Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
741/22.1GBABF.E1
Relator: MARIA CLARA FIGUEIREDO
Descritores: REJEIÇÃO DO RAI
INADMISSIBILIDADE LEGAL DA INSTRUÇÃO
FALTA DE ACUSAÇÃO ALTERNATIVA
Data do Acordão: 11/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - É amplamente aceite que na inadmissibilidade legal da instrução se insere o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente que não contenha a dedução de uma “acusação alternativa”, na qual se inclua uma concretização precisa e concisa dos factos objetivos e subjetivos conformadores dos ilícitos penais em causa, cumprindo a função de delimitar o objeto do processo, por força da estrutura acusatória deste e assegurando o respeito das garantias de defesa do arguido.
II - Não cabe ao juiz percorrer o RAI e, cirurgicamente, escolher, de entre a amálgama de alegações que o integram – e que de forma indistinta, misturam conceitos jurídicos, explicações sobre os tipos, considerações e conclusões subjetivas sobre as condutas que se pretende imputar ao arguido – aquelas que contêm os factos que poderão indiciar o cometimento pelo arguido de um específico crime, compondo uma acusação que não lhe compete formular.

III - A tarefa de acusar cabe ao acusador – in casu à assistente – e não há outra forma de a cumprir sem ser condensando os factos no libelo acusatório, narrando-os, enumerando-os e ordenando-os lógica e cronologicamente, sem outras considerações de permeio que aí não podem ter assento, de forma a que quem lê tal relato compreenda o que se imputa a quem, sem necessidade de realizar qualquer triagem fáctica. Não o fazendo, a suposta peça acusatória está votada ao insucesso e ao juiz não lhe resta senão rejeitá-la.

Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - Relatório.

Nos presentes autos que correm termos no Juízo de Instrução Criminal de … - Juiz …, do Tribunal Judicial da Comarca de …, com o n.º 741/22.1GBABF, foi proferido despacho de rejeição do requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente AA, identificada nos autos, em virtude de o mesmo ter sido considerado legalmente inadmissível.

Inconformada com tal decisão, veio a assistente interpor recurso da mesma, tendo apresentado, após a motivação, as conclusões que passamos a transcrever:

“Conclusões:

I – O presente recurso tem como objeto o douto despacho de rejeição da abertura de instrução, datado de 25-05-2023, com a referência …, que decidiu que o RAI da ora Recorrente não respeita os princípios do acusatório e do contraditório, posto que não concretiza facticamente a concorrência dos elementos subjetivos dos ilícitos típicos vertidos na respetiva fórmula acusatória, sendo totalmente omisso no que respeita a tal matéria, bem como no que concerne à concorrência da consciência da ilicitude.

II – Salvo o devido respeito, não se pode senão discordar de tal decisão, uma vez reputamos vislumbrar o RAI em total conformidade com as exigências normativas previstas nos arts. 287º, n.º 1, al. b), n.º 2 e 283º, n.º 3, als. b) e d) do CPP, não se logrando identificar qualquer omissão ao nível do tipo subjetivo e da consciência da ilicitude.

III - No art. 39.º do RAI, após a adução, nos artigos 31.º a 39.º, de factos constitutivos do crime de perseguição, p. e p. pelo art. 154º-A do CP, fica por demais demonstrada a intenção e volição, em sede de tipo, por parte do Arguido, de inferiorizar, amedrontar e perturbar a esfera de autodeterminação existencial da Assistente e, bem assim, de violar a sua esfera de liberdade, a sua honra e a intimidade da vida privada, tendo o dolo, in casu, por referência o específico bem jurídico tutelado pela norma incriminadora.

IV - Bastando atentar na expressão “qual manifestação do propósito subjetivo”, consubstanciada numa exteriorização sinonímica da primeira modalidade de dolo – o dolo direto -, que se arvora no conhecimento e vontade de realização do facto típico, conforme o que resulta do art. 14º do CP!

V – Releve-se que no art. 53.º do RAI, a Assistente ora Recorrente convoca de forma clarividente, após a factualidade aduzida, a concorrência da intenção e vontade de realização do tipo de ilícito de perseguição, bastando atentar no respetivo conteúdo para apartar dúvidas interpretativas: “53.º - Por outro lado, o Arguido, ao ter atuado como atuou, revelou intenção e consciência de perturbar a esfera de liberdade e de autodeterminação existencial da Assistente, pelo que se dão por verificados o dolo, em sede de tipo subjetivo, e a consciência da ilicitude, em sede de culpabilidade”.

VI - No art. 58º do RAI, ficou patente que o Arguido representou e quis – representação e volição constitutivos do dolo de primeiro grau - a proximidade física da vítima Assistente ora Recorrente, na sequência dos factos aduzidos constitutivos de um crime de violação de domicílio, p. e p. pelo art. 190º, n.º 1 do CP, integrado, sociologicamente, no quadro de um episódio de stalking.

VII - Resulta clarividente a convocação de elementos de facto que permitem firmar a concorrência dos elementos subjetivos associados aos tipos de crime em mérito, elementos narrados de forma sintética e objetiva, como se pretende no quadro de uma verdadeira acusação.

VIII – Pelo que resulta manifesto que o Arguido sabia, face às normas de trato social dominantes e à cultura de liberdade, de respeito pela integridade psicofísica da pessoa e, enfim, pelo respeito transcendental pela dignidade da pessoa humana, que estaria a lesar a esfera de liberdade da Assistente ora Recorrente, bem como a sua possibilidade de autoconformação existencial.

IX - Sendo certo que tal asserção se encontra expressamente plasmada no sistema do articulado presente no RAI e, em especial, nos artigos 39.º, 53.º e 58.º

X - Encontrando-se, por vias disso, os elementos subjetivos dos tipos incriminadores consignados expressamente no RAI, não se vislumbrando o mínimo de razão na motivação associada à decisão da correspondente rejeição.

XI - Estamos em crer, ao contrário do entendimento do Tribunal a quo, que não houve nenhum desrespeito pelos princípios do acusatório e do contraditório, porquanto no RAI estão consignados todos os elementos fáctico-circunstanciais e normativos, que permitem ao Arguido, de forma cabal e fluida, gizar a sua tese contraditória e, por vias disso, construir adequadamente a sua defesa.

XII - Antes estando em causa a preterição do princípio da verdade material, sobrelevando uma justiça, senão kafkiana, ao menos exacerbadamente formalista.

