Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
521/22.4PAPTM.E1
Relator: FÁTIMA BERNARDES
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
MAUS TRATOS
Data do Acordão: 10/24/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I. O bem jurídico na violência doméstica é a saúde física, psíquica ou emocional, que pode ser afetada por toda uma multiplicidade de comportamentos que atinjam a dignidade da pessoa humana, da vítima, individualmente considerada, enquanto sujeito de qualquer das relações previstas no n.º 1 do artigo 152.º do Código Penal.
II. O tipo objetivo do ilícito preenche-se com a ação de infligir maus tratos físicos ou psíquicos à vítima, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais. E quanto ao tipo subjetivo de ilícito, exige-se o dolo (o conhecimento e vontade de praticar o facto), em qualquer das suas formas (direto, necessário ou eventual).
III. A dificuldade em delimitar os casos em que a conduta é subsumível ao crime de violência doméstica, daqueles em que integra outros tipos de crime, tais como a ofensa à integridade física, a injúria, a ameaça, a coação, a perturbação da vida privada, entre outros, supera-se através do conceito de «maus tratos», sejam eles físicos ou psíquicos, os quais se podem traduzir «em ações muito diversas, incluindo bofetadas, murros, pontapés, beliscões, empurrões, abanões, puxões de cabelo, mordeduras, compressões de partes do corpo com as mãos ou objetos, traumatismos com objetos, queimaduras, intoxicações, ingestão ou inalação forçadas, derramamento de líquidos, imersão da vítima ou de partes do seu corpo. Podem também decorrer da omissão de cuidados indispensáveis à vida, saúde e bem-estar da vítima (relativamente a vítimas dependentes ou indefesas, nomeadamente em razão da idade ou do estado de saúde)…». Decisivo é que revistam intensidade ou gravidade bastante para poder justificar a sua autonomização relativamente aos ilícitos que as condutas individualmente consideradas possam integrar.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1. RELATÓRIO
1.1. No âmbito dos autos de inquérito n.º 521/22.4PAPTM, que correram termos na Procuradoria da República da Comarca de Faro – DIAP – 1.ª Secção de Portimão, findo o inquérito, o Ministério Público proferiu despacho de acusação contra o arguido AA, nascido a 14/11/1991, solteiro, natural de Africa do Sul, filho de (…) e de (…), residente na Rua (…), Portimão, imputando-lhe a prática, em autoria material de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, n.ºs 1, al. b), 2, al. a), 4, 5 e 6 do Código Penal.
1.2. Inconformado com a acusação contra si deduzida, o arguido requereu a abertura da instrução, pugnando pela sua não pronúncia relativamente aos factos/crime por que foi acusado.
1.3. Realizada a instrução, veio a ser proferida, em 18/04/2023, decisão instrutória de não pronúncia do arguido.
1.4. Não se conformando com tal decisão, a assistente BB recorreu para este Tribunal da Relação, extraindo da motivação apresentada, as seguintes conclusões:
«1 - Considerou o Tribunal a quo não pronunciar o arguido AA pela prática, em autoria imediata e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152.º, n.º 1, al. b) e n.º 2, al. a), do Código do Processo Penal.
2 - Pelos pontos que em concreto se considera incorretamente ponderados, no corpo do presente recurso, impõe-se, pelo raciocínio e formulação de pensamento, decisão diversa da proferida pelo Tribunal a quo.
3 - Ressalvando o devido respeito, que é muito, mal andou o Tribunal a quo ao desconsiderar a versão da assistente, ofendida nos autos, considerando, por outro lado, ainda que com patentes contradições, a versão do arguido.
4 - Quando expectável era que, face a posição deste, viesse negar a prática dos factos descritos na acusação.
5 - Acresce a latente enfermidade do Tribunal a quo, a desconsideração por completo da versão indiciária das testemunhas.
6 - Bem como a possibilidade destas, em julgamento, virem comprovar os factos que se descreve na acusação, bem como no pedido de indemnização civil.
7 - Alcançou, o Tribunal o quo, uma série de conclusões desligadas dos preceitos normativos da realidade, o que levaram a que se afastasse, por inerência de factos, a conclusões subtraídas dos factos, subsumíveis ao direito.
8 - Tendo extrapolado as suas competências no que tangem os limites a este impostos, bem como a observância de todos os indícios ponderáveis e preponderáveis à boa decisão da causa.
9 - Sendo, uma das mais gritantes, a conclusão de que não se consegue auferir a propriedade da casa, sendo certo que, no seu entendimento o arguido poderia lá entrar quando bem entendesse, sendo que o próprio arguido confessou que existia uma ordem judicial em o impedia de entrar na casa onde residia a ofendida, mas este decidira, por bem entender, lá ir.
10 - Bem como adivinhar que impossível seria à mãe da assistente se recordar da chamada telefónica, quando o próprio arguido confessara ter telefonado para a mãe da sua ex-companheira.
11 - Naturalmente inquinada está tal decisão, com a qual não se pode concordar, nem pode concordar a justiça, deixando por julgar um caso grave.
Assim
12 - Deve o arguido ser julgado pelos factos constantes na acusação, pelo crime de Violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152.º, n.º 1, al. a); n.º 2, al. a), n.º 4 e n.º 5 do C.P.
V/exias. melhor decidirão, fazendo a já habitual costumada justiça.»
1.5. O recurso foi regularmente admitido.
1.6. O Ministério Público, junto da 1.ª instância, apresentou resposta, pronunciando-se no sentido de dever ser concedido provimento ao recurso, formulando as seguintes conclusões:
«1. Esclarece o legislador no art. 283 n.º 2 do CPP, que se consideram suficientes os indícios “sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma medida de segurança”;
2. Está em causa a apreciação de todos os elementos de prova produzidos no inquérito e na instrução e a respectiva integração e enquadramento jurídico, em ordem a aferir da sua suficiência ou não para fundamentar a sujeição do arguido a julgamento pelo crime que lhe foi imputado;
3. E nessa aferição o tribunal aprecia a prova segundo as regras da experiência e a sua livre convicção (art. 127 do CPP);
4. Tais indícios resultam, desde logo, do teor do auto de denúncia e das declarações prestadas pela assistente a fls. 49 a 51, bem como dos depoimentos das testemunhas CC (fls. 72), vizinha e residente no mesmo prédio da assistente e do arguido, da testemunha DD (fls. 225), então camarada da assistente na base naval da Marinha, da testemunha EE (fls. 240), mãe da assistente e da testemunha FF (fls. 258), irmã da assistente;
5. Concluímos assim, que da prova recolhida em sede de inquérito resultam suficientemente indiciados os factos de que depende a eventual condenação do arguido pelo crime de violência doméstica.
Em face do exposto, deverá ser concedido provimento ao recurso, devendo o d. despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que pronuncie o arguido nos termos constantes da acusação.
Porém, V. Exas, como melhor entendimento da LEI, farão J U S T I Ç A»
1.7. O arguido não respondeu ao recurso.
1.8. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer do seguinte teor:
«Vem o presente recurso interposto pela assistente do despacho de não-pronúncia do arguido pelo crime de violência doméstica de que fora acusado pelo Ministério Público.
Na sua resposta o magistrado do Ministério Público junto do tribunal a quo concorda com a recorrente.
O despacho de não-pronúncia analisa a prova produzida, considerando que a prova da acusação se fundamenta apenas na versão da ofendida a que o arguido contrapõe versão diferente.
Por outro lado, quanto às declarações da ofendida e da testemunha que diz ter tratado do ferimento na testa da ofendida, refere por exemplo que a ofendida não referiu este fato e por outro lado a testemunha nada refere quanto ao ferimento que o arguido apresentaria, por lhe ter sido provocado pela assistente ao pretender soltar-se…
A análise crítica da prova efetuada pelo juiz de instrução não nos parece descabida, sendo que na ausência de qualquer registo documental das lesões torna-se difícil concluir que existem indícios com a probabilidade de levarem à condenação do arguido pelo crime de violência doméstica.
E como se refere no despacho, quanto à ofensa à integridade física não existe queixa formalizada em tempo.
Termos em que não nos parece que exista razão à recorrente.»
1.9. Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417º do Código de Processo Penal, não foi exercido o direito de resposta.
1.10. Feito o exame preliminar e colhidos os vistos legais, realizou-se a conferência. Cumpre agora apreciar e decidir:

2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Delimitação do objeto do recurso
Constitui jurisprudência uniforme que os poderes de cognição do tribunal de recurso são delimitados pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação de recurso (cf. artigo 412º, n.º 1 do Código de Processo Penal), sem prejuízo, da apreciação das questões de conhecimento oficioso, como sejam as nulidades que não devam considerar-se sanadas (cf. artigos 410º, nº 3 e 119º, nº 1, ambos do Código de Processo Penal).
Assim, no caso em análise, considerando as conclusões extraídas da motivação de recurso apresentada, a questão suscitada é a de saber se dos autos resultam indícios suficientes da prática pelo arguido dos factos que lhe foram imputados na acusação deduzida pelo Ministério Público e que, no despacho recorrido, foram julgados não indiciados e, nessa decorrência, se o arguido deve ser pronunciado, como autor material, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, n.ºs 1, al. b), 2, al. a), 4, 5 e 6 do Código Penal.

2.2. A decisão recorrida é do seguinte teor:
«I - RELATÓRIO
A. O Ministério Público, sob a forma de processo comum e mediante intervenção do Tribunal singular, deduziu acusação contra:
AA, (...)
imputando-lhe a prática, em autoria imediata e na forma consumada, de 1 (um) crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, alínea a), do Código Penal, com as penas acessórias previstas nos n.ºs 4, 5 e 6 do mesmo preceito legal.
B. Inconformado com a acusação veio o arguido AA requerer a abertura da fase de instrução, na qual enfatiza a ausência de indícios suficientes da prática do crime imputado, pois que a acusação se estriba, quase exclusivamente, na versão apresentada pela vítima, a qual é negada pelo arguido.
