Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2051/21.2T8FAR.E1
Relator: FRANCISCO MATOS
Descritores: COMODATO
TRANSMISSÃO DA POSIÇÃO CONTRATUAL
Data do Acordão: 10/26/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: O adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato de comodato não sucede nos direitos e obrigações do comodante os quais, sem prejuízo de convenção em contrário, cessam com a transmissão do direito.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Proc. 2051/21.2T8FAR.E1

Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

I – Relatório
1. AA, casada, residente na Rua ..., ..., instaurou contra BB, com domicílio na Rua ...., em concelho ..., ação declarativa com processo comum.

Alegou ser proprietária da fração autónoma, correspondente ao ... do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Urbanização ..., ... (Edifício ...), freguesia ..., concelho ..., a qual lhe adveio por doação de seus pais, fração que havia sido dada de comodato ao Réu, pelo falecido pai da Autora, e que o Réu habita, sem qualquer título, na sequência da interpelação da Autora para desocupar e entregar a fração.

Pediu a condenação do Réu a reconhecê-la como dona da fração e a restituir-lhe a mesma livre de pessoas e bens.

O Réu contestou e formulou pedido reconvencional; alegou que a fração lhe foi dada de arrendamento pelo falecido pai da Autora, a quem pagou renda e que, após o falecimento dele, continuou a pagar renda a CC, irmão da Autora; prosseguiu alegando que a Autora procedeu ao desligamento da água, luz e gás privando-o, a si e à sua família, destes bens essenciais, causando-lhe prejuízos e que, alterando a verdade dos factos, deduz pretensão cuja falta de fundamento não ignora.

Concluiu pela absolvição do pedido e pediu a condenação da Autora no pagamento da quantia de € 1.750,00, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais e, em multa e indemnização, como litigante de má-fé.

A Autora respondeu por forma a concluir pela improcedência da defesa do Réu e do pedido de condenação como litigante de má-fé e, posteriormente, veio ampliar, com êxito, o pedido com vista à condenação do Réu no pagamento da quantia de € 23.599,92, a título de indemnização pelos prejuízos que lhe advieram com ocupação da fração desde agosto de 2020, acrescida de juros e da quantