Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
255/20.4GDLLE-A.E1
Relator: MOREIRA DAS NEVES
Descritores: REVOGAÇÃO DA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
Data do Acordão: 09/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. A revogação da suspensão da execução da pena de prisão e consequente determinação do cumprimento da prisão substituída depende de infração grosseira ou repetida dos deveres ou regras de conduta decorrentes da pena que aplicada; ou ainda do incumprimento do dever geral de não praticar novos crimes e isso revelar que as finalidades da suspensão da execução da pena de prisão não puderam, por meio dela, ser alcançadas (artigo 56.º CP).

II. No caso de violação grosseira ou repetida de deveres impostos, esta tem de consistir uma atuação grave, indesculpável, em termos tais que o comum dos cidadãos em tal não incorreria e que, por isso mesmo, não deve ser tolerada nem desculpada.

III. Assentando, pois, a revogação, na constatação do malogro do prognóstico positivo que permitiu/determinou a substituição da pena principal de prisão pela pena de substituição suspensão da execução da prisão.

Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO
a. AA, com os sinais dos autos, foi condenado neste processo, no 1.º Juízo (1) Local Criminal de …, por sentença transitada em julgado no dia 19 de janeiro de 2023, pela prática de um crime de violência doméstica qualificado, previsto no artigo 152.º, § 1.º, al. b) e § 2.º, al. a) do Código Penal, na pena de 2 anos e 9 meses de prisão, a qual lhe foi suspensa na sua execução, por igual período, com regime de prova e sujeita ao cumprimento dos seguintes deveres: a) frequentar programas específicos de prevenção de violência doméstica, orientado e fiscalizado pela DGRSP; b) proibido de contactar, por qualquer meio, nem se aproximar até 150 metros da vítima durante o período da suspensão, sendo esta medida fiscalizada por meios técnicos de controlo à distância; c) proibido de se aproximar, até 150 metros, da residência da vítima, durante o período da suspensão, sendo também esta medida fiscalizada por meios técnicos de controlo à distância; e d) sujeitar-se a tratamento médico ou a cura em instituição adequada e especialmente vocacionada para o tratamento da dependência de álcool e de produtos estupefacientes.

Na sequência de alguns incidentes relatados pela GNR e pela DGRSP foi determinada a audição de condenado (2), para a qual igualmente se convocou o Coordenador da Equipa de Vigilância Eletrónica e as técnicas da DGRSP que vêm acompanhando o caso, bem assim como a vítima, sua mãe e um primo do condenado. Nessa diligência o condenado informou não dispor de residência alternativa à que possui, ser economicamente dependente da sua mãe e manter consumos diários de álcool, sendo viciado em cocaína, mas não estando a fazer consumos dessa substância.

Por seu turno a vítima referiu inexistirem contactos com o condenado (apesar de aludir a uma tentativa de contacto por banda deste, através de uma chamada telefónica que não tendeu – por dela nem sequer tendo dado conta). E que apesar de conhecer as proibições a que o condenado está adstrito, ela própria, numa dada ocasião, se deslocou a casa dele. Mais acrescentou estar saturada de receber constantes avisos do sistema de geolocalização (em razão da proximidade existente entre a sua casa e a habitação do condenado).

Referiu relevantemente o responsável da DGRSP que os equipamentos de que dispõe não permitem, em razão da reduzida distância entre a casa da vítima e a casa do condenado, aferir quando ocorre violação da área de exclusão, intencional ou não. Confirmou, contudo, que apesar dos constantes alarmes, não houve qualquer aproximação intencional do condenado à vítima.

Com base nos elementos constantes dos autos e das informações obtidas nas audições referidas e depois de exercido o devido contraditório (pronunciando-se o Ministério Público pela revogação da suspensão da execução da pena de prisão e o condenado no sentido da manutenção desta, sublinhando não ter alternativa de residência, em razão da sua situação económica e social, inexistindo por isso qualquer incumprimento culposo da sua parte das condições impostas na sentença), o tribunal a quo proferiu despacho, no dia 4 de maio de 2023, no qual considerou não estar verificada qualquer situação de incumprimento culposo, por banda do condenado, das condições impostas pela sentença, julgando injustificada qualquer alteração ao status quo. Razão pela qual manteve, sem nenhuma alteração os termos da suspensão da execução da pena de prisão aplicada na sentença.

b. Não se conformando com tal decisão dela interpôs recurso o Ministério Público, pugnando pela sua revogação, requerendo seja a mesma substituída por outra que determine o cumprimento da pena de prisão de 2 anos e 9 meses de prisão, formulando as seguintes conclusões (3):

«(…)

4. Da análise dos autos, designadamente, dos relatórios juntos pela GNR e DGRSP e bem assim da audição do arguido e dos Técnicos da DGRSP, da vítima e da progenitora do arguido resulta evidente que não obstante o lapso de tempo decorrido e as inúmeras advertências e oportunidades concedidas, o arguido não cumpriu pelo menos duas das condições impostas em sede de suspensão da execução da pena de prisão, a saber:

-“Não se aproximar da residência BB, até 150 (cento e cinquenta metros), sita na Urbanização …, …, …, …, durante o período de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses, sendo esta medida fiscalizada por meios técnicos de controlo à distância;” e

-“Se sujeitar a tratamento médico ou a cura em instituição adequada e especialmente vocacionada para o tratamento da dependência de álcool e de produtos estupefacientes”

5. No que toca à condição de se sujeitar a tratamento médico ou a cura em instituição adequada e especialmente vocacionada para o tratamento da dependência de álcool e de produtos estupefacientes, consta do douto despacho de que ora se recorre que “resulta dos autos que o condenado tem consulta agendada para o próximo dia 26 de maio tendo em vista a sua integração numa instituição adequada para o efeito.”

