Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2319/08.3TBABF.E1
Relator: JOSÉ MANUEL BARATA
Descritores: DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
CONTRADITÓRIO
Data do Acordão: 09/14/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I.- A reforma de 2013 suprimiu a fase de interrupção da instância, que era a antecâmara da deserção, pelo que, ocorrendo falta de impulso processual do exequente, a instância executiva extingue-se ope legis, ou seja, por mera força da lei, sem necessidade de despacho judicial.
II.- Tal como no processo declarativo, também na ação executiva se exige a verificação de dois prossupostos, um de natureza objetiva (seis meses de falta de impulso processual) e outro de natureza subjetiva (a imputação dessa falta de impulso ao exequente).
III.- Contudo, considerando os gravosos efeitos que decorrem da deserção da instância e em obediência ao princípio do contraditório (artigo 3.º/3, do CPC), não obstante a aparente automaticidade da deserção (artigo 281.º/5), deve o tribunal dar oportunidade às partes para se pronunciarem sobre a questão, sob cominação de nulidade (artigo 195.º/1 e 2, do CPC).
IV.- A aparente automaticidade da deserção não pode sobrepor-se aos hierarquicamente superiores princípios do contraditório, da gestão processual, da cooperação e da adequação formal, devendo, caso a caso, verificar-se se os referidos princípios se mostram respeitados e presentes na decisão que declara verificada a deserção da instância (artigos 3.º, 6.º, 7.º e 547.º do CPC).
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Proc.º 2319/08.3TBABF.E1


Acordam os Juízes da 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora


Recorrente: O... S.A.
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No Tribunal Judicial da Comarca ... Juízo de Execução ... - Juiz ... na execução proposta por (…) – Banco (…), S.A. contra AA e BB para pagamento do montante € 74.887,05, após ter o tribunal sido informado do falecimento do primeiro, em .../.../2022, foi proferido despacho que declarou suspensa a execução nos seguintes termos:
Encontra-se suspensa a execução pelo falecimento do Executado AA – artigos 269.º, n.º 1, alínea a) e 270.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Notifique-se.
Em 30-03-2023, o exequente requereu o seguinte:
O... S.A., Exequente nos autos supra identificados, vem, muito respeitosamente, na sequência do falecimento do executado AA, requerer V. Exa. se digne ordenar a notificação dos co-executados CC e DD:
1) Para vir aos autos informar se foi outorgada escritura de habilitação de herdeiros por óbito do executado falecido, e, em caso afirmativo, qual o cartório e a data em que a mesma foi lavrada;
2) Em caso negativo, para informar nos autos a identificação dos herdeiros do falecido, com indicação das datas e locais de nascimento e, bem assim, as atuais moradas, com vista à promoção, com a maior urgência, por parte da Exequente da competente habilitação de herdeiros.
Este requerimento mereceu a seguinte decisão:
A execução foi suspensa por despacho de 14 de setembro de 2022, notificado à Exequente em 15 de setembro de 2022 (que se presume notificada a 19 de setembro).
Nada foi dito ou requerido nos seis meses seguintes.
Portanto, o requerimento que antecede é apresentado já depois de a instância se encontrar deserta – e repare-se que a deserção opera independentemente de despacho judicial, com tudo o que tal implica em termos processuais.
Ainda assim, e para evitar o protelamento desta execução extinta ipso facto:
Estando o presente processo a aguardar o impulso processual da Exequente 19 de Setembro de 2022, sem movimento nos 6 meses seguintes, declara-se extinta a presente instância, por deserção, nos termos dos artigos 277.º, alínea c) e 281.º, n.º 5, do Código de Processo Civil.
Notifique-se.
Oportunamente, arquive-se.
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Não se conformando com esta última decisão, o recorrente apelou formulando as seguintes conclusões, que delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, artigos 608.º/2, 609.º, 635.º/4, 639.º e 663.º/2, do CPC:
1. A presente execução foi intentada em 05/11/2008 contra AA e BB para pagamento do montante € 74.887,05.
2. A execução prosseguiu os seus regulares termos com as respetivas diligências de penhora.
3. O executado AA faleceu e o tribunal elaborou despacho, em 15/09/2022, a informar que o processo se encontrava suspenso.
4. Em 16/09/2022 a Senhora Agente de Execução enviou comunicação à Recorrente com vista a informar que o processo estava suspenso e que o imóvel tinha sido vendido e encontrava-se aguardar apenas a habilitação de herdeiros para posteriores tramites da venda.
5. O processo foi substabelecido à ora Mandatária (requerimento de 31/01/2023).
6. Após junção de substabelecimento, foi elaborado requerimento, em 30/03/2023, com vista a requerer junto do tribunal notificação da co-executada para informar quais os herdeiros para efetuar a respetiva habilitação de herdeiros.
