Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3126/22.6T9FAR.E1
Relator: BEATRIZ MARQUES BORGES
Descritores: ACUSAÇÃO
NOTIFICAÇÃO DO ARGUIDO
IRREGULARIDADE
CONHECIMENTO OFICIOSO
Data do Acordão: 10/26/2023
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Texto Integral: S
Sumário:
I. Cabe ao Ministério Público proceder à notificação da acusação ao arguido (artigo 283.º, n.º 5 CPP).
II. Determina a lei que o processo só prosseguirá para a fase seguinte – para a fase de julgamento – se os procedimentos de notificação que ao Ministério Público cabe realizar tiverem resultado ineficazes (segunda parte do n.º 5 do artigo 283.º CPP).
III. Não é de somenos que essa notificação seja efetivamente realizada nos termos preconizados pela lei, como não é indiferente a fase processual em que o arguido é notificado da acusação, nem também a entidade que procede a essa notificação.
IV. O que está em causa é a salvaguarda do direito de defesa do arguido - que pode querer requerer a abertura da instrução.
V. Nesas circunstâncias o procedimento remetido a Juízo para distribuição não reúne os requisitos legais. Daí que quando o Tribunal profere despacho a conhecer e declarar oficiosamente a irregularidade não esteja ainda a aferir o recebimento ou a rejeição da acusação.
VI. Não estando realizada a notificação ao arguido, nos termos previstos na lei, a pretensão recursiva do despacho judicial que assinalou essa irregularidade procedimental é manifestamente improcedente.
Decisão Texto Integral:
DECISÃO SUMÁRIA

Nos termos do artigo 417.º, n.º 6, alínea b) e 420.º, n.º 1, alínea a) do CPP, passa-se a proferir a seguinte decisão sumária:

I. RELATÓRIO
1. Da decisão
No Processo Comum Singular n.º 3126/22.6T9FAR, do Tribunal Judicial da Comarca Tribunal Judicial da Comarca de Faro Juízo Local Criminal de Faro - Juiz 1, relativo ao arguido AA, foi o proferido em despacho com o seguinte teor:
“O Tribunal é competente.
Determina o artigo 311.º, n.º 1, do CPP, que, recebidos os autos no Tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.
Logra aplicação tal preceito, considerando que, compulsados os autos, se detecta a existência de irregularidade que cumpre reparar.
Ora, aquando da dedução da acusação, o MINISTÉRIO PÚBLICO determinou a notificação da mesma ao arguido (nos termos do disposto no artigo 283.º, n.º 5, do CPP, cf. se retira de verso de fls. 69).
Porém, sucede que, sobrevinda informação, por parte de oficial de justiça e sem que qualquer outro acto processual haja sido praticado, dando conta que o arguido não tem morada associada e que é desconhecido o seu paradeiro (fls. 70), o MINISTÉRIO PÚBLICO, sem mais, determinou a inserção de pedido de paradeiro junto do GNS e, bem assim, se remetessem os autos à distribuição (fls. 71).
Ora, em casos como o dos presentes autos, em que o arguido, não havendo prestado TIR, também não indicou morada para a qual pudesse ser notificado, caberia notifica-lo da acusação por uma de duas vias: por contacto pessoal ou por via postal registada (conforme resulta do disposto no artigo 283.º, n.º 6, do CPP).
É certo que o despacho de acusação pode até nem ser notificado ao arguido, sendo igualmente certo, porém, que essa notificação deve ser pelo menos tentada (nos termos conjugados do disposto nos artigos 283.º, n.º 5 e 277.º, n.º 3, ambos do CPP), o que ostensivamente não foi feito, limitando-se o MINISTÉRIO PÚBLICO a confiar na informação de fls. 70 e nada havendo diligenciado no sentido da notificação do arguido, a não ser ter determinado a inserção de pedido de paradeiro junto do GNS.
Assim, não estamos perante qualquer tentativa de notificação do arguido que se haja revelado ineficaz (conforme exige o referido artigo 283.º, n.º 5, do CPP), mas sim perante mera inserção dos dados do mesmo para que, porventura, se apure o seu paradeiro, sendo assim ostensivo que não se esgotaram todas as tentativas para levar ao conhecimento do arguido do teor da acusação contra si deduzida.
De resto, ainda que haja a ilustre defensora do arguido sido notificada da acusação deduzida contra o seu constituinte (cf. fls. 73/74), cabe levar em consideração que as notificações respeitantes à acusação devem ser feitas tanto ao defensor como ao próprio arguido (cf. artigo 113.º, n.º 10, do CPP), não se podendo nunca admitir que este último se considere notificado na pessoa daquela.
Verifica-se assim uma evidente omissão, qual seja a da tentativa de notificação do arguido, omissão esta que não configura qualquer nulidade (porque não prevista nos artigos 119.º ou 120.º do CPP) mas sim irregularidade (nos termos do disposto no artigo 118.º, n.º 2, do CPP), a qual se declara, invalidando o acto a que se refere, melhor dizendo, à ausência dele, assim como aos termos processuais subsequentes, ordenando-se oficiosamente a reparação da mesma (artigo 123.º do CPP).
Assim, uma vez que a autoridade judiciária competente para notificar a acusação ao arguido é o MINISTÉRIO PÚBLICO[1], o Tribunal pode ordenar a devolução dos autos para que a efectue, uma vez detectada a irregularidade em causa no momento do saneamento do processo (artigo 311.º do CPP).
Pelo exposto, decide-se conhecer da apontada irregularidade e, em consequência, determina-se, após trânsito em julgado do presente despacho, dando baixa da distribuição, a remessa dos autos aos Serviços do MINISTÉRIO PÚBLICO para os fins tidos por convenientes, designadamente, para diligenciar no sentido da notificação do arguido da acusação contra ele deduzida.”.