6. Sucede que tal como resulta também dos autos, mostram-se decorridos vários meses desde o inicio da suspensão e o arguido não fez qualquer esforço para alterar o seu comportamento, nomeadamente, tendo reconhecido em sede de audição de condenado continuar a ingerir bebidas alcoólicas não manifestando qualquer intenção seria de o deixar de fazer.

7. Acresce que o arguido já faltou a uma consulta que foi agendada no ETET tal como resulta da informação da DGRSP junta aos autos em 14.03.2023, onde se pode ler “cumpre-nos informar V. Ex.ª que foi estabelecido contato com elemento pertencente ao ETET – Equipa Técnica Especializada de Tratamento - tendo o mesmo informado que AA faltou à consulta que se encontrava agendada para o dia 14 de março (…)”

8. Por outro lado cumpre referir que tal como resulta evidente das declarações dos técnicos da DGRSP e bem assim das regras da experiência com vista ao sucesso de um qualquer tratamento a álcool e/ou drogas é absolutamente essencial que a pessoa revele motivação para deixar de consumir álcool e/ou drogas, motivação e vontade que o arguido não tem.

9. No que toca ao dever de afastamento de 150 metros da residência da vítima resulta dos autos que o arguido em 21.12.2022 após sair do Estabelecimento Prisional foi residir para habitação localizada em frente à casa da vítima, sendo que da porta de acesso do prédio do arguido à porta de acesso à casa da vítima distam 28 metros como resulta da informação da GNR de 27.12.2022.

10. Ao residir a menos de 150 metros da casa da vítima o arguido compromete totalmente a fiscalização com vigilância eletrónica tal como resulta dos inúmeros relatórios da Equipa de Vigilância Eletrónica juntos aos autos.

11. O afastamento do arguido da vítima, designadamente, a proibição de se aproximar da cada da vítima 150 metros com fiscalização eletrónica e a ausência de consumos de álcool e drogas são essenciais para garantir a proteção da vítima e as finalidades da pena.

12. Em sede de sentença o tribunal entendeu adequado suspender a execução da pena de prisão.

13. Contudo, e tal como consta da douta sentença o tribunal teve em atenção o disposto no artigo 34.º-B da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro.

14. E por tal motivo foi imposto ao arguido regras de conduta que protegem a vítima, designadamente, a proibição de contactos e a proibição de se aproximar da casa da vítima 150 metros com vigilância eletrónica.

15. Permitir a manutenção da presente situação, designadamente, permitindo ao arguido residir em frente à casa da vítima não satisfaz as elevadas exigências de prevenção que se fazem sentir e acima de tudo viola o disposto no artigo 34.º-B da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, colocando a vítima em perigo, tanto mais que como a DGRSP transmitiu aos autos é elevada a probabilidade de reincidência, nomeadamente, porque o arguido continua a manifestar sentimentos amorosos para com a vítima.

16. Nos presentes autos a solene advertência transmitida ao arguido revelou-se ineficaz para assegurar as finalidades apontadas às penas criminais, ou seja, a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

17. Não obstante as advertências efetuadas, designadamente, pelos técnicos da DGRSP este não fez qualquer esforço para alterar o seu modo de vida, nomeadamente, para deixar de consumir bebidas alcoólicas e para alterar a atual residência, nem manifesta qualquer intenção séria de o fazer.

18. Entendemos que a suspensão da execução da pena apenas seria compatível com as finalidades das penas e a proteção da vítima se o arguido cumprisse escrupulosamente todos os deveres impostos como condição da suspensão, o que o arguido não fez.

19. Em suma entendemos que com o seu comportamento durante o período da suspensão, o arguido revelou que as finalidades que estavam na base da suspensão determinada nestes autos não puderam por meio dela, ser alcançadas.

20. Nos presentes autos o arguido tem vindo a infringir grosseira e repetidamente pelo menos os deveres e regras de conduta impostos em sede de sentença de afastamento de 150 metros da casa da vítima e a sujeição a tratamento.

21. Assim, e nos termos do artigo 56.º 1 a) do CP a suspensão da execução da pena de prisão deve ser revogada e ser determinado o cumprimento da pena de prisão fixada na sentença em conformidade com o n.º 2 do referido artigo 56.º do CP.

22. A douta decisão recorrida, salvo o devido respeito e melhor opinião violou o disposto no artigo 56.º do Código Penal.

Face a todo o exposto, e salvo melhor entendimento deverá dar-se provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar-se a douta decisão recorrida que deverá ser substituída por outra que determine o cumprimento da pena de prisão 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de prisão, em cujo cumprimento deverá ser descontado nos termos do artigo 80.º do CP a detenção, prisão preventiva e obrigação de permanência na habitação sofridas pelo arguido nos presentes autos.»

c. Apesar de para tanto notificado o condenado não respondeu ao recurso.

d. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ministério Público junto desta instância de recurso, elaborou douto parecer sublinhando o equilíbrio da decisão recorrida, que entende deverá manter-se, pese embora reconheça a existência de riscos que, na medida do possível, importará acautelar. Expressando-o concretamente do seguinte modo:

«Pese embora concordemos com os receios invocados pelo Ministério Público na primeira instância, não procurando, sob qualquer forma descorar a seriedade da situação em presença e os recursos comunitários que devem estar associados à salvaguarda da segurança da vítima, não devemos, também, no entanto, desconsiderar o escrupuloso cumprimento dos requisitos que devem estar subjacentes à decisão de revogação da execução da pena de prisão, como disciplinado pelo artigo 56.º do CP, pela sua concreta ressonância na limitação de direitos.

Entendemos que não deve ser transferida para o plano da estrita limitação de direitos, por apelo ao regime da revogação da suspensão a que se refere o supra enunciado preceito legal, o tratamento de situações que merecem enquadramento e resposta social comunitária ou outras que nos confrontam com limitações técnicas e ineficiências dos equipamentos disponíveis para fazer a monitorização de decisões judiciais, como sucede com o próprio sistema de vigilância eletrónico e com a situação social do agregado familiar do arguido e o seu contexto socioeconómico.

Por outro lado, pese embora se reconheçam riscos que podem consubstanciar uma probabilidade de ocorrências, o certo é que, contrariamente ao invocado pelo Ministério Público, e como afirmado na decisão recorrida, “(…) tendo presente todas as condicionantes já abordadas, bem como os principais direitos aqui em causa à habitação do condenado e à proteção da vítima -, considera-se não verificada uma situação de incumprimento culposo das condições impostas por parte do condenado, pelo que não se justifica, por ora, prorrogar o período da suspensão, impor novos deveres ou regras de conduta ou proceder a uma advertência solene ao condenado. Em consequência, considera-se, igualmente, desrazoável e desproporcional a revogação da suspensão da pena de prisão aplicada ao condenado, uma vez que, não só não se verificam infrações grosseiras e repetidas das condições impostas, como, também, ainda não foram goradas as expectativas e o juízo de prognose favorável que motivaram a concessão da suspensão da execução da pena de prisão. (…)”

Ora, decidir revogar a suspensão da execução de pena de prisão na antecipação da verificação de determinado resultado, não integra uma violação grosseira e repetida de deveres e regras de conduta impostos ou o plano de reinserção social, como o impõe o regime legal em apreço e, por outro lado, consubstancia entendimento que se nos apresenta desproporcional, razão pela qual não acompanhamos o entendimento do Ministério Público na primeira instância e, diversamente, se nos apresenta a decisão em recurso como mais equilibrada, ao momento.

e. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, o condenado nada aportou.

Os autos foram aos vistos e à conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO

1. O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 412.º, § 1.º CPP).(4) Em conformidade com esta orientação normativa, a motivação do recurso deverá especificar os fundamentos do mesmo e formular as respetivas conclusões, deduzidas por artigos, nas quais o recorrente resume as razões do seu pedido, de forma a permitir que o tribunal superior apreenda das razões da sua discordância em relação à decisão recorrida.

Neste contexto constatamos que a única questão que se suscita no presente caso é a de saber se estão (ou não) reunidos os pressupostos que legitimam a revogação da suspensão da execução da pena de prisão.

2. Apreciando

2.1 A decisão recorrida

O despacho judicial recorrido é do seguinte teor:

«Nos presentes autos, por sentença transitada em julgado no dia 19-01-2023, o arguido foi condenado, pela prática de um crime de violência doméstica qualificado, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.ºs 1, al. b) e n.º2, al. a) do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de prisão, suspensa por igual período e com regime de prova, no qual o arguido ficou obrigado: a) à frequência de programas específicos de prevenção de violência doméstica, orientado e fiscalizado pela DGRSP; b) à proibição de contactar, por qualquer meio, nem se aproximar, até 150 (cento e cinquenta metros), da vítima durante o período de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses, sendo esta medida fiscalizada por meios técnicos de controlo à distância; c) à proibição de se aproximar da residência da vítima, até 150 (cento e cinquenta metros), sita na Urbanização …, …, …, durante o período de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses, sendo esta medida fiscalizada por meios técnicos de controlo à distância; e c) a se sujeitar a tratamento médico ou a cura em instituição adequada e especialmente vocacionada para o tratamento da dependência de álcool e de produtos estupefacientes.

No âmbito da execução da pena aplicada nos presentes autos, a DGRSP elaborou relatórios de incidentes onde expôs a ausência de condições para manter a fiscalização eletrónica por geolocalização, uma vez que não é possível distinguir alarmes decorrentes de episódios fortuitos ou alarmes decorrentes de tentativas de contactos intencionais, devido à proximidade das residências do condenado e da vítima, cuja distância é de 29 metros, conforme atestado pela Guarda Nacional Republicana.

Solicitado à DGRSP informação sobre se seria possível reduzir o perímetro de fiscalização, pela mesma foi referido que: “Em relação ao solicitado informamos V. Exª. que, dada a proximidade das habitações de condenado e ofendida (cujos apartamentos estão situados na mesma rua, i.e., os edifícios estão praticamente em frente um do outro), a fixação de zona de exclusão inferiores a 150 metros comprometem totalmente a fiscalização com vigilância eletrónica (…). Neste sentido, informamos que não é possível fixar uma zona de exclusão com, pelo menos, 10 metros de raio, uma vez que tal situação geraria no sistema de vigilância eletrónica permanentes alarmes de intromissão em zona de exclusão, sem a possibilidade de distinguir alarmes decorrentes de episódios fortuitos ou alarmes decorrentes de tentativas de contato intencionais por parte do condenado”.

Neste sentido, foi proposto pela DGRSP, como alternativa, o uso dos mecanismos de teleassistência a cargo da CIG, com vista a proporcionar um mínimo de proteção à vítima.

Em consequência, por despacho proferido no dia 18-01-2023, foi determinada a proteção da vítima por teleassistência, tendo esta recebido dois equipamentos para o efeito.

Posto isto, e na senda dos relatórios remetidos pela DGRSP, nos dias 27-02-2023, 03-03-2023 e 06-03-2023 foi realizada audição de condenado, onde, também, se procedeu à audição da vítima, BB, da mãe, CC, do primo do condenado, DD, que reside atualmente com o mesmo, do Coordenador da Equipa de Vigilância Eletrónica, EE, e das Técnicas da DGRSP, FF, GG e HH.

Na audição, o condenado veio invocar a inexistência de uma residência alternativa à que dispõe presentemente, devido a conflitos com familiares, a inexistência de contactos com a vítima e o facto de ser dependente economicamente da sua mãe, que lhe paga as despesas, uma vez que se encontra desempregado e realiza, ocasionalmente, alguns biscates com a sua mãe. No mais referiu manter sentimentos amorosos pela vítima e intenções de reatar o relacionamento com a mesma. Por fim, assumiu manter consumos diários de álcool, desvalorizando que tal possa ser um problema para si, e admitiu que, apesar de não consumir produtos estupefacientes por saber que são prejudiciais para a sua saúde, mantém o desejo de os consumir, assumindo-se viciado em cocaína.

Ouvida a vítima, a mesma confirmou a inexistência de contactos com o condenado (apesar de ter referido que existiu uma tentativa de contacto por parte do condenado através de chamada telefónica, tendo realçado que, por ter o telemóvel sem acesso à internet, não atendeu nem viu), bem como a inexistência incidentes com o mesmo. No mais, referiu que no dia 01-01-2023, poucos dias depois do condenado ter regressado à sua residência, decidiu entregar-lhe uma almofada que tinha na sua posse, tendo-se deslocado até à casa do condenado, não obstante saber das proibições de contacto e de aproximações. Ademais, referiu que se conseguem ver quando estão à janela a fumar (apesar de residir num 3.º andar e o arguido num 1.º andar) e que, devido a essa proximidade, tem receio do condenado. Por fim, referiu estar saturada por estar constantemente a receber avisos pelo sistema de geolocalização.

Por seu turno, a mãe do condenado, CC, reiterou que o condenado passa a maior parte do seu tempo dentro de casa e que à sua frente, e dos demais familiares, não consome, nem álcool, nem produtos estupefacientes. Confirmou, ainda, que, ocasionalmente, o condenado realiza biscates consigo e que, muitas vezes, vai consigo para o seu local de trabalho, mas que fica o tempo todo dentro do carro quando os clientes não querem o seu trabalho. No mais, confirmou sustentar financeiramente o condenado e não ter outra residência alternativa para o mesmo, devido ao valor das rendas praticadas no …. Por fim, referiu estar esgotada, pediu ajuda para que o condenado seja convenientemente acompanhado e tratado, quer a nível psicológico, quer quanto à sua adição, e que seja permitido o seu regresso ao Brasil.

O primo do condenado, DD, que vive com o mesmo, confirmou, na íntegra, o relatado pela mãe do condenado, confirmou estar a pagar a renda onde o condenado se encontra a residir e realçou que o condenado não tem qualquer autonomia e é dependente da sua mãe.

De acordo com o Coordenador da Equipa de Vigilância Eletrónica,EE, a fiscalização nos moldes atuais e com recurso aos equipamentos de que dispõem não permite, devido à reduzida distância entre a casa da vítima e a casa do condenado, aferir quando ocorre violação da área de exclusão intencional ou não, bastando, para que o sistema seja acionado, que o condenado permaneça no interior da sua residência (o que acontece quase sempre, tal como referido pela mãe do condenado). No mais confirmou, que, apesar dos constantes alarmes, não houve quaisquer aproximações intencionais do condenado à vítima no período em causa. Por fim, concluiu que a fiscalização, nestes moldes, não é funcional nem exequível, tendo avançado como alternativa para a proteção da vítima a concessão de teleassistência.

A Técnica da DGRSP, FF, explicou as condições para que o condenado seja aceite na comunidade terapêutica, tendo realçado as suas dúvidas sobre a integração do mesmo, uma vez que não apresenta motivação e nem reconhece que tem problemas aditivos.

Por seu turno, a Técnica da DGRSP, GG, referiu que o condenado apresenta dificuldades de compreensão, e que tal poderá comprometer o sucesso das condições impostas e do plano de reinserção social.

Por fim, a Técnica da DGRSP HH corroborou o que foi referido pelos anteriores Técnicos.

*

A Digna Procuradora da República promoveu a revogação da suspensão da pena de prisão.

O arguido, notificado, pronunciou-se no sentido de manutenção da suspensão, por inexistência de residência alternativa por questões financeiras e, por isso, de inexistência de incumprimento culposo das condições impostas.

*

Cumpre apreciar e decidir:

Nos termos do artigo 55.º do Código Penal, se, durante o período de suspensão, o condenado, culposamente, deixar de cumprir qualquer dos deveres ou regras de conduta impostos, ou não corresponder ao plano de reinserção, pode o Tribunal: a) fazer uma solene advertência; b) exigir garantias de cumprimento das obrigações que condicionam a suspensão; c) impor novos deveres ou regras de conduta, ou introduzir exigências acrescidas no plano de reinserção; d) prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas não por menos de um ano, nem por força a exceder o prazo máximo de suspensão previsto no n.º5 do artigo 50.º.

O artigo 56.º, n.º1 do Código Penal impõe que a suspensão da execução da pena de prisão seja revogada sempre que, no seu decurso, o condenado: a) infringir grosseira e repetidamente os deveres e regras de conduta impostos ou o plano de reinserção social; b) cometer crime pelo qual venha a ser condenado e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela ser alcançados.

Sobre a revogação da suspensão, tem sido entendimento dominante da jurisprudência que a violação grosseira, enquanto fundamento da revogação da suspensão da pena de prisão, deve corresponder a uma “atuação indesculpável em que o comum dos cidadãos não incorre, e que não merece, por isso, ser tolerada”, pois “o juízo sobre a revogação da suspensão da pena há-de decorrer de uma manifesta violação dos deveres impostos ao condenado que mostre inequivocamente uma frustração da finalidade prosseguida pela suspensão da execução da pena” (vide o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 05-05-2010, proc. n.º 259/06.0GBMTS.P1).

A este propósito, veja-se, ainda, a fundamentação dos Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 17-04-2013 (proc. n.º 171/01.9IDPRT.P1), à qual se adere: “como emerge do artigo 56°, n.º 1, al. a) do CP, não basta o incumprimento da regra de conduta/deveres impostos, para levar à revogação da suspensão da pena, exigindo-se ainda que essa violação ocorra de modo grosseiro ou repetido, ou seja, que estejamos perante uma conduta dolosa (violação conscientemente querida) ou perante uma atuação temerária, que se traduz no fundo numa ação indesculpável, ou numa atitude particularmente censurável de descuido ou leviandade (...)” e de Lisboa de 01-07-2020 (proc. n.º 167/15.3PBHRT.L1): “(…) o condenado infringe grosseiramente os deveres ou as regras de conduta impostos ou o plano de reinserção social quando, culposamente, os não observa. Mas a culpa aqui requerida – contrariamente à pressuposta no art.º 55º do C. Penal – exige um grau qualificado. Exige-se um incumprimento grosseiro dos deveres ou regras impostos ou do plano de reinserção social, isto é, uma actuação por parte do condenado especialmente reprovável e portanto, uma conduta onde a falta de cuidado, a imprevidência assume uma intensidade particularmente elevada. Trata-se, no fundo, de um conceito próximo da culpa grave, portanto, aquela que se mostra indesculpável que é levada a cabo por uma pessoa particularmente descuidada ou negligente. Por outro lado, o condenado infringe repetidamente os deveres ou as regras de conduta impostos ou o plano de reinserção social quando, através de condutas sucessivas, por descuido, incúria ou imprevidência, não os observa, revelando com a sua conduta uma atitude de indiferença e distanciamento pelas limitações decorrentes da sentença e/ou do plano de reinserção social. De salientar, porém que, em qualquer dos fundamentos, teremos de estar perante situações limite, onde o condenado, através da intensidade do grau de culpa posto na sua conduta, inutilizou o capital de confiança na reinserção em liberdade que a aplicação da pena de substituição de suspensão da execução da pena de prisão significou. Por outras palavras, a revogação da suspensão da execução da pena ocorrerá numa situação em que, face a uma avaliação global e integral das circunstâncias, se tenha de concluir que o juízo de prognose favorável que fundamentou a suspensão da execução da pena do recluso, não mais se pode manter”.

Posto isto, e compulsados os autos, verifica-se que decorram, apenas, cerca de 3 (três) meses, no universo de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses, do período da suspensão da execução da pena de prisão, sendo que, somente em 19-10-2025, terminará, em princípio, a referida suspensão.

Nisto, resulta, ainda, dos autos que o condenado não tem processos pendentes contra si e que não foi condenado, entretanto, por novos crimes.

Ademais, ainda não foi homologado o plano de reinserção social, pelo que, relativamente ao mesmo, inexistem incumprimentos a assinalar.

Além disso, no período referido, que se saiba, o condenado não voltou a contactar ou a ir ao encontro da vítima – pelo contrário, da audição de condenado e da vítima resultou, sim, que foi a própria vítima que se deslocou até à residência do condenado para entregar uma almofada, precisamente poucos dias depois daquele regressar à sua residência vindo do estabelecimento prisional onde esteve cerca de um ano, não obstante saber das condições impostas ao condenado.

Quanto à condição de se sujeitar a tratamento médico ou a cura em instituição adequada e especialmente vocacionada para o tratamento da dependência de álcool e de produtos estupefacientes, resulta dos autos que o condenado tem consulta agendada para o próximo dia 26 de maio tendo em vista a sua integração numa instituição adequada para o efeito.

No entanto, dos elementos constantes dos autos e juntos no âmbito das medidas de coação aplicadas após a prolação da sentença e, posteriormente, já no âmbito da execução da pena de prisão suspensa, resultou demonstrado, em primeiro lugar, que a residência do condenado se situa a menos de 150 metros da residência da vítima (mais, precisamente, a 28 metros) – elemento esse que não foi demonstrado em sede de audiência de discussão e julgamento - e que, por isso, o sistema de vigilância eletrónica tem gerado permanentes alarmes de intromissão em zona de exclusão, o que impede que se possa distinguir alarmes decorrentes de episódios fortuitos ou alarmes decorrentes de tentativas de contato intencionais por parte do condenado (sendo certo, no entanto, e tal como já foi referido, que até à presente data todos os alarmes foram fortuitos).