Invoca ainda, subsidiariamente, que a existir algum crime seria o de ofensa à integridade física pelo evento alegadamente ocorrido em Junho de 2021, salientando que nesse caso o prazo para apresentação da queixa não foi respeitado.
Pugna, por conseguinte, pela prolação de um despacho de não pronúncia.

*
Foi declarada aberta a instrução em 22.02.2023 – fls. 313.
Procedeu-se à inquirição da testemunha GG.
O arguido prestou declarações na presente fase.
*
II - SANEAMENTO
O Tribunal é competente.
Os sujeitos processuais têm legitimidade para intervir no exercício da acção penal.
Inexistem nulidades, questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer e que obstem à prolação de uma decisão de mérito nos presentes autos – artigo 308.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
*
Procedeu-se à realização de debate instrutório, na presença do arguido, com observância de todas formalidades legais, conforme se constata da respectiva acta.
*
Declara-se encerrada a fase de instrução – artigo 306.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
*
III - FUNDAMENTAÇÃO
A. Da Instrução
No sistema processual penal português a sindicância dos motivos imanentes a uma decisão de arquivamento do inquérito ou de acusação tem lugar através da fase de instrução, que é da competência de um juiz e tem cariz facultativo – ex vi artigo 286.º do Código de Processo Penal.
A instrução, descrita nestes moldes, tem como finalidade “saber se existe fundamento para abrir a fase de julgamento, que é a fase central e paradigmática do processo penal, segundo o modelo garantista herdado do Iluminismo”. (1) Cfr. MAIA COSTA, in Código de Processo Penal Comentado, HENRIQUES GASPAR [et. alii.], Almedina, 2.ª Edição, 2016, p. 958.
Embora seja comum apelidar a fase instrutória de “instrumental” e “preparatória” da fase de julgamento, aquela não se traduz numa espécie de audiência de julgamento antecipada, razão pela qual é inexigível a mesma intensidade a nível de produção e valoração da prova.
A prova produzida em sede de instrução tem carácter meramente indiciário, no sentido em que não se pretende através dela a demonstração da realidade dos factos, antes e tão só indícios – suficientes –, sinais de ocorrência do crime, donde se pode formar a convicção, para a decisão de pronúncia, de que existe uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força dela, uma pena ou uma medida de segurança – cfr. artigos 308.º, n.ºs 1 e 2, 283.º, n.º 2 e 301.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
O que sejam indícios suficientes procurou o legislador definir no artigo 283.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando estatui “consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.
Pelo exposto, não basta, em ordem a submeter um arguido a julgamento, a presença de meros indícios ou de um mero juízo subjectivo do juiz, porque na esteira do entendimento preconizado pela jurisprudência a este respeito “a pronúncia de um arguido em sede instrutória assenta num juízo de probabilidade elevada ou particularmente qualificada quanto à condenação do mesmo em julgamento, devendo, por isso, o respectivo juízo de prognose exibir a potencialidade de vir a ultrapassar a barreira do in dubio pro reo em fase de julgamento”. (2) Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 28.03.17, Proc. 4726/15.6T9SNT.L1, disponível em www.dgsi.pt.
E também ADÉRITO TEIXEIRA se pronunciou no mesmo sentido quando defende que apenas “o critério da possibilidade particularmente qualificada ou de possibilidade elevada de condenação, a integrar o segmento legal da “possibilidade razoável”, responde convenientemente às exigências do processo equitativo, da estrutura acusatória, da legalidade processual e do Estado de Direito Democrático, e que é o que melhor se compatibiliza com a tutela da confiança do arguido, com a presunção de inocência de que ele beneficia e com o in dubio pro reo.” (3) ADÉRITO TEIXEIRA, Carlos, in «Indícios suficientes: parâmetro de racionalidade e instância de legitimação concreta do poder-dever de acusar», Revista do CEJ, n.º 1, pp. 151 a 190.
Na verdade, crê-se que o juízo ou a convicção a estabelecer na fase da prolação da acusação ou do despacho de pronúncia, há-de ser (quase) equivalente ao de julgamento, quer ao nível da apreciação da fenomenologia, quer na objectividade da indagação fáctica e na apreciação do material probatório, quer ainda na conformação desse material probatório às normas atinentes com as proibições de valoração de prova e na racionalidade lógica em que assenta a apreciação dos elementos probatórios coligidos.
A grande diferença de convicção, no momento do inquérito/instrução ou no momento do julgamento, reside, precisamente, no contexto ou na ambiência em que essas provas se produzem, dado que, em audiência de discussão e julgamento, esta fase é marcada pelos princípios da concentração e, sobretudo, pelo princípio do contraditório, enquanto acto de defesa, cuja verificação em inquérito/instrução apenas se descortina em determinadas situações – esta opção surge reforçada pelo indelével carácter criminógeno que representa a indevida sujeição do arguido à fase de julgamento, o que, por imperativos de justiça, deve ser evitado. (4) Cf. neste sentido e entre muitos outros, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 20.1.2010, proc. n.º 25/08.8TARSD.P1, disponível em www.dgsi.pt.
Nesta sequência, dir-se-á que só indícios necessariamente fortes ou de elevada intensidade são suficientes para, findo o inquérito ou a instrução, ser deduzida a acusação ou proferido despacho de pronúncia.
Ou seja, e em jeito de resumo, os indícios serão suficientes quando os elementos de facto trazidos ao processo pelos meios probatórios, livremente analisados e apreciados, criam a convicção de que, a manterem-se em julgamento, terão probabilidades sérias de conduzir a uma condenação do arguido pelo crime que lhe é imputado, na medida em que, logicamente relacionados e conjugados, formam um todo persuasivo da culpabilidade do arguido.
*
B. Dos tipos legais de crime
O Ministério Público deduziu acusação contra o arguido imputando-lhe a prática, em autoria imediata e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, alínea a), do Código Penal.
*
1. Do crime de violência doméstica.
De acordo com o artigo 152.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, alínea a), do Código Penal:
“1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
(...)
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
(...)
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 - No caso previsto no número anterior, se o agente:
a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima;
(...)
é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.”
A nível de bens jurídicos tutelados pela norma incriminadora são eles a integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade de autodeterminação sexual e até a honra. Por outras palavras, estamos diante de um tipo de ilícito complexo ou poliédrico, atento o número de bens jurídicos protegidos.
Nas palavras de NUNO BRANDÃO, o crime de violência doméstica assume “não a natureza de crime de dano mas de crime de perigo, nomeadamente de crime de perigo abstracto. É, com efeito, o perigo para a saúde do objecto de acção alvo da conduta agressora que constitui motivo de criminalização, pretendendo-se deste modo oferecer uma tutela antecipada ao bem jurídico em apreço, própria dos crimes de perigo abstracto (…) Sendo dado o devido relevo a este último aspecto justificativo da criminalização da violência doméstica, poderão superar-se eventuais objecções opostas a esta concepção fundadas na dificuldade em explicar por que razão a violência doméstica é punida mais severamente que a ofensa à integridade física se ambas protegem o mesmo bem jurídico e esta constitui crime de dano e aquela mero crime de perigo abstracto, com a concomitante possibilidade de por esta razão a ofensa à integridade física ter prevalência sobre a aplicação da violência doméstica em caso de concurso.” (5) NUNO BRANDÃO, in «A Tutela penal especial reforçada da violência doméstica», Revista JULGAR, n.º 12, pp. 9-24.
O crime de violência doméstica é um crime relacional, que pressupõe a existência de um vínculo entre as pessoas envolvidas, seja ele familiar, parental ou de dependência entre o agente e a vítima. Não obstante, e por ser caracterizado por crime específico impróprio, a ilicitude é agravada em função daquelas relações existentes entre agente e vítima.
A ratio deste tipo legal reconduz-se à protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana, e ao contrário do anterior crime de maus-tratos, tanto releva a reiteração como a intensidade, o que significa que a conduta daquele que maltrata deve ser especialmente grave e pode resultar de um ato isolado.
Em última instância, é ainda o conceito de integridade pessoal (física e psíquica) - artigo 25.°, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa -, comum ao crime de ofensa à integridade física simples, com a particularidade de, aqui, ser outra a caracterização da agressão e da actuação do agressor, estabelecidas, ambas, em função do "ambiente e da imagem global do facto" indiciador de um maior desvalor da acção e de um potencial perigo de prejuízos sérios para a saúde e para o bem-estar da vítima.
O importante é, pois, analisar e caracterizar o quadro global da agressão física de forma a determinar se ela evidencia um estado de degradação, enfraquecimento, ou aviltamento da dignidade pessoal da vítima que permita classificar a situação como de maus tratos, que, por si, constitui um "risco qualificado que a situação apresenta para a saúde psíquica da vítima". Nesse caso, impõe-se a condenação pelo crime de violência doméstica, do artigo 152.° do Código Penal. Se não, a situação integrará a prática de um ou vários crimes de ofensas à integridade física simples, do artigo 143.°, do Código Penal. (6) Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proc. n.º 202/18.3PALSB.L1-5, de 19.03.2019, disponível em www.dgsi.pt.
O tipo objectivo deste crime abarca as condutas de violência física, psicológica, verbal e sexual, sendo o novo elenco legal meramente exemplificativo, concretizando o conceito legal de maus-tratos, mas não o esgotando. (7) Cf. ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de, in Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3.ª Edição actualizada, Universidade Católica Editora, 2015, p. 591.
Com efeito, a conduta típica inclui, para além da agressão física (mais ou menos violenta, reiterada ou não), a agressão verbal, a agressão emocional, a agressão sexual, a agressão económica e a agressão às liberdades (de decisão, de ação, de movimentação, etc.), as quais, analisadas no contexto específico em que são produzidas e face ao tipo de relacionamento concreto estabelecido entre o agressor e a vítima, indiciam uma situação de maus tratos, ou seja, um tratamento cruel, degradante ou desumano da vítima. (8) Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, proc. n.º 121/15.5GAVFL.G1, de 04.06.2018, disponível em www.dgsi.pt.
