gere património que não é exclusivamente seu, incumbindo-lhe satisfazer o que se lhe mostrar devido ou exigir o saldo que, porventura, haja a favor da herança” (cfr. Lopes Cardoso, ob. cit., p. 244).
Requerida a prestação de contas pelo autor, se o réu não contestar tal obrigação, deve apresentar contas, em conformidade com o disposto no artigo 944.º do CPC:

“1 - As contas que o réu deva prestar são apresentadas em forma de conta-corrente e nelas se especifica a proveniência das receitas e a aplicação das despesas, bem como o respetivo saldo.

2 - A inobservância do disposto no número anterior, quando não corrigida no prazo que for fixado oficiosamente ou mediante reclamação do autor, pode determinar a rejeição das contas, seguindo-se o disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo anterior.
3 - As contas são apresentadas em duplicado e instruídas com os documentos justificativos.
4 - A inscrição nas contas das verbas de receita faz prova contra o réu.
5 - Se as contas apresentarem saldo a favor do autor, pode este requerer que o réu seja notificado para, no prazo de 10 dias, pagar a importância do saldo, sob pena de, por apenso, se proceder a penhora e se seguirem os termos posteriores da execução por quantia certa; este requerimento não obsta a que o autor deduza contra as contas a oposição que entender”.

Se o réu apresentar as contas em tempo, pode o autor contestá-las no prazo de 30 dias, seguindo-se os termos, subsequentes à contestação, do processo comum declarativo (cfr. artigo 945.º, n.º 1, do CPC), devendo o juiz ordenar “a realização de todas as diligências indispensáveis, decidindo segundo o seu prudente arbítrio e as regras da experiência, podendo considerar justificadas sem documentos as verbas de receita ou de despesa em que não é costume exigi-los” (cfr. n.º 5 do artigo 945.º do CPC).
A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos (n.º 1 do art.º 20.º da CRP), a obter em prazo razoável e mediante processo equitativo (n.º 4 do art.º 20.º da CRP, art.º 2.º do CPC).
E dispõe o artigo 7.º (Princípio da cooperação) do CPC que:
“1 - Na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio.

2 - O juiz pode, em qualquer altura do processo, ouvir as partes, seus representantes ou mandatários judiciais, convidando-os a fornecer os esclarecimentos sobre a matéria de facto ou de direito que se afigurem pertinentes e dando-se conhecimento à outra parte dos resultados da diligência.

3 - As pessoas referidas no número anterior são obrigadas a comparecer sempre que para isso forem notificadas e a prestar os esclarecimentos que lhes forem pedidos, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 417.º.

4 - Sempre que alguma das partes alegue justificadamente dificuldade séria em obter documento ou informação que condicione o eficaz exercício de faculdade ou o cumprimento de ónus ou dever processual, deve o juiz, sempre que possível, providenciar pela remoção do obstáculo”.

Concretizando a função deste princípio fundamental do processo civil, refere Teixeira de Sousa (“Omissão do dever de cooperação do Tribunal: Que consequências?”, Fevereiro de 2016, disponível

em https://www.academia.edu/10210886/TEIXEIRA_DE_SOUSA_M._Omiss%C3%A3o_do_dever_de_coopera%C3%A7%C3%A3o_do_tribunal_que_consequ%C3%AAncias_01.2015_) o seguinte:

“a) O dever de cooperação do tribunal (trata-se, na realidade, de um poder-dever ou de um dever funcional) destina-se a incrementar a eficiência do processo, a assegurar a igualdade de oportunidades das partes e a promover a descoberta da verdade. Este dever de colaboração do tribunal é uma “forma de expressão de um processo civil dialógico”, no qual o tribunal, não só dirige activamente o processo e providencia pelo seu andamento célere (cf. art. 6.º, n.º 1), como também dialoga com as partes e ainda participa da aquisição de matéria de facto e de direito para o proferimento da decisão.
O dever de cooperação do tribunal prossegue uma finalidade estabelecida pela lei: esse dever destina-se, como se refere no art. 7.º, n.º 1, a alcançar a justa composição do litígio, o que demonstra que o dever de cooperação está ao serviço da obtenção de uma justa composição do litígio. Isto significa que, estando o processo na disponibilidade das partes e, por isso, não podendo o tribunal substituir-se às partes na definição do seu objecto e na prática de actos processuais, o dever de cooperação tem essencialmente uma função assistencial das partes. Neste enquadramento, o dever se cooperação não pode ser confundido com um poder discricionário do tribunal: não se trata de atribuir ao tribunal um poder para o mesmo utilizar quando entender e como entender, mas de impor ao tribunal um dever de auxílio das partes para que seja atingida a justa composição do litígio”.
Segundo o mesmo Autor o dever de colaboração desdobra-se nos seguintes deveres:
“– Dever de inquisitoriedade (cf. art. 411.º e 986.º, n.º 2): o tribunal tem o dever de utilizar os poderes inquisitórios que lhe são atribuídos pela lei (…);
– Dever de prevenção ou de advertência (…) o tribunal tem o dever de prevenir as partes sobre a falta de pressupostos processuais sanáveis (cf. art. 6.º, n.º 2, e 508.º, n.º 1, al. a)) e sobre irregularidades ou insuficiências das suas peças ou alegações (cf. art. 590.º, n.º 2, al. b), 591.º, n.º 1, al. c), 639.º, n.º 3, e 652.º, n.º 1, al. a)) (…);
– Dever de esclarecimento; o tribunal tem o dever de se esclarecer junto das partes quanto às dúvidas que tenha sobre as suas alegações, pedidos ou posições em juízo (cf. art. 7.º, n.º 2; cf. também art. 452.º, n.º 1) (…);
– Dever de consulta das partes; o tribunal tem o dever de consultar as partes sempre que pretenda conhecer (oficiosamente) de matéria de facto ou de direito sobre a qual aquelas não tenham tido a possibilidade de se pronunciarem (cf. art. 3.º, n.º 3) (…);
– Dever de auxílio das partes; o tribunal tem o dever de auxiliar as partes na remoção das dificuldades ao exercício dos seus direitos ou faculdades ou no cumprimento dos seus ónus ou deveres processuais (cf. art. 7.º, n.º 4); encontra-se uma concretização deste dever de auxílio no art. 418.º, n.º 1, quanto à obtenção de informações na posse de serviços administrativos (…)”.

