Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
202/23.1T9OLH.E1
Relator: GOMES DE SOUSA
Descritores: EXECUÇÃO DE COIMAS E CUSTAS
COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL
AUTORIDADE TRIBUTÁRIA
IRRECORRIBILIDADE
Data do Acordão: 11/21/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I. A cobrança de coima não paga voluntariamente pode ser executada nos tribunais comuns. Já a cobrança das custas do processo contraordenacional deve executar-se através da autoridade tributária, em conformidade com o que se prevê no artigo 35.º do Regulamento das Custas Processuais, conjugado com o artigo 148.º CPPT; e nos artigos 61.º, 88.º e 89.º do RGCO e 64.º do CPC.
II. Os recursos das decisões judiciais proferidas nos processos contraordenacionais são apenas os previstos no artigo 73.º do RGCO (DL n.º 433/82, de 27 de outubro - Ilícito de Mera Ordenação Social.
III. Não é admissível recurso do despacho judicial em que se declara a incompetência material do Juízo respetivo para a execução da coima e das custas que não foram voluntariamente pagas.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

A - Relatório:
No processo por execução por custas, multa e coimas supra numerado que corre termos no Tribunal da Comarca ... - Juízo de Competência Genérica ..., J... - por despacho proferido em 13 de Junho de 2023, a Mª Juíza declarou a incompetência em razão da matéria para apreciar a acção executiva contra-ordenacional intentada pelo MP em 24-05-2023, contra AA, no montante de 251 € (coima e custas).
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A arguida foi autuada em 05-02-2021 por “inobservância da limitação de circulação entre concelhos”, p. e p. pelo Dec-Lei nº 28-B/20, de 26-06.
Apresentou defesa, subscrita por advogado, nos termos do art. 50º do RGCO invocando nulidades e arrolando como testemunhas o Presidente da República, o Primeiro Ministro, a Ministra da Saúde, a Directora-Geral de Saúde e duas outras testemunhas, identificadas mas sem pergaminhos políticos (presume-se).
Tal defesa foi objecto do seguinte despacho subscrito em 15-04-2021 por “BB”, sem revelação da função exercida: «Da análise efectuada à presente exposição não é justificado o motivo pelo qual são indicadas as testemunhas em apreço, nem a justificação plausível que justifique a sua audição para o apuramento da verdade dos fa (sic) pelo exposto, não deverá proceder-se à sua audic.».
A “decisão administrativa”, datada de 26-01-2021, homologou o parecer de condenação da arguida em 200 € de coima, com 51 € de custas.
Foi notificada a arguida da dita decisão.
Não consta dos autos procuração do advogado subscritor da defesa, nem a sua notificação da decisão administrativa.
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Inconformado com uma tal decisão, dela interpôs o Mº Pº recurso pedindo seja concedido provimento ao mesmo no sentido de revogar o despacho recorrido, com as seguintes conclusões:
1) O Ministério Público promoveu a execução da coima e custas da entidade administrativa, por não terem sido voluntariamente liquidados os valores em dívida por parte do executado.
2) Para o efeito, o Ministério Público submeteu requerimento executivo que deu origem aos presentes autos.
3) Pelo despacho recorrido, o Tribunal a quo decidiu que é absolutamente incompetente em razão da matéria para apreciar a presente acção executiva, considerando que tal competência recai sobre a AT.
4) O legislador não alterou o disposto nos artigos 61.º, 88.º e 89.º, do RCP, mantendo-se a competência para a execução da coima administrativa não paga junto dos Tribunais.
5) Perante a actual redação do artigo 35.º, do RCP, apenas se considera admissível que a AT tenha competência para a execução das custas da entidade administrativa. No que respeita à coima, o legislador não atribuiu essa competência à Autoridade Tributária.
6) Ao julgar que é absolutamente incompetente em razão da matéria para apreciar a acção executiva que deu origem aos presentes autos, com o devido respeito por opinião contrária, o tribunal a quo violou o disposto nos artigos 61.º, 88.º, e 89.º, do RGCO, 35.º, do RCP, e 64.º, do CPC, por força do disposto no artigo 4.º, do CPP.
