Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
463/21.0T8MMN-D.E1
Relator: CRISTINA DÁ MESQUITA
Descritores: CRÉDITOS LABORAIS
PRESTAÇÃO DE TRABALHO
ESTABELECIMENTO
Data do Acordão: 11/23/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Não estando demonstrado o nexo funcional entre o imóvel e a prestação de trabalho dos trabalhadores da insolvente que reclamaram créditos laborais no processo de insolvência, nexo exigido pelo citado artigo 333.º, n.º 1, alínea b), do CT, na interpretação ampla do mesmo, pois que no imóvel apreendido para os autos a insolvente não desenvolvia qualquer atividade, nem mesmo aquela que constituía o seu objeto social, haverá que reformular a graduação dos créditos dos trabalhadores.
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 463/21.0T8MMN-D.E1
(2.ª Secção)
Relatora: Cristina Dá Mesquita
Adjuntas: Isabel Peixoto Imaginário
Anabela Luna de Carvalho

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
I.1.
Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de (…), CRL, credora reclamante, interpôs recurso da sentença de verificação de graduação de créditos proferida pelo Juízo de Competência Genérica de Montemor-o-Novo, Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Évora, no âmbito do processo de insolvência de (…), Lda. na parte em que reconheceu aos créditos laborais reclamados pelos trabalhadores da insolvente e ao crédito reclamado pelo Fundo de Garantia Salarial (por sub-rogação) o privilégio imobiliário especial previsto no artigo 333.º, n.º 1, alínea b), do Código do Trabalho e, em conformidade, os graduou em 1.º lugar pelo produto da venda do (único) imóvel apreendido nos autos, ou seja, em lugar preferível ao crédito hipotecário da recorrente.
I.2.
A recorrente formula alegações que culminam com as seguintes conclusões:
«27. A sentença proferida para verificação e graduação de créditos graduou os créditos nos seguintes termos:
«Pelo produto da venda do imóvel apreendido nos autos, dar-se-á pagamento pela ordem seguinte:
Em primeiro lugar e a par do crédito do Fundo de Garantia Salarial, os créditos laborais de (…); (…); (…); (…); (…) e (…).
Em segundo lugar, o crédito do Estado/AT, por IMI.
Em terceiro lugar, o crédito garantido do credor Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de (…), C.R.L..
28. Esta decisão confere aos créditos laborais, quer sejam estes titulados pelos trabalhadores, quer pelo Fundo de Garantia Salarial (por efeito de sub-rogação nos direitos de crédito e respetivas garantias, nomeadamente privilégios creditórios dos trabalhadores, na medida dos pagamentos efetuados acrescido de juros de mora vincendos), um lugar que à luz da Lei não lhes compete.
29. A conclusão pela existência de privilégio creditório, imobiliário especial sobre o imóvel apreendido, é errada, porquanto não estão reunidos os pressupostos de facto e de direito, para a existência desta garantia prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 333.º do Código do Trabalho.
30. Os autos contêm factualidade bastante para que se conclua em sentido oposto ao defendido pelo Tribunal a quo, sendo manifesto que no prédio apreendido a insolvente não desenvolvia qualquer atividade, nem mesmo aquela que constituía o seu objeto social.
31. Para decidir como fez o Tribunal a quo estava obrigada a invocar factos concretos e sindicáveis pelas partes, nos quais teria que invocar factos suscetíveis de fundamentar a existência de uma ligação funcional entre os trabalhadores cujos créditos foram verificados e o prédio apreendido.
32. Para fundamentar a existência de privilégio creditório imobiliário especial sobre o imóvel apreendido, o Tribunal a quo limitou-se a invocar um Acórdão deste Tribunal da Relação, dali extraindo o que considerou ser bastante para, assim, graduar os créditos laborais em segundo lugar.
33. Pese embora bem se saiba que a toda a decisão judicial tem, necessariamente, ser conter fundamentos de facto, sempre se dirá que os excertos do citado Acórdão surgem na sentença recorrida de modo descontextualizado, de tal sorte que é ali invertido o sentido daquela decisão jurisprudencial.
34. Da integral leitura daquele aresto conclui-se, justamente, pela necessidade de o julgador aplicar o disposto na citada norma do CT em respeito à factualidade que, em cada caso concreto, permitirá aferir pela existência, ou não, de uma ligação funcional entre a prestação de trabalho e a atividade desenvolvida no prédio do empregador que se pretende afetado pelo privilégio creditório.
35. Da sentença recorrida nada consta a este respeito e não poderia mesmo constar, pois nenhum facto pode suportar a referida ligação.
36. Consequentemente, não estão reunidos os pressupostos para que o prédio apreendido seja objeto do citado privilégio creditório, o que equivale a dizer que os créditos laborais detidos pelos trabalhadores e Fundo de Garantia Salarial não gozam desta garantia.
37. De tudo isto resulta que a sentença recorrida violou regras legais essenciais, e disso resultou a ilegal graduação dos créditos dos trabalhadores e do Fundo de Garantia Salarial em lugar preferível ao crédito hipotecário da aqui recorrente.
38. Não fora esta grosseira violação Lei e apenas se poderia falar de um único privilégio creditório imobiliário especial, aquele de que beneficiaria o crédito da Autoridade Tributária, resultante de IMI, e que lhe permitirá ser pago pelo produto da venda do prédio apreendido, em primeiro lugar.
39. E na sentença que deverá ser proferida em substituição da recorrida, àquele crédito seguir-se-á o hipotecário da recorrente, nos termos do artigo 686.º do Código Civil, pois que a prioridade do registo, junto do Registo Predial, confere-lhe prioridade sobre o outro crédito garantido por hipoteca.
40. Ao decidir nos termos em que o fez o Tribunal a quo proferiu uma decisão violadora dos direitos e interesses da recorrente, e para a qual não dispunha de factos capazes de fundar o Direito ali enunciado.
41. A ausência de fundamentação de facto que, por um lado contrarie tudo quanto nos autos prova a inexistência de qualquer atividade no prédio apreendido e, por outro justifique a existência do privilégio creditório imobiliário especial atribuído aos créditos laborais, constitui vício da sentença gerador da sua nulidade, conforme resulta do n.º 1, alínea b), do artigo 615.º do CPC.
Assim decidindo será feita Justiça».
I.3.
Houve resposta às alegações de recurso por parte do Ministério Público, da credora reclamante (…) e pelo Administradora da Insolvência. O primeiro e o terceiro pugnaram pela improcedência do recurso e a segunda pela procedência do recurso da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de (…), CRL.
O recurso foi recebido pelo tribunal a quo.
Corridos os vistos em conformidade com o disposto no artigo 657.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1.
As conclusões das alegações de recurso (cfr. supra I.2) delimitam o respetivo objeto de acordo com o disposto nas disposições conjugadas dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do CPC, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2 e artigo 663.º, n.º 2, ambos do CPC), não havendo lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, ambos do CPC).