Como refere o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 17.01.2018 – (9) Proc. n.º 204/10.8GASRE.C1, disponível em www.dgsi.pt –: “o crime de violência doméstica é integrado por situações que, não fora essa especial ofensa da dignidade humana, seriam tratadas atomisticamente e preencheriam uma multiplicidade de tipos legais, como os de ofensa à integridade física, ameaça, injúria, etc. É aquela envolvente que determina que acções susceptíveis de integrar estes crimes sejam tratadas como uma unidade. Por via do quadro legal estas acções ilícitas mantêm-se mas perdem autonomia, daí que ocorra concurso aparente entre estes vários crimes e o crime de violência doméstica.”.
Daí que o decisivo para a verificação do tipo seja a configuração global de desrespeito pela dignidade da pessoa da vítima que resulta do comportamento do agente, normalmente assente numa posição de domínio e controlo.
Em suma, pode dizer-se que a ilicitude pressuposta pelo tipo de crime em causa radica no exercício desmedido de um poder de facto que atenta contra a integridade, a dignidade pessoal e o livre desenvolvimento da personalidade, violando a regra da igualdade de todos os seres humanos.
No que tange à dimensão subjectiva, o crime de violência doméstica é um crime que só pode ser preenchido de forma dolosa, ou seja, o agente, ao nível da sua consciência ética, tem de possuir o conhecimento correcto da identidade e das características da vítima [elemento intelectual] e querer realizar uma das acções típicas previstas para a conformação do dolo [elemento volitivo] – artigo 14.º do Código Penal.
*
C. Dos indícios
Norteados por critérios de praticabilidade e objectividade podemos asseverar, sem pejo, que o libelo acusatório assenta, quase exclusivamente, nos depoimentos prestados pela vítima em sede de inquérito [fls. 6, 49-51, 76-77 e fls. 102].
É ainda indicada prova testemunhal [além da vítima], salientando, desde já, que a testemunha FF não detém conhecimento directo de quaisquer factos reportados na acusação pública, e também prova documental, que consiste no aditamento de fls. 102.
De outra banda, temos a posição do arguido, assumida em sede de inquérito e na fase de instrução, onde nega a factualidade que lhe é imputada.
O arguido, contrariando frontalmente a (quase) totalidade da acusação, confirmou apenas que proferiu, por uma única vez, a expressão indicada em 15 da acusação, mais acrescentando que a casa de habitação ali mencionada é propriedade de ambos e os objectos por si retirados do interior da mesma [sem recurso a qualquer arrombamento, pois até se fez acompanhar da PSP para o efeito – cfr. atesta a participação de fls. 70] são sua pertença, pelo que nada de ilícito existe nessa conduta.
Que dizer da prova carreada para o processo?
Tal como já adiantamos na abertura deste apartado, a prova, no rigor dos princípios, centra-se na versão da vítima e na negação da mesma por parte do arguido.
Ora, neste conspecto, rectius, declarações da vítima num contexto como o de violência doméstica, não ignoramos o seguinte.
Consabidamente, o crime de violência doméstica é um crime muitas vezes "silencioso", de que terceiros não têm conhecimento, ou só têm conhecimento quando as situações chegam a um tal extremo que não é mais possível à vítima esconder a violência de que é alvo.
De outra banda, e sem perder de vista que o depoimento da vítima assume particular centralidade neste universo da violência doméstica, não deve elevar-se o mesmo à categoria de presunção iure et de iure de que os factos se passaram exactamente como os relatou.
Nestes casos, como atribuir maior ou menor credibilidade à narrativa de um ou de outro?
Das duas, uma: ou as declarações/depoimentos são de tal ordem descritivos, pormenorizados, circunstanciados e encadeados entre si que, na ausência de contra-indícios fidedignos, permitem formular um juízo de credibilidade, ou aqueles relatos encontram-se alicerçados em elementos exógenos corroborem ou robusteçam o pedaço de vida retratado.
Pois bem, salvo o devido respeito pelo entendimento do detentor da acção penal, não conseguimos enxergar, de olhos postos no inquérito, como poderá a versão da vítima/assistente sobrepor-se, de forma segura e suficiente, às proposições aduzidas pelo arguido.
Palmilhando os pontos de facto da acusação detectamos o seguinte.
O episódio “maior”, alegadamente ocorrido entre assistente e arguido, está retratado nos artigos 5 a 13 do libelo acusatório.
O primeiro aspecto a reter é que arguido e assistente apresentam versões distintas sobre aquela realidade, pois cada um “reclama para si” a posição de “vítima”, ou seja, que foram alvo de agressões pela parte contrária.
Aqui, e desconsiderando até a (inusitada) circunstância de as lesões descritas na acusação, relativamente graves, não terem carecido de assistência hospitalar ou, quando muito, de alguma documentação para atestar a existência das mesmas [por meio de fotografia], existem algumas nuances que fragilizam as declarações prestadas pela assistente e, por arrastamento, o depoimento da testemunha CC.
Vejamos.
Seguindo a dinâmica das agressões, tal como elas são retratadas na acusação, temos uma vítima/assistente que, depois de ter sido alvo de 4 chapadas na face [lado esquerdo e lado direito] e na zona dos ouvidos, de ter levado empurrões que a projectaram contra as paredes do chão e, uma vez no solo, foi impedida de se levantar pelo arguido, levando a que tivesse de desferir um soco no lábio do deste para se libertar e, como isso, refugiar-se na casa de banho.
Estranhamente, estando a vítima no interior da casa de banho, descreve a acusação que a mesma mantinha o menor HH no seu colo.
Pergunta: como surgiu o menor ao colo da vítima no interior da casa de banho? Recorde-se que momentos antes a vítima, alegadamente, estaria a ser alvo de acentuadas agressões, sendo que, após ter conseguido libertar-se do arguido refugiou-se na casa de banho.
No meio desta situação crítica e de pânico teve tempo de pegar no menor enquanto corria para a casa de banho? Onde estava o menor no início da contenda? Já estaria no interior da casa de banho? Sozinho? Não será muito verosímil considerando que estamos perante uma criança com apenas, à data, 2 anos de idade.
Mas as dúvidas acerca do relatado adensam-se mais com o depoimento nada coerente e congruente da testemunha CC.
Esta testemunha confirma que, na data da prática dos factos, a vítima/assistente, refugiou-se em sua casa e que o arguido foi no seu encalço, acabando por lhe desferir uma cabeçada na testa. De seguida, o arguido abandonou a residência e a testemunha prestou os primeiros socorros à vítima/assistente quanto ao ferimento provocado na testa, “que ficou muito vermelha”.
Algumas notas quanto a este depoimento e a sua coerência com o relatado pela vítima/assistente.
Desde logo, “salta à vista” uma discrepância assinável: a testemunha referida diz que prestou primeiros socorros à assistente porque, fruto da cabeçada desferida pelo arguido, esta ficou com a “testa muito vermelha”; curiosamente, a vítima não refere nada disto no seu depoimento, nem sequer menciona a existência de uma lesão na testa.
Também não deixa de ser “estranho” que a testemunha não tenha percepcionado o estado do arguido, o qual, conforme confirma a vítima/testemunha, tinha o lábio ensanguentado e foi cuspindo sangue “para cima” daquela. Nenhuma observação quanto a este pormenor? Duvidoso.
De igual forma é duvidoso que a vítima, afirmando ter o menor HH no seu colo quando estava “refugiada” no interior da casa de banho, momentos depois, quando se inicia nova agressão na cozinha, fuja para a residência da testemunha, seguida do arguido, e a referência ao menor deixe de existir. Significa isto que a criança de apenas 2 anos ficou sozinha em casa depois de uma discussão entre os pais ou algum deles a levou para casa da testemunha e esta olvidou de mencionar tal aspecto?
Só por aqui o relato das agressões alegadamente sofridas pela vítima fraqueja ante a porosidade do lastro probatório.
Depois, e olhando para as mensagens constantes de fls. 165-166, trocadas entre arguido e assistente em 23.06.2021, a leitura das mesmas permite retirar a ilação, segura, que, de facto, existiram agressões recíprocas entre ambos, sendo evidente que quer arguido quer assistente aludem às respectivas “mazelas” e acabam por lamentar o sucedido.
Porém, e sublinhando novamente que a versão apresentada pela assistente/vítima apresenta várias inconsistências e não é devidamente corroborada por nenhum outro meio de prova credível, pois como vimos, o depoimento da testemunha CC acaba por ser contraditório ao relatado pela assistente, o Tribunal fica com uma dúvida, razoável, acerca da ocorrência dos factos tal como estão descritos na acusação, tanto mais que foram negados pelo arguido.
Depois, e sendo assente que, entre 19 e 22 de Junho de 2021, houve um episódio de violência física entre arguido e assistente, paira demasiada nebulosidade quanto à concreta dinâmica da mesma e por quem foi despoletada, apesar de resultar evidente que houve troca de agressões recíprocas.
Ora, antecipando já um juízo valorativo global acerca do pedaço de vida retratado na acusação, o episódio narrado nos pontos 5 a 13, pela falta de preenchimento dos respectivos elementos objectivos, maxime a gravidade pressuposta pelo tipo de crime de violência doméstica, ainda que estivesse suficientemente indiciado poderia, apenas, personificar a prática de um crime de ofensas à integridade física, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal.
Todavia, sendo o crime de ofensas à integridade física simples um crime de natureza semi-pública, ou seja, que carece de queixa no prazo de 6 anos a contar da prática do facto, considerando que os factos ocorreram entre 19 e 22 de Junho de 2021 e que a denúncia foi apresentada apenas em 11.03.2022 fica afastada a legitimidade do Ministério Público para perseguir criminalmente o arguido pela prática daquele crime – cfr. artigos 113.º, n.º 1 e 115.º, n.º 1, do Código Penal.
Continuando, no que tange à narração do artigo 14.º da acusação, apesar de o arguido confirmar o contacto telefónico com a mãe da assistente [excepto a ameaça imputada], afigura-se-nos destituído de credibilidade, salvo o devido respeito, que a testemunha em causa, mãe da vítima, inquirida mais de 1 ano após a prática dos factos [fls. 240], seja capaz de recordar o exacto dia da chamada quando nem a própria vítima conseguiu localizar o dia das agressões [apontou o período compreendido entre os dias 19 e 22 de Junho].
Note-se que nem sequer é feita menção, no relato, à consulta de um registo de chamadas, a um evento marcante que tenha ocorrido nesse dia e, por essa razão, conseguia fazer a respectiva associação, ou a existência de um aniversário, festividade, a anotação da data num papel para registo futuro, etc.
Sem olvidar que a chamada, a ter ocorrido nos termos propalados, tivesse causado justo receio e apreensão na testemunha, nenhuma razão de ciência suficientemente fiável e justificada é aventada para credibilizar a “lembrança” do dia exacto [e hora!] de uma chamada telefónica ocorrida à mais de um ano.
Razões pelas quais não consideramos como suficientemente indiciada a factualidade reportada nos artigos 5.º a 15.º da acusação.
Prosseguindo.
Diz a acusação, no seu ponto 16, que o arguido, nos dias 3 e 4 de Junho, dirigiu-se à residência da ofendida e retirou objectos da propriedade da mesma, agindo contra a vontade desta e arrombando para o efeito a parte da arrecadação.
Detenhamo-nos por aqui.
Pergunta legítima: em que se baseia o detentor da acção penal para atribuir a propriedade da residência à vítima? Nenhuma prova documental atesta esse facto.
Embora não exista prova documental nesse sentido, bastaria atentar na participação de fls. 70, da autoria da Polícia de Segurança Pública de Portimão, datada de 01.06.2022, onde é dito que o arguido, em “divórcio litigioso” com a ex-companheira [assistente], pretendia deslocar-se à sua residência para recolher alguns pertences da sua propriedade e facultou documentos onde atestava que a casa pertencia ao casal.
De salientar, ainda, que nessa participação, e ao contrário do que havia sido transmitido às autoridades pela assistente, maxime que estavam 2 homens a arrombar a porta da residência, no local foi verificado que nada do comunicado se tinha passado, tendo a abertura da porta decorrido sem danos e o arguido procedido à entrega da chave à assistente [a qual negou a entrada do arguido em casa].
Por conseguinte, e na decorrência do exposto, quanto aos objectos referidos pela acusação inexiste qualquer indício e, necessariamente, prova que os mesmos sejam propriedade da assistente e que tenham sido retirados da residência de forma ilegítima pelo arguido, muito menos com recurso a arrombamento.
Note-se que, estando em curso [aparentemente] um divórcio sem consentimento, este Tribunal desconhece, em absoluto, as questões inerentes ao mesmo, designadamente a propósito da atribuição da casa de morada de família, pelo que as questões atinentes aos bens do casal terão de ser dirimidas naquela sede, que é a própria.
Destarte, e por inexistir qualquer substrato probatório para o alegado nos artigos 16.º a 18.º da acusação temos os mesmos como não suficientemente indiciados.
Mutatis mutandis para o disposto no artigo 19.º da acusação.
Formulado de uma forma puramente genérica questionamo-nos [e a defesa também, por certo]: que documentos? Cartões bancários? Cartões de identificação? Documentos relativos à casa de ambos? Não se sabe, pois nada se diz quanto a isto.
Disco externo que é propriedade de quem? Arguido ou vítima? Também não sabe.
E a consequência para tal abstracção é ter tal artigo como não escrito, por inviabilizar o exercício cabal do direito de defesa.
Por tudo o que se deixa dito, a insuficiência dos elementos probatórios em ordem à sustentação do facto não se resolve ignorando-a, nem através de um juízo de prognose que reduza a noção operatória de indiciação suficiente (cf. supra) à mera noção de indícios com a subsequente remessa para julgamento desde que estes existam (os indícios).
Resolve-se, isso sim, mediante a actuação das garantias de defesa constitucionalmente asseguradas em sede processual penal, maxime, pela actuação do princípio “in dubio pro reo”, corolário do princípio da presunção de inocência vertido no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
Donde já se antevê a impossibilidade de, sopesada a versão do arguido e ante as proposições e razões aduzidas, se poder considerar, à margem da dúvida razoável, como suficientemente indiciado o crime de violência doméstica de que vem acusado.
Pelo exposto, não consideramos como suficientemente indiciada a factualidade constante da acusação pública sob os pontos 5.º a 21.º, concernentes à prática, pelo arguido, de um crime de violência doméstica.
Os factos constantes dos artigos 1.º a 4.º da acusação encontram-se suficientemente indiciados pois, quanto a estes, inexiste qualquer “controvérsia” por parte dos sujeitos processuais, isto é, arguido e assistente confirmam em uníssono essas circunstâncias, além de que a filiação da criança HH está comprovada documentalmente pelo assento de nascimento junto a fls. 25-26 [pese embora tal elemento de prova não conste da acusação].
*
O tribunal proferirá, pois, despacho de não pronúncia.
*
O tribunal, em resumo, e por referência à acusação, pode portanto concluir que se mostram suficientemente indiciados os seguintes factos:
- 1.º a 4.º.
Por outro lado, e por referência à acusação pública, conclui-se que não se mostram suficientemente indiciados os factos:
- 5.º a 21.º.
*
IV - DECISÃO
Pelo exposto, decide-se:
- NÃO PRONUNCIAR o arguido AA pela prática, em autoria imediata e na forma consumada, de 1 (um) crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, alínea a), do Código Penal, com as penas acessórias previstas nos n.ºs 4, 5 e 6 do mesmo preceito legal.
*
Sem custas, cf. artigo 514.º, n.º 1, a contrario, do Código de Processo Penal.
(…).»

2.3. Na acusação deduzida pelo Ministério Público contra o arguido foram narrados os seguintes factos:
«1. O arguido AA e a ofendida BB iniciaram um relacionamento amoroso no ano de 2017 tendo residido como se de marido e mulher se tratassem até Julho de 2021 altura em que se separaram.
2. Reataram o relacionamento em finais de Novembro de 2021 e separaram-se novamente em 31 de Janeiro de 2022.
3. Inicialmente viveram juntos em Almada até Novembro de 2020 e desde esta data fixaram residência em Portimão.
4. Desse relacionamento nasceu o menor HH no dia 13-10-2018.
5. No período compreendido entre o dia 19 e 22 de Junho de 2021 o arguido dirigiu-se à ofendida e desferiu-lhe quatro chapadas na face concretamente no lado esquerdo e do lado direito da face, atingindo-a também na zona dos ouvidos.
6. De seguida desferiu-lhe empurrões que a projetaram contra as paredes e chão.
7. Ainda nesse episódio, numa das vezes quando a ofendida tentava levantar-se do chão o arguido impediu-a de se levantar, o que fez com que a ofendida lhe desse um soco que o atingiu no lábio superior causando-lhe o derrame de sangue.
8. De seguida a ofendida procurou refugiar-se na casa de banho altura em que o arguido correu atrás dela ao mesmo tempo que cuspia para cima da ofendida o sangue que lhe escorria do lábio.
9. A ofendida logrou fechar-se na casa de banho.
10. Acto continuo o arguido arrombou a porta da casa de banho com pontapés enquanto mantinha ao seu colo o menor HH.
11. Momentos mais tarde, já na cozinha, o arguido empurrou a ofendida contra a bancada da cozinha.
12. Nessa sequência a ofendida fugiu para casa da vizinha no r/c esquerdo, altura em que o arguido foi atrás dela, entrou para dentro da casa da vizinha e desferiu uma cabeçada na testa da ofendida.
13. Estes factos aconteceram na presença do menor HH.
14. Nesse dia o arguido contactou a mãe da ofendida dizendo-lhe: “venha buscar a sua filha antes que a mate”.
15. Desde 2018 até ao episódio acima relatado que por várias vezes o arguido disse à ofendida que lhe ia tirar o filho, proferindo a expressão: “o menino terá sempre tecto, tu que te fodas”.
16. Entre os dias 3 e 4 de Junho de 2022 o arguido dirigiu-se à residência da ofendida de onde retirou objectos propriedade da ofendida, agindo contra a vontade desta e arrombando para o efeito a porta da arrecadação.
17. Concretamente dali retirou uma bicicleta de €160, seis sacos de compras reutilizáveis com ferramentas de construção civil (pá de pedreiro, rolos de pintura) e materiais de construção.
18. Dali retirou um baú com vários brinquedos do menor.
19. Em meados de Fevereiro 2022, quando o arguido abandonou a residência que ambos partilhavam levou com ele os documentos da ofendida que pelo menos até 13-06-2022 não mais os devolveu, bem como apagou as fotografias que a ofendida guardava num disco externo também contra a vontade desta.
20. Ao actuar dessa forma o arguido agiu com o propósito de molestar física e psicologicamente a ofendida e afectá-la na sua dignidade pessoal, segurança, liberdade, honra e bem-estar, propósito esse que logrou alcançar, porquanto a ofendida teme e receia pela saúde, vida, liberdade e integridade física.
21. O arguido agiu voluntária e conscientemente, conhecendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, e actuou com a liberdade necessária para se determinar segundo essa resolução.
(...).»