7) Numa interpretação conforme com o disposto nos artigos antecedentes e demais disposições legais aplicáveis, consideramos que o tribunal recorrido nunca se poderia declarar materialmente incompetente para proceder à execução da coima, por se verificar que o Juízo de Competência Genérica ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., é territorialmente e materialmente para apreciar a presente acção executiva, devendo os autos prosseguir os seus ulteriores termos.
8) Deve, assim, ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida, determinando-se, consequentemente, que prossiga a presente execução relativamente à coima aplicada pela entidade administrativa e, eventualmente, relativamente às custas aplicadas pela entidade administrativa, caso se entenda que o Tribunal recorrido é igualmente competente para a sua execução.
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Nesta Relação, a Exmª Procuradora-geral Adjunta apôs visto nos autos.
Foi observado o disposto no nº 2 do artigo 417° do Código de Processo Penal.
Colhidos os vistos, o processo foi à conferência.
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B.1 - Fundamentação:
No processo supra identificado, o despacho da Mmª Juíza proferido em 13 de Junho de 2023 tem o seguinte teor:
«Iniciaram-se os presentes autos executivos com requerimento executivo apresentado pelo Ministério Publico, para cobrança de coima, devida à PSP..
Estabelece o actual art.º 35º do Regulamento das custas processuais (após - Lei n.º 27/2019, de 28/03) o seguinte:
1 - Compete à administração tributária, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, promover em execução fiscal a cobrança coerciva das custas, multas não penais e outras sanções pecuniárias fixadas em processo judicial.
2 - Cabe à secretaria do tribunal promover a entrega à administração tributária da certidão de liquidação, por via eletrónica, nos termos a definir por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, juntamente com a decisão transitada em julgado que constitui título executivo quanto às quantias aí discriminadas.
3 - Compete ao Ministério Público promover a execução por custas face a devedores sediados no estrangeiro, nos termos das disposições de direito europeu aplicáveis, mediante a obtenção de título executivo europeu.
4 - A execução por custas de parte processa-se nos termos previstos nos números anteriores quando a parte vencedora seja a Administração Pública, ou quando lhe tiver sido concedido apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo.
5 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, a execução por custas de parte rege-se pelas disposições previstas no artigo 626.º do Código de Processo Civil.
Com a actual redacção da sobredita norma, o Ministério Publico no âmbito da jurisdição criminal junto dos Juízos Locais criminais tem competência unicamente para instaurar execução por multa devida nos processos e indemnizações arbitradas aos ofendidos/vitimas dos processos criminais. Todos os demais valores são cobrados pela A.T. após emissão da competente certidão de divida no processo.
É aliás este o entendimento vertido no parecer n.º 27/2020, de 04-10 do Ministério Publico. Fazendo, como se entende, todo o sentido que se o Ministério Publico junto do tribunal não tem competência para cobrar as custas devidas no próprio processo, não poderá executar custas ou coimas devidas em qualquer outro processo de natureza administrativa, junto de qualquer outra entidade.
Em face do exposto, e tendo em conta o objecto da presente execução, constatamos que este Tribunal é absolutamente incompetente, em razão da matéria, para apreciar e a presente acção executiva, a qual entendemos ser da Autoridade Tributária.
A incompetência absoluta em razão da matéria verificada constitui excepção dilatória, de conhecimento oficioso e a todo o tempo, e importa a absolvição do Executado da instância, nos termos do disposto nos artigos 65º, 97º, 98º, 99º e 577º, al. a) do Código de Processo Civil.
Registe e Notifique. Após trânsito:
- Existindo alguma penhora nos autos proceda ao seu imediato cancelamento.
- Existindo valores pagos proceda notificação do executado com informação dos respectivos valores. - Remeta os autos à conta».
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Interposto e admitido recurso a Mmª Juíza lavrou o seguinte despacho de sustentação:
«(…)
Em sede de sustentação do presente agravo cumpre referir o seguinte:
Parecer do Ministério Publico sobre a proposta de Lei nº 149/XIII/4ª GOV enviado em 24.10.2018.
O parecer supra referido sustenta aliás a sua inteira concordância com ser retirada a competência aos tribunais judiciais para proceder a cobrança de custas e coimas, manifestando unicamente a sua discordância relativamente a essa competência no que concerne à pena de multa.