Em segundo lugar, cumpre destacar que a residência do condenado é a mesma que consta do seu TIR, não tendo o condenado conseguido alterar a sua residência, quer por incompatibilidade e indisponibilidade dos demais familiares para recebê-lo, quer por questões financeiras, uma vez que se encontra desempregado (a este propósito há que realçar que o mesmo esteve, recentemente, um longo período preso preventivamente) e não tem condições para suportar uma renda sozinho, sendo, aliás, por isso, que a renda da residência onde se encontra é suportada pelo seu primo e todas as suas demais despesas suportadas pela sua mãe.

Por último, resultou dos relatórios da DGRSP que o sistema de vigilância eletrónica não suporta a fixação de um perímetro de fiscalização inferior a 150 metros.

Tendo em conta o exposto, há a destacar que a incapacidade do sistema de vigilância eletrónica de fixar uma zona de exclusão inferior a 150 metros corresponde a uma limitação material que é própria do sistema de vigilância eletrónica e que imputável somente ao mesmo, sendo o condenado é totalmente alheio a tal incapacidade. Com efeito, se o sistema estivesse dotado de condições tecnológicas que garantissem uma fiscalização adequada, mesmo com um perímetro mais reduzido, as questões em discussão encontravam-se ultrapassadas.

Assim, verifica-se que o principal problema em apreço reside na ineficácia e incapacidade do próprio sistema de vigilância eletrónica em se adaptar ao presente caso, e não com uma conduta culposa imputável ao condenado, pois, como já se referiu, a distância concreta entre as residências do condenado e da vítima e, consequentemente, a incompatibilidade da única residência do condenado com a distância fixada em sede de sentença não foi demonstrada em sede de produção de prova, mas, somente, após a prolação da sentença (razão pela qual foi fixado, na sentença, dentro dos parâmetros que se consideraram adequados e razoáveis à proteção da vítima, a distância de 150 metros).

Ademais, desde já se diga que a vítima se encontra, presentemente, a beneficiar de proteção através de teleassistência, medida esta que se considera, em face das circunstâncias expostas, adequada para atingir as finalidades de proteção.

Desta forma, tendo presente todas as condicionantes já abordadas, bem como os principais direitos aqui em causa – à habitação do condenado e à proteção da vítima -, considera-se não verificada uma situação de incumprimento culposo das condições impostas por parte do condenado, pelo que não se justifica, por ora, prorrogar o período da suspensão, impor novos deveres ou regras de conduta ou proceder a uma advertência solene ao condenado. Em consequência, considera-se, igualmente, desrazoável e desproporcional a revogação da suspensão da pena de prisão aplicada ao condenado, uma vez que, não só não se verificam infrações grosseiras e repetidas das condições impostas, como, também, ainda não foram goradas as expectativas e o juízo de prognose favorável que motivaram a concessão da suspensão da execução da pena de prisão.

Em face do exposto e ao abrigo das disposições legais supracitadas, o Tribunal decide manter a suspensão da execução da pena de prisão pelo período de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses.»

3. Dos pressupostos da revogação da suspensão da pena de prisão

No essencial o recorrente considera que o condenado violou o dever de não se aproximar da vítima a menos de 150 metros; bem assim como o dever de se sujeitar a tratamento médico à sua dependência alcoólica. O primeiro porque reside a cerca de 28 metros da casa da vítima; e o segundo porque faltou a uma consulta médica no âmbito do tratamento à sua toxicodependência alcoólica.

O que a realidade deveras demonstra é que o condenado já antes de a sentença condenatória ser proferida, residia na casa onde atualmente vive. Tendo uma precária situação económica. Não possuindo condições para se mudar para outro lugar. E tendo realmente faltado a uma consulta médica, tem já outra marcada. Completando-se o quadro com a referência a que, entretanto, desde o trânsito da sentença condenatória até ao proferimento da decisão recorrida, decorreram pouco mais de 3 meses. Não havendo, ainda, plano de reinserção social homologado.

Preceitua a lei e a exegese dos normativos pertinentes que a suspensão da execução da pena de prisão, prevista no artigo 50.º CP, é uma verdadeira pena, com um conteúdo autónomo de censura, medido à luz de critérios gerais de determinação da pena concreta (artigo 71.º), assente em pressupostos específicos, sendo na sua categorização dogmática uma pena de substituição, isto é, uma pena que se aplica na sentença condenatória em vez da execução de uma pena principal concretamente determinada. (5) É, com efeito, no artigo 50.º, § 1.º do CP que estão fixados os respetivos pressupostos: um de natureza formal (a medida concreta da pena imposta ao agente não pode ser superior a cinco anos de prisão); e outro de cariz material, constituído este por um juízo de prognose favorável acerca da ressocialização do arguido em liberdade (de desnecessidade de cumprir efetivamente a pena de prisão), a realizar no momento da condenação, quando se tem de escolher e fixar a medida da pena. A aplicação desta pena assenta num risco prudencial (6) sobre a personalidade do agente, as condições da sua vida, a sua conduta anterior e posterior à prática do crime e as circunstâncias deste, concluindo-se que a simples censura do facto e a ameaça da execução da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Exige-se ao tribunal de julgamento a ponderação de todos os elementos disponíveis que possam sustentar a conclusão de que o facto ilícito praticado terá sido como que um acidente de percurso e de que a solene advertência, que constitui a condenação e a ameaça da prisão, terá inevitável reflexo sobre o comportamento futuro do agente, em benefício da reintegração social.

Fatores essenciais são: a capacidade da pena concreta apontar ao arguido o rumo certo no domínio dos valores prevalecentes na sociedade, impondo-lhe num sentido pedagógico e autorresponsabilizante o seu comportamento futuro; e a capacidade dele para sentir e compreender a ameaça da prisão, de molde a que ela exerça sobre si efeito contentor.