7. Enviado requerimento aos autos o Tribunal veio a pronunciar-se no sentido dos presentes autos estarem desertos e não notificou a co-executada para informar os herdeiros, decisão que a Recorrente discorda.
8. É com espanto que a Recorrente é notificada da deserção pois não foi sequer dada possibilidade às partes de se pronunciarem sobre se a falta de impulso processual seria imputável ao comportamento negligente de alguma delas, ou até de ambas.
9. O processo foi substabelecido.
10. No período de 6 meses (prazo de deserção) a Exequente impulsionou o mesmo e a Senhora Agente de Execução em 16/03/2023 informou que o processo estava suspenso e para o mesmo ser impulsionado, o que ocorreu com o requerimento junto pela Exequente em março.
11. A Recorrente enviou requerimento aos autos a requerer a notificação da co-executada para informar se foi feita habilitação de herdeiros e em caso negativo informar quem seriam os herdeiros.
12. À luz do Princípio da Cooperação, consagrado no CPC, é imperioso que as partes sejam advertidas para as consequências que possam advir da sua inércia em impulsionar o processo, decorrido o prazo fixado na lei, impondo-se que o douto Tribunal dê às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre a questão em apreço, dando cumprimento ao respetivo contraditório.
13. Do dever de gestão processual, decorre que ao juiz cabe, em geral, a direção formal do processo, nos seus aspetos técnicos e de estrutura interna e essa direção implica a concessão de poderes tendentes a assegurar a regularidade da instância e o normal andamento do processo, sendo que no caso concreto deveria ter sido dada possibilidade às partes de se pronunciarem sobre o motivo que levaria à falta de impulso processual, o que não se verificou.
14. O tribunal, antes de exarar o despacho a julgar extinta a instância por deserção, deverá, num juízo prudencial, ouvir as partes de forma a melhor avaliar se a falta de impulso processual é imputável ao comportamento negligente de alguma delas, ou de ambas.
15. O princípio da cooperação, reforçado no CPC vigente, justifica que as partes sejam alertadas para as com sequências gravosas que possam advir da sua inércia em impulsionar o processo, decorrido que seja o prazo fixado na lei.
16. Entende a Recorrente que não estão verificados os requisitos que consubstanciam a deserção da instância.
17. Até porque, não foi dada possibilidade às partes de se pronunciarem sobre o motivo que levaria à falta de impulso processual.
18. Razão pela qual não se aceita a Sentença recorrida.
19. O Tribunal a quo aquando da análise do requerimento enviado pela Recorrente e caso assim entendesse deveria ter notificado as partes para pronuncia quanto ao período de deserção e não apenas emitir despacho/sentença a declarar extinta a execução.
20. A deserção não opera automaticamente, deverá ser dada sempre a possibilidade às partes de pronuncia, conforme bem se vê na jurisprudência existente quanto ao tema em apreço.
21. O Tribunal a quo sempre devia ter determinado a notificação das partes para se pronunciarem sobre o motivo que levaria à falta de impulso processual.
22. Decisão que não se aceita e que viola o direito de crédito da Recorrente.
23. Em suma, ao decidir o Tribunal a quo, em julgar a instância extinta por deserção, não fez a correta interpretação e aplicação da letra da lei ao caso concreto.
24. Entende a Recorrente que esta decisão de qual aqui se recorre, violou o sentido do artigo 9.º do Código Civil.
25. E bem assim, os artigos 3.º, n.º 3, 6.º, 7.º, n.º 1 e 547.º do C.P.C e o artigo 20.º da CRP, entre outros.
26. Imperando a necessidade de revogação da Sentença de que aqui se recorre.
Nestes termos e nos mais de direito, e com o sempre mui douto suprimento de V. Exas., deverão julgar procedente a presente apelação e revogar o teor da douta sentença:
Substituindo-se a decisão proferida e que aqui se recorre, por decisão que ordene a prossecução da execução.
Assim decidindo, farão Vossas Excelências a costumada justiça.
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A questão que importa decidir é a de saber se a deserção da instância opera automaticamente ou se devem os sujeitos processuais ser notificados antes de ser declarada.
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A matéria de facto a considerar é a que consta do relatório inicial.
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Conhecendo.
A recorrente alega que, estando o processo sem impulso processual por mais de seis meses a deserção da instância só opera automaticamente se às partes tiver sido dada a oportunidade de se pronunciarem sobre a extinção da instância por deserção.
O tribunal a quo entendeu em sentido inverso, adotando o entendimento de que, uma vez suspensa a instância, o efeito extintivo se verifica automaticamente, sem necessidade de despacho.
Vejamos.