XIII - Ora, tendo o Assistente o direito de recorrer à abertura de instrução quando afetado por uma decisão de arquivamento, por reputar existirem indícios suficientes da prática de determinado crime e identificado o seu autor, com vista ao questionamento da bondade de tal decisão decorrente do encerramento do Inquérito,

XIV - tem-se por violado tal direito, nos termos dos arts. 69º, n.º 2, al. a), 286º e 287º, n. º1 al. b) e n.º 2 do CPP, e dos arts. 20º e 32º, n.º 1 da CRP, vislumbrando-se a decisão Recorrida ferida de nulidade insanável, nos termos do art. 119º, al. d) do CPP, que ora se argui.

XV - Pelo que deverá ser a douta decisão Recorrida revogada e substituída por uma outra que admita a abertura de instrução e ordene a realização dos atos probatórios consignados no RAI.”

Termina pedindo a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que determine o recebimento do requerimento de abertura de instrução.

*

O recurso foi admitido.

Na 1.ª instância, o Ministério Público, pugnou pela improcedência do recurso e pela consequente manutenção da decisão recorrida, tendo apresentado as seguintes conclusões:

“1. A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento;

2. Sendo a instrução requerida pelo assistente, a mesma apenas pode dizer respeito a factos relativamente aos quais o M.ºP.º não tenha deduzido acusação;

3. O requerimento para abertura de instrução apresentado pela assistente deve conter, para além dos requisitos constantes dos arts. 287 n.º 2 e 283 n.º 3 als. b) e c) do CPP, a narração própria de uma acusação, mediante a descrição dos factos concretos susceptíveis de integrar todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo criminal que a assistente imputa ao arguido;

4. O requerimento acusatório formulado pelo assistente delimita o objecto do processo, com a correspondente vinculação temática do tribunal, garantindo a estrutura acusatória do processo e a defesa do arguido que, sabendo concretamente quais os factos e os crimes que lhe são imputados, pode exercer o contraditório;

5. No caso em apreço, a assistente, não fez no RAI a necessária inventariação factual equivalente a uma acusação, limitando-se a enumerar as razões de discordância relativamente ao despacho de arquivamento do M.ºP.º, omitindo a descrição integrar dos factos susceptíveis de preencher o elemento subjectivo dos tipos de crimes que imputa ao arguido;

6. Ao rejeitar o RAI com fundamento na sua inadmissibilidade legal, o Mer.º JIC a quo não violou o disposto nos arts. 286 e 287 n.º 3 do CPP.

Em face do exposto, não deverá ser concedido provimento ao recurso, mantendo-se o douto despacho recorrido.”

*

A Exmª. Procuradora Geral Adjunta neste Tribunal da Relação emitiu parecer, tendo-se pronunciado no sentido da sua improcedência.

*

Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do CPP, não tendo sido apresentada qualquer resposta.

Procedeu-se a exame preliminar.

Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

***

II – Fundamentação.

II.I Delimitação do objeto do recurso.

Nos termos consignados no artigo 412º nº 1 do CPP, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente na sua motivação, as quais definem os poderes cognitivos do tribunal ad quem, sem prejuízo de poderem ser apreciadas as questões de conhecimento oficioso.

Em obediência a tal preceito legal, a motivação do recurso deverá enunciar especificamente os fundamentos do mesmo e deverá terminar pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, nas quais o recorrente resume as razões do seu pedido, de forma a permitir que o tribunal superior apreenda e conheça das razões da sua discordância em relação à decisão recorrida.

No presente recurso e considerando as conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, é apenas uma a questão a apreciar e a decidir, a saber:

- Saber se o requerimento de abertura de instrução apresentado pela recorrente contém todos os elementos necessários ao seu recebimento e, consequentemente, se deveria ter sido admitido ou se, tal como sustenta a decisão recorrida, se revela legalmente inadmissível em virtude de não conter os factos relativos aos elementos subjetivos dos tipos imputados ao arguido.

***

II.II - A decisão recorrida.

Decidiu o tribunal recorrido nos seguintes termos:

“(…) Requerimento de abertura de instrução apresentado pela Assistente – [ref.ª …, fls. 88 a 108]

Dispõe o artigo 286.º, n.º1 do Código de Processo Penal que “a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”, sendo que o assistente a pode requerer, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação (artigo 287.º, n.º 1, al. a) do CPP).

Nos termos do n.º 2 do artigo 287.º do Código de Processo Penal, o requerimento de abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, sendo-lhe ainda aplicáveis as alíneas b) e c) do n.º 3 do art. 283.º.

No caso, tendo o Ministério Público ordenado o arquivamento do inquérito e tendo sido a Assistente quem requereu a abertura de instrução com vista à pronúncia, tinha esta, por força do disposto nas als. b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º daquele código, aplicável ex vi n.º 2, parte final, do art. 287.º daquele diploma legal, indicar, ainda que de forma sintética, os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, bem como as disposições legais aplicáveis, devendo indicar, se possível, o lugar, tempo e motivação da sua prática e o grau de participação do agente.

Ou seja, regendo-se o processo penal pelos princípios do acusatório e contraditório, resulta que o requerimento de abertura de instrução, quando requerida pelo Assistente, porque é consequência de um despacho de arquivamento, deve conter todos os elementos de uma acusação, com especial relevância para a matéria de facto que descreve o ilícito que é imputado aos arguidos.

No que concerne ao princípio do acusatório, e assumindo este especial relevância, cumpre atender ao estatuído no n.º 5 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, que remete para o princípio do acusatório ao determinar que “o processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do acusatório”.

Assim, no despacho de pronúncia, o juiz está substancial e formalmente limitado aos factos pelos quais tenha sido deduzida acusação formal, ou tenham sido descritos no requerimento do assistente e que este considera que deveriam ser objeto de acusação do MINISTÉRIO PÚBLICO. O requerimento para a abertura da instrução formulado pelo assistente constitui, substancialmente, uma acusação (alternativa ao arquivamento ou à acusação deduzida elo MINISTÉRIO PÚBLICO), que dada a divergência assumida pelo MINISTÉRIO PÚBLICO vai necessariamente ser sujeita a comprovação judicial.

Deste modo, tendo o requerimento de abertura de instrução por parte da Assistente de configurar uma acusação, é esta que condicionará a atividade de investigação do juiz e a decisão instrutória, tal como flui, claramente, do disposto nos artigos 303.º, n.º 3 e 309.º, n.º 1 do CPP, sendo que a decisão instrutória que viesse a pronunciar o arguido por factos não constantes daquele requerimento, estaria ferida de nulidade.