Aliás e no que concerne ao disposto no art.º 89º do RGCO também o referido parecer contem menção da alteração que deveria ser feita à referida norma.
É certo que o diploma não contempla essa mesma alteração, no entanto uma interpretação sistemática do diploma (conjugada com a lei geral tributária e o código do procedimento e processo tributário) não pode deixar de considerar que a execução por coimas não cabe aos tribunais, mas antes à autoridade tributária
No âmbito aliás deste parecer, e com o intuito de facto delimitar as competências do Ministério Publico no âmbito das execuções de origem penal ou contra ordenacional, foi referido que o art.º 148º do C.P.P.T deveria conter uma alínea c) no seu numero 2º, contendo as coimas emitidas por entidades administrativas .
A referida alínea c) limitou-se a custas, multas não penais e sanções pecuniárias em processo judicial.
Porém a norma constante do nº 1º, alínea b) da referida norma contempla as coimas aplicadas em decisões e sentenças, onde incluímos obviamente as coimas de entidades administrativas ou as coimas aplicadas em por sentença após recurso de impugnação judicial de decisão administrativa.
É aliás tal facto também referido no 1. Parecer do Ministério Publico n.º 27/2020, de 04-10 que refere o seguinte:
“Cobrança das custas fixada na fase administrativa do processo contraordenacional.
1.ª Na sua versão original, o Regime Geral das Contraordenações remetia a execução das custas para o disposto nos artigos 171.º e seguintes do Código das Custas Judiciais, assim atribuindo ao Ministério Público competência para promover a sua execução junto dos tribunais judiciais (artigo 202.º, n.º 2, daquele Código);
2.ª Esta solução, apesar das inúmeras alterações legislativas que enfrentou, manteve-se quase inalterada até a entrada em vigor da Lei n.º 27/2019, de 28 de março, relativa a aplicação do processo de execução fiscal a cobrança coerciva das custas, multas não penais e outras sanções pecuniárias fixadas em processo judicial;
3.ª Com efeito, considerando a natureza tributária das custas e seguindo o exemplo da jurisdição administrativa e fiscal, o legislador inverteu aquele paradigma, remetendo para a execução fiscal a cobrança coerciva das custas fixadas em processo judicial;
4.ª Para esse efeito, a Lei n.º 27/2019, de 28 de março, alterou o Código de Procedimento e de Processo Tributário que passou a dispor que «Poderão ser igualmente cobradas mediante processo de execução fiscal, nos casos e termos expressamente previstos na lei: [...] Custas, multas não penais e outras sanções pecuniárias fixadas em processo judicial [artigo 148.º, n.º 2, alª c)];
5.ª Bem como o artigo 35.º, n.º 1, do Regulamento das Custas Processuais, que sob a epígrafe «execução», passou a dispor que: «Compete a administração tributária, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, promover em execução fiscal a cobrança coerciva das custas, multas não penais e outras sanções pecuniárias fixadas em processo judicial»;
6.ª Embora nem a Lei n.º 27/2019, de 28 de março, nem as normas que ela alterou, o digam expressamente, deve entender-se que este regime é aplicável as custas fixadas na fase administrativa do processo de mera ordenação social, competindo a Administração Tributária proceder a sua cobrança coerciva;
7.ª Desde logo, porque, continuando o artigo 92.º, n.º 1, do Regime Geral das Contraordenações, a remeter para os preceitos reguladores das custas em processo criminal, será aqui aplicável o disposto no artigo 35.º do Regulamento das Custas;
8.ª Depois, porque, atenta a sua natureza, tais custas estão incluídas no âmbito do artigo 148.º, n.º 1, al.ª a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, segundo o qual o processo de execução fiscal abrange, para além do mais, a cobrança coerciva de taxas, demais contribuições financeiras a favor do Estado, adicionais cumulativamente cobrados, juros e outros encargos legais;
9.ª Em terceiro lugar, porque, em vez de atribuir ao juízo ou tribunal que as tenha proferido competência para executar as decisões relativas a multas, custas e indemnizações previstas na lei processual aplicável, o legislador passou a atribuir-lhe, apenas, competência para a execução das decisões relativas a multas penais e indemnizações previstas na lei processual aplicável (artigo 131.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário);
10.ª Em quarto lugar, porque o legislador restringiu os poderes do Ministério Público, maxime o poder de promover a execução por custas, conferindo-lhe, agora, apenas, competência para promover a execução das penas e das medidas de segurança e, bem assim, a execução por indemnização e mais quantias devidas ao Estado ou a pessoas que lhe incumba representar judicialmente (artigo 469.º do Código de Processo Penal);
11.ª Finalmente, porque o legislador eliminou a referência a execução por custas, que constava do artigo 491.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, passando a mesma a ser da competência exclusiva da Administração Tributária;
12.ª Com estas alterações, para além de ter atribuído a Administração Tributária competência para proceder a cobrança coerciva das custas, o legislador eliminou as normas que antes atribuíam ao Ministério Público competência para promover a sua execução e aos tribunais judiciais competência para a tramitar;
13.ª Desta forma, o artigo 148.º, n.º 1, al.ª a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, passou a incluir a cobrança da taxa de justiça e dos encargos legais, que, por força de disposições legais especiais, antes lhe estava subtraída; e
14.ª Se as entidades administrativas remeterem ao Ministério Público expediente destinado a cobrança de custas fixadas em processo de contraordenação, tal expediente deverá, por mera economia de meios, ser reencaminhado diretamente a Autoridade Tributária, com conhecimento ao remetente.