2. Do recurso
2.1. Das conclusões do Ministério Público
Inconformado com a decisão o MP interpôs recurso extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):
“1- O despacho de saneamento do processo, previsto no artigo 311.º do Código de Processo Penal, no caso de não ter havido instrução, tem como conteúdo o conhecimento dos pressupostos processuais e das nulidades, incluindo os vícios da acusação, e de questões prévias ou incidentais de que o tribunal possa conhecer oficiosamente e que obstem à apreciação do mérito da causa.
2- Do artigo 123.º do Código de Processo Penal, resulta que se pode ordenar oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que dela se tomar conhecimento e quando ela afetar o valor do ato praticado.
3- O disposto no artigo 123.º, nº 2 do Código de Processo Penal não pode ser repartido em dois segmentos distintos: (i) reconhecer a existência de uma irregularidade; e (ii) remeter para momento ulterior e operador diverso o seu suprimento.
4- Constatando que o despacho final do inquérito que deu origem aos autos foi irregularmente notificado ao arguido, o Juiz de Direito a quo que, no âmbito do artigo 311.º do Código de Processo Penal, aprecia a acusação deduzida pelo Ministério Público, não pode decidir reconhecer uma irregularidade consistente na falta de tentativa de notificação do arguido e mandar remeter os autos aos serviços do Ministério Publico para que diligencie no sentido da notificação do arguido da acusação contra ele deduzida.
5- De duas, uma, ou o Juiz de Direito a quo não toma posição sobre a irregularidade, que não lhe constrangia o poder que lhe é conferido pelos artigos 311.º e 312.º do Código de Processo Penal; ou, diversamente, entendendo reparar a irregularidade, deve fazê-lo a instâncias suas.
6-O que não pode é declarar uma irregularidade e ordenar ao Ministério Público a sua reparação, pois a matriz constitucional do processo penal, com a sua estrutura acusatória e com a atribuição ao Ministério Público do exercício da ação penal orientado pelo princípio da legalidade e com a autonomia desta Magistratura (artigos 32º nº5 e 219.º, n.º 2 da CRP), sempre impediria o entendimento sufragado no despacho recorrido.
7- O despacho recorrido violou o disposto nos artigos 123.º, 311.º do Código de Processo Penal pois interpretou estas normas em violação do disposto nos artigos 32.º nº5 e 219.º nº2 da Constituição da República Portuguesa e 3º nº 1 do Estatuto do Ministério Público.
Pelo que o despacho recorrido deve ser revogado e substituído por outro, que ordene por despacho judicial aos próprios serviços judiciais a reparação da irregularidade em causa.”.