2.4. Conhecimento do mérito do recurso
Como supra referimos a questão a apreciar e a decidir no presente caso, é a de saber se dos autos resultam indícios suficientes da prática pelo arguido dos factos que lhe foram imputados na acusação deduzida pelo Ministério Público e que, no despacho recorrido, foram julgados não indiciados e, nessa decorrência, se o arguido deve ser pronunciado, como autor material, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, n.ºs 1, al. b), 2, al. a), 4, 5 e 6 do Código Penal.
Alega a assistente/recorrente que mal andou o Sr. Juiz a quo ao dar preponderância à versão do arguido, descredibilizando, no seu todo, as declarações da assistente e, em parte, os depoimentos das testemunhas e, nessa decorrência, ao julgar não suficientemente indiciados os factos imputados ao arguido na acusação deduzida pelo MP, proferindo decisão de não pronúncia.
Entende a recorrente que a correta apreciação das provas recolhidas, impunha decisão em sentido diverso, ou seja, não devia ter sido atribuída qualquer credibilidade à versão do arguido e deviam ser credibilizadas e valoradas as declarações da assistente, bem assim como os depoimentos das testemunhas, levando, essas provas a que tivessem de ser considerados indiciados os factos imputados ao arguido, no libelo acusatório e, como tal, fosse proferido despacho de pronúncia do arguido, pela prática do crime de violência doméstica.
O Ministério Público, na 1.ª instância, pronuncia-se no sentido de assistir razão à assistente/recorrente.
Por sua vez, a Exm.ª PGA, no parecer emitido, considera que deverá manter-se a decisão de não pronúncia recorrida.
Vejamos:
De harmonia com o disposto no artigo 286º, nº. 1, do Código de Processo Penal, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
Tendo por epígrafe “Despacho de pronúncia ou de não pronúncia”, dispõe o artigo 308º do Código de Processo Penal:
«1. Se até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz por despacho pronuncia o arguido pelos factos respetivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.
(…).»
E estatui o artigo 283º (“Acusação pelo Ministério Público”), n.º 2, do mesmo Código, que é aplicável à instrução, por remissão do n.º 2 do artigo 308º: Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.
Indícios podem qualificar-se, de forma algo simplificada, como provas que ainda não foram submetidas ao crivo do julgamento, o mesmo é dizer, ao contraditório e imediação plenas, sendo que, na fase da instrução, o contraditório só é plenamente assegurado no debate instrutório[1].
Suscitando controvérsia na doutrina e na jurisprudência, o preenchimento do conceito “indícios suficientes” (sendo essencialmente três as teses em confronto: uma que defende que tal conceito encerra uma mera probabilidade de condenação; outra que entende que o conceito se deve reconduzir a uma maior probabilidade de condenação do que de absolvição; e a última que sustenta o preenchimento do conceito exige que se possa formular um juízo de prognose em termos de se poder concluir pela existência de uma forte probabilidade de condenação[2]), sufragamos o entendimento de que os indícios são suficientes quando, em face dos elementos probatórios colhidos nos autos, se possa formular, em termos de prognose, um juízo no sentido de que será muito provável a futura condenação do arguido, em julgamento, ou, pelo menos, a condenação será mais provável do que a absolvição.
Constituirão, assim, indícios bastantes para que seja proferido despacho de pronúncia, aqueles elementos que, relacionados e conjugados entre si, levem o Juiz de Instrução a formar a convicção de que, com um grau razoável de probabilidade, o arguido virá a ser condenado, em julgamento, ou, pelo menos, é mais provável a condenação do arguido do que a sua absolvição[3].
Temos, pois, que de acordo com a orientação que defendemos, a suficiência de indícios, para que seja proferido despacho de pronúncia do arguido, não exige o grau de certeza pressuposto para que haja lugar à condenação, em julgamento, isto sem prejuízo de se dever, também nesta fase da instrução, aplicar o princípio in dúbio pro reo, enquanto corolário do princípio da presunção de inocência, constitucionalmente consagrado no artigo 32º, n.º 2, da CRP, não devendo o arguido ser pronunciado, quando, não for possível, em face dos elementos probatórios colhidos nos autos, ultrapassar a dúvida razoável, sobre a prática dos factos e/ou autoria dos mesmos[4].
Tendo presentes estes princípios e baixando ao caso concreto, colhem-se nos autos os seguintes elementos, com relevância para a questão em apreciação:
a) No dia 11/02/2022, a ora assistente BB apresentou denúncia/queixa – tendo manifestado desejar procedimento criminal contra o denunciado – contra o ora arguido, na Esquadra da PSP de Portimão (cf. auto de fls. 4 a 7), entre outros, pelos seguintes factos:
«(...) já foi agredida fisicamente várias vezes pelo denunciado, a última vez ocorrida em junho de 2021, tendo na altura lhe desferido quatro bofetadas, atirou-a de encontro às paredes e ao chão, causando-lhe tonturas durante vários dias, dores por todo o corpo, uma lesão no joelho direito, situação que nunca denunciou nem recebeu tratamento médico/hospitalar, podendo, no entanto, e se for caso disso, apresentar provas e testemunha em como estas agressões efetivamente aconteceram. As agressões foram causadas por a vítima ter enfrentado o denunciado, querendo e pedindo que ele saísse de casa, o que não aconteceu uma vez que ele lhe disse que ela não era ninguém para que lhe estar a pedir ou exigir o que quer que fosse. (...).»
b) A denunciante/queixosa, ora assistente, foi inquirida, perante a PSP, no dia 08/04/2022 (cf. auto de fls. 49 a 51), tendo, na parte que aqui releva declarado o seguinte:
«Confrontada com o teor da denúncia que formalizou na PSP de Portimão, no dia 11 de março de 2022, que neste acto foi integramente reproduzido, a depoente confirma a veracidade dos factos que denunciou.
Relativamente ao episódio inicial que referiu, de agressão física, que aconteceu entre os dias 29 e 22 de junho de 2021, em que declarou que foi agredida fisicamente várias vezes pelo denunciado, o qual lhe desferiu quatro bofetadas, atirou-a de encontro às paredes e ao chão, causando-lhe tonturas durante vários dias, dores por todo o corpo e uma lesão no joelho direito.
Esclarece que este episódio se iniciou dentro de casa, na presença do filho menor de ambos e que foi agredida na sequência de uma discussão. Inicialmente a depoente afastou-se para evitar o confronto, tendo o denunciado perseguido a depoente pela casa, começando a empurra-la repetidamente até que a agrediu com várias chapadas que a tingiram no lado esquerdo e direito da face, apanhando também a zona dos ouvidos. Nessa sequência a depoente tentou fugir, sendo impedida pelo denunciado que a agarrou e atirou contra a parede, contra os móveis e projectou contra o solo. Que para além de outras lesões de dores que sofreu, de uma das vezes que caiu ao solo, fê-lo apoiando o joelho direito, o que lhe causou um traumatismo com hematoma e edema muito pronunciado naquela zona e muitas dores.
Que numas das vezes em que se estava a levantar do chão para onde foi empurrada e projectada pelo denunciado, desferiu-lhe um soco que o atingiu no lábio superior, que provocou o aparecimento de sangue.
Nessa sequência, o denunciado começou a correr atrás da depoente que procurava refugiar-se dentro de casa, cuspindo-lhe para cima o sangue que saía da ferida.
A depoente conseguiu refugiar-se na casa de banho, tendo trancado a porta, tendo o denunciado conseguido arrombar a porta com vários pontapés, sendo que nessa altura e enquanto arrombava a porta, tinha o menino ao colo.
Seguiu-se um momento de maior calma, reiniciando-se nova discussão na cozinha, local onde o denunciado a agarrou e atirou contra a bancada da cozinha, tendo a depoente agarrado num açucareiro de metal para se defender. Já nem se recorda se ainda bateu no denunciado em acto de defesa ou não.
Conseguiu libertar-se e fugiu, saindo de casa, sendo que nessa ocasião procurou refúgio na casa da sua vizinha do R/C Esq.º, que tinha a porta aberta. O denunciado perseguiu-a, tendo entrado também no interior da casa da referida vizinha, local onde a agrediu com uma cabeçada que a atingiu na zona da testa, não provocando lesão com gravidade.
Depois o denunciado afastou-se e abandonou a casa, levando consigo o filho de ambos.
(...).»
c) A testemunha CC, tendo prestado depoimento, em inquérito, perante a PSP, a 22/06/2022 (cf. auto de fls. 72), declarou o seguinte:
«Que conhece a ofendida BB e o denunciado AA, conhecimento que surgiu em virtude de serem vizinhos, residentes no mesmo prédio.
Que se foi apercebendo ao longo do tempo que existiam discussões entre o casal, esclarecendo que a frequência seria de uma ou duas vezes por mês. Que estas discussões consistiam em vozes muito altas, exaltação e algumas injúrias que não consegue concretizar, sendo que nessas discussões conseguia aperceber-se que a voz do AA sobressaia e era num tom agressivo.
Refere que por causa de ouvir estas discussões e de se aperceber que a relação entre o casal não era a melhor, conversou com a BB, oferecendo-lhe ajuda, disponibilizando-se a recebê-la na sua casa, caso necessitasse.
Confrontada com o episódio que é descrito pela ofendida, nas declarações que prestou, a ora depoente confirma a veracidade desses factos. Que há cerca de um ano, terá sido por volta do dia 19 ou 20 de junho de 2021, quando a depoente se encontrava no seu apartamento, tendo a porta da rua fechada apenas com o trinco, repentinamente, entrou na sua casa, a BB muito exaltada e aflita, dizendo algo como “mais uma vez está a atacar-me”. Logo de seguida entrou o AA, em perseguição da BB, dizendo algo como “aí veste para aqui”, e dirigindo-se de forma rápida para junto da BB, desferiu-lhe uma cabeçada que a atingiu na cabeça, zona da testa.