II.2.
As questões a decidir são as seguintes:
1 – Saber se ocorre nulidade da sentença por falta de fundamentação.
2- Reapreciação da decisão de mérito.

II.3.
FUNDAMENTAÇÃO
II.3.1.
FACTOS
Os factos a considerar são:
Os que constam da sentença recorrida, concretamente:
«A. Da verificação dos créditos
O Sr. Administrador de Insolvência juntou aos autos lista de credores, onde reconhece os seguintes créditos:
1. Autoridade Tributária e Aduaneira, com créditos emergentes de:

a. IRS, de natureza privilegiada, no valor de € 29.121,47;

b. IRC, de natureza privilegiada, no valor de € 6.690,39;

c. IMI, de natureza garantida, no valor total de € 26.163,60;

d. IRS, IRC e coimas, contraordenações e custas, de natureza comum, nos valores de € 42.045,03, € 2.830,92 e € 8.030,01, respetivamente, no montante global de € 52.905,96.

2. Do Instituto da Segurança Social, IP., no valor total de € 171.156.09, emergente de contribuições devidas, sendo € 63.807,27 respeitantes a contribuições devidas nos últimos 12 meses e o restante valor, de € 107.348,82, de datas anteriores;

3. Créditos laborais, de natureza privilegiada:

a. (…), no valor de € 14.793,81;

b. (…), no valor de € 34.831,30;

c. (…), no valor de € 33.947,77;

d. (…), no valor de € 19.069,53;

e. (…), no valor de € 58.678,01;

f. (…), no valor de € 40.228,56,
emergentes de contrato de trabalho e/ou respetiva cessação;
4. Do requerente Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de (…), C.R.L., da declaração de insolvência, nos autos principais, no valor de € 521.031,54, garantido por hipoteca sobre o prédio denominado Herdade do (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Vendas Novas, sob o n.º (…);

5. Do requerente Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de (…), C.R.L. no valor de € 10.081,28.

6. De (…), no valor de € 636.750,00, garantido por hipoteca sobre o prédio denominado Herdade do (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Vendas Novas, sob o n.º (…).