2.2. Do Parecer do MP em 2.ª instância
Na Relação a Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu Parecer no sentido de ser julgada a improcedência do recurso interposto pelo MP, nos seguintes moldes (transcrição):
“Vem o Ministério Público recorrer do despacho judicial que ao receber a acusação considerou irregular a sua notificação ao arguido, dando sem efeito a distribuição e ordenando a devolução dos autos ao Ministério Público para proceder á mesma.
Invoca o recorrente que o despacho judicial violou o disposto nos artigos 123.º, 311.º do Código de Processo Penal pois interpretou estas normas em violação do disposto nos artigos 32.º nº5 e 219.º nº2 da Constituição da República Portuguesa e 3º nº 1 do Estatuto do Ministério Público, peticionando a revogação do despacho recorrido.
Julgamos que já foi ultrapassada pela Jurisprudência a questão de a notificação da acusação constituir uma irregularidade processual de que o juiz deverá conhecer.
Além dos acórdãos mencionados pelo recorrente, decidiu-se no acórdão proferido no processo 64/20.0PBEVR-A.E1 por este Tribunal da Relação de Évora que conhecida a irregularidade a notificação da acusação deverá ser diligenciada pelo Ministério Público, portanto decisão contrária há que é pugnada pelo recorrente.
Salvo o devido respeito, não vemos que daqui haja ofensa à autonomia do Ministério Público, o juiz não está a dar uma ordem ao Ministério Público está a declarar uma irregularidade processual.
A autonomia do Ministério Público refere-se à ação penal, investigação e acusação sem submissão a outros poderes.
Termos em que não acompanho o recurso, não obstante o valor do mesmo. (…) ”.

2.3. Por desconhecimento da morada do arguido não se determinou o cumprimento do artigo 417.º n.º 2 do CPP.

II. FUNDAMENTAÇÃO
Cumpre apreciar e decidir de forma sumária face à manifesta improcedência do recurso (artigo 420.º, n.º 1, alínea a) e 417.º, n.º 6, alínea b) do CPP.

1. Questão a examinar
Analisadas as conclusões de recurso a questão a conhecer é a de saber se é ou não ao Tribunal a quo que incumbe proceder às diligências de notificação da acusação reconhecidamente não notificada ao arguido na fase de inquérito, por não terem sido desenvolvidos todos os procedimentos legais para o efeito.

