Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | FRANCISCO MATOS | ||
Descritores: | INJUNÇÃO CRÉDITO AO CONSUMO ERRO NA FORMA DO PROCESSO | ||
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Data do Acordão: | 11/07/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | O procedimento de injunção é um meio processual próprio para o cessionário de obrigação pecuniária, com causa no incumprimento de um contrato de crédito a consumidor, exigir o pagamento de crédito igual ou inferior a € 15.000,00. (Sumário do Relator) | ||
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Decisão Texto Integral: | Processo n.º 85021/22.0YIPRT.E1 Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora: I – Relatório 1. (…), com domicílio em 1St Floor, 118 (…) Street, Dublin, instaurou procedimento de injunção conta (…), com domicílio em Quinta das (…), (…), a seguir termos como ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, após dedução de oposição. Alegou, em resumo, haver o Banco (…), S.A., emprestado ao Réu a quantia de € 11.310,89, a pagar em prestações mensais e sucessivas, prestações que o Réu deixou de pagar em 26/7/2017, ficando em dívida, a título de capital, a quantia de € 7.795,11 e que adquiriu ao Banco mutuante, entre outros, o crédito do Réu, por contrato de cessão de créditos, celebrado em 20/12/2019. Pediu a condenação do Réu no pagamento da quantia de € 7.795,11, acrescida de € 5.512,64 a título de juros vencidos e de juros vincendos à taxa de 12,5%. 2. Seguiu-se despacho a absolver o Réu da instância por erro na forma do processo. Justificou-se: “Por via da presente instância, e considerando o teor da causa de pedir alegada, a autora pretende que o Tribunal condene o réu no pagamento da quantia global de € 13.334,77. Alegou, no essencial, em curta síntese, que por contrato de cessão de créditos, o Banco (…), S.A. cedeu o crédito aqui em causa nestes autos à Autora, no entanto o réu não pagou o montante em dívida. Deste modo, o direito de crédito invocado pela autora emerge, não do contrato que originariamente o fez nascer (o contrato de financiamento/mútuo), mas de um terceiro contrato, subsequente, surgindo agora como devedor – quanto ao crédito cedido – uma pessoa que é alheia a este terceiro contrato, de cessão de créditos, operada entre a entidade bancária cedente e a cessionária (a ora autora) – vd. ANTUNES, Engrácia, Direito dos Contratos Comerciais, Almedina, 2017, págs. 483 e 492-3. Ora, a referência a este contrato de financiamento/mútuo, do qual, note-se, a autora/cessionária não é parte, demonstra que os créditos de que esta se arroga titular não emergem diretamente do contrato por si invocado, celebrado com o cedente. Pelo contrário, estamos perante obrigações pecuniárias decorrentes, não direitamente do contrato celebrado entre a autora, na qualidade de cessionária, e Banco (…), na qualidade de cedente, mas da articulação desse contrato com o sobredito contrato de mútuo, havido entre o cedente e a autora. Dito de outro modo: o direito de crédito invocado pela autora emerge, não do contrato que originariamente o fez nascer (o contrato de mútuo), mas de um terceiro contrato, subsequente, surgindo agora como devedor – quanto ao crédito cedido – uma pessoa que é alheia a este terceiro contrato, de cessão de créditos, operada entre a entidade bancária cedente e a cessionária (a ora autora). Atento o exposto, conclui-se que a autora fez uma utilização inadequada do procedimento de injunção, uma vez que as obrigações pecuniárias que pretende fazer valer não emergem direitamente do contrato de cessão de créditos, reclamando a apreciação concatenada de um outro contrato de mútuo, no qual a autora não figura como parte. Nos casos em que o autor, na qualidade de requerente num procedimento de injunção, depois transmutado para ação declarativa especial, faz um uso inadequado do requerimento de injunção, verifica-se um erro na forma do processo, por utilização de processo indevido, que impõe a absolvição do réu da instância (…).”