Ora, feitas estas considerações, é manifesto que o requerimento de abertura de instrução da assistente AA, não respeita as imposições que decorrem quer das disposições legais aplicáveis quer dos princípios de direito, uma vez que imputando determinados e concretos factos objetivos ao arguido, não imputa, todavia, quaisquer factos que traduzam o elemento subjetivo, quer do tipo correspondente ao crime de perseguição, p. e p. pelo artigo 154.º-A do CP, quer do tipo de violação de domicílio, p. e p. pelo artigo 190.º, n.º 1 do CP.

Efetivamente, o requerimento de abertura de instrução não descreve a factualidade necessária para que se considere estarmos perante uma acusação, pois que é totalmente omissa ao nível da descrição de factos que traduzam a existência do dolo.

Ora, tendo o dolo necessariamente dois momentos ou elementos constitutivos (o conhecimento – elemento intelectual que consiste na representação na mente do agente da facticidade descrita no tipo; e vontade – o elemento intelectual ou momento psicológico do iter criminis – que consiste na vontade de praticar o facto típico ), é o requerimento totalmente omisso quanto aos mesmos (sendo que, segundo FIGUEIREDO DIAS, o dolo é ainda constituído por um terceiro elemento, o elemento emocional), inexistindo qualquer facto demonstrativo do mesmo.

Por fim, o requerimento de abertura de instrução é totalmente omisso no que concerne à totalidade dos elementos em que se decompõe o dolo, mais concretamente no que concerne à consciência da ilicitude, dado que nenhuma referência é feita ao facto de o arguido ser sabedor da censurabilidade penal da sua conduta.

Ora, como já referimos supra, não é possível ao juiz substituir-se ao Assistente, colocando, por iniciativa própria, os factos em falta e que se revelam essenciais para a imputação de crime ao agente, sob pena de estarmos perante uma alteração substancial de factos.

Nos termos do n.º 3 do art. 287.º do CPP, o requerimento de abertura de instrução só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal.

No caso, entendemos que estamos perante uma situação de inadmissibilidade legal, quer atenta a nulidade plasmada no artigo 283.º, n.º 3, al. b) do CPP, sendo que esta causa de rejeição é de conhecimento oficioso.

Na verdade, a realização da instrução constituiria um ato inútil, na medida em que, finda a mesma, e por inexistência de factos integradores dos elementos subjetivos de um tipo de ilícito, qualquer decisão que viesse a ser proferida e que considerasse factos não alegados na instrução seria nula, pois que sempre haveria falta de objeto do processo.

Também e desde já referimos que, perfilhamos do entendimento seguido pela jurisprudência maioritária, ou mesmo unânime, dos Tribunais superiores que não há lugar ao convite ao aperfeiçoamento do requerimento apresentado pelo Assistente (vide, neste sentido, Ac. de Uniformização de Jurisprudência n.º 7/2005, de 12 de Maio de 2005), pois que, a existir, este convite colocaria em causa o carácter perentório do prazo referido no art.º 287, n.º1 do Código de Processo Penal e a apresentação de novo requerimento de abertura de instrução, por parte do assistente, para além daquele prazo, violaria as garantias de defesa do arguido (cfr. Acs. do Tribunal Constitucional n.º 27/2001 e n.º 358/04).

*

Face a tudo supra exposto, rejeita-se o requerimento de abertura de instrução apresentado pela Assistente AA, por o mesmo ser legalmente inadmissível, atento o preceituado no artigo 287.º, n.º 3 do CPP.(…)”.

***

II.III - Apreciação do mérito do recurso.

Sobre a finalidade e âmbito da instrução, dispõe o artigo 286º do CPP, da seguinte forma:

“Artigo 286.º

Finalidade e âmbito da instrução

1 - A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

2 - A instrução tem carácter facultativo.

3 - Não há lugar a instrução nas formas de processo especiais.”.

*

Relativamente à legitimidade para requerer a abertura de instrução, ao seu objeto, ao conteúdo do respetivo requerimento e às causas da sua rejeição, estatui, por sua vez o artigo 287º, nºs 1, 2 e 3 do CPP nos seguintes temos:

“Artigo 287.º

Requerimento para abertura da instrução

1. A abertura da instrução pode ser requerida, no prazo de 20 dias a contar da notificação da acusação ou do arquivamento:

(…)

b) Pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.

2 - O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e d) do n.º 3 do artigo 283.º, não podendo ser indicadas mais de 20 testemunhas.

3 - O requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução. (…)”

*

É clara e incontrovertida a estatuição do artigo 286º do CPP no que tange aos fins visados pela instrução, pelo que temos por assente que tal fase processual visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento. Trata-se de uma fase intermédia do processo penal – situada entre o inquérito e o julgamento – de natureza facultativa, que tem como escopo a sindicância pelo Juiz de Instrução Criminal da decisão final do inquérito.

Quando requerida pelo assistente, como sucede na situação que nos ocupa, a instrução visa sindicar a decisão do Ministério Público de não deduzir acusação, solicitando o assistente ao JIC que verifique se se justifica, ou não, submeter o arguido a julgamento, sendo que tal fase processual termina com a prolação de um despacho de pronúncia ou de não pronúncia, consoante “até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos [ou não] indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança”, conforme expressamente estatui o artigo 308º, nº 1 do CPP.

Os fundamentos de rejeição do requerimento de abertura da instrução são exclusivamente os que se encontram previstos no artigo 287º n.º 3 do CPP:

-A extemporaneidade;

- A incompetência do juiz;

- E a inadmissibilidade legal da instrução.

Interessa-nos, para apreciação da questão que somos chamados a decidir no presente recurso, apenas a inadmissibilidade legal da instrução – por ser esse o fundamento utilizado no despacho recorrido para rejeitar o requerimento de abertura de instrução apresentado pela recorrente – sabendo-se, ademais, que é precisamente tal fundamento que, por suscitar maiores dúvidas na sua concretização, tem sido objeto de ampla explanação teórica quer doutrinária, quer jurisprudencial.

Nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, acima transcrito, o requerimento para abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que for caso disso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar. Ainda de acordo com a mesma norma legal, ao requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente é aplicável o disposto no artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c) do CPP, isto é, o mesmo deverá conter a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada e a indicação das disposições legais aplicáveis.

