Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
39/20.0T8TVR.E2
Relator: JOSÉ LÚCIO
Descritores: HERANÇA
INVENTÁRIO
CUMULAÇÃO DE INVENTÁRIOS
INDEFERIMENTO LIMINAR
PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO
Data do Acordão: 10/26/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1 – Ultrapassada a fase de apreciação liminar a que se refere o art. 590º do CPC, tendo ficado decidido o prosseguimento do processo por não se verificar motivo para indeferimento liminar, não pode numa fase posterior proferir-se decisão a “indeferir liminarmente” o mesmo processo.
2 – Deixando de verificar-se os requisitos de que depende a cumulação de inventários, estabelecidos no art. 1094º do CPC, pode o julgador decidir a cessação dessa cumulação, não obstando a tal a anterior decisão no sentido da cumulação.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:

I – RELATÓRIO
Os presentes autos de inventário tiveram o seu início, no Cartório Notarial, por requerimento de AA, na qualidade de representante legal da sua filha BB, única filha e única herdeira do inventariado CC.
Nesse requerimento a requerente e cabeça de casal indicava que não pretendia cumulação de inventários, não existiam bens a partilhar e inexistia testamento, fazendo constar que pretendia apenas a avaliação dos bens imóveis e móveis deixados pelo inventariado.
No mesmo requerimento informava ainda que o inventariado era herdeiro de DD, seu falecido pai, consignando que «Apesar de não haver cumulação de inventários, faz-se a salvaguarda desta herança na parte que coube a CC, a favor da sua filha e única herdeira, BB».
A cabeça de casal apresentou então relação de bens, referente à herança de CC, e prestou compromisso de honra perante o Notário.
E ainda no Cartório Notarial veio EE, irmão do inventariado, apresentar requerimento referindo a existência de dívidas da herança, para com ele próprio e para com a herança de DD.
Posteriormente, entrou em vigor a Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro, estabelecendo regime legal aplicável aos autos, e estes passaram a correr no Juízo Cível a que pertencem.
Uma vez no tribunal, veio a ser proferido despacho que indeferiu liminarmente o requerimento inicial, considerando em resumo que o inventário é um processo que se destina à descrição e partilha dos bens da herança de uma pessoa falecida, sendo sua função, designadamente, fazer cessar a comunhão hereditária e proceder à partilha de bens, e nos autos não existir comunhão hereditária, porquanto BB se apresenta como a única herdeira do inventariado (quanto a este nada haveria a partilhar, nem estava requerida a cumulação de inventários).
Interposto recurso contra essa decisão de indeferimento liminar, veio o mesmo a ser atendido nesta Relação, por decisão sumária, que revogou o indeferimento liminar (desde logo por se entender que é admissível o inventário-arrolamento, requerido quanto a CC) e ordenou o prosseguimento dos autos, determinando ainda oficiosamente a cumulação do inventário deste com o inventário referente a seu pai, DD, dada a dependência parcial.
Prosseguindo o processo, novamente na primeira instância, foi dado cumprimento à decisão sumária, concretamente no referente à cumulação de inventários.
Todavia, no decurso posterior do processo, a cabeça de casal deparou-se com dificuldades no cumprimento das suas funções (entenda-se, com respeito à herança de DD),
A cabeça de casal comunicou então ao tribunal (08.10.2021) o que apontava como as complexidades, dificuldades, inconvenientes e até a impossibilidade prática que para si representava a cumulação do inventário do avô ao inventário do pai da interessada.
Todavia, o tribunal insistiu pelo cumprimento do disposto nos art.ºs 1097.º a 1099.º do C.P.C. relativamente à herança do avô da requerente, ao que a cabeça de casal não deu cumprimento.
Perante esse impasse a cabeça de casal apresentou requerimento (a 16.07.2022, Ref.ª CITIUS 42887865) no qual esta requereu o prosseguimento dos autos sem cumulação entre as heranças do pai e do avô de sua filha, e o prosseguimento do processo apenas em relação ao acervo hereditário do pai, CC, para efeitos de relacionar os bens que constituem objeto da sucessão deste e servir de base à eventual liquidação da herança (art.ºs 1082.º, al. b) C.P.C. e 2052.º do C.C.).
Essa pretensão foi rejeitada por despacho de 22.09.2022 (Ref.ª CITIUS 125564710), o qual concedeu à requerente um novo prazo para dar satisfação ao despacho anterior, sobre a apresentação dos elementos relativos à herança de DD.