3. A Autora recorre e conclui assim a motivação do recurso: “A. Vem o presente recurso interposto da douta Sentença datada de 09-02-2023 que decidiu que a Autora fez um uso inadequado do procedimento de injunção, uma vez que as obrigações pecuniárias que pretende fazer valer não emergem diretamente do contrato de cessão de créditos, reclamando a apreciação concatenada de um outro contrato de mútuo, no qual a autora não figura como parte, verificando-se erro na forma do processo, por utilização de processo indevido, que determina a absolvição do Réu da instância. B. A única questão a decidir no presente recurso é a questão do erro na forma do processo por utilização inadequada do procedimento de injunção. C. Conforme consta do requerimento inicial e injunção e, mais detalhadamente, do requerimento de aperfeiçoamento junto aos autos no dia 09/12/2022, Ref.: 9246836, a Recorrente, por contrato de cessão de créditos, adquiriu do Banco (…), S.A. diversos créditos, bem como todos as garantias dos mesmos, onde se inclui o contrato n.º (…), acionado nestes autos. D. O contrato n.º (…), trata-se de um Contrato de Mútuo, celebrado em 26 de Fevereiro de 2014 entre o Banco (…), S.A., cedente do crédito e o Réu, ora Recorrido, (…), tendo sido mutuado a este último a quantia total de € 11.310,89 (onze mil, trezentos e dez euros e oitenta e nove cêntimos). E. A cessão de créditos, que consubstancia uma transmissão da posição creditícia a terceiro, constitui um acordo – entre o cedente e o cessionário – através do qual o credor transmite a terceiro, independentemente do consentimento do devedor, a totalidade ou uma parte do seu crédito, determinando, com isso, uma modificação subjetiva da relação obrigacional decorrente da substituição do credor originário, deixando, porém, inalterada a obrigação – os seus efeitos produzem-se imediatamente entre as partes por mero efeito do contrato. F. Ora, tendo por base a definição do contrato de cessão de créditos, Tribunal a quo faz uma conclusão errada quando considera que estamos perante obrigações pecuniárias entre cedente e cessionário, ora Recorrente, e não considera o que realmente a Autora explanou; porque, de facto o que está em causa é a relação entre o credor originário, Banco (…), Cedente, e o ora Réu (…). Não está em causa o contrato celebrado entre a Autora, na qualidade de cessionária e o Banco (…), na qualidade de cedente; Mas sim, a articulação desse contrato com o sobredito contrato de mútuo e o contrato de cessão de créditos, havido entre cedente e Recorrente. G. O Tribunal a quo confunde a relação de cessão de crédito (entre alienante Banco … e adquirente, ora Recorrente) com a relação de crédito (Banco … e o Réu), e, uma e outra não se confundem, sendo a relação de crédito, o objeto da relação de cessão de crédito. H. No contrato de cessão de créditos o que se transmite é a posição creditícia, passando a Recorrente a ser titular do crédito emergente do contrato peticionado nos autos, ocupando a posição do credor originário Banco (…), S.A.. À simplesmente a transmissão da posição no contrato de empréstimo, permanecendo inalterada a obrigação. I. A causa de pedir emerge do direito creditício que a Recorrente adquiriu no contrato de mútuo (…) n.º (…). J. Acresce que, no caso concreto, foi o Réu notificado da cessão de créditos em 14/01/2020 através de carta registada remetida para a morada contratual indicada ao Banco, a saber Quinta das (…), (…). K. Morada que, aliás, se mantém atualizada, atendendo a que foi nessa morada que o Réu foi notificado do procedimento de injunção, sendo que também é essa que consta na procuração forense junta com a oposição. L. Pelo que, ficou o Réu obrigado a proceder ao cumprimento da sua obrigação junto do novo sujeito ativo da relação creditícia, a saber, a aqui Recorrente, emergente de um contrato de mútuo celebrado em 26/02/2014, no qual foi financiado ao Réu a quantia de € 11.310,89 (onze mil e trezentos e dez euros e oitenta e nove cêntimos). M. Assim, só a atual Credora do Réu, isto é, a ora Recorrente podia lançar mão da prorrogativa legal prevista no Decreto-Lei 269/98, de 01 de Setembro, dando entrada de procedimento de injunção com vista à obtenção de título executivo, encontrando-se preenchido o único requisito legal de que depende a utilização dos procedimentos especiais previstos no referido Decreto-Lei 269/98, uma vez, que a obrigação cujo cumprimento se requer tem origem num contrato de valor inferior a € 15.000,00. N. Atento o exposto, não existe qualquer erro