7. Da Caixa (…), com natureza comum, no valor de € 12.847,29;

8. De (…) – Gestão e Consultadoria, com natureza comum, no valor de € 71.537,50;

9. Da EDP (…) – Comercial de Energia, S.A., com natureza comum, no valor de € 1.305,38;

10. Da EPAL – empresa portuguesa das águas livres, S.A., com natureza comum, no valor de € 378,21;

11. Da (…) Portugal, Instituição Financeira de Crédito, S.A., com natureza comum, no valor de € 25.368,77;

12. Do Município de Vendas Novas, com natureza comum, no valor de € 231,58;

13. Do (…) Banco, S.A., com natureza comum, no valor de € 116.732,41;

14. Da (…) – Engenharia, Gestão e Fiscalização, Sociedade Unipessoal, Lda., com natureza comum, no valor de € 12.575,39.

*
Importa ainda considerar que:
A. A sentença de declaração de insolvência foi proferida em 12-10-2021 e transitou em julgado em 02-11-2021, cf. certidão eletrónica junta aos autos principais em 26-11-2021.

B. Foi apreendido no âmbito dos presentes autos o bem imóvel terreno para construção descrito na Conservatória do Registo Predial de Vendas Novas sob o n.º (…) e na matriz sob o artigo (…), sito no Parque Industrial de (…), lote (…), concelho e freguesia de Vendas Novas.

C. Da certidão permanente do registo predial do mencionado imóvel, verifica-se que se encontram registadas:

- pela Ap. (…), de 10-04-2018, hipoteca voluntária a favor do credor Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de (…), C.R.L., para garantia do capital de € 500.000,00, com o montante máximo assegurado de € 715.000,00;
- pela Ap. (…), de 10-07-2020, hipoteca voluntária, a favor do credor (…) e de (…), para garantia do capital no valor de € 600.000,00;

- pela Ap. (…), de 16-04-2021, hipoteca legal a favor do Instituto da Segurança Social, IP, para garantia do pagamento da quantia de € 102.527,10.

D. Foram ainda apreendidos os seguintes bens móveis:

- Impressora Multifunções Epson;

- 7 computadores portáteis 17’’;

- Computador /servidor;

- 2 cadeiras;

- 3 armários de três gavetas
(conforme resulta do auto de apreensão do apenso F).
E. O Fundo de Garantia Salarial pagou as seguintes quantias aos seguintes trabalhadores:

a. € 8.160,37 a (…), suportando € 863,88 a título de taxa social única e € 111,42 a título de IRS, num total de € 9.135,67;

b. € 7.406,66 a (…), suportando € 1.008,83 a título de taxa social única e € 755,74 a título de IRS, num total de € 9.171,23;

c. € 8.758,11 a (…), suportando € 1.027,35 e € 394,55 a título de taxa social única e IRS, num total de € 10.180,01;

F. Foi reconhecido, em sede de verificação ulterior de créditos, o crédito de Agência para o Desenvolvimento e Coesão, I.P., no valor de € 1.539.520,15, cfr. sentença proferida no apenso C em 13-03-2023 (ainda não transitada em julgado).

G. No apenso C foi julgada a verificação ulterior do crédito da Agência para o Desenvolvimento e Coesão, I.P., no valor de e 1.539.520,15».