Não tendo a cabeça de casal dado cumprimento ao ordenado neste despacho, reiterando as razões anteriormente explanadas, veio então a ser proferido novo despacho declarando que “ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 1100.º, n.º1, al. a), e 590.º, n.º1, do CPC, indefere-se liminarmente o presente inventário, atenta a manifesta inviabilidade do mesmo.
Fundamentando a decisão, diz o julgador que “em 13-09-2021, foi proferido despacho com o seguinte teor: “tendo em consideração o prosseguimento dos autos com a cumulação do inventário por óbito de CC e com o inventário para partilha da herança do pai deste, DD (cfr. art. 1094.º, n.º 1, alínea c) do C.P.C.), deverá a Requerente, antes de mais, dar cumprimento ao disposto nos arts. 1097.º a 1099.º do C.P.C. no que ao falecido DD respeita, nomeadamente:
- Indicando o lugar do último domicílio do autor da herança, a data e o lugar em que haja falecido;
- Indicando quem deve exercer o cargo de cabeça de casal;
- Identificando os interessados directos na partilha, os respectivos cônjuges e o regime de Bens do casamento, os legatários e ainda, havendo herdeiros legitimários, os donatários;
- Juntando todos os documentos comprovativos dos factos alegados.
- Prazo: 10 dias”.
Todavia, decorrido mais de um ano, não foi dado pela Requerente cumprimento ao referido despacho, não obstante as inúmeras oportunidades, prorrogações de prazo e advertências que lhe foram concedidas.”
Na base desta fundamentação consignou-se que é “absolutamente necessária a cumulação de inventários para obtenção das finalidades dos autos” dada a conexão existente entre o inventário por morte de CC e o inventário por morte de DD, rejeitando a pretensão da requerente no sentido do prosseguimento do inventário sem a cumulação, declarando-se que tal “cumulação é, pois, obrigatória, quer tenha sido requerida, quer não”.
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II – A APELAÇÃO
Reagindo contra o decidido no despacho referido, a cabeça de casal, e representante legal da interessada BB, intentou o presente recurso de apelação, apresentando no final das suas alegações as seguintes conclusões, que transcrevemos:
A) A relação de dependência que existe entre o inventário por morte de CC e do inventário por morte do DD é meramente parcial, podendo assim o primeiro decorrer autonomamente do segundo no caso de o único herdeiro não ter interesse na cumulação ou nos casos previstos no art.º 1094.º, n.º 2 al. b) C.P.C..
B) O Ac. TRE já proferido nestes autos não impede que por posterior desistência da cumulação por parte da única herdeira ou por conhecimento ou consideração nos autos de complexidades, dificuldades, inconvenientes e até a impossibilidade prática que representem inconveniente para os interesses das partes ou para celeridade do processo nos termos do art.º 1094.º, n.º 2 al. b) C.P.C., como é o caso.
C) A decisão recorrida ao ter determinado o indeferimento liminar do inventário e não ordenado o prosseguimento deste apenas relativamente à herança do pai da Requerente, atento os fundamentos alegados pela Requerente para o prosseguimento dos autos sem a cumulação de inventários e apenas para relacionar os bens que constituem objeto da sucessão de seu pai e servir de base à eventual liquidação da herança, o mesmo violou o disposto nos art.ºs 1082.º, al. b), 1100.º, 950.º e 1094.º, n.º 2 al. b) C.P.C. e 2052.º, n.º 1 do C.C.,
Nestes termos e nos demais de direito, deve o presente recurso ser julgado procedente e em consequência deve ser revogada a decisão recorrida proferida em 18.10.2022 e determinada a sua substituição por outra que ordene o prosseguimento do processo apenas para relacionar os bens que constituem objeto da sucessão de seu pai e servir de base à eventual liquidação da herança deste.
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III – DAS CONTRA-ALEGAÇÕES
Em face do recurso interposto, o Ministério Público apresentou contra-alegações, para defender a improcedência da apelação.