O parecer supramente citado, descreve a restrição da competência do ministério publico, circunscrevendo-a unicamente a multas penais e indemnizações arbitradas em processo penal.
Não podemos deixar ainda de trazer à colação o seguinte:
O Código de procedimento e processo tributário, no seu art.º 148º, nº 1º, alínea b), estatui: “O processo de execução fiscal abrange a cobrança coerciva das seguintes dívidas: b) Coimas e outras sanções pecuniárias fixadas em decisões, sentenças ou acórdãos relativos a contra-ordenações tributárias, salvo quando aplicadas pelos tribunais comuns.
A questão da competência dos tribunais ou da administração tributária para proceder à cobrança de coimas aplicadas por entidades administrativas, tem pois que ser solucionada através de um processo de interpretação, uma vez que, as alterações sugeridas pelo Ministério Publico no parecer de 24.10.2018, relativamente à norma constante do art.º 89º do RGC não sofreram acolhimento na lei. Nesta interpretação jurídica temos em conta elementos, meios, factores ou critérios que devem utilizar-se harmónica e não isoladamente, socorrendo-nos de elementos lógicos com os quais se tenta determinar o espírito da lei, a sua racionalidade ou a sua lógica.
Estes elementos lógicos agrupam-se em três categorias:
a) elemento histórico que atende à história da lei (trabalhos preparatórios, elementos do preâmbulo ou relatório da lei e occasio legis [circunstâncias sociais ou políticas e económicas em que a lei foi elaborada];
b) o elemento sistemático que indica que as leis se interpretam umas pelas outras porque a ordem jurídica forma um sistema e a norma deve ser tomada como parte de um todo, parte do sistema;
c) elemento racional ou teleológico que leva a atender-se ao fim ou objectivo que a norma visa realizar, qual foi a sua razão de ser (ratio legis).
Aplicando estes elementos à analise da Lei n.º 27/2019, de 28 de Março, a qual se encontra sumariada da seguinte forma: “Aplicação do processo de execução fiscal à cobrança coerciva das custas, multas não penais e outras sanções pecuniárias fixadas em processo judicial, procedendo à sétima alteração à Lei da Organização do Sistema Judiciário, trigésima terceira alteração ao Código de Procedimento e de Processo Tributário, sétima alteração ao Código de Processo Civil, décima terceira alteração ao Regulamento das Custas Processuais, trigésima terceira alteração ao Código de Processo Penal, quarta alteração ao Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade e segunda alteração ao Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro”, conjugando com o parecer do Ministério Publico sobre a proposta de Lei nº 149/XIII/4ª GOV enviado em 24.10.2018, com as referências já mencionadas, bem como o art.º 148º, nº1º alínea b) e nº2º alínea c) do Código do Procedimento e Processo Tributário, entendemos que o legislador quis concentrar na administração tributária toda a cobrança de valores pecuniários, com excepção da quantia relativa à pena de multa ou indemnização arbitrada em processo penal (competência que se mantêm no Ministério Publico), uma vez que estas assumem relevância penal, seja para determinação do cumprimento de condição da suspensão, seja para extinção da pena de multa ou sua conversão em prisão subsidiária.