A deserção da instância no processo executivo está prevista nos artigos 277.º, alínea c) e 281.º/5, do CPC.
Considera-se deserta a instância executiva “independentemente de qualquer decisão judicial, quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses”.
A reforma de 2013 suprimiu a fase de interrupção da instância, que era a antecâmara da deserção, pelo que, ocorrendo falta de impulso processual do exequente, a instância executiva extingue-se ope legis, ou seja, por mera força da lei, sem necessidade de despacho judicial.
“A negligência há de ser do exequente; por isso, se a paragem do processo se deve a falta de atos processuais do agente de execução, ela não é imputável ao exequente, porquanto este não é mandatário do exequente (cfr. o artigo 163.º EOSAE), pelo que não causa a extinção da instância por deserção – Rui Pinto in A Ação Executiva, 2019, pág. 958.
Tal como no processo declarativo, também na ação executiva se exige a verificação de dois prossupostos, um de natureza objetiva (6 meses de falta de impulso processual) e outro de natureza subjetiva (a imputação dessa falta de impulso a negligência do exequente).
Sabendo a parte que o processo está sem impulso processual há mais de seis meses, a negligência ocorre na maioria dos casos.
Contudo, o sistema processual civil é composto por normas e princípios a que devem obedecer as normas de hierarquia inferior.
Ora, a norma contida no artigo 281.º/5, do CPC, não obstante contemplar a deserção da instância ope legis, esta automaticidade não pode operar sem que antes se tenha obedecido ao magno princípio do contraditório que deve nortear toda a atividade do tribunal (artigo 3.º/1 e 2, do CPC) e se sobrepõe às normas que compõem o edifício processual.
Com efeito, considerando os gravosos efeitos que decorrem da deserção da instância e em obediência ao dito princípio, deve o tribunal dar oportunidade às partes para se pronunciarem sobre a questão (Neste sentido, cfr. Ac. TRL de 26-07-2017, Proc. n.º 522/05.7TBAGN.C1, que comina a ausência do contraditório com a nulidade artigo 195.º/1 e 2, do CPC).
Lebre de Feitas, na Introdução ao Processo Civil, Coimbra, 2013, n.ºs 1.3.4, tem o mesmo entendimento, realçando o princípio da cooperação e a garantia de um direito ao contraditório efetivo, afirmando sem margem para dúvidas que “o despacho judicial que advirta a parte para a possibilidade da deserção da instância não é, pois, dispensável, quer se entenda que só a partir dele correm os seis meses do artigo 281.º-1, CPC, quer se entenda que basta que o juiz o profira, no decurso desse prazo ou depois dele concluído, desde que a parte tenha a possibilidade de praticar seguidamente o ato omitido” in, “Da nulidade da declaração de deserção da instância sem precedência de advertência à Parte”, in ROA, Ano 2018, I-II, pág. 197.
Ora, em face dos factos acima elencados e não constando em qualquer momento que o tribunal advertiu a exequente de que o processo se suspendia, sem prejuízo do que dispõe o artigo 281.º/5, do CPC, o prazo de deserção não se iniciou, pelo que o despacho em crise é nulo (artigo 195.º/1 e 2, do CPC).
De onde se conclui que a aparente automaticidade da deserção não pode sobrepor-se aos princípios do contraditório, da gestão processual, da cooperação e da adequação formal, devendo, caso a caso, verificar-se se os referidos princípios se mostram respeitados e presentes na decisão que declara verificada a deserção da instância (artigos 3.º, 6.º, 7.º e 547.º do CPC).
Mormente quando ocorreu a substituição do mandatário que havia sido notificado da suspensão, o que também implica uma exigência acrescida quanto aos efeitos da automaticidade da deserção.
Em consequência, a apelação é procedência, devendo ser revogado o despacho e substituído por outro que ordene o prosseguimento da execução com o deferimento do que foi requerido pela exequente quanto à habilitação de herdeiros.
Neste sentido, Ac. TRL de 10-01-2019, Proc. n.º 385/09.3TBVPV-A.L1-2, TRL de 12-01-2023, Proc. n.º 13761/18.1T8LSB.L2-2, TRE de 19-11-2020, Proc. n.º 476/11.0TBVRS.E1 e de 08-10-2020, Proc. n.º 1143/04.7TBABT.E1.
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Sumário:
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DECISÃO.
Em face do exposto, a 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora, julga procedente a apelação e revoga o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que ordene o prosseguimento da execução com o deferimento do requerido pela exequente quanto à habilitação de herdeiros.
Sem custas, em face do vencimento e da ausência de resposta ao recurso.
Notifique.
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Évora, 14-09-2023
José Manuel Barata (Relator)
Canelas Brás
Ana Margarida Leite