Diz o MP que verificando-se uma conexão entre o inventário por morte de CC e o inventário por morte de DD impõe-se a apreciação conjunta e unitária de todo o conspecto processual tramitado com vista à consecução de uma partilha justa e equitativa, e que a Recorrente, não obstante as inúmeras oportunidades, prorrogações de prazo e advertências que lhe foram concedidas, não deu cumprimento ao disposto nos artigos 1097.º a 1099.º do C.P.C., no que ao falecido DD respeita, inviabilizando o prosseguimento da acção, pelo que deve manter-se a decisão impugnada.
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IV – DA FACTUALIDADE A CONSIDERAR
Os factos e as incidências processuais relevantes para conhecimento do recurso são os que ficaram explanados no relatório inicial, para o qual aqui se remete.
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V – DO OBJECTO DO RECURSO
1 - Como se sabe, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (cfr. arts. 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC).
Sublinha-se ainda a este propósito que na sua tarefa não está o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pela recorrente, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (cfr. art. 5.º, n.º 3, do CPC).
No caso presente, as questões colocadas ao tribunal de recurso, tendo em conta o conteúdo das conclusões que acima se transcreveram, traduzem-se em apreciar do acerto da decisão de indeferimento liminar do inventário que vem impugnada.
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VI – DO DIREITO
A - O despacho impugnado decidiu indeferir liminarmente o inventário em curso dizendo que tal decisão é tomada “ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 1100.º, n.º 1, al. a), e 590.º, n.º 1, do CPC”, e “atenta a manifesta inviabilidade do mesmo.
Constata-se que das disposições citadas resulta que no processo especial de inventário há lugar a despacho liminar (cfr. art. 1100.º, n.º 1, CPC) e que havendo lugar a despacho liminar pode a petição ser indeferida “quando o pedido seja manifestamente improcedente” (cfr. art. 590º, n.º 1, CPC).
Porém, é inevitável observar que nos presentes autos o momento do despacho liminar a que se refere o art. 1100º do CPC já foi ultrapassado, havendo até muito processado posterior.
Como se consignou no relatório inicial do presente acórdão, foi inclusivamente proferido um anterior “despacho de indeferimento liminar”, que veio a ser revogado na sequência do recurso interposto, tendo sido ordenado o prosseguimento dos autos.
E vem a este propósito lembrar o teor do Acórdão desta Relação de Évora de 26-05-2022, no processo n.º 130/21.5T8ADV.E1, relatado por Manuel Bargado (ora 1º Adjunto), e disponível em www.dgsi.pt:
“A decisão proferida em processo de inventário, a admitir liminarmente o requerimento inicial apresentado para que se proceda a inventário para relacionar os bens que constituem objeto de sucessão e servir de base à eventual liquidação, devidamente fundamentada, uma vez transitada em julgado, faz caso julgado formal, impedindo que posteriormente venha o tribunal a proferir nova decisão de sentido contrário.”
Nem poderia ser de outro modo, sob pena de virem a ser permitidos “despachos liminares” em qualquer fase do processo, e mesmo sobre questões com decisão já transitada.
Contudo, não nos furtaremos a analisar a questão que vem posta, ainda que seja mera repetição do que ficou então dito.
Já nessa altura foi considerado que o art. 1100º não consentiria o indeferimento decretado, atentas as finalidades nele previstas, e que o art. 590º também não permitia a decisão, uma vez que esse preceito, relativo à gestão do processo, diz que “nos casos em que, por determinação legal ou do juiz, seja apresentada a despacho liminar, a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, exceções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente”.
Ora, considerou-se então, em toda a restante norma (art. 590º) a orientação consagrada procura inculcar a necessidade e o dever de suprir eventuais deficiências constatadas, só deixando lugar para o indeferimento liminar para aqueles casos residuais em que “o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, exceções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente”.
Assim sendo, sublinhou-se então, havia que revogar o indeferimento liminar decidido e ter em conta o disposto no artigo 6º do Código de Processo Civil, segundo o qual:
“1 - Cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adotando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável.
2 - O juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo.”
Também agora temos por oportuna a invocação dessta norma, emanação de princípios basilares do actual processo civil, e que veio consagrar poderes/deveres em matéria de gestão processual que é forçoso ter presentes em cada momento na condução do processo.