Que logo depois da agressão, o AA abandonou a casa da depoente, que nessa altura procurou acalmar a BB, prestando-lhe também os primeiros socorros, no tratamento do ferimento que sofreu na testa, que ficou muito vermelha, sem ferida aberta.»
d) Por sua vez, o arguido tendo prestado declarações, em sede de inquérito, perante a PSP (cf. auto de interrogatório de fls. 187 e 188), referiu o seguinte:
«Esclarece que o apartamento sito no n.º (…), em Portimão, é propriedade do depoente e da denunciante, em partes iguais, foi adquirido por ambos e está registado em nome dos dois.
Questionado sobre o episódio ocorrido entre os dias 19 e 22 de junho de 2021, em que alegadamente terá agredido fisicamente a ofendida, o depoente esclarece que os factos não se passaram efetivamente como a ofendida os descreveu, na verdade a data referida coincide com a ruptura entre o casal e a separação.
O depoente refere que de facto existiu uma discussão, no entanto, em momento algum agrediu a ofendida, de nenhuma forma. Também não é verdade que a tenha perseguido até à casa de uma vizinha. Esclarece que nem sequer tinha relação com os vizinhos.
Que nesse dia, e após a discussão, saiu de casa e levou o filho consigo, sendo que foi viver temporariamente para casa dos seus pais.
(...).»
e) Na fase de instrução, o arguido voltou a prestar declarações – tendo-se procedido à audição da respetiva gravação –, tendo mantido a versão negatória dos factos, já manifestada em inquérito.
No respeitante às passagens das declarações do arguido, mais relevantes para o que aqui importa, o mesmo afirmou ter a ora assistente mentido e ser a denúncia contra si apresentada uma retaliação pelo facto de haver recorrido a tribunal para que fosse feita a regulação das responsabilidades parentais do filho que têm em comum.
Quanto ao episódio ocorrido entre os dias 19 e 22 de junho de 2021, o arguido confirmou ter havido uma discussão entre si e a ora assistente e que, em resultado dessa discussão, a ora assistente lhe deu um “murro na cara”, negando ter agredido, por qualquer forma, a ora assistente.
Confirmou, ainda, o arguido que, na data em que acontecerem esses factos, telefonou à mãe da assistente – tratando-se, da testemunha EE –, para lhe contar que a BB lhe tinha dado um murro, sem que tivesse feito nada, negando ter, nessa ocasião, proferido qualquer ameaça contra a BB.
Questionado sobre desde o ano de 2018 e após o episódio referenciado, por várias vezes disse à ofendida que lhe ia tirar o filho, proferindo a expressão “o menino terá sempre tecto, tu que te fodas”, o arguido apenas admitiu ter enviado, mais recentemente, uma mensagem à ofendida desse teor, “com esse palavreado”.
f) No tocante às testemunhas inquiridas em sede de inquérito, DD – que foi colega da assistente e do arguido na Marinha –, EE – mãe da assistente – e FF – irmã da assistente –, cujos autos de inquirição constam, respetivamente, a fls. 225, 240 e 258, não presenciaram os acontecimentos aqui em referência.
A testemunha DD, no seu depoimento, reportou-se a factos ocorridos em 2018 e 2019 e as testemunhas EE e FF, também relataram a factos anteriores àqueles que foram narrados na acusação deduzida Ministério Público nos presentes autos e factos esses objeto de apreciação no processo n.º 1093/20.6T9ALM, o que determinou o arquivamento do inquérito nessa parte, ao abrigo do disposto no artigo 277º, n.º 1 do Código Penal, conforme decorre do despacho proferido pelo Ministério Público, a fls. 267 e 268.
g) Foram juntas aos autos pela assistente mensagens SMS trocadas entre a própria e o arguido, insertas a fls. 149 a 166, bem assim como emails juntos a fls. 167 a 180.
Entre as aludidas SMS trocadas destacamos as referentes ao dia 23/06/2021, após os acontecimentos que tiveram lugar em data exata não apurada mas situada entre os dias 19 e 22/06/2021, cujo teor se transcreve, sublinhando-se as passagens mais relevantes:
BB: «O teu lábio está assim porque nem tratas te dele, de certeza que nem gelo lhe metes te ou algo para cicatrizar isso, de certeza que cuidados não andas a ter nenhuns, não me culpes pelos teus que se fodas na vida, eu fiz, isso sim mas quem não anda a ter cuidado és tu. Sabes o que fiz? Passei a manhã a meter gelo nos meus inchasos inclusive o joelho que de me teres empurrado e eu caído, fiquei com o joelho que pareciam dois, arranhões no pescoço, tratei de tudo em mim. Cuida de das tuas feridas como eu cuide das minhas AA, tens raiva? Eu também mas cuido das minhas feridas.»
AA: «Não BB ..., nem viste o lábio. Nem interessa ... não é da ferida aberta que já esta mais que fechada e resolvida ... Mas não interessa nada...»
BB: «Ainda mais te digo, durante dois dias tive tonturas, doia me a cabeça e tinha um zumbido nos ouvidos enorme a conta dos chapadões que me enfias te, fora todas as outras nodoas negras que tenho que andar a bater contra paredes e chão cada vez que me empurras te. Ainda te queixas tu do teu lábio, não queiras que te mostre todas as marcas que me deixas te e todas as dores no corpo wue tive a conta desta brincadeira. Cuida das tuas feridas que eu tenho de cuidar das minhas. Revoltas me.»
«Mas é sempre o pobre do AA, a vítima do AA, que é um santo.»
«E antes do soco ainda te avisei “olha que não estas te a meter com uma pessoa do teu tamanho” e o que é que fizes te??? Voltas te a empurrar me contra a chão, não querias tu que eu riposta se, o aviso foi feito na altura antes do soco, agora AA vai tw fazer de vítima com quem tu quiseres mas não venhas para cima de mi porque todas as que te dei levei de volta e não vou para cima de ti com raivas, vê a tua atitude
(...)
«Desculpa ter falado com raiva para ti mas o mundo também esta sob mim e não tenho direcionado s minha raiva em e custa me que faças isso mas se isso um dia te fizer sentir melhor comigo ...tudo bem.» Imogi coração
AA: «Não faz mal .. não fara nem melhor nem pior .. dias melhores virão ..
Lamento ser assim para ti .. Mas eu amo a BB e odeio parte dela. Mas e demais para mim simplesmente fingir que es a minha melhor amiga .. E cada dia que passa mais longe estarei dessa meta de ser o que desejas. Mas e não preocupar .. a primeira semana e a que mais custa .. o resto e so forçar.
E tudo correra bem mesmo que forçado .....
Não te preocupes que não levas com mais raiva minha .. vou tentar ser o mais neutro possível.»
Neste quadro probatório, cabe perguntar existem indícios suficientes de ter o arguido praticado os factos que lhe são imputados na acusação deduzida pelo Ministério Público?
A resposta à enunciada questão demanda que se distingam três blocos de factos, quais sejam, os factos descritos nos pontos 5 a 14 da acusação [referentes aos acontecimentos ocorridos em data exata não apurada mas situada entre os dias 19 e 22 de junho de 2021]; os factos vertidos no ponto 15 da acusação [ter o arguido dito à ofendida que lhe ia tirar o filho, proferindo a expressão: “o menino terá sempre tecto, tu que te fodas”] e os factos narrados nos pontos 16 a 19 do libelo acusatório [concernentes à retirada pelo arguido da residência onde habitava a ofendida de bens pertences a esta última].
Assim:
Relativamente aos acontecimentos ocorridos em data exata não apurada mas situada entre os dias 19 e 22 de junho de 2021, salvo o devido respeito, divergimos do juízo de valoração da prova formulado pelo Exm.º Juiz a quo que o levou a dar como não indiciados os factos descritos nos pontos 5 a 14 da acusação.
Com efeito, pese embora a versão negatória apresentada pelo arguido, entendemos que as declarações da ofendida e o depoimento da testemunha CC, prestados em sede de inquérito, em conjugação com o teor das SMS trocadas entre a ofendida e o arguido, no dia 23/06/2021, constantes a fls. 165 e 166, cujo teor transcrevemos supra – que reforçam a versão da ofendida de que, dias antes, foi agredida pelo arguido, da forma que descreveu e de o ter também agredido com um soco no lábio –, permitem sustentar a existência de indícios suficientes de que tais factos efetivamente ocorreram.
Salvo o devido respeito, as declarações da ofendida BB não revelam as incongruências que lhes são assacadas pelo Sr. Juiz a quo, fazendo-se notar ter havido uma incorreta leitura do relatado pela ofendida quando se referiu a que o filho estava ao colo. O que a ofendida disse é que o filho estava ao colo do arguido, quando este pontapeou a porta da casa de banho, onde a ofendida se refugiou e não, como entendeu o Sr. Juiz a quo, que estaria ao colo da ofendida, no interior da casa de banho.
De igual modo, também não se deteta a falta de coerência e de congruência do depoimento da testemunha CC assinalada pelo Sr. Juiz a quo, no confronto com o depoimento da ofendida, sendo que ambas afirmaram ter o arguido desferido uma cabeçada na testa da ofendida. Relativamente ao resultado dessa cabeçada, a ofendida disse não ter provocado “lesão com gravidade” e a testemunha CC referiu que a testa da ofendida “ficou muito vermelha”, não existindo qualquer incongruência entre uma e outra das afirmações.
Como é sabido uma “cabeçada” dada por alguém na cabeça de outrem, dependendo da intensidade com que é desferida, poderá ter consequências mais ou menos graves, a ponto de, em certos casos, poder causar lesões letais. Daí que, não sendo essa a situação verificada, resulte compreensível a afirmação da ofendida de que a cabeçada dada pelo arguido e que a atingiu na testa, não lhe ter provocado “lesão com gravidade”, não sendo essa asserção contrária ao que foi afirmado pela testemunha CC.