Face ao exposto mantenho o despacho recorrido, considerando os tribunais judiciais absolutamente incompetente, em razão da matéria, para executarem coimas aplicadas por entidades administrativas.
Remeta os autos ao Venerando Tribunal da Relação de Évora».
*****
B.2 - O objecto do recurso penal é delimitado pelas conclusões da respectiva motivação – art.º 403, nº1, e 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
A questão abordada no recurso reconduz-se, pois, a apurar se o tribunal judicial é competente para a execução de coimas e custas provenientes de processos da competência dos tribunais judiciais.
***
B.3 – O recorrente insurge-se contra o despacho recorrido por este ter afirmado a existência de incompetência material do tribunal recorrido para a cobrança de coima e multa provenientes de processo contra-ordenacional da competência dos tribunais comuns.
Sendo indubitável que o sistema de cobrança de ambas as realidades (coimas e custas) passou de simples a complexo - e não vale a pena historiar, pois que isso é bem patente no parecer do Conselho consultivo da Procuradoria Geral da República nº 27/2020 (in https://www.ministeriopublico.pt/pareceres-pgr/9375, publicado em extracto no DR, 2ª série, nº 204, de 20-10-2021, pag. 121-122) - quer-nos parecer que ambos os “contendores”, tribunal recorrido e magistrado recorrente, têm razão, parcialmente.
Mas antes de analisar brevemente a questão posta valerá relembrar que o Parecer do Ministério Publico sobre a proposta de Lei nº 149/XIII/4ª GOV enviado em 24.10.2018 não tem força de lei e apesar de propugnar uma solução que talvez fosse defensável na sua uniformidade de procedimentos, não foi subscrita pelo legislador e contraria, portanto, a lei vigente no que diz respeito à cobrança executiva das coimas que devem ou deveriam ser conhecidas pelos tribunais comuns.
E o tribunal recorrido reconhece isso mesmo quando afirma que «É certo que o diploma não contempla essa mesma alteração, no entanto uma interpretação sistemática do diploma (conjugada com a lei geral tributária e o código do procedimento e processo tributário) não pode deixar de considerar que a execução por coimas não cabe aos tribunais, mas antes à autoridade tributária».
Se a primeira frase é absolutamente correcta, já o resto da afirmação quer apenas significar a pretensão de uma alteração legislativa tendo em vista uma uniformidade de procedimentos que talvez se entenda adequada, mas não vertida em lei.
De facto, não compete ao aplicador da lei fazer interpretação abrogante da lei vigente, mesmo que à custa de uma solução unificadora que se entenda a ideal.
Nesse sentido é claro o artigo 148º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, sob a epígrafe «Âmbito da execução fiscal», que:
«o processo de execução fiscal abrange a cobrança coerciva das seguintes dívidas:
a) Tributos, incluindo impostos aduaneiros, especiais e extrafiscais, taxas, demais contribuições financeiras a favor do Estado, adicionais cumulativamente cobrados, juros e outros encargos legais;
b) Coimas e outras sanções pecuniárias fixadas em decisões, sentenças ou acórdãos relativos a contra-ordenações tributárias, salvo quando aplicadas pelos tribunais comuns.
c) Coimas e outras sanções pecuniárias decorrentes da responsabilidade civil determinada nos termos do Regime Geral das Infracções Tributárias.
2 - Poderão ser igualmente cobradas mediante processo de execução fiscal, nos casos e termos expressamente previstos na lei:
a) Outras dívidas ao Estado e a outras pessoas colectivas de direito público que devam ser pagas por força de acto administrativo;
b) Reembolsos ou reposições.
c) Custas, multas não penais e outras sanções pecuniárias fixadas em processo judicial».
Desde logo convém recordar que a coima é uma sanção de natureza penal a todos os títulos. Veja-se a tal propósito a jurisprudência do TEDH quanto à natureza penal sancionatória do direito contra-ordenacional e a sua sujeição aos ditames do art. 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Depois porquanto a distinção atributiva de competências entre tribunais comuns e administrativos e fiscais no âmbito das contra-ordenações se centra na competência legal para conhecer do recurso da impugnação judicial que esteja em causa no concreto processo.