Em suma: julgamos legalmente infundada a decisão de “indeferimento liminar” alvo de impugnação, desde logo por o processo ter ultrapassado há muito a fase de apreciação liminar prevista nas disposições citadas, depois por não se verificar que o pedido seja “manifestamente improcedente” (num processo de inventário o pedido consiste em que se proceda a inventário, para algum dos fins assinalados na lei, e no caso concreto constata-se que mesmo no despacho impugnado não se aponta para a impossibilidade desse pedido, de realização do inventário, mas apenas para a falta de cooperação da cabeça de casal quanto a um dos inventários cumulados), e finalmente porque já ficou decidido, com trânsito em julgado, que não há nos autos fundamento para indeferimento liminar.
Nota-se ainda que na fundamentação do despacho impugnado utiliza-se o conceito de “manifesta inviabilidade do inventário”, sem que fique claro o que deve compreender-se por tal conceito, mas afigurando-se que a sua operacionalização, mesmo na lógica do art. 590º, n.º 1, do CPC, que vem expressamente invocado, implica a sua identificação com o conceito ali usado de “pedido manifestamente improcedente”.
Porém, repete-se, não se afigura que o pedido seja manifestamente improcedente, conforme foi julgado na anterior decisão sumária, proferida a este respeito, e que determinou o prosseguimento dos autos.
E se tentarmos encontrar um conteúdo diferente para a expressão “manifesta inviabilidade do inventário”, analisando o seu elemento literal (sendo certo que se tal conteúdo fosse diferente não encontraria abrigo no art. 590º, n.º 1 que foi citado) então é preciso dizer que entre as razões apresentadas para fundamentar a decisão não se descortina sequer a afirmação de que algum dos inventários cumulados seja inviável, mas tão só a referência a falta da colaboração exigida à cabeça de casal, em relação a um desses inventários, o que obstaria à marcha do processo.
Porém, as situações relacionadas com a incapacidade do cabeça de casal, ou com a sua falta de colaboração, situações que podem implicar no limite até a substituição ou a remoção do mesmo, são relativamente frequentes em processos de inventário, estão legalmente previstas, e não se podem confundir com a inviabilidade de um inventário.
Soma-se que o juiz dispõe de poderes de gestão processual a que pode lançar mão para ultrapassar essa dificuldade processual, como já aludimos ao mencionar o art. 6º do CPC.
Em conclusão: a decisão de indeferimento liminar que é objecto do recurso carece de fundamento legal, e deve ser revogada, de modo a permitir o prosseguimento dos autos.
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B – Visto o teor do despacho impugnado, facilmente se constata que na decisão proferida sobre a “inviabilidade” pesou decisivamente a questão da cumulação dos inventários de CC, pai da requerente, e de DD, pai deste.
Com efeito, afirma-se a obrigatoriedade da manutenção da cumulação dos dois inventários e de seguida raciocina-se que mostrando-se inviável a realização do segundo desses inventários não pode o processo prosseguir, impondo-se o seu “indeferimento”.
Cremos que se mostra oportuno recordar que inicialmente foi requerido e teve a sua tramitação apenas um inventário, aquele em que é inventariado o pai da inventariante.
Na sequência do seu requerimento inicial a cabeça de casal apresentou relação de bens, referente à herança de CC, e prestou compromisso de honra.
Ora é forçoso referir que este inventário continua a ser do interesse da herdeira, ainda que não seja acompanhado do inventário dos bens que a esta cabem na herança do avô.
Com efeito, como se expõe na decisão sumária antes proferida nos autos, o processo de inventário cumpre, entre outras, as funções estabelecidas no artigo 1082.º, do Código de Processo Civil, designadamente, a de fazer cessar a comunhão hereditária e proceder à partilha de bens, mas há que ter em conta que, de acordo com o mesmo artigo 1082.º, constitui também função do inventário “relacionar os bens que constituem objeto de sucessão e servir de base à eventual liquidação da herança, sempre que não haja que realizar a partilha da herança” (alínea b) da aludida norma)
O mesmo é dizer que as funções do processo de inventário não se resumem às descritas na alínea a) do mesmo artigo, que alude precisamente a “fazer cessar a comunhão hereditária e proceder à partilha de bens”.
Os inventários-arrolamento, em que a herança está deferida a um herdeiro único, sempre existiram no direito português e correspondem a necessidades importantes, que exigem tutela jurídica, como são normalmente as situações em que o requerente só quer aceitar a herança a benefício de inventário, ou tem mesmo que o fazer.
No inventário-arrolamento a partilha deixa de ser a finalidade do inventário, que passa a ter como fim a relacionação, avaliação e descrição dos bens integrantes do património do de cujus.