Voltando à questão da abrangência da inadmissibilidade legal da instrução que acima enunciámos, e no que à economia dos autos importa, é amplamente aceite que na mesma se insere o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente que não contenha a narração, ainda que sintética, dos factos que imputa ao arguido e pelos quais pretende que este venha a ser pronunciado. Com efeito, outro não poderá ser o sentido a atribuir ao artigo 308.º, nº 2 do CPP quando enuncia que o despacho de pronúncia deve conter os elementos exigidos pelo nº 3 do artigo 283.º do mesmo código, ou seja, a narração dos factos deverá constar do RAI e, subsequentemente – se o mesmo vier a ser proferido – do despacho de pronúncia, com a mesma precisão e rigor que são exigidos para uma acusação do Ministério Público. Do que verdadeiramente se trata é da dedução de uma “acusação alternativa”, que, contendo uma concretização precisa e concisa dos factos objetivos e subjetivos conformadores do ilícito penal em causa, cumpra a função de delimitar o objeto do processo, por força da estrutura acusatória deste, assegurando o respeito das garantias de defesa do arguido. (1)

Omitindo-se esses elementos não pode o juiz substituir-se ao assistente, procedendo à enumeração e descrição dos factos, tornando uma acusação inócua numa verdadeira acusação, sob pena de violar o princípio da estrutura acusatória do processo penal, constitucionalmente consagrado no artigo 32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa. Em tais casos, restará apenas o JIC proceder à rejeição do requerimento de abertura de instrução, por inadmissibilidade legal (2) (3), encontrando-se já fixada jurisprudência pelo STJ no sentido de que “não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido” (4).

Recordamos ainda que, tendo sido chamado a apreciar a conformidade com a Constituição do mencionado entendimento do artigo 287.º do Código de Processo Penal, o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão n.º 636/2011, de 20.12, decidiu:

“Não julgar inconstitucional a norma contida conjugadamente nos n.ºs 2 e 3 do artigo 287.º do CPP, na interpretação segundo a qual, não respeitando o requerimento de abertura de instrução as exigências essenciais de conteúdo impostas pelo n.º 2 do artigo 287.º do CPP, e não ocorrendo nenhuma das causas de rejeição previstas no n.º 3 do mesmo preceito, cabe rejeição imediata do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente (não devendo antes o assistente ser convidado a proceder ao seu aperfeiçoamento para suprir as omissões/deficiências constatadas).”(5)

*

E o que dizer da situação em causa no presente recurso?

“In casu” o tribunal recorrido entendeu que o requerimento de abertura de instrução da assistente não continha a narração dos factos atinentes aos elementos subjetivos dos tipos aí imputados ao arguido, pelo que o considerou inadmissível, justificando que “a realização da instrução constituiria um ato inútil, na medida em que, finda a mesma, e por inexistência de factos integradores dos elementos subjetivos de um tipo de ilícito, qualquer decisão que viesse a ser proferida e que considerasse factos não alegados na instrução seria nula, pois que sempre haveria falta de objeto do processo.” O que de essencial se encontra impugnado no recurso são os motivos da rejeição do requerimento de abertura de instrução (RAI), importando, pois, verificar se, contrariamente ao que foi decidido na decisão recorrida, o RAI contém a acusação que o Ministério Público entendeu não produzir, ou seja, a “acusação alternativa” daquela, integrando o acervo factológico suscetível de preencher os tipos penais de perseguição e de violação de domicílio e suficientemente preciso para permitir ao arguido defender-se.

Atentemos, antes de mais, no conteúdo do requerimento de abertura de instrução rejeitado pela decisão recorrida, do qual transcreveremos tão somente a parte que supostamente conteria os factos e que a assistente identifica como a “Fórmula Acusatória”:

“(…) Enquadramento Fáctico

21.º

Requer a Ofendida, ora Assistente, o julgamento em Tribunal Singular e em processo comum de BB, Arguido melhor identificado nos presentes autos, mercê da prática dos seguintes factos:

22.º

Assistente e Arguido conheceram-se casualmente há vários anos, em virtude de ambos partilharem ambientes sociais habituais (escola, urbanização residencial), tendo havido uma aproximação intersubjetiva já na fase adulta.

23.º

Em dezembro de 2021 a Assistente e o Arguido envolveram-se casualmente, qual quadro de uma relação intersubjetiva íntima de jaez essencialmente transitório, superficial e esporádico, não tendo transcendido o hiato temporal associado a tal mês.

24.º

Cessada tal relação, o Arguido principiou por manifestar atitudes e comportamentos estranhos, socialmente desviantes, posto que lhe não agradou a cessação da referida relação.

Atendamos:

25.º

Durante um período compreendido entre fevereiro e maio de 2022, o Arguido realizou atos persecutórios, tendo empreendido por deslocações e súbitos aparecimentos no local de trabalho da Assistente – …, sito na Rua …, Lote…, em …-, onde permanecia por longos intervalos temporais em jeito de vigilância, ou simplesmente passando, propositadamente, com o seu carro em tal artéria da cidade, em tom ameaçador, renovando violentamente a sua marcha, após parar junto do referido snack-bar, com isso intimidando a pessoa da Assistente, provocando-lhe medo e receio pela sua integridade, quer física, quer psíquica, episódios testemunhados diversas vezes pela sua colega de trabalho, a Senhora CC, ora arrolada como testemunha e, bem assim, pelo seu atual companheiro, o Senhor DD.

26.º

Em 25-03-2022, o Arguido, sem que tivesse sido convidado pela Assistente, em virtude de um jantar convívio por esta organizado, dirigiu-se à habitação desta – já após finalizado o referido evento -, sustentando que, posto que após tentativas várias de contactos telefónicos malogradas, se decidiu por vê-la pessoalmente, tendo, para o efeito, passado pelo portão que dava para o jardim da referida habitação, introduzindo-se dentro de habitação alheia – titulada pela Assistente - sem consentimento.

27.º

O Arguido, durante o iter temporal acima referido, realizou vários contactos telefónicos endereçados à Assistente, por via de chamadas, chamadas essas indesejáveis, impertinentes, assediantes e atentatórias da honra e autodeterminação existencial e da esfera de liberdade da Assistente, testemunhadas, pela sua colega, a Senhora CC.

28.º

Nessas chamadas, o Arguido, de forma persecutória e assediante, questionava a Assistente quanto às razões de esta lhe não responder às mensagens de texto por ele endereçadas; confrontava-a quanto à veracidade de certos factos; pugnava pela ilegitimidade de a Assistente se inscrever numa nova relação amorosa (quando, ao tempo dos factos imputados, a Assistente não se encontrava em qualquer relação, não tendo o dever de prestar contas a terceiros, em relação à sua vivência); descrevia-lhe exatamente a indumentária por ela utilizada, qual confissão de vigilância ilícita; reivindicava-lhe a continuação de um quadro dialógico, quando as suas relações intersubjetivas já há muito haviam cessado.

29.º

Ademais, em 23-04-2022, o Arguido ameaçou a Assistente, por chamada telefónica, qual ato de vindicta privada sem substrato justificativo, que iria danificar o veículo de que a Assistente é titular.