E aqui, no concreto processo, a competência para conhecer é atribuída pela lei aos tribunais comuns.
A circunstância de o CPPT na alínea b) do nº 1 se referir a coimas «aplicadas pelos tribunais comuns» não se está a referir a coimas concretas, efectivamente, aplicadas pelos tribunais comuns, mas sim à competência geral e abstracta para delas conhecer quando exista impugnação da decisão da entidade administrativa.
O que remete a cobrança de coimas para o processo e tribunal comuns, atenta a natureza penal das sanções aplicáveis.
Aliás, tal é expressamente referido no citado Parecer nº 27/2020, nos seguintes termos:
As penas de multa e as coimas aplicadas pelo Tribunal, respetivamente em enquadramento de direito penal primário e secundário não têm cariz tributário, nem natureza sinalagmática, representando, ao invés, o essencial reduto do poder punitivo do Estado, o que parece justificar tratamento diferenciado na respetiva execução.
(…) o Código de Procedimento e de Processo Tributário assenta no pressuposto essencial de que a quantia exequenda corresponde a uma divida tributária, assim se justificando, por exemplo a execução de sucessores conforme decorre do artigo 153.º e 154.º do referido diploma.
Sucede que, faltando às coimas e multas esse caráter tributário e sinalagmático e tratando-se de sanções decorrentes de uma responsabilidade pessoal, em caso de falecimento do executado/arguido, extingue-se a responsabilidade criminal e contraordenacional, o que (é) frontalmente incompatível com o disposto nos referidos preceitos. Este será apenas um exemplo da incompatibilidade e inadequação entre regime previsto para a execução fiscal e a natureza das coimas e penas de multa aplicadas pelos tribunais comuns».
E, quando cita o parecer do CSM sobre o tema:
«Por outro lado, (…) o Conselho Superior da Magistratura chama a atenção para uma outra questão que também está relacionada com esta. É que as coimas e as multas, no âmbito do processo penal, não têm caráter tributário, até porque a responsabilidade penal não se transmite aos herdeiros, ou seja, é uma responsabilidade que se extingue. A responsabilidade penal extingue-se com a morte do arguido, o que não acontece com as dívidas tributárias. Portanto, obviamente, são realidades completamente distintas e não podem, portanto, ser amalgamadas numa proposta de lei, como pretende o Governo».
Já o regime será diverso – o que é uma incongruência resultante da lei mas nela expressamente prevista - no que diz respeito à cobrança de custas, mesmo as resultantes dos processos contra-ordenacionais da competência dos tribunais comuns que, como se refere no mencionado parecer (conclusões 3ª a 12ª), devem ser executadas pela autoridade tributária, como segue:
3.ª Com efeito, considerando a natureza tributária das custas e seguindo o exemplo da jurisdição administrativa e fiscal, o legislador inverteu aquele paradigma, remetendo para a execução fiscal a cobrança coerciva das custas fixadas em processo judicial;
4.ª Para esse efeito, a Lei n.º 27/2019, de 28 de março, alterou o Código de Procedimento e de Processo Tributário que passou a dispor que «Poderão ser igualmente cobradas mediante processo de execução fiscal, nos casos e termos expressamente previstos na lei: (…) Custas, multas não penais e outras sanções pecuniárias fixadas em processo judicial [art. 148.º, n.º 2, alª c)];
5.ª Bem como o artigo 35.º, n.º 1, do Regulamento das Custas Processuais, que sob a epígrafe «execução», passou a dispor que: «Compete à administração tributária, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, promover em execução fiscal a cobrança coerciva das custas, multas não penais e outras sanções pecuniárias fixadas em processo judicial»;
6.ª Embora nem a Lei n.º 27/2019, de 28 de março, nem as normas que ela alterou, o digam expressamente, deve entender-se que este regime é aplicável às custas fixadas na fase administrativa do processo de mera ordenação social, competindo à Administração Tributária proceder à sua cobrança coerciva;
7.ª Desde logo, porque, continuando o artigo 92.º, n.º 1, do Regime Geral das Contraordenações, a remeter para os preceitos reguladores das custas em processo criminal, será aqui aplicável o disposto no artigo 35.º do Regulamento das Custas;