Recorde-se que nos termos do art. 2052º do CC a herança pode ser aceite pura e simplesmente ou a benefício de inventário.
Esta modalidade proporciona vantagens ao interessado, nomeadamente no que se prende com as dívidas da herança (por força do art. 2068º do CC a herança responde pelas dívidas do de cujus, e sendo a herança aceite a benefício de inventário opera naturalmente a limitação da responsabilidade do herdeiro às forças da herança, não ficando ele depois com o ónus de provar que nesta não existiam bens para satisfazer os créditos reclamados).
Outra finalidade possível para o inventário nestes casos de herdeiro único seria a eventual redução de liberalidades inoficiosas.
Nos presentes autos parece descortinar-se a utilidade apontada quanto às dívidas, pois que como se refere no próprio despacho recorrido surgiu um irmão do falecido, EE, que apresentou requerimento referindo existirem dívidas da herança, para com ele próprio e para com a herança do pai de ambos, DD.
Tanto basta para concluir que existe realmente demonstração da utilidade do inventário requerido, de CC, apesar da herança pertencer apenas à sua filha única, a requerente BB, e por isso não haver lugar a partilha dos bens deixados por ele.
E no caso de seguir-se o entendimento perfilhado no despacho impugnado a requerente BB estaria impedida de proceder ao inventário do pai sem proceder também ao inventário do avô, dado que a conexão entre um e outro tornariam essa cumulação obrigatória.
Todavia, não é assim; desde logo, a dependência entre um e outro dos inventários é apenas parcial, como aliás encontramos explicado no próprio despacho recorrido, em citação de um estudo de João Espírito Santo, na Revista de Direito Comercial.
Como diz o autor, entende-se por dependência total a situação em que na partilha subsequente não existam outros bens senão os que ao inventariado teriam sido adjudicados na partilha antecedente; e entende-se por dependência parcial quando na partilha subsequente existam outros bens para além dos que ao inventariado teriam sido adjudicados na partilha antecedente.
Aplicando ao caso dos autos, e retirando a palavra partilha, a dependência do inventário de CC, pai da requerente, só seria total em relação ao inventário do pai deste, avô da requerente, se não existissem na herança do primeiro outros bens que não aqueles que lhe adviessem como herdeiro do segundo.
Ora os autos revelam o contrário, o acervo patrimonial em que se traduz a herança do pai da requerente inclui outros bens para além daqueles que receberia na partilha de seu pai (já existe relação de bens próprios dele).
Desta forma, a conexão entre os dois inventários mostra uma dependência apenas parcial. A requerente terá sem dúvida direito ao quinhão que caberia ao seu pai na herança do pai dele, mas tal circunstância não constitui impedimento para proceder desde já ao inventário quanto aos demais bens que integram a herança do pai. E quando tal for possível e oportuno pode sempre requerer a partilha dos bens deixados pelo avô, a fim de haver o quinhão correspondente a seu pai.
A dependência total de inventários está mencionada na al. a) do n.º 2 do art. 1094º do CPC, que a declara “sempre admissível, por não haver, numa das partilhas, outros bens a adjudicar além dos que ao inventariado tenham de ser atribuídos na outra” e a dependência parcial está referida na al. b), que estabelece que “se a dependência for apenas parcial, o juiz pode indeferir a cumulação quando a mesma se afigure inconveniente para os interesses das partes ou para celeridade do processo, por haver outros bens a partilhar.”
Não existe, portanto, em face da norma legal, a obrigatoriedade na cumulação de inventários que foi afirmada no despacho recorrido.
Tratando-se de uma dependência apenas parcial, a mesma fica dependente de uma avaliação a fazer pelo juiz do processo: “quando a mesma se afigure inconveniente para os interesses das partes ou para celeridade do processo, por haver outros bens a partilhar”, deve o juiz rejeitar essa possibilidade legal.
Ou seja, a cumulação de inventários pressupõe a existência de certos elementos, objetivos e subjetivos, de conexão entre dois inventários, e assenta a sua razão de ser na conveniência da apreciação conjunta, nomeadamente quando a celeridade, economia de meios e os interesses das partes a aconselhem.
A decisão sobre a cumulação ou não de inventários está atribuída ao juiz, segundo o art. 1094º do CPC, dependendo de certos critérios legais fornecidos pela norma.