*
Dos autos principais resulta a seguinte factualidade resultante:
1 – A insolvente tem como objeto social a produção industrial de derivados de coco líquidos e em cápsulas para aplicação alimentícia, nomeadamente óleo de coco extra virgem e refinado e seus derivados como manteiga e vinagre de coco, investigação e desenvolvimento de novas aplicações de coco para fins alimentares e formação (cfr. certidão do registo comercial da insolvente).
2 – O imóvel apreendido nos autos foi adquirido pela insolvente mediante escritura pública datada de 10 de abril de 2018 no âmbito do processo de insolvência da Sociedade do Parque Industrial de (…), Urbanização, Gestão e Formação, Lda. (cfr. certidão anexa à petição inicial dos autos principais).
3 – Era intenção da requerida construir no prédio referido em (2) uma unidade de transforação de leite de coco, não tendo, até à data em que a sentença de insolvência foi proferida, iniciado as operações de construção (cfr. sentença que declarou a insolvência da …, Lda.).
II.3.2.
Nulidade da sentença
Defende a apelante que a sentença recorrida padece da nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil.
Vejamos se lhe assiste razão.
Liminarmente se dirá que os vícios de sentença previstos no artigo 615.º do CPC traduzem-se no chamado error in procedendo, o qual se verifica quando ocorre a violação de uma disposição reguladora da forma do ato processual, ou seja, quando ato executado é formalmente diferente do legalmente previsto. Nas palavras de Alberto dos Reis[1], «o magistrado comete erro de atividade quando, na elaboração da sentença, infringe as regras que disciplinam o exercício do seu poder jurisdicional».
Em sede de vícios de sentença não se discute se a questão foi, ou não, bem julgada.
O denominado error in judicando num erro na apreciação da matéria de facto ou na determinação e interpretação da norma jurídica aplicável.
No caso, o alegado vício de sentença expressamente invocado pela apelante é a ausência de fundamentação de facto que suporte a graduação em 1.º lugar e o pagamento preferencial pelo produto da venda do (único) imóvel apreendido nos autos dos créditos reclamados por trabalhadores da insolvente e pelo Fundo de Garantia Salarial na medida em que «tudo nos autos prova a inexistência de qualquer atividade no prédio apreendido» e que «não há fundamentação de facto que justifique a existência do privilégio creditório imobiliário especial atribuído aos créditos laborais» (sic).
A alegação da apelante não se integra na previsão do artigo 615.º/1, alínea d), do Código de Processo Civil, antes se traduzindo num suposto erro de julgamento.
Em face do exposto, julga-se que a sentença não padece do vício que lhe é imputado e, por isso, improcede este segmento do recurso.
II.3.3.
Apreciação do mérito da decisão
No presente recurso está em causa a sentença de verificação e graduação de créditos proferida no respetivo apenso, que corre por apenso ao processo de insolvência da devedora (…), Lda. , na parte em que se graduou em 1.º lugar os créditos laborais reclamados pelos trabalhadores da insolente e o crédito do Fundo de Garantia Salarial (por efeito de sub-rogação nos direitos de crédito e respetivas garantias, na medida dos pagamentos que efetuou) ao abrigo do disposto no artigo 330.º, n.º 1, alínea b), do Código do Trabalho, dando-lhes preferência relativamente ao crédito hipotecário da recorrente na respetiva satisfação pelo produto da venda do (único) imóvel apreendido nos autos
A recorrente sustenta que os créditos laborais detidos pelos trabalhadores e Fundo de Garantia Salarial não gozam da garantia prevista naquele preceito legal, porquanto no prédio aprendido a insolvente não desenvolvia qualquer atividade, nem mesmo aquele que constituía o seu objeto social. Consequentemente, a apelante defende que a sentença recorrida deve ser substituída por outra que gradue em 1.º lugar o crédito da Autoridade Tributária resultante de IMI, seguindo-se, em segundo lugar, o crédito hipotecário da recorrente, nos termos do artigo 686.º do Código Civil, dada a prioridade de registo do seu crédito relativamente ao outro crédito garantido por hipoteca.
Apreciando.
A classificação e graduação dos créditos reclamados no processo de insolvência como “créditos da insolvência”[2] é realizada em conformidade com o direito material. O que nos traz à colação o artigo 333.º do Código do Trabalho, epigrafado Privilégios creditórios, que dispõe o seguinte:
«1 - Os créditos do trabalhador emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação gozam dos seguintes privilégios creditórios:
a) Privilégio mobiliário geral;
b) Privilégio imobiliário especial sobre bem imóvel do empregador no qual o trabalhador presta a sua atividade.
2 - A graduação dos créditos faz-se pela ordem seguinte:
a) O crédito com privilégio mobiliário geral é graduado antes de crédito referido no n.º 1 do artigo 747.º do Código Civil;
b) O crédito com privilégio imobiliário especial é graduado antes de crédito referido no artigo 748.º do Código Civil e de crédito relativo a contribuição para a segurança social» (negritos nossos).