30.º

E, efetivamente, o veículo da Assistente apareceu danificado no dia imediatamente posterior à realização da referida chamada telefónica – na madrugada de 24-04-2022 -, com uma série de riscos na lateral esquerda, em manifestação ofensiva persecutória, invasiva e assediante, formando a palavra “Puta”, conforme docs. 6 e 7 ora juntos.

31.º

Por outro lado, o Arguido contactava a Assistente, endereçando reiteradamente mensagens de texto para o seu contacto telefónico, mensagens essas de caráter invasivo, assediante, persecutório, ameaçador e atentatório da honra da Assistente.

32.º

Nas mensagens de texto ilustrativas ora juntas, o Arguido, imiscuindo-se na vida da Assistente, insinuou que esta andaria a manter relações sexuais em público, dentro do seu veículo, porquanto, alegadamente, tal factualidade foi por ele testemunhada,

33.º

circunstância por demais demonstrativa da reiteração e persistência associadas aos atos persecutórios e de vigilância por si praticados, atentatórios da autodeterminação existencial e da esfera de liberdade da Assistente!

34.º

Concretizando: em 23-04-2022, pelas 03h06min – releve-se a inconveniência subjacente ao horário, em virtude das altas horas da madrugada -, o Arguido endereçou uma mensagem de texto para o contacto telefónico da Assistente com o seguinte teor, que reproduzimos: “Dizias que não tinhas ninguém mas afinal tens podias ter arranjado melhor sítio para foder que o teu carro” [sic] – cfr. doc. 1

35.º

Às 10:37 do mesmo dia, após manifestação de perplexidade pelo que leu e apreendeu na esfera de cognição por parte da Assistente, o Arguido, em insistência, ofensivo, despudorado, assediante, invasivo, aventa a seguinte declaração, veiculada por mensagem de texto, que ora reproduzimos: “Nada disso tu é que achavas que eu era parvo mas a máscara caiu és igual a muitas outras queres e festa” [sic] – cfr. doc. 1.,

36.º

à qual a Assistente respondeu, tendo pedido para que o Arguido a deixasse em paz, relevando, ademais, que lhe não devia nada, nem tendo de lhe prestar contas.

37.º

Após o que, em tom ameaçador, exteriorizou o Arguido que: “pois não mas davas beu beu o tempo todo brincas te cmg mas o melhor está para vir” [sic] – cfr. doc. 1.

38.º

Novamente ofensivo, despudorado, assediante, invasivo, mais declarou o Arguido: “Nada disso cura te e tu que és uma puta igual a muitas outras já correste meio mundo” [sic] –, adiantando, depois, “Vai pó caralho” [sic] – cfr. doc. 2.

39.º

No dia seguinte, já num quadro emocional asténico, ante a angústia e o desespero que a assolava, a Assistente mencionou a possibilidade de realizar participação criminal do Arguido, caso os atos persecutórios deste persistissem, ao qual ele ripostou, entre outros elementos, que “(…) putas já tive muitas foste mais uma (…) e já agora queixa do que? Com que provas? (…) [sic] – cfr. doc. 3,

40.º

qual manifestação do propósito subjetivo de inferiorizar, de amedrontar, de perturbar a esfera de autodeterminação existencial da Assistente, bem como a sua esfera de liberdade, e de violar a sua honra e a reserva ou intimidade da vida privada!

41.º

Atos reiterados pelos dias amiúde, conforme docs. 1 a 5 ora juntos.

42.º

Com isso a assistente foi assolada por profundo receio, quer pela sua integridade física e liberdade, quer pela integridade física da sua filha, tendo passado noites sem dormir, trancado as portas de casa, a fim de não ver violado o centro de imputação espacial individual, por meses amiúde à data dos factos, sentindo-se recorrentemente ameaçada, com medo de que o Arguido pudesse atentar contra si a qualquer momento.

43.º

Tais atos são passíveis de se subsumirem nos seguintes ilícitos típicos:

a) Perseguição, p. e p. pelo art. 154º-A do CP;

b) Perturbação da vida privada, p. e p. pelo art. 190º, n.º 2 do CP;

c) Violação de domicílio, p. e p. pelo art. 190º, n.º 1 do CP.

44.º

Sendo certo que entre o crime de perseguição e o crime de perturbação da vida privada há uma relação de concurso aparente, espraiada numa consunção (6) – aquele absorve este, posto que “no concurso aparente de infracções, embora o comportamento do agente preencha vários tipos de crime, o que sucede é que o conteúdo ou substância criminosa é aqui tão esgotantemente abarcado pela aplicação ao caso de um só dos tipos violados, que os restantes devem recuar, subordinando-se perante uma tal aplicação” (7) ,

45.º

Pelo que a operação hermenêutico-subsuntiva quedará pelo primeiro e terceiro ilícitos típicos.

Atendamos,

Do Crime de Perseguição

46.º

Dispõe o art. 154º-A, n.º 1 do CP que “quem, de modo reiterado, perseguir ou assediar outra pessoa, por qualquer meio, direta ou indiretamente, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 3 anos ou pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal”.

47.º

Este ilícito típico convoca o fenómeno criminológico de stalking, cujo escopo teleológico está associado à tutela da autodeterminação e da liberdade de ação e decisão da pessoa, posto que tipicamente lhe subjaz a ideia de estabelecimento de relação comunicativa indesejada, impertinente, assediante, de vigilância repetida, de um complexo comportamental persecutório, quer no mundo real, quer no mundo virtual, mormente, na primeira hipótese, através de um contacto indesejado ativo e positivo com a vítima, mediante aparições no seu local de trabalho, em espaços de lazer ou em quadros de formação; na segunda hipótese, através de chats, contactos com terceiros com o fito de conhecimento da vida da vítima, e outros meios tecnológicos disponíveis.

48.º

Tal ilícito típico consubstancia autêntica violência na esfera da vítima, porquanto lhe veda a sua margem de liberdade e de conformação existencial, atento o receio, a inquietação e outras consequências incrementadoras de inibição na determinação do visado.

49.º

Como salutarmente assinala o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 01-04-2020, prolatado no âmbito do processo n.º 1031/18.0PIPRT.P1 (8) , “Stalking é uma forma de violência interpessoal alicerçada num padrão de comportamento desdobrado em múltiplas condutas de diferentes espécies ou concretizado em vários atos da mesma natureza, mas que têm de comum entre si, corresponderem a uma campanha de assédio, de vigilância, de tentativas de contacto e comunicação, de invasão da privacidade, de monitorização da vida e de indução, na vítima, de sentimentos de medo, de perigo emitente, de revolta, de impotência e ansiedade, adotado de forma reiterada e mais ou menos persistente”.