Verificados os factores a considerar tal como eles se perfilam num dado momento processual, o juiz pode deferir ou indeferir a acumulação e, acrescentamos nós, pode também fazer cessar ou fazer continuar a cumulação, ao abrigo da mesma norma.
Em qualquer dos casos, o juiz actua ao abrigo de uma permissão legal, que o vincula a certos critérios legais, certos parâmetros, que lhe compete apreciar e aplicar, pelo que aquilo que importa são os fundamentos da decisão, sendo sobre estes que deverá centrar-se qualquer eventual impugnação.
Serve esta argumentação para dizer que não colhe a posição que pretenda defender que no caso presente, uma vez que já existiu uma decisão que optou pela cumulação, agora já não pode no processo seguir-se orientação oposta, fazendo cessar a cumulação, por assim se violar caso julgado formal.
Como se sabe, o caso julgado formal, a que reporta o art. 620º do CPC, visa evitar a repetição de decisões judiciais sobre a mesma questão, mantendo-se o mesmo quadro factual e jurídico.
Porém, há que ponderar as situações em que duas decisões versando a mesma questão são proferidas no mesmo processo ao abrigo de previsões legais que autorizam e fundamentam a alteração de uma decisão inicial, e a relação dessas situações com a figura do caso julgado. É que nestes casos a decisão não é inalterável, dependendo da apreciação dos fundamentos fixados nos critérios legais, cujos pressupostos podem eles mesmos alterar-se.
Raciocinando sobre o alcance do caso julgado formal, tem sido entendido que nestas situações não existe violação do caso julgado se uma nova decisão recair sobre a mesma questão.
Sendo a cumulação ou não dos inventários matéria atribuída ao julgador, segundo critérios definidos, a possibilidade de alteração no decurso do processo da decisão inicial proferida a esse respeito não viola o caso julgado, não ferindo o princípio da confiança inerente à figura.
Veja-se a este propósito o Acórdão do STJ de 08-03-2018, no processo n.º 1306/14.7TBACB-T.C1.S1, relatado por Fonseca Ramos, publicado na página www.dgsi.pt.
Baseando-se no poder legal conferido pelo art. 1094º do CPC, submetido aos critérios aí definidos, a decisão de cumulação de inventários permite sempre as alterações que caibam na previsão legal.
Verifica-se aliás que a decisão de cumulação foi justificada invocando a vontade da requerente e conveniências de ordem processual, designadamente a economia processual, e a razoabilidade do aproveitamento do processo em curso, caso tal seja possível, evitando-se a propositura de um outro.
Inversamente, verifica-se agora que a requerente e única “parte” no processo, para os efeitos do art. 1094º do CPC, requereu a 16-07-2022 que o processo prosseguisse como requerido inicialmente, ou seja com o inventário do pai da requerente, sem a cumulação com o inventário do avô da requerente.
E constata-se que a cumulação prejudicou grandemente a celeridade processual desejável, conduzindo a uma situação de impasse dado que a cabeça de casal não conseguiu fornecer impulso processual adequado quanto ao inventário de DD. Assim, também qualquer vantagem em sede de economia processual se perdeu, e os interesses da requerente, quanto à herança de sei pai, ficaram comprometidos pelo impasse gerado com a cumulação.
Ou seja, não existe razão de ordem legal que imponha a cumulação, a anterior decisão proferida a esse respeito não obsta a que seja proferida decisão em sentido diferente, considerando o novo quadro de referência, e nem a vontade nem o interesse das partes nem as finalidades de celeridade e economia processuais, nem qualquer outra conveniência atendível segundo o art. 1094º, aconselham hoje a cumulação de inventários, tudo apontando para a inconveniência dessa solução.
Sendo assim, deve ser atendida a vontade da requerente, e fazer prosseguir o inventário apenas quanto ao inventariado CC, cessando a cumulação.
Concluindo, por tudo o que ficou dito mostra-se procedente o recurso interposto pela requerente, pelo que se decidirá em conformidade.
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VII - DECISÃO
Por todo o exposto, julgamos procedente a apelação, nos termos sobreditos, revogando a decisão de indeferimento liminar, determinando a cessação da cumulação de inventários e ordenando o prosseguimento dos autos tendo como inventariado apenas CC.
Sem custas.
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Évora, 26 de Outubro de 2023
José Lúcio
Manuel Bargado
Albertina Pedroso