Os privilégios creditórios concedem ao credor privilegiado a faculdade de, sem necessidade de registo, ser pago por bens do devedor com preferência a outros credores (artigo 733.º do Código Civil). Trata-se de uma preferência de cumprimento resultante da lei, não sendo os privilégios creditórios suscetíveis de serem constituídos por negócio jurídico. De acordo com o disposto no artigo 735.º do Código Civil são de duas espécies os privilégios creditórios: imobiliários e mobiliários, os primeiros têm por objeto bens imóveis e os segundos bens móveis. Os privilégios mobiliários são gerais se abrangem o valor de todos os bens móveis que integram o património do devedor à data da penhora ou de ato equivalente e especiais se compreendem apenas o valor de determinados bens móveis. Os privilégios imobiliários por serem tendencialmente especiais compreendem só o valor de determinados bens imóveis existentes no património do devedor à data da penhora ou de ato equivalente (artigo 735.º/3, do CC). Porém, existem em outros diplomas legais diversos privilégios imobiliários gerais.

O privilégio imobiliário especial[3], no confronto com direitos de terceiros, prevalece sobre estes últimos, segundo a regra da prevalência, gozando da característica da sequela. O privilégio imobiliário especial é oponível a quem adquire sobre o imóvel um direito real, preferindo no confronto com a consignação de rendimentos, direito de retenção ou a hipoteca, ainda que estes hajam sido constituídos e registados anteriormente (artigo 751.º do CC).

Volvendo ao disposto no artigo 333.º, n.º 1, alínea b), do CT em face do mesmo os créditos do trabalhador emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação, gozam de privilégio imobiliário especial sobre bem imóvel do empregador no qual o trabalhador presta a sua atividade.

Refere-se no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2016, de 23 de fevereiro[4] que «numa primeira aproximação pode dizer-se que a alteração introduzida pelo Código do Trabalho de 2003, consagrando um privilégio imobiliário especial, representa um indiscutível reforço da garantia conferida aos trabalhadores, que decorre, desde logo, da extensão do privilégio creditório, não apenas aos créditos salariais, mas também aos créditos decorrentes da violação do contrato ou da sua cessação; por outro lado, passou a ser inquestionável a sua sujeição ao regime do citado artigo 751.º, assegurando-se a prevalência do privilégio sobre direitos reais de gozo e de garantia de terceiros, ainda que estes sejam anteriores. Mas, como seria inevitável, por passar a constituir um privilégio especial, a aludida alteração provocou também uma substancial redução do objeto da garantia, por passar a abranger apenas certos e determinados imóveis do empregador e não todos os imóveis que lhe pertençam» (negritos e itálicos nossos).

Naquele aresto assinala-se a divergência existente, quer a nível doutrinal, quer a nível jurisprudencial, relativamente ao âmbito de incidência do privilégio imobiliário especial consagrado no artigo 333.º, n.º 1, alínea b), do Código do Trabalho: há uma corrente que defende uma interpretação ampla daquele preceito legal, ou seja, que o privilégio imobiliário especial ali consagrado abrange todos os imóveis do empregador afetos à sua atividade empresarial a que os trabalhadores estão funcionalmente ligados, bastando que os imóveis integrem a organização produtiva da empresa a que pertencem os trabalhadores e que estes estejam funcionalmente ligados a tais imóveis; e outra corrente que defende uma interpretação restrita do mesmo preceito legal, de acordo com a qual o privilégio abrange apenas o imóvel concreto em que o trabalhador preste, ou tenha prestado, de facto, a sua atividade. Nesta última perspetiva, o imóvel devia constituir o local onde o trabalhador exerce ou exerceu efetivamente a sua atividade (critério naturalístico).