50.º

Ademais, como nota o mesmo Acórdão, “o modo de execução abrange uma vasta gama de condutas, desde as que nem sequer têm tutela penal e até podem confundir-se com atos de mera cortesia, ou mesmo de afetividade, ou romantismo, nas relações sociais, até àqueles que, se isolada e autonomamente considerados, corresponderiam a crimes autónomos de ameaça, ou de coação, ou de fotografias ilícitas, ou de devassa da vida privada, devassa por meio de informática, de difamação ou injúrias, de violação de domicílio, de ofensa à integridade física, de coação sexual, violação e importunação sexual, de violência doméstica, desde que se mostrem aptos, segundo a teoria da causalidade adequada, para imprimirem na esfera pessoal da vítima sentimentos de intimidação, receio, medo, ou outros que consubstanciam a perda ou diminuição da liberdade de decisão e de ação”.

51.º

Ora, de acordo com a jurisprudência e a doutrina (9), e compulsado o ilícito típico em mérito, basta que o ato persecutório ou assediante se revele adequado, num quadro de prognose póstuma perspetivado ex ante, a suscitar medo, inquietação, intimidação, receio, ansiedade, perturbação, etc., não se descortinando a necessidade da sua efetividade, i.e., basta que o ato tenha, em potência, a idoneidade a espraiar-se consequencialmente em tais estados de ânimo, afeto ou emotivo.

52.º

Compulsada a presente matéria factual, dúvidas se não descortinam quanto à subsunção do quadro fáctico supra exposto no presente RAI no crime de perseguição.

53.º

Por outro lado, o Arguido, ao ter atuado como atuou, revelou intenção e consciência de perturbar a esfera de liberdade e de autodeterminação existencial da Assistente, pelo que se dão por verificados o dolo, em sede de tipo subjetivo, e a consciência da ilicitude, em sede de culpabilidade.

54.º

Pelo que deve ser pronunciado, posto que é autor material de um crime de perseguição, p. e p. pelo art. 154º-A do CP.

Do Crime de Violação de Domicílio

55.º

Nos termos do art. 190º, n.º 1 do CP, “quem, sem consentimento, se introduzir na habitação de outra pessoa ou nela permanecer depois de intimado a retirar-se é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 240 dias”.

56.º

O tipo objetivo que se preenche em abstrato no caso sub judice, atenta a factualidade vertida em 26.º, compreende o primeiro segmento da ação típica em mérito – “introduzir-se na habitação de outra pessoa”,

57.º

qual entrada arbitrária do agente no centro espacial de habitação alheia, não se exigindo, como nota Costa Andrade, “a entrada total, já que bastará a entrada parcial: como meter a cabeça através de uma janela ou a interposição de uma porta e o batente, não permitindo que a porta se feche .

58.º

Ademais, embora o bem jurídico imediatamente tutelado pela presente incriminação assente na reserva da vida privada, na vertente privacidade do lar, certo é que há refrações típicas passíveis de pôr o acento tónico na paz jurídica individual ou na autoconformação existencial, na vertente de liberdade de conformação da vida .

59.º

Tal sucede, mormente, em episódios de stalking – o que sucede in casu -, posto que, por via da violação do domicílio, o Arguido procurou a proximidade física da vítima Assistente, qual ato persecutório tendente a amedrontá-la e a limitar-lhe a esfera de liberdade de decisão e de conformação existencial, expressão, nas palavras de Costa Andrade, de um “insuportável acossamento predatório” .

60.º

Pelo que deve ser o Arguido pronunciado, posto que é autor material de um crime de violação de domicílio, p. e p. pelo art. 190º, n.º 1 do CP.(…)”

***

Analisemos.

Nos presentes autos, o Ministério Público, findo o inquérito, determinou o arquivamento do processo, por ter entendido que não se haviam reunido indícios suficientes da prática dos crimes sob investigação, tendo dado cumprimento ao disposto no artigo 277.º do CPP. Não se tendo conformado com o teor do despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público, veio a assistente requerer a abertura da fase de instrução, tendo pugnado, no requerimento apresentado para tal fim, pela pronúncia do arguido pela prática, em concurso efetivo, de um crime de perseguição, p. e p. pelo artigo 154º-A do CP, e de um crime de violação de domicílio, p. e p. pelo artigo 190º, n.º 1 do CP.

Compulsado o teor do requerimento para abertura da fase de instrução da autoria da assistente, nenhuma dúvida temos de que o mesmo não encerra uma verdadeira acusação, nos termos acima explicitados, pois que não contém uma narração dos factos precisa e sequencial, não se encontrando a sua delimitação e conteúdo ao alcance da apreensão dos respetivos destinatários, nos quais se inclui o arguido. O acervo factológico relevante para a imputação dos ilícitos penais àquele, quer na sua vertente subjetiva – à qual se reporta a decisão recorrida – quer, acrescentamos nós, no que aos elementos objetivos dos tipos diz respeito, ou não está, de todo, presente no requerimento – como sucede no que tange ao elemento subjetivo do crime de violação de domicílio – ou se encontra dissipado numa extensa alegação na qual se incluem, de forma indistinta, conceitos jurídicos, explicações sobre os tipos (13) considerações e conclusões subjetivas sobre as condutas que se pretendem imputar ao arguido e, enfim, alguns factos! Impunha-se à assistente que descrevesse de forma precisa, clara e escorreita a concreta materialidade das condutas integradoras dos ilícitos que imputa ao arguido nas suas dimensões objetiva e subjetiva. Mas a verdade, é que não o fez.

Na motivação do recurso, a assistente salienta as suas divergências relativamente à apreciação levada a efeito no despacho recorrido, fornecendo novamente a sua visão e a sua interpretação dos factos e identificando alguns artigos do RAI – concretamente os artigos 39º, 53º e 58º – nos quais entende encontrarem-se alegados os elementos subjetivos dos tipos. Mas não tem razão.

Alega a recorrente a este propósito que:

“III - No art. 39.º do RAI, após a adução, nos artigos 31.º a 39.º, de factos constitutivos do crime de perseguição, p. e p. pelo art. 154º-A do CP, fica por demais demonstrada a intenção e volição, em sede de tipo, por parte do Arguido, de inferiorizar, amedrontar e perturbar a esfera de autodeterminação existencial da Assistente e, bem assim, de violar a sua esfera de liberdade, a sua honra e a intimidade da vida privada, tendo o dolo, in casu, por referência o específico bem jurídico tutelado pela norma incriminadora.