Para além disso, dispõe o n.º 1 do mencionado artigo 417º (com a epigrafe “Dever de cooperação para a descoberta da verdade”) do Código de Processo Civil que: “Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados”.
Assim, na tarefa de cooperação para a descoberta da verdade, todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que lhes for requisitado e praticando os atos que forem determinados (n.º 1 do art.º 417.º do CPC).
Interesses relevantes poderão justificar a recusa da dita colaboração. Assim, a recusa é legítima se a obediência importar “intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações” (al. b) do n.º 3 do art.º 417.º) ou “a violação do sigilo profissional (…)” (n.º 3, alínea c) do art.º 417.º do CPC).
Nos termos do n.º 4 do art.º 417.º do CPC, ”deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.”
Remete-se para o regime previsto no processo penal a fim de solucionar o conflito que surja entre uma determinada pretensão probatória e a invocação de dever de sigilo.
Haverá que ver, então, o que a este respeito se prevê no Código de Processo Penal.
Disciplina sobre a matéria o artigo 135.º (com a redação introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto) – com a epigrafe “Segredo profissional” - , dispondo o seguinte:
“1 - Os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos.
2 - Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento.

3 - O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.
4 - Nos casos previstos nos n.ºs. 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável.

5 - O disposto nos n.ºs. 3 e 4 não se aplica ao segredo religioso.”
Tendo o tribunal perante o qual foi suscitado o incidente de invocação do segredo profissional concluído pela legitimidade da recusa, caberá ao tribunal superior apreciar se deve ou não ser quebrado o segredo profissional.
Ou seja: “Só após se considerar legítima a escusa invocada é que o presente incidente deve ser suscitado e depois remetido a este Tribunal da Relação, que apenas se pronuncia sobre a dispensa/quebra do sigilo profissional (como resulta das disposições conjugadas dos art. 417.º/4 do CPC e 135.º/2 e 3 do CPP)” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12-06-2018, Processo n.º 768/16.2T8CBR-C.C1, relator BARATEIRO MARTINS).
Para tal, o tribunal que conhece do incidente deve considerar que a quebra é justificada “segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante”, nomeadamente tendo em conta a “imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade”, a “gravidade do crime” e a “necessidade de proteção de bens jurídicos”.
“Tudo em consonância com os princípios a observar em caso de colisão de direitos (art.º 335.º do Código Civil), segundo os quais, se forem da mesma espécie, os respetivos titulares deverão ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes, devendo prevalecer, no caso de direitos desiguais ou de espécie diferente, o que for considerado superior. Sendo certo que as restrições aos direitos, liberdades e garantias, quando admitidas, deverão “limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos” (n.º 2 do art.º 18.º da CRP)” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12-04-2018, Processo 18479/16.7T8LSB-A.L1-2, rel. JORGE LEAL).
No caso em apreço, sufragamos o entendimento da sentença recorrida quando refere:

“Da factualidade provada podemos desde logo estabelecer dois momentos temporários distintos relativamente à administração da herança aberta por óbito de CC: o período compreendido entre .../.../2002 e 31 de Dezembro de 2017; e o período a partir 1 de Janeiro de 2018.

Assim, com referência ao período compreendido entre .../.../2002 e 31 de Dezembro de 2017, diremos o seguinte.

Após a morte de CC foi nomeada cabeça de casal a aqui Ré, que ficou incumbida de exercer as funções inerentes a tal cargo.

De facto, passou a caber à Ré administrar a totalidade dos bens da herança, designadamente a quantia em dinheiro depositada nas contas bancárias (factos descritos em 6., 7. e 8.) e bens imóveis que faziam parte do acervo hereditário, e respectivas rendas, e correlativas despesas advindas de tal administração (factos descritos em 4. e 5.).