na forma do processo, na medida em que “A obrigação pecuniária a que se refere, por um lado, a ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos, e por outro, as injunções, também as decorrentes de transação comercial, é a obrigação “diretamente” pecuniária, que significa a pecuniária em sentido estrito.” O. Face ao exposto, requer-se a V. Exas. Excelências, Venerandos Juízes Desembargadores, que seja julgado totalmente procedente o presente Recurso, revogando-se a Sentença recorrida, substituindo-se por outra que determine o prosseguimento dos autos, por inexistência de erro na forma do processo. NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO, REQUER-SE A V. EXAS, VENERANDOS JUÍZES DESEMBARGADORES, QUE JULGEM O RECURSO TOTALMENTE PROCEDENTE, REVOGANDO A SENTENÇA RECORRIDA, iluminando-se deste modo o caminho para a JUSTIÇA.” Não houve lugar a resposta. Admitido o recurso e observados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
2.1. Se existe erro na forma do processo A decisão recorrida absolveu o Réu da instância, por erro na forma de processo; considerou: “(…) a autora fez uma utilização inadequada do procedimento de injunção, uma vez que as obrigações pecuniárias que pretende fazer valer não emergem direitamente do contrato de cessão de créditos, reclamando a apreciação concatenada de um outro contrato de mútuo, no qual a autora não figura como parte”. A autora discorda e argumenta: “No contrato de cessão de créditos o que se transmite é a posição creditícia, (…) há simplesmente a transmissão da posição no contrato de empréstimo, permanecendo inalterada a obrigação”. A divergência que cumpre solucionar consiste em saber se o cessionário de crédito emergente do incumprimento de um mútuo bancário, pode exigir o cumprimento da obrigação cedida por via dos procedimentos especiais destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos. Segundo o 7.º do anexo ao D.L. n.º 269/98, de 1/9 (com alterações, designadamente, as decorrentes do D.L. n.º 32/2003, de 17/2, do D.L. n.º 107/2005, de 1/7 e do D.L. n.º 303/2007, de 24/8), considera-se injunção a providência que tem por fim conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento das obrigações a que se refere o artigo 1.º do diploma preambular, ou das obrigações emergentes de transações comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de fevereiro. Dispõe o artigo 1.º do diploma preambular: “É aprovado o regime dos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a (euro) 15.000, publicado em anexo, que faz parte integrante do presente diploma.” Pondo de parte as obrigações emergentes de transações comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17/2, sem aplicação na espécie, a injunção é aplicável aos casos em que o requerimento se destine a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a (euro) 15.000,00. O procedimento de injunção tem aplicação quando cumulativamente: i) se exija o cumprimento de obrigações pecuniárias; ii) a obrigação resulte de contrato; iii) o valor do pedido for igual ou inferior a € 15.000,00.[1] Obrigações pecuniárias são aquelas que têm por objeto uma prestação em dinheiro (moedas, notas) a que o Estado reconhece função liberatória genérica[2] e dizem-se de soma ou quantidade (artigos 550.º e 551.º do Código Civil) nos casos em que o cumprimento da obrigação “deve fazer-se, em regra, atendendo ao valor nominal da moeda na data do cumprimento”.[3] A obrigação deve ter causa num contrato, isto é, num acordo mediante o qual “duas ou mais partes ajustam reciprocamente os seus interesses, dando-lhes regulamentação que a lei traduz em termos de efeitos jurídicos”[4], o que significa que a injunção não é aplicável nos casos em que a obrigação pecuniária emerge “de responsabilidade civil, contratual ou extracontratual, de enriquecimento sem causa ou de relações de condomínio”.[5] No caso, o requerimento de injunção destinou-se a exigir o pagamento de uma obrigação em dinheiro, atendendo ao seu valor facial à data do cumprimento [a Autora exige o pagamento da quantia de € 7.795,11, acrescida de juros, isto é, o número de notas e moedas de euros cujo valor facial ou nominal perfaçam a referida quantia], a prestação emerge de contrato [o mútuo celebrado entre o Réu e o Banco (…), S.A.,] e, por último, o valor do pedido é inferior a € 15.000,00. Reunidas estas condições (objetivas), a Autora podia validamente fazer uso, como fez, do procedimento de injunção. O contrato mediante o qual o Banco (…), S.A. cedeu à Autora o crédito que detinha sobre o Réu não altera, a nosso ver, e contrariamente ao afirmado pela decisão recorrida – “o direito de crédito invocado pela autora emerge, não do contrato que originariamente o fez nascer (o contrato de mútuo), mas de um terceiro contrato, subsequente, surgindo agora como devedor – quanto ao crédito cedido – uma pessoa que é alheia a este terceiro contrato, de cessão de créditos, operada entre a entidade bancária cedente e a cessionária (a ora autora)” – os dados da equação. Segundo o artigo 577.