IV - Bastando atentar na expressão “qual manifestação do propósito subjetivo”, consubstanciada numa exteriorização sinonímica da primeira modalidade de dolo – o dolo direto -, que se arvora no conhecimento e vontade de realização do facto típico, conforme o que resulta do art. 14º do CP!

V – Releve-se que no art. 53.º do RAI, a Assistente ora Recorrente convoca de forma clarividente, após a factualidade aduzida, a concorrência da intenção e vontade de realização do tipo de ilícito de perseguição, bastando atentar no respetivo conteúdo para apartar dúvidas interpretativas: “53.º - Por outro lado, o Arguido, ao ter atuado como atuou, revelou intenção e consciência de perturbar a esfera de liberdade e de autodeterminação existencial da Assistente, pelo que se dão por verificados o dolo, em sede de tipo subjetivo, e a consciência da ilicitude, em sede de culpabilidade”.

VI - No art. 58º do RAI, ficou patente que o Arguido representou e quis – representação e volição constitutivos do dolo de primeiro grau - a proximidade física da vítima Assistente ora Recorrente, na sequência dos factos aduzidos constitutivos de um crime de violação de domicílio, p. e p. pelo art. 190º, n.º 1 do CP, integrado, sociologicamente, no quadro de um episódio de stalking.”

Nada de mais equívoco!

Com efeito, e ressalvado o devido respeito, os referenciados artigos do RAI (14), elaborados como se de um exercício literário se tratasse – com recurso a juízos valorativos e adjetivação exacerbada – contrariamente ao que alega a recorrente, não contêm os factos atinentes ao dolo dos dois crimes que se pretende imputar ao recorrente.

Na verdade, conforme pertinentemente assinala a Exm.ª Procuradora Adjunta no seu bem elaborado parecer “(…) Quanto ao crime de invasão de domicílio os mesmos são totalmente ausentes. Quanto ao crime de perseguição, o assistente usou uma formulação que seria própria duma alegação após a produção de prova” com estes comportamentos evidenciou-se que o arguido quis fazer isto e isto (…)”

É sabido que o que necessariamente tem que constar de uma acusação é a imputação direta dos fatos à pessoa, factos que, no caso do dolo deverão traduzir-se no conhecimento e vontade de realização dos elementos objetivos do tipo incriminador, conforme expressamente dispõe o artigo 14.º do Código Penal. Ora, os referenciados artigos do RAI, bem como todos os demais que o integram, são omissos relativamente à vontade livre de realização das condutas objetivas. Não decorre da peça processual em análise que o arguido tivesse agido voluntariamente e que tivesse sido livre no seu processo de decisão, e, contrariamente ao que se defende no recurso, entendemos que não poderão tais factos extrair-se indiretamente dos restantes factos, ou seja dos factos objetivos alegados.

E nem se diga que no direito processual penal nacional não se impõe a utilização de quaisquer fórmulas estereotipadas. A nosso ver, a rejeição do RAI que agora sindicamos não assentou na valorização excessiva da forma – através da consideração da inevitabilidade da utilização das chamadas fórmulas sacramentadas ou dos jargões judiciários – ou na primazia da forma sobre a substância, encontrando-se, outrossim, suportada por uma análise cuidada dos factos invocados, com atenção ao seu significado, com vista a avaliar-se se nos mesmos caberia materialmente a alegação dos elementos subjetivos dos tipo formalmente em falta. Concluiu o julgador que a descrição factual não continha tal alegação, nem formal, nem materialmente, entendimento que perfilhamos.

Efetivamente, deveria, a nosso ver, a descrição dos elementos constitutivos do dolo ter sido feita através de factos concretos dos quais resultasse, de forma inequívoca, que o arguido quisera livremente praticar as condutas objetivas integradoras dos crimes de perseguição e de violação de domicílio, o que não se verifica. Convoquemos a este propósito o Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 1/2015, de 20 de Novembro (15), no qual podemos ler relativamente ao dolo, que a sua alegação deverá ser feita através de uma «fórmula em que se imputa ao agente o ter atuado de forma livre (isto é, podendo ele agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou o dever ser jurídico), voluntária ou deliberadamente (querendo a realização do facto), conscientemente (isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto) e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei (consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude).».

Reiteramos que, pese embora tenha anunciado que o faria, a assistente não concedeu autonomia à vertente da acusação, tendo violado o dever de fundamentação, que emerge como uma decorrência lógica e inevitável da estrutura acusatória do processo penal português, com respaldo constitucional no artigo 32.º, nº 5.º da CRP, de acordo com a qual ao acusador compete formular a acusação, competindo o julgamento a órgão distinto, o tribunal, e não cabendo a este modificar a peça processual que recebeu, designadamente aditando factos essenciais como sejam os constitutivos de elementos do tipo penal imputado ao arguido.

Com efeito, como sabemos, o juiz está substancial e formalmente limitado na pronúncia aos factos pelos quais tenha sido deduzida acusação formal ou que tenham sido descritos no requerimento do assistente e que este considera que deveriam ser o objeto de acusação.

Não cabe igualmente ao juiz percorrer o RAI e, cirurgicamente, escolher, de entre a amálgama de alegações que o integram, aquelas que contêm os factos que poderão indiciar o cometimento pelo arguido de um específico crime, compondo uma acusação que não lhe compete formular. Outro entendimento que viabilizasse tal procedimento pelo JIC – como parece pretender a recorrente – redundaria numa flagrante violação do princípio do acusatório, estruturante do nosso processo penal a que acima já aludimos, pois que significaria atribuir-lhe a titularidade do exercício da ação penal, que manifestamente lhe não pertence.

A tarefa de acusar cabe ao acusador – in casu à assistente – e não há outra forma de a cumprir sem ser condensando os factos no libelo acusatório, narrando-os, enumerando-os e ordenando-os lógica e cronologicamente, sem outras considerações de permeio que aí não podem ter assento, de forma a que quem lê tal relato compreenda o que se imputa a quem, sem necessidade de realizar qualquer triagem fáctica. Não o fazendo, a suposta peça acusatória está votada ao insucesso e ao juiz não lhe resta senão rejeitá-la. Relembramos que na posição oposta se encontra o arguido, cujos direitos de defesa é preciso acautelar, direitos nos quais em primeiro lugar se inclui o de saber quais são exatamente os factos de que é acusado e dos quais tem que se defender. Só dando conhecimento preciso, claro e rigoroso ao arguido dos motivos da acusação se revelará possível assegurar-lhe uma defesa justa, própria de um processo equitativo salvaguardado pelo artigo 20º, nº 4 da CRP e pelo artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

Em suma, na situação que constitui o objeto da nossa apreciação, para além de o RAI se encontrar deficientemente elaborado no que à narração dos factos diz respeito, nos termos sobreditos, na verdade, no mesmo não conseguimos descortinar a alegação cabal dos elementos subjetivos dos tipos, designadamente nos artigos 39º, 53º e 58º que a assistente convoca no recurso, conforme acima verificámos. De tal constatação se extrai, inexoravelmente, que os factos relatados no requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente não integram qualquer tipo criminal, aqui cabendo recordar a jurisprudência fixada com a prolação do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 1/2015, de acordo com a qual: “a falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.”