2. Apreciação do recurso interposto pelo Ministério Público
Definida a questão a tratar, importa agora conhecê-la.
O recorrente MP aceita que, em sede de inquérito, não se esgotaram todas as tentativas, na forma exigida por lei, para levar ao conhecimento do arguido o teor da acusação contra si deduzida.
Não contesta, por outro lado, o recorrente que aquela falta de notificação constitua uma irregularidade suscetível de ser conhecida oficiosamente pelo Tribunal (artigo 123.º, n.º 2 do CPP).
Está em causa, assim, tão só saber quem deve sanar tal irregularidade e proceder à notificação, na forma exigida por lei, do conteúdo da acusação ao arguido, se os serviços do Tribunal ou os do Ministério Público.
Em apoio da tese defendida pelo MP surgem na jurisprudência consultada[2], essencialmente, dois argumentos, a saber:
- O princípio da economia processual, entendido como a proibição da prática de atos inúteis baseado no interesse da realização da justiça material, tem de reger a atuação do Tribunal que evitará dar sem efeito a distribuição com a subsequente remessa dos autos aos serviços do MP para estes repararem a irregularidade da notificação;
- O Tribunal não tem poder para determinar que o MP repare a irregularidade, por violação dos princípios do acusatório e da independência do MP (artigos 32.º, n.º 5, 219.º, n.º 2 da CRP e artigo 3.º, n.º 1 do Estatuto do MP), inexistindo qualquer dever de obediência institucional do MP para com o Juiz.
Contrapondo esta argumentação a jurisprudência contrária[3] assinala, entre outros argumentos, que:
- As razões de celeridade surgem como um argumento ínvio e abusivo face ao número de casos apresentados às Relações, pois se o MP tivesse desde logo corrigido a irregularidade a celeridade não teria sido colocada em causa;
- A autonomia do MP refere-se à ação penal, investigação e acusação e não à sanação de uma irregularidade por falta de notificação do conteúdo da acusação ao arguido. A obrigação de notificar a acusação compete precisamente ao MP como magistratura autónoma e dominus na fase processual em causa (inquérito);
- Ao ordenar a remessa dos autos ao MP, o Tribunal mais não faz do que acolher essa autonomia, em questão que se prende com a estrita observância das formalidades legais (a notificação da acusação), a que o MP está sujeito e não relativo a ato de inquérito que contenda com as finalidades deste previstas no artigo 262.º do CPP;
- Se a magistratura do MP é legalmente uma magistratura autónoma, e materialmente a acusação é a peça essencial do processo correspondente ao final da fase de inquérito carece de sentido defender-se que a notificação da acusação seja da competência de um juiz, pois seria o mesmo defender que a sentença poderia ser notificada pelo MP.
- O artigo 283.º, n.º 5, segunda parte do CPP determina que o processo só prosseguirá para a fase seguinte – de julgamento – se os procedimentos de notificação tiverem resultado ineficazes e isto tem ligação com o regulado nos artigos 332.º, n.º 1, 335.º e 336.º, n.º 3 do CPP (contumácia).
- Não é indiferente a fase processual em que o arguido é notificado da acusação nem a entidade que procede a essa notificação. Está em causa, designadamente o direito de defesa do arguido, que pode querer requerer a abertura da instrução[4], existindo uma diferença de posição do arguido quando este recebe a notificação da acusação logo após a dedução da acusação de uma em que só dela sabe quando o julgamento já está agendado[5];
- Quando o Tribunal profere o despacho a conhecer a irregularidade oficiosamente não chega a proferir despacho de recebimento ou rejeição da acusação, pelo que em rigor ainda não se teria iniciado a fase subsequente ao inquérito.
Expostas sinteticamente as duas teses cumpre, agora, conhecer o caso colocado à apreciação desta Relação em que a irregularidade da notificação da acusação é reconhecida pelo próprio MP.
Numa situação como a assinalada não se pode deixar de concluir ter sido feito um uso indevido do recurso, pois o objetivo pretendido só pode ser o de dar aval a uma conduta processual enviesada.
A invocação da violação do princípio da autonomia do MP surge como um preconceito desprovido de sentido que até poderá estar a acobertar práticas com objetivos estatísticos, de modo que a morosidade de proceder a uma notificação incómoda ou difícil seja “jogada para a frente”.
Não pode aliás deixar de causar estranheza o número de processos colocados à consideração dos Tribunais da Relação onde é assinalada a irregularidade da notificação ao arguido da acusação, parte deles passíveis de consulta nas bases de dados da DGSI.
Se em algum deles essa notificação da acusação até possa ser considerada regular, justificando-se aí a interposição de recurso[6], no caso em apreciação essa irregularidade é admitida pelo próprio MP recorrente.
Daí ser manifestamente improcedente o recurso interposto, por não existirem quaisquer razões de celeridade processual que imponham a prática de um ato da competência do MP bem como tal até decorrer do próprio princípio da autonomia material e orgânica do MP em relação aos Tribunais, não ocorrendo qualquer violação do disposto nos artigos 123.º, 311.º do CPP, 32.º, n.º 5 e 219.º n.º 2 da CRP e 3.º, n.º 1 do Estatuto do Ministério Público.
Como é assinalado no Acórdão desta RE de 13.9.2022 “A Jurisprudência também tem uma função de dissuasão sobre condutas processuais inadequadas” e a prática de deduzir acusação sem garantir que tudo foi feito para a notificar ao arguido não pode ser acobertada.

III. DECISÃO
1. Nestes termos e com os fundamentos aludidos por manifestamente improcedente rejeita-se o recurso interposto pelo MP.
2. Sem custas.
Évora, 26 de outubro de 2023.

Beatriz Marques Borges ______________________________________
[1] Veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 05.05.2015, processo n.º 1140/12.9TDEVR-A.E1.
[2] Cf. a título de exemplo a jurisprudência assinalada pelo MP nas motivações de recurso como o Acórdão da RE de 18.4.2023, proferido no processo 535/22.4GESLV-A.E1 que, todavia, se reportava a processo de violência doméstica e por isso de natureza urgente.
[3] Cf. a título de exemplo os Acórdãos da RE de 22.11.2018, proferido no P. 20/15.0IDFAR-A e relatado por Carlos Berguete e o de 13.9.2022, proferido no processo 64/20.0PBEVR.E1 e relatado por Gomes de Sousa.
[4] “Dir-se-á que tal direito a requerer a instrução sempre poderá ser reclamado adiante. Mas não é isso o pretendido, nem é isso o desejável em termos de eficácia do sistema.” - cf. neste sentido Acórdão RE de 13.9.2023 já citado.
[5] Idem Acórdão RE de 13.9.2022.
[6] Cf. a título de exemplo o Acórdão da RE de 7.3.2017, proferido no processo 89/15.8T9ABF.E1, relatado por João Amaro e disponível para consulta em www.dgsi.pt.