Resulta da fundamentação do referido Acórdão Uniformizador de Jurisprudência que ali se entendeu que é a interpretação “ampla” do referido preceito legal aquela que se harmoniza com a Constituição por respeitar o princípio da igualdade entre trabalhadores. Com efeito, ali se escreveu que a interpretação ampla é aquela «mais consentânea com a razão de ser da atribuição do privilégio creditório aos créditos laborais, que é, como se referiu, a especial proteção que devem merecer esses créditos, em atenção à sua relevância económica e social, que não se concilia com um injustificado tratamento diferenciado dos trabalhadores de uma mesma empresa, em função da atividade profissional de cada um e do local onde a exercem». Solução que perfilhamos. Importa, porém, sublinhar que mesmo numa interpretação ampla do preceito legal em causa exige-se a conexão entre a atividade do trabalhador, que é fonte do crédito, e os imóveis do empregador afetos à atividade económica por este prosseguida, ficando desde logo excluídos os imóveis utilizados noutra atividade (por exemplo arrendados a terceiros) ou destinados à fruição pessoal do empregador. Isto é, a relação funcional que é necessária verificar-se é a ligação do imóvel à organização ou estrutura logística através da qual a empregadora exerce a sua atividade e para cuja prossecução os trabalhadores foram contratados.

Voltando ao caso sub judice a sentença recorrida julgou provado que foi apreendido para os autos de insolvência um terreno para construção. E com este singelo facto julgou que os créditos laborais reclamados por trabalhadores da insolvente e os créditos reclamados pelo Fundo de Garantia Salarial (por sub-rogação) gozavam do privilégio imobiliário especial previsto no normativo acima citado. Porém, o facto de o imóvel ser propriedade da insolvente não é, por si só, suficiente para conceder aos créditos acima referidos preferência no pagamento pelo produto da venda do imóvel apreendido para os autos, pois que, como referido supra, não basta que o imóvel esteja integrado no património da empresa, ele tem de servir a atividade da empresa à qual a atividade do trabalhador que reclamou créditos se liga – assim, Ac. RL de 09-03-2021, processo n.º 158/13.9TYLSB-U.L1-1, consultável em www.dgsi.pt.

Cabe aos credores reclamantes a alegação dos factos constitutivos do privilégio creditório em causa mas, na falta de tal alegação, o julgador pode socorrer-se dos elementos que constam do processo, não apenas do apenso de reclamação de créditos mas, também, e designadamente dos elementos que constam dos autos principais. Ora, resulta justamente dos autos principais concretamente da sentença que declarou a insolvência que no referido terreno para construção – o único imóvel que foi apreendido para os autos - a insolvente pretendia construir uma unidade de transformação de leite de coco, atividade que se insere no objeto social da insolvente já que resulta da certidão de registo comercial da sociedade insolvente também junta aos autos principais que o objeto social da insolvente consistia, nomeadamente, na produção industrial de derivados de coco líquidos e em cápsulas para aplicação alimentícia, nomeadamente óleo de coco extra virgem e refinado e seus derivado como manteiga e vinagre de coco. Sucede que está igualmente provado nos autos principais que, na data em que sentença que decretou a insolvência da requerida foi proferida, esta não havia iniciado as operações de construção daquela infraestrutura. O que nos leva à questão de saber se, ainda assim, se pode considerar que aquele imóvel constitui um elemento integrante das infra-estruturas produtivas da empresa insolvente para efeitos de concessão aos trabalhadores da insolvente e ao Fundo de Garantia Salarial (por sub-rogação) do privilégio imobiliário especial sobre o referido imóvel.

Julgamos que a resposta é negativa. A mera intenção (da insolvente) de destinar o imóvel em causa nos autos à edificação de uma unidade de produção de derivados do coco não é suficiente para efeitos de concessão aos trabalhadores da insolvente e ao Fundo de Garantia Salarial do privilégio imobiliário especial sobre o referido imóvel, ainda que aquela atividade esteja de facto abrangida pelo seu objeto social; a relação de funcionalidade exigível pelo artigo 333.º, n.º 1, alínea b) do Código do Trabalho, na interpretação ampla que perfilhamos, exige que o imóvel seja efetivamente utilizado para o concreto exercício da atividade empresarial do empregador, que se insira na organização ou estrutura logística através da qual a empregadora exerce a sua atividade, exige que o imóvel sirva a atividade da empresa à qual o trabalhador está ligado por meio de contrato de trabalho. Ora um terreno para construção onde nada foi construído, havendo apenas uma intenção de o destinar à instalação de uma infra-estrutura para transformação de leite de coco não permite fundar a necessária ligação funcional entre a atividade dos trabalhadores e a atividade da empresa com o referido imóvel nos termos acima referidos. Como se diz no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa supra citado «a conciliação do reforço da tutela dos direitos do trabalhadores com a necessidade de tutelar a confiança dos outros credores que dispunham de garantia real anterior, como é o caso da hipoteca, impõe rigor na apreciação dos conceitos e a aceitação de que se os factos adquiridos podem levar à caracterização da ligação funcional que é, ainda na tese mais lata, requisito da aplicação do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 333.º do CT, podem também levar à situação inversa, ou seja, os elementos dos autos podem levar à conclusão de que o imóvel ou imóveis não se mostram afetos à atividade e organização do insolvente».