O juízo final exige ainda, de acordo com o princípio vertido no artigo 40.º, § 1.º do CP, que se acautelem as razões de prevenção geral positiva, isto é, que a suspensão da pena não comprometa a manutenção da confiança da comunidade na ordem jurídica e na norma penal que foi violada. Em vista desses objetivos a suspensão pode ser sujeita ao cumprimento de deveres por banda do condenado (artigo 51.º CP) ou ao cumprimento de regras de conduta de conteúdo positivo (artigo 52.º) ou a um regime de prova - que em certos casos é de aplicação obrigatória (artigos 53.º e 54.º CP).

Ora, foram exatamente estes os objetivos visados na sentença no momento em que se procedeu à escolha e medida da pena, decidindo-se suspender a execução da pena de prisão mediante as condições, nomeadamente a de não contactar a vítima, não se aproximar dela nem da respetiva residência, a menos de 150 metros, e sujeitar-se a tratamento médico ou a cura em instituição adequada e especialmente vocacionada para o tratamento da dependência de álcool e de produtos estupefacientes.

As concretas circunstâncias e a dinâmica da vida, revelam muitas vezes, no tempo da execução da pena, incidências, problemas ou perturbações novos (e outros até pré-existentes), comprometedoras do cumprimento das condições da suspensão, que impõem uma atempada e criteriosa avaliação.

Deverá atuar-se em conformidade e de imediato, sendo as consequências normalmente as previstas no artigo 55.º CP: fazendo-se uma advertência ao condenado; procedendo-se ao reforço de garantias; impondo novos deveres ou regras de conduta; ou prorrogando o período de suspensão. E só em circunstâncias de significativa gravidade se impõe a revogação da suspensão da execução da pena de prisão (artigo 56.º CP).

Já sobre a possibilidade de revogação rege, precisamente, o artigo 56.º, § 1. CP, ali se estabelecendo que:

«A suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado:

a) Infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano de reinserção social; ou

b) Cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas.»

A revogação da pena de substituição e consequente determinação do cumprimento da pena de prisão substituída depende, pois, de o condenado infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta decorrentes da pena que lhe foi concretamente aplicada; ou incumprir o dever geral de não praticar novos crimes e isso revelar que as finalidades da suspensão da execução da pena de prisão não puderam, por meio dela, ser alcançadas (artigo 56.º CP). Isto é, a revogação assenta na constatação do malogro do prognóstico positivo que permitiu/determinou a substituição da pena principal.

No caso de violação de deveres impostos -, que é o que ora nos importa -, tal violação tem de constituir uma infração grosseira ou repetida dos deveres estabelecidos, isto é, tem de consistir numa atuação grave, indesculpável, em termos tais que o comum dos cidadãos em tal não incorreria e que por isso mesmo não deve ser tolerada nem desculpada. E não tendo de provir de comportamento doloso do condenado, bastando que este tenha agido com culpa, isto é, que a infração ao cumprimento dos deveres seja o resultado de um comportamento censurável, de descuido ou leviandade. (7) Reportando-nos agora ao caso sub judice, logo constatamos que desde a data em que foi suspensa a execução da execução da pena de prisão se sabia que o condenado tinha condições precárias, nomeadamente económicas, mas também pessoais, para poder cumprir – ou para cumprir plenamente – os deveres fixados. Referimo-nos às condições objetivas inerentes à sua condição económica e social, mas também de saúde (incluindo as dependências) e de habitação. Nas circunstâncias do presente caso concorrem ainda as insuficiências dos meios técnicos de geolocalização e de controlo à distância, em razão das condições objetivas pré-existente! Claro está que o plano de reinserção social (artigo 54.º CP), que tarda (decerto também em razão de circunstâncias objetivas), dará tradução e corpo ao juízo preconizado na sentença condenatória. Mas é preciso dar um mínimo de tempo para tornar isso possível (e do modo que for possível). Não se podem perder de vista, evidentemente, os riscos que este lapso temporal representa para a vítima, importando considerá-los e procurando minimizá-los. O que de algum modo (pelo mínimo possível) se mostra acautelado, posto que esta se encontra protegida pelo sistema de teleassistência. Certo é que tendo surgido, através de relatos da GNR e da DGRSP, algumas situações de alarme, o tribunal atuou e de modo célere. Foi isso mesmo que espoletou a convocatória de todos os que de um modo ou de outro estão envolvidos, para uma diligência de audição. Tendo sido nessa que se revelaram (ou aclararam) aspetos da realidade que se ofereciam turvos (concernentes a vistas, contactos, proximidades e aos riscos associados à proximidade geográfica). Isto é, ficou a perceber-se a dimensão da complexidade que subjaz à situação objetiva.

Tem razão o recorrente quando invoca o programa normativo inserto no § 1.º do artigo 34.º-B da Lei n.º 112/209, de 16 de setembro, onde se refere que a suspensão da execução da pena «é sempre subordinada ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, impostos separada ou cumulativamente, ou ao acompanhamento de regime de prova, em qualquer caso se incluindo regras de conduta que protejam a vítima, designadamente o afastamento do condenado da vítima, da sua residência ou local de trabalho e a proibição de contactos, por qualquer meio.»

Ora essa preocupação mostra-se presente no juízo feito na sentença. E não deixará de estar também, seguramente, na execução da mesma.