E também nada de estranho de vislumbra existir na circunstância de a testemunha CC não ter feito referência ao estado do arguido, designadamente, ao facto de este último ter o lábio ensanguentado. Há que não esquecer o circunstancialismo em que ocorreram os factos relatados pela testemunha, estando na sua casa, quando ali entrou a ofendida e logo de seguida o arguido, que vinha no seu encalço, agredindo-a da forma descrita. Tudo se passou muito rápido, sendo a testemunha apanhada, num cenário de conflito e violência a que era alheia, com a tensão emocional inerente, sendo absolutamente normal que não tivesse reparado no lábio do arguido.
Nestes termos, entendemos que os factos que foram considerados não indiciados, na decisão recorrida, com referência aos artigos 5 a 13 da acusação, têm de considerar-se suficientemente indiciados.
O mesmo se verifica no tocante à factualidade referente ao artigo 14 da acusação.
Na verdade, o depoimento da testemunha EE, mãe da assistente, pela coerência e isenção reveladas, mostra-se credível, no confronto com as declarações do arguido, que admitiu ter telefonado àquela, na data em a ora assistente lhe deu um “murro” na cara – embora negando ter proferido a frase “venha buscar a sua filha antes que a mate” –, surgindo, nessa situação, dado o sentimento de raiva e exaltação experimentado pelo arguido, como verosímil que tivesse verbalizado aquelas palavras.
No tocante à factualidade vertida no ponto 15 da acusação, da prova recolhida, ante as declarações do arguido que admitiu esse facto, mostra-se apenas indiciado, que: «Após a separação definitiva do casal, existindo diferendo entre a ofendida e o arguido relacionado com a venda da casa onde tiveram residência comum, o arguido enviou uma SMS à ofendida do seguinte teor: “O menino terá sempre tecto, tu que te fodas”.
Já no atinente aos factos narrados nos artigos 16 a 19 da acusação e considerados não indiciados, merece-nos concordância o segmento do despacho recorrido que assim decidiu.
Na verdade, relativamente à factualidade vertida no pontos 16 a 18, conquanto tenha sido recolhida prova - o próprio arguido admite tê-lo feito -, de que o arguido se deslocou à residência habitada pela ofendida, onde entrou, bem assim como na arrecadação, daí retirando e levando consigo alguns objetos, não resulta indiciado que a entrada, na arrecadação, se tivesse dado por arrobamento, nem que os objetos que o arguido retirou e levou consigo fossem propriedade, pelo menos, exclusiva, da assistente.
É certo que à data em que o arguido entrou na aludida residência – cujo direito de propriedade se encontrava registado em nome da assistente e do arguido – apenas a assistente aí habitava, tendo - segundo admitiu o próprio arguido, nas declarações prestadas -, o direito de habitação lhe sido provisoriamente atribuído, por decisão judicial proferida no âmbito de processo de regulação das responsabilidades parentais do filho de ambos.
Porém não só a descrição dos factos, na acusação, não foi feita nesse enfoque, como a entrada do arguido, na habitação da assistente, nas circunstâncias em que ocorreu, com a intenção que terá estado subjacente a essa atuação – qual seja a retirada de objetos que o arguido reclamava como sendo de sua propriedade ou compropriedade e que a assistente se recusava a entregar-lhe, por considerar serem aqueles de sua propriedade –, tendo o arguido avisado a assistente de que iria fazê-lo e chamado a PSP para que estivesse presente, não teria enquadramento no crime de violência doméstica.
No tocante à matéria factual descrita no artigo 19 da acusação, como se refere no despacho recorrido, na ausência de concretização de quais os “documentos da ofendida” que o arguido terá levado consigo e quem figurava nas fotografias alegadamente apagadas do disco externo, estamos perante factos genéricos, que não poderão ser considerados, por inviabilizarem o direito de defesa do arguido.
Por último, no referente aos elementos subjetivos atinentes ao dolo, descritos no ponto 20, nos segmentos «na sua dignidade pessoal, segurança, liberdade, honra» e «porquanto a ofendida teme e receia pela sua saúde, vida, liberdade e integridade física», entendemos que a prova recolhida nos autos, não permite considerar suficientemente indiciados esses factos.
Com efeito, dos factos que resultam indiciados, reportados às condutas adotadas pelo arguido com relação à assistente e ante a atitude por esta assumida para com aquele, com base nas regras da experiência comum e da normalidade da vida, considerando o teor das SMS e emails trocados entre ambos, insertos nos autos, a fls. 149 a 166 e 167 a 180, não resulta, minimamente evidenciados, os factos em questão, designadamente, que a assistente receie pela «sua saúde, vida, liberdade e integridade física».
Aqui chegados, atentos os factos que se consideram indiciados, coloca-se a questão do respetivo enquadramento jurídico-penal, concretamente, se tais factos são suscetíveis de integrar o crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, n.ºs 1, al. b), 2, al. a), 4, 5 e 6 do Código Penal.
Em nosso entender a enunciada questão merece resposta negativa.
Explicitando:
De harmonia com o disposto no artigo 152º do Código Penal, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 57/2021, de 16 de agosto, pratica o crime de violência doméstica:
«1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns:
a) (...);
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau;
(...). »
Em relação ao bem jurídico protegido por esta incriminação, sendo a questão controvertida na doutrina e na jurisprudência, acolhemos a posição que vem sendo maioritariamente defendida, no sentido de que é a saúde física, psíquica ou emocional, que pode ser afetada por toda uma multiplicidade de comportamentos que atinjam a dignidade da pessoa humana, da vítima, individualmente considerada, enquanto sujeito de qualquer das relações previstas no nº. 1 do artigo 152º do Código Penal[5].
O tipo objetivo do ilícito preenche-se com a ação de infligir maus tratos físicos ou psíquicos à vítima, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais.
Como se decidiu no Acórdão da RE, de 09/01/2018[6], no crime de violência doméstica, «A descrição típica esgota-se na inflição de maus tratos físicos ou psíquicos por agente que se encontre com a vítima numa das relações mencionadas no preceito legal, ainda que se reconheça que o fundamento da ilicitude ou da sua agravação, subjacente à incriminação, se encontra na afetação da dignidade humana, decorrente da conjugação dos atos típicos ali previstos com a especial situação em que, reciprocamente, se encontram a vítima e o agente.»
Com a redação dada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro, ao artigo 152º do Código Penal, introduzindo-se no corpo do n.º 1 o segmento «de modo reiterado ou não», foi ultrapassada a querela que se vinha suscitando de saber se para integrar o conceito de «maus tratos» bastava a prática de um só ato, ou se era necessária a reiteração de condutas. Perante a atual redação do enunciado preceito legal, é isento de dúvidas que poderá bastar só uma conduta ou ato para que possa ser preenchido o crime de violência doméstica.
A dificuldade está em delimitar os casos em que a conduta é subsumível ao crime de violência doméstica, daqueles em que integra outros tipos de crime, tais como a ofensa à integridade física, a injúria, a ameaça, a coação, a perturbação da vida privada, entre outros.
Como se faz notar no Acórdão da RP de 13/06/2018[7], a solução está no conceito de «maus tratos», sejam eles físicos ou psíquicos.
Tal como refere Catarina Fernandes[8], os maus tratos físicos podem «traduzir-se em ações muito diversas, incluindo bofetadas, murros, pontapés, beliscões, empurrões, abanões, puxões de cabelo, mordeduras, compressões de partes do corpo com as mãos ou objetos, traumatismos com objetos, queimaduras, intoxicações, ingestão ou inalação forçadas, derramamento de líquidos, imersão da vítima ou de partes do seu corpo. Podem também decorrer da omissão de cuidados indispensáveis à vida, saúde e bem-estar da vítima (relativamente a vítimas dependentes ou indefesas, nomeadamente em razão da idade ou do estado de saúde) (…)»
«Os maus tratos psíquicos são mais difíceis de caraterizar, porque se pode traduzir numa multiplicidade de comportamentos ativos e omissivos, verbais e não verbais, dirigidos, direta ou indiretamente à vitima, que atingem e prejudicam o seu bem-estar psicológico, nomeadamente ameaçar, insultar, humilhar, vexar, desmoralizar, culpabilizar, atemorizar, intimidar, criticar, desprezar, rejeitar, ignorar, discriminar, manipular e exercer chantagem emocional sobre a vítima (…)»
Decisivo para que tais comportamentos possam integrar o conceito de maus tratos passível de preencher o tipo objetivo do crime de violência doméstica é que revistam intensidade ou gravidade bastante para poder justificar a sua autonomização relativamente aos ilícitos que as condutas individualmente consideradas possam integrar[9].
Dito de outro modo, o comportamento tem de assumir uma dimensão ou intensidade bastante para poder lesar o bem jurídico protegido, ofendendo a saúde física, psíquica ou emocional da vítima, de modo incompatível com a sua dignidade pessoal, enquanto sujeito compreendido no elenco definido nas diversas alíneas do n.º 1 do artigo 152º do Código Penal.
Na apreciação do(s) comportamento(s) assumido(s) pelo agente, em termos de se poder decidir se configura(m) «maus tratos», haverá que proceder à avaliação da “situação ambiente” e que ter em conta a “imagem global do facto”[10].
Como se escreve no Acórdão desta Relação de Évora, de 24/02/2015[11], «Sendo hoje inequívoco que a tutela da violência doméstica se projecta não apenas sobre casos de reiteração ou habitualidade de comportamentos violentos, mas também potencialmente aplicável a uma conduta violenta, não é qualquer acção isolada de violência exercida no âmbito doméstico que poderá ser qualificada como de maus tratos com vista ao preenchimento do tipo. Importa, nesses casos, descortinar se a conduta do agente, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, é susceptível de ser classificada como “maus tratos”.»