Em suma e concluindo, no caso não está demonstrado o nexo funcional entre o referido imóvel e a prestação de trabalho dos trabalhadores da insolvente que reclamaram créditos laborais no processo de insolvência, nexo exigido pelo citado artigo 333.º, n.º 1, alínea b), do CT, na interpretação ampla do mesmo, pois que no imóvel apreendido para os autos a insolvente não desenvolvia qualquer atividade, nem mesmo aquela que constituía o seu objeto social. Logo, a presente apelação procede integralmente e, consequentemente, há que revogar a sentença recorrida na parte respeitante à graduação dos réditos sobre o produto da venda do imóvel apreendido para a massa insolvente, em conformidade com o disposto no artigo 686.º do Código Civil e com o disposto nos artigos 47.º e 140.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).

III. DECISÃO

Pelo exposto, acordam em julgar procedente a apelação e, consequentemente:

1 – Revogam a sentença recorrida no segmento impugnado, isto é, na parte em que qualificou os créditos dos trabalhadores reclamantes e do Fundo de Garantia Salarial como gozando do privilégio imobiliário especial sobre o imóvel apreendido para a massa insolvente;

2 – Determinam que pelo produto da venda do terreno para construção descrito na Conservatória do Registo Predial de Vendas Novas sob o n.º (…) e na matriz sob o artigo (…), sito no Parque Industrial de (…), lote (…), concelho e freguesia de Vendas Novas, dar-se-á pagamento pela ordem seguinte:

i. Em primeiro lugar o crédito do Estado, por IMI, no valor de € 26.495,80;

ii. Em segundo lugar, o crédito garantido por hipoteca da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de (…), CRL, no valor de € 521.031,54;

iii. Em terceiro lugar o crédito garantido por hipoteca da credora (…), no valor de € 636.750,00;

iv. Em quarto lugar o crédito privilegiado do Instituto da Segurança Social, IP, deduzida a quantia retida pelo Fundo de Garantia Salarial, no valor de € 60.907,21;

v. Em quinto lugar o crédito privilegiado do Estado por IRC e IRS, deduzida a quantia retida pelo Fundo de Garantia Salarial, no valor de € 34.550,15;

vi. Em sexto lugar, o crédito privilegiado do credor Agência para o Desenvolvimento e Coesão, IP, no valor de € 1.539.520,15;

vii. Em sétimo lugar, rateadamente, todos créditos comuns, entre os quais os créditos laborais reclamados por (…), no valor de € 6.633,44, (…), no valor de € 27.424,64, (…), no valor de € 33.947,77, (…), no valor de € 10.311,42, (…), no valor de € 58.678,01, (…), no valor de € 40.228,56, e o crédito do Fundo de Garantia Salarial, no valor de € 28.486,91.

viii. Em oitavo lugar, os créditos subordinados.

3 – No mais se mantendo o decidido na sentença recorrida.

Não há lugar a pagamento de custas na presente instância de recurso porquanto o Ministério Público está delas isento (artigo 4.º, n.º 1, alínea a), do Regulamento das Custas Judiciais) e o sr. Administrador beneficia de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo.

Notifique.

DN.

Évora, 23 de novembro de 2023

Cristina Dá Mesquita (Relatora)

Isabel Peixoto Imaginário (1.ª Adjunta)

Anabela Luna de Carvalho (2.ª Adjunta)

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[1] Código de Processo Civil Anotado, Volume V, 3.ª Edição, Reimpressão, Coimbra Editora, págs. 124-125.

[2] Os quais concorrem com as dívidas da massa insolvente que surgem de novas dívidas que resultam do processo de insolvência.

[3] Bem como os privilégios mobiliários especiais.

[4] Consultável em www.dgsi.pt.