Sucede que a lei não tem o condão de alterar a realidade. E decerto na exegese do ali preceituado se não preconiza que o agressor que vive (já vivia) muito próximo da vítima e que por razões económicas e sociais não pode mudar de residência, tenha que, necessariamente, e só por isso, de ir para a cadeia! Sobretudo se, como sucede até ao momento, ele não se aproximou da vítima mais que as circunstâncias objetivas inexoravelmente impõem.

Acresce que para haver lugar à revogação da suspensão da execução da pena de prisão, como o recorrente pretende, a lei exige que o comportamento inadimplente do condenado, a mais de grosseiro, seja demonstrativo de que se frustraram, e definitivamente, as expetativas que motivaram a suspensão da execução da pena, designadamente por se mostrarem esgotadas ou se revelarem de todo ineficazes as medidas previstas no artigo 55.º CP. (8)

Isto é, o juízo exigido é não apenas de inconciliabilidade do incumprimento objetivamente verificado com a teleologia da suspensão da execução da pena de prisão, como ainda sobre a inadequação das medidas menos gravosas previstas no citado artigo 55.º CP.

Para o que ora importa, em razão do objeto do presente recurso, constatamos a não verificação de qualquer incumprimento dos deveres fixados na sentença (faltar a uma só consulta, tendo-se logo marcado outra, seguramente não significa recusar o tratamento), muito menos emergente de qualquer atuação grave, indesculpável do condenado (al. a) do § 1.º do artigo 56.º CP). E como na data em que foi proferido o despacho recorrido se não verificava qualquer outra causa que pudesse determinar a revogação da suspensão da execução da pena de prisão, o recurso não é merecedor de provimento.

Não deixaremos, contudo, de assinalar, que em razão das especificidades colocadas pelas circunstâncias que se deixaram referidas, a execução da pena tem especificidades que exigem do tribunal uma atenção e perícia «cirúrgicas», em ordem não apenas a lograr as finalidades da pena em execução, mas também na proteção dos direitos da vítima.

III – DISPOSITIVO

Destarte e por todo o exposto, acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora, decidem:

a) Negar provimento ao recurso e, em consequência, manter a decisão recorrida.

b) Sem custas, por o recorrente estar delas isento (artigo 522.º, § 1.º CPP).

Évora, 12 de setembro de 2023

J. F. Moreira das Neves (relator)

Edgar Valente

Maria Margarida Bacelar

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1 A utilização da expressão ordinal (1.º Juízo, 2.º Juízo, etc.) por referência ao nomen juris do respetivo Juízo tem o condão de não desrespeitar a lei nem gerar qualquer confusão, mantendo uma terminologia «amigável», conhecida (estabelecida) e sobretudo ajustada à saudável distinção entre o órgão e o seu titular, entendendo-a por isso preferível (artigos 81.º LOSJ e 12.º RLOSJ).

2 «Condenado» e não «arguido», pois (não por acaso) é desse modo que a lei, após o trânsito em julgado da decisão condenatória passa a designar aquele que foi arguido (cf. artigos 470.º/2, 477.º/3, 478.º, 490.º/1, 490.º/3, 491.º/2, 491.º-A/1 e 2, 492.º/1 e 2, 493.º/2 e 3, 494.º/3, 495.º/1 e 2, 496.º/3, 498.º/5, 499.º/1, 2, 4 e 5, 500.º/2 e 3 e 504.º/3 CPP; artigos 61.º a 63.º do CP; e [quase todo] Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade). O condenado tem, evidentemente, direitos, mas não seguramente todos os previstos no artigo 61.º CPP para o arguido, desde logo porque já não beneficia da presunção de inocência, sendo esta garantia fundamental que justifica o estatuto de arguido.

3 Atendeu-se apenas às verdadeiras «conclusões», nelas se não incluindo – como é óbvio - a decisão recorrida ou um qualquer segmento dela. As «conclusões» são - e são apenas - uma síntese dos fundamentos do recurso. Cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2011, pp. 1136, nota 14. em comentário ao artigo 412.º; Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. III, Do Procedimento (Marcha do Processo), Universidade Católica Editora, 2014, pp. 335; Sérgio Gonçalves Poças, Processo penal quando o recurso incide sobre a decisão da matéria de facto, revista Julgar n.º 10, 2010, pp.23. Tb. acórdão deste Tribunal da Relação de Évora, de 1set2021, proc. 430/20.1GBSSB.E1, Des. Gomes de Sousa; acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 11jul2019, proc. 314/17.0GAPTL.G1, Des. Mário Silva; acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 5abr2019, proc. 349/17.3JDLSB.L1-9, Des. Filipa Costa Lourenço; e ainda desse Tribunal, o acórdão de 15fev2013. Proc. 827/09.3PDAMD.L1-5, Des. Vieira Lamim.

4 Em conformidade com o entendimento fixado pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no DR I-A de 28dez1995.

5 Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas – Editorial Notícias, 1993, pp. 90-91; e Maria João Antunes, Penas e Medidas de Segurança, Almedina, 2020 [reimpressão da edição de 2017], pp. 30.

6 Hans-Heirich Jescheck, Tratado de Derecho Penal, Parte General, Bosch, Barcelona, 1981, 2.º vol., p. 1154.

7 Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 2008, pp. 201. Cf. igualmente acórdão TRCoimbra, de 17/10/2012, proc. 91/07.3IDCBR.C1 Desemb. Correia Pinto; e acórdão TRCoimbra, de 9/9/2015, no proc. n.º 83/10.5PAVNO.E1.C1, Desemb. Orlando Gonçalves.

8 Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas – Editoral Notícias, 1993, pp. 355/357.