Deste modo, configurando o crime de violência doméstica um tipo em que condutas contra a integridade física, contra a honra e consideração, contra a liberdade e autodeterminação sexual encontram proteção, como bem se decidiu no Ac. da RC de 12/04/2018[12], «a questão de saber se as condutas violadoras encontram adequação, designadamente, nos tipos legais de ofensa à integridade física, injúria, ameaças, exige um juízo sobre a intensidade da violação de todos ou cada um dos bens em causa, quer pela sua reiteração, quer em função da gravidade da ofensa, quer pela conjugação de ambas de modo a aferir se ocorreu uma violação especial dos direitos do parceiro a demandar resposta que já não se compadece com a aplicação das normas penais tipificadoras das condutas (per se), as quais, não fosse a natureza e carga da violação, constituiriam punição adequada.»
E quando estiver em causa um único ato, sendo que «o bem jurídico protegido no crime de violência doméstica é complexo, abrangendo a integridade corporal, saúde física psíquica e mental e a dignidade da pessoa humana, em contexto de relação conjugal ou análoga e mesmo após cessar essa relação», como bem se decidiu no Ac. da RP de 10/09/2014[13], «Não exigindo o tipo legal uma reiteração de acções, um único acto ofensivo só consubstanciará um “mau trato” se se revelar de tal modo intenso que ao nível do desvalor (quer da acção quer do resultado) seja apto a lesar em grau elevado o bem jurídico pondo em causa a dignidade da pessoa humana.»
Quanto ao tipo subjetivo de ilícito, exige-se o dolo (o conhecimento e vontade de praticar o facto), em qualquer das suas formas (direto, necessário ou eventual).
Tendo presentes as considerações jurídicas que se deixam expendidas e baixando ao caso dos autos, considerando os factos indiciados, com particular relevo para os descritos nos artigos 5 a 12, estando em causa acontecimentos ocorridos, em data exata não apurada mas situada entre os dias 19 e 22 de junho de 2021, em que o arguido, na sequência de uma discussão com ofendida, a ora assistente, BB, a agrediu fisicamente, com quatro chapadas na face, atingindo-a também na zona dos ouvidos, desferiu-lhe empurrões, projetando-a contra as paredes e provocando a sua queda no chão, tendo, nessa situação, a impedido de se levantar perante o que a ofendida desferiu um soco que atingiu o arguido no lábio superior, causando-lhe derrame de sangue, após o que a ofendida se refugiou na casa de banho, sendo perseguida pelo arguido, que lhe cuspiu para cima o sangue que lhe escorria da boca, tendo a ofendida logrado fechar a porta da casa de banho, vindo o arguido a arrombá-la, com pontapés. Momentos mais tarde, já na cozinha, o arguido empurrou a ofendida contra a bancada aí existente, na sequência do que a ofendida fugiu para a casa de uma vizinha, indo o arguido no seu encalço, entrando nessa mesma casa e dirigindo-se à ofendida desferiu-lhe uma cabeçada que a atingiu na testa.
Ainda que a descrita atuação do arguido para com a ofendida/assistente, sua, então, companheira e mãe do seu filho, atentando contra a integridade física desta e cuspindo-lhe para cima o sangue que lhe escorrida da boca do ferimento provocado pelo soco que a ofendida lhe deu, atingindo-o no lábio superior, seja reveladora de um total desrespeito e de uma imensa falta de consideração para com a mesma, entendemos que a sua gravidade, não atinge, ainda assim, intensidade bastante para poder ser qualificada como «maus tratos físicos ou psíquicos», nos termos que de deixaram supra definidos.
Dito de outro modo, afigura-se-nos que a conduta do arguido que está aqui em causa, revestindo gravidade é certo, tendo a ofendida, a dada altura, conseguido reagir, desferindo um soco na boca do arguido, provocando-lhe lesão com sangramento, ficando por apurar que lesões sofreu a ofendida, em consequência das agressões perpetradas pelo arguido, sendo que não terá carecido de assistência médico-hospitalar, não revela intensidade nem aptidão suficiente para lesar, para além da saúde física, também a saúde psíquica ou emocional, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana, em contexto de vivência em união de facto, ou seja, para lesar o bem jurídico protegido pelo crime de violência doméstica.
Assim sendo, fica afastada a subsunção dos factos indiciados ao tipo objetivo do crime de violência doméstica, não podendo, por isso, o arguido ser pronunciado pela prática de tal crime.
Os factos indiciados, no segmento em referência, seriam suscetíveis de integrar os crimes de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143º, n.º 1 do Código Penal e de injúria – o ato de cuspir para cima –, p. e p. pelos artigos 181º, n.º 1 e 182º, ambos do Código Penal.
Sucede que o crime de ofensa à integridade física simples é semipúblico, dependendo o procedimento criminal de queixa (cf. n.º 2 do artigo 143º do CP).
Por sua vez, o crime de injúria reveste natureza particular, dependendo o procedimento criminal, não apenas de queixa, mas também de acusação particular (cf. artigo 188º, n.º 1 do CP).
Ora, a queixa foi apresentada pela ofendida, em 11/03/2022, data esta em que já se encontrava extinto o respetivo direito de queixa, ou seja, estando, então, já decorridos mais de seis meses sobre a data da prática dos factos – reportados a junho de 2021 – (cf. artigo 115º, n.º 1 do CP).
Acresce que relativamente ao crime de injúria o procedimento criminal sempre estaria extinto, por amnistia, tendo em conta a idade do arguido, com referência à data da prática dos factos e o disposto nos artigos 2º, n.º 1 e 4º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto.
Por conseguinte, não pode o arguido ser pronunciado pela prática dos crimes de ofensa à integridade física simples e de injúria.
Nesta conformidade, conquanto se verifique a alteração da indiciação factual decidida na 1.ª instância, nos termos sobreditos, deve manter-se a decisão de não pronúncia do arguido (cf. artigo 308º, n.º 1 e 283º, n.º 2, ambos do CPP).
Deverá, pois, ser negado provimento ao recurso.

3. DECISÃO
Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso interposto pela assistente BB e, em consequência, confirmar o despacho de não pronúncia recorrido.

Custas pela assistente/recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC (cf. artigo 515º, n.º 1, al. b), do CPP e artigo 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III, anexa), sem prejuízo do benefício do apoio judiciário concedido.

Notifique.


Évora, 24 de outubro de 2023

Fátima Bernardes

Gomes de Sousa

João Carrola

____________________________________

[1] Cf. Ac. da RE de 18/02/2014, proc. 2209/12.5TASTB-A.E1, in www.dgsi.pt.
[2] Sobre esta problemática, cf., entre outros, Vinício Ribeiro, in Código de Processo Penal Notas e Comentários, Coimbra Editora, 2ª edição, págs. 835 a 840; Vasco Rafael Afonso, Os poderes de decisão do Ministério Público na fase de inquérito face ao conceito de indícios suficientes, Católica do Porto, Dissertação de Mestrado, 2013, págs. 33 e 34, in http://repositorio.ucp.pt e Ac. da RP de 07/12/2016, proferido no proc. 866/14.7PDVNG.P1, in www.dgsi.pt.
[3] Neste sentido, vide, entre outros, citado Ac. da RE de 16/10/2012, proc. 76/08.2.MAPTM.E1, Ac. da R.P. de 07/12/2016, Ac. da RC de 24/2/2010, proc. 160/09.5GBAGD.G1 e Ac. da R.L. de 16/11/2010, proc. 3555/09.TDLSB.L1-5, in www.dgsi.pt.
[4] No sentido de que o princípio in dubio pro reo tem aplicação em todas as fases do processo e não apenas na fase do julgamento cf., entre outros, Ac. da RC de 25/5/2015, proc. 130/13.9TAIDN.C1, in www.dgsi.pt e Cláudia Maria Verdial Pina, A Presunção de Inocência nas Fases Preliminares do Processo Penal: Tramitação e Actos Decisórios, Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Julho de 2015, in https://run.unl.pt.
[5] Neste sentido, cf., entre outros, na doutrina, Américo Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2ª Edição, Coimbra Editora, 2012, págs. 511 e 512, Nuno Brandão, A tutela especial reforçada da violência doméstica, in Rev. Julgar, nº. 12, - especial -, 2010, págs. 15 e 16 e Catarina Sá Gomes, in O Crime de Maus Tratos Físicos e Psíquicos infligidos ao cônjuge ou ao convivente em condições análogas às dos cônjuges, AAFDL, 2004, p. 59; e na jurisprudência, entre outros, Ac. do STJ de 02/07/2008, proc. n.º 07P3861; Acórdãos da RP de 06/02/2013, proc. 2167/10.0PAVNG.P1 e de 10/07/2014, proc. 413/11.2GBAMT.P1 e Ac. da RL de 23/04/2015, proc. 469/13.3PBAMD.L1-9, todos acessíveis in www.dgsi.pt.
[6] Sumariado in CJ, Ano 2018, tomo 1, pág. 317.
[7] Proferido no proc. n.º 189/17.0GCOVR.P1, in www.dgsi.pt.
[8] Violência Doméstica implicações sociológicas, psicológicas e jurídicas do fenómeno, Manual Multidisciplinar”, Centro de Estudos Judiciários, páginas 93 e 94, citando Teresa Magalhães, Violência e Abuso – Respostas Simples para Questões Complexas, Estado da Arte, Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2010 e seguindo de perto a jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores.
[9] Neste sentido, cf., entre outros, Ac. da RP de 11/01/2014, in CJ, 2014, Tomo I, pág. 326 e Ac. da RG de 10/07/2014, proc. 591/11.0PBGMR, in www.dgsi.pt.
[10] Cf. Nuno Brandão, in ob. cit., pág. 19 e Ac. da RC de 12/04/2018, proc. 3/17.6GCIDN.C1, in www.dgsi.pt.
[11] Proferido no processo 921/13.OPBFAR, in www.dgsi.pt
[12] Proferido no proc. 135/16.8GASRE.C1, in www.dgsi.pt.
[13] Proferido no processo 648/12.0PIVNG.P1, disponível in www.dgsi.pt.