Dispõe o artigo 2093.º do Código Civil que “1. O cabeça-de-casal deve prestar contas anualmente. 2. Nas contas entram como despesas os rendimentos entregues pelo cabeça-de-casal aos herdeiros ou ao cônjuge meeiro nos termos do artigo anterior, e bem assim o juro do que haja gasto à sua custa na satisfação de encargos da administração. 3. Havendo saldo positivo, é distribuído pelos interessados, segundo o seu direito, depois de deduzida a quantia necessária para os encargos do novo ano.”.

Compete ao cabeça-de-casal a prática de todos os actos que se mostrem indispensáveis à administração dos bens, neles se incluindo a movimentação de todos os depósitos bancários constituídos ao tempo da abertura da herança, e existentes nas contas correntes bancárias, a cobrança de quaisquer dívidas activas da herança, a aplicação e distribuição de rendimentos e a gestão de todo o património que a integre – cfr. artigos 2089.º, 2087.º, 2092.º e 2093.º, todos do Código Civil.

Ora, a Ré, na qualidade de cabeça de casal, tinha o dever de informar as demais herdeiras das receitas e despesas relativas à administração da herança, sem que de tal tivessem estas prescindido (factos 12., 13., 14. e 15.). A contitularidade, pelas herdeiras, de conta bancária e acesso aos respectivos extractos bancários não é sinónimo do cumprimento desse dever (factos provados em 6. a 11., e factos não provados em A. e B.).

Aliás, o dever legal de prestar contas implica que se o faça em forma de conta corrente, com deve e haver e respectivo saldo, e conexiona-se com o dever de informação do artigo 573.º do Código Civil, que dispõe “A obrigação de informação existe, sempre que o titular de um direito tenha dúvida fundada acerca da sua existência ou do seu conteúdo e outrem esteja em condições de prestar as informações necessárias.”.

Considerando a factualidade provada em 19., a partir de 01.01.2018 a aqui Ré passou a necessitar de medida de acompanhamento de representação geral, deixando de administrar, de facto, a herança aberta por óbito do seu cônjuge.

Neste sentido, relativamente ao período compreendido entre .../.../2002 e 31 de Dezembro de 2017, conclui-se ser a Ré obrigada a prestar contas da administração da herança aberta por óbito de CC.

Determinou a sentença recorrida, ser a Ré notificada, na pessoa da curadora (e Acompanhante) e para apresentar, em 20 dias, as contas da administração dos bens do acervo hereditário por óbito de CC, referente ao período compreendido entre .../.../2002 e 31.12.2017, em forma de conta corrente, sob pena de, não o fazendo, não poder contestar as que a Autora apresente – cfr. artigo 942.º, n.º 5, do CPC.

A Recorrente, nas conclusões AF, vem alegar que “Perante os factos provados vertidos nos pontos 10 a 14 e 19, resulta que até ao ano de 2018, era a Ré quem geria as contas, receitas e despesas e usava a conta bancária identificada sob o ponto 6 dos factos provados, em exclusivo e sem dar quaisquer informações ou justificações a nenhuma das outras herdeiras, aqui incluindo a recorrente, pelo que, face à total incapacidade da mesma, a partir de 2018, ou seja, provado está que, apenas a Ré era conhecedora de todos os movimentos a crédito e a débito feitos ao longo de mais de 20 anos, o que, consequentemente, impossibilita a recorrente de o fazer em nome daquela”.

Conclui nas conclusões seguintes não estar obrigada ao dever de prestar contas referentes aos anos anteriores a 2018.

O certo é que a recorrente age, não em nome próprio, mas em representação da mãe, estando obrigada, nessa qualidade a apresentar contas em representação da mãe relativamente aos anos anteriores a 2018 porque tal obrigação não é pessoal e pode ser cumprida por outrem que não o próprio administrador em caso de impossibilidade deste.

Em sentido próximo, e ponderando a natureza patrimonial da obrigação de prestar contas, cfr o Ac. de do STJ de 16.6.2011, Proc. nº 3717/05.0TVLSB.L1, Relator Tavares de Paiva que diz: E sendo a obrigação de prestar contas de natureza patrimonial é susceptível de transmissão para os respectivos herdeiros de quem fez administração de bens alheios, não se verificando, por isso, em sede de acção de prestação de contas a impossibilidade originária da lide, pelo facto de ter ocorrido a morte de quem exerceu essa administração.
Diriamos nós que, por maioria de razão, assim será quando ocorreu uma situação de incapacidade e a curadora tem que prestar contas em representação da inicial cabeça de casal.
Se a apelante tiver dificuldade em cumprir a obrigação pode pedir a cooperação do Tribunal, nos termos sobreditos.
Em face do exposto e também com este fundamento, impõe-se julgar improcedente a Apelação, mantendo a sentença objecto de recurso.
Em conclusão, confirma-se a sentença objecto de recurso.

*

DECISÃO

Nos termos vistos, Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente a Apelação, confirmando a sentença objecto de recurso.

Custas a cargo da Apelante.

Évora, 26-10-2023

Maria Amélia Ameixoeira

José António Moita

Maria João Faro