Somos, pois, a concluir que a situação dos autos se integra na “inadmissibilidade legal” como causa de rejeição do requerimento de abertura de instrução, conquanto, face à insuficiência da matéria de facto que vimos de expor, é mandatório que se conclua, como bem se concluiu na decisão recorrida, que a instrução se revela inexequível por falta de objeto. Bem andou, assim, o tribunal recorrido ao rejeitar, por inadmissibilidade legal, o requerimento para abertura da instrução, mostrando-se tal fase processual irremediavelmente comprometida.

***

III- Dispositivo.

Por tudo o exposto e considerando a fundamentação acima consignada, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso e, consequentemente, em manter a decisão recorrida.

*

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC.

(Processado em computador pela relatora e revisto integralmente pelos signatários)

Évora, 7 de novembro de 2023

Maria Clara Figueiredo

António Condesso

Nuno Garcia

.............................................................................................................

1 No sentido que o requerimento de abertura de instrução deverá equivaler a uma acusação alternativa, para além de vasta jurisprudência dos tribunais superiores, se pronunciou o Tribunal Constitucional no acórdão nº 258/2004 de 14 de abril de 2004, relatado pela Conselheira Maria Fernanda Palma. No mesmo sentido fundamentou o acórdão uniformizador da jurisprudência n.º 7/2005, de 12 de maio de 2005, relatado pelo Conselheiro Armindo dos Santos Monteiro. Na doutrina, entre muitos outros, também o Professor Germano Marques da Silva, no seu Curso de Processo Penal, vol. III, Verbo, pp. 139, toma posição idêntica.

2 É justamente por se tratar de omissão de requisitos essenciais que a rejeição do RAI por inadmissibilidade da instrução não constitui compressão significativa dos direitos de defesa dos arguidos, nem qualquer vulneração do princípio do processo equitativo, entendimento claramente expresso no acórdão do Tribunal Constitucional nº 46/2019, relatado pelo Conselheiro Gonçalo Almeida Ribeiro e disponível no respetivo site.

3 É vasta a jurisprudência dos tribunais superiores que, uniformemente, se tem vindo a pronunciar neste sentido, destacando-se, de entre os mais recentes acórdãos dos Tribunais das Relações, os seguintes, todos disponíveis em www.dgsi.pt:

- Acórdãos da Relação de Lisboa, de 12.03.2019, relatado por Artur Vargues; de 04.05.2021, relatado por Luís Gominho; de 21.09.2022, relatado por Rui Teixeira e de 24.05.2023, relatado por Cristina Almeida e Sousa.

- Acórdãos da Relação do Porto, de 10.11.2021, relatado por João Pedro Pereira Cardoso e de 22.06.2022, relatado por Paulo Costa.

- Acórdão da Relação de Coimbra de 12.07.2023, relatado por Alexandra Guiné.

- Acórdãos da Relação de Guimarães, de 21.05.2018, relatado por Ausenda Gonçalves e de 23.05.2022, relatado por Pedro Freitas Pinto.

- Acórdãos da Relação de Évora, de 18.02.2020, relatado por Alberto Borges; de 14.07.2020, relatado por Isabel Duarte; de 21.06.2022, relatado por Renato Barroso; de 13.09.2022, relatado por João Amaro e de 28.02.2023, relatado por António Condesso.

4 Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 7/2005, de 12.05, publicado no Diário da República, n.º 212 – S-A de 4.11,2005, relatado pelo Conselheiro Armindo dos Santos Monteiro.

5 Disponível no site do Tribunal Constitucional.

6 PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código Penal à Luz da Constituição da República e

da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3 edição, Lisboa: Universidade Católica Editora, 2015, p.610.

7 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10-10-1996, Processo n.º 96P392, disponível em https://www.dgsi.pt.

8 Disponível em https://www.dgsi.pt.

9 PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário ao Código Penal, cit., p. 609.

10 MANUEL DA COSTA ANDRADE, “Art. 190º”, in Jorge de Figueiredo Dias (dir.), Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2ª edição, Coimbra: Coimbra Editora, 2012, p. 1019.

11 MANUEL DA COSTA ANDRADE, op. cit., p. 1008.

12 MANUEL DA COSTA ANDRADE, op. cit., p. 1007.

13 Com indicação de doutrina e jurisprudência que a recorrente transcreveu e citou no corpo da alegação – concretamente na parte que a mesma identificou como “fórmula acusatória” que acima transcrevemos – e em notas de rodapé, como se se tratasse já da decisão sobre o requerimento, olvidando totalmente que o que lhe competia era elencar os factos, de forma precisa e concisa, elaborando uma acusação que pudesse ser submetida a julgamento.

14 É a seguinte a redação dos artigos 39º, 53º e 58º do RAI que a recorrente convoca no recurso para sustentar que aí se alegam os elementos subjetivos dos tipos:

“39.º No dia seguinte, já num quadro emocional asténico, ante a angústia e o desespero que a assolava, a Assistente mencionou a possibilidade de realizar participação criminal do Arguido, caso os atos persecutórios deste persistissem, ao qual ele ripostou, entre outros elementos, que “(…) putas já tive muitas foste mais uma (…) e já agora queixa do que? Com que provas? (…) [sic] – cfr. doc. 3,(…)

53.º Por outro lado, o Arguido, ao ter atuado como atuou, revelou intenção e consciência de perturbar a esfera de liberdade e de autodeterminação existencial da Assistente, pelo que se dão por verificados o dolo, em sede de tipo subjetivo, e a consciência da ilicitude, em sede de culpabilidade.(…)

58.º Ademais, embora o bem jurídico imediatamente tutelado pela presente incriminação assente na reserva da vida privada, na vertente privacidade do lar, certo é que há refrações típicas passíveis de pôr o acento tónico na paz jurídica individual ou na autoconformação existencial, na vertente de liberdade de conformação da vida.”

15 Publicado no Diário da República n.º 18/2015, Série I de 2015.01.27.