º, n.º 1, do Código Civil (CC), o credor pode ceder a terceiro uma parte ou a totalidade do crédito, independentemente do consentimento do devedor, contando que a cessão não seja interdita por determinação da lei ou convenção das partes e o crédito não esteja, pela própria natureza da prestação, ligado à pessoa do credor. E sobre os efeitos da cessão em relação ao devedor, estabelecem os nºs 1 e 2 do artigo 583.º do CC: “1. A cessão produz efeitos em relação ao devedor desde que lhe seja notificada, ainda que extrajudicialmente, ou desde que ele a aceite. 2. Se, porém, antes da notificação ou aceitação, o devedor pagar ao cedente ou celebrar com ele algum negócio jurídico relativo ao crédito, nem o pagamento nem o negócio é oponível ao cessionário, se este provar que o devedor tinha conhecimento da cessão”. A validade da cessão de um determinado crédito não depende do consentimento do respetivo devedor, ou seja, o contrato produz efeitos entre o cedente e o cessionário independentemente do assentimento do devedor; no entanto, não tendo o devedor que ser parte no contrato de cessão esta só produz efeitos em relação a ele depois que a aceite ou que dela seja notificado, sem prejuízo de o cessionário provar que o devedor tinha conhecimento dela, antes da notificação ou aceitação, caso em que os pagamentos feitos pelo devedor ao cedente ou os negócios jurídicos relativos ao crédito com o cedente celebrados, não são oponíveis ao cessionário. O cessionário adquire por efeito da cessão de créditos a posição do credor originário e após o conhecimento da cessão pelo devedor todos os pagamentos (por conta ou da totalidade) do crédito ou os negócios jurídicos relativos ao crédito deixam de ser oponíveis ao cessionário, o que significa que a prestação, com efeitos liberatórios, há-de ser efetuada ao cessionário. Assim, por efeito do negócio da cessão de créditos, ocorre uma substituição do sujeito ativo da prestação (a prestação deve ser feita ao cessionário e não ao cedente), mas a prestação debitória propriamente dita, mantém-se inalterada. “Verifica-se a cessão de um crédito quando o credor, mediante negócio jurídico, designadamente de natureza contratual, transmite a terceiro o seu direito. Consiste, portanto, esta figura na substituição do credor originário por outra pessoa, mantendo-se inalterados os restantes elementos da relação obrigacional. Sublinhe-se que não se produz a substituição da obrigação antiga por uma nova, mas uma simples modificação subjetiva que consiste na transferência daquela pelo lado ativo.”[6] Mantendo a cessão de créditos inalterado o objeto da obrigação cedida, já se vê que o cessionário, exigindo o seu cumprimento, não o faz com causa na cessão – esta não origina a substituição da obrigação antiga por uma nova – mas com fundamento no negócio causal do débito cedido, no caso, no contrato de mútuo, ou seja, o crédito cujo pagamento é exigido no procedimento tem causa no incumprimento do contrato de mútuo e não na cessão de créditos como se considerou. Em conclusão, a modificação subjetiva da relação obrigacional não constitui condição ou causa impeditiva do recurso ao procedimento de injunção e este constitui-se como meio processual adequado para o cessionário de obrigação pecuniária decorrente do incumprimento de um contrato de crédito a consumidor exigir o pagamento do crédito, desde que inferior ou igual a € 15.000,00.[7] Havendo sido outro o entendimento da decisão recorrida, resta revogá-la e, em consequência, ordenar a prossecução dos autos nos termos previstos pelos artigos 3.º e 4.º, ex vi do artigo 17.º do anexo ao D.L. n.º 269/98, de 1/9. 2.2. Custas Configurando-se a Recorrente como parte vencedora, sem oposição do Recorrido, numa questão oficiosamente suscitada, inexiste fundamento para condenação em custas (artigo 527.º, nºs 1 e 2, do CPC, a contrario), destas se excluindo a taxa de justiça devida pela interposição do recurso (artigo 529.º, n.º 2, do CPC).
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