8.ª Depois, porque, atenta a sua natureza, tais custas estão incluídas no âmbito do artigo 148.º, n.º 1, al.ª a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, segundo o qual o processo de execução fiscal abrange, para além do mais, a cobrança coerciva de taxas, demais contribuições financeiras a favor do Estado, adicionais cumulativamente cobrados, juros e outros encargos legais;
9.ª Em terceiro lugar, porque, em vez de atribuir ao juízo ou tribunal que as tenha proferido competência para executar as decisões relativas a multas, custas e indemnizações previstas na lei processual aplicável, o legislador passou a atribuir-lhe, apenas, competência para a execução das decisões relativas a multas penais e indemnizações previstas na lei processual aplicável (art. 131.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário);
10.ª Em quarto lugar, porque o legislador restringiu os poderes do Ministério Público, maxime o poder de promover a execução por custas, conferindo-lhe, agora, apenas, competência para promover a execução das penas e das medidas de segurança e, bem assim, a execução por indemnização e mais quantias devidas ao Estado ou a pessoas que lhe incumba representar judicialmente (art. 469.º do Código de Processo Penal);
11.ª Finalmente, porque o legislador eliminou a referência à execução por custas, que constava do artigo 491.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, passando a mesma a ser da competência exclusiva da Administração Tributária;
12.ª Com estas alterações, para além de ter atribuído à Administração Tributária competência para proceder à cobrança coerciva das custas, o legislador eliminou as normas que antes atribuíam ao Ministério Público competência para promover a sua execução e aos tribunais judiciais competência para a tramitar;
Sendo obviamente uma discutível solução dual, é ela a prevista na lei. A cobrança de coimas pode ser executada nos tribunais comuns, as custas devem ser executadas através da autoridade tributária.
Tal é o regime que resulta do art. 35º RCP (Dec-Lei nº 34/2008, de 26-02) e art. 148º do CPPT – no que diz respeito às custas – e artigos 61º, 88º e 89º do RGCO e 64º do CPC, no que às coimas diz respeito.
***
B.4 – Mas o afirmado supra, em jeito de esclarecimento, não dá resposta à questão essencial que os autos suscitam.
E essa é o saber se o despacho recorrido admite recurso, sendo certo que o mesmo se limita a declarar a sua incompetência material (a Mª Juíza declarou a incompetência em razão da matéria para apreciar a acção executiva contra-ordenacional) e isso, em sede de direito processual apenas dá início a um possível incidente, necessariamente a ser enviado pelo juiz entendido como incompetente para o juiz que se entenda competente, para que este se pronuncie sobre a aceitação da competência e possa, então, o MP suscitar um conflito.
Em breve, não se recorre de um despacho em que um juiz se entenda incompetente em razão da matéria. Deverá aguardar-se pelo seguimento de tal incidente. E aqui também haverá que compreender que o tribunal recorrido não deu cumprimento ao disposto nos artigos 33º a 36º do CPP.
Mas esta também não é a questão essencial a dirimir nestes autos.
Estamos em sede de contra-ordenações e, nesta, em sede de processo executivo contra-ordenacional.
E, em processos desta natureza impera o disposto no artigo 73º do RGCO (DL n.º 433/82, de 27 de Outubro - Ilícito de Mera Ordenação Social), que claramente prevê quais os recursos possíveis, sendo norma restritiva aceite pela nossa ordem jurídica.
E no seu texto não se descortina possível a existência de um recurso sobre um despacho judicial que declare a incompetência material de um tribunal, para mais se lavrado em sede de fase executiva do processo de C.O..
E a razão de ser de tal regime foi já bastamente fundamentada no acórdão nº 508/2016 do TC, no sentido de que, «não decorrendo da Constituição a garantia de um grau de recurso em matéria de processos contraordenacionais declarativos, por maioria de razão se deverá entender não decorrer também tal garantia no que respeita à fase executiva das sanções administrativas».
E assim sendo o recurso é de rejeitar.
*
C - Dispositivo:
Face ao que precede, os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora rejeitam o recurso interposto.
Notifique.
Sem tributação.
Évora, 21 de Novembro de 2023
(Processado e revisto pelo relator)
João Gomes de Sousa
Ana Bacelar
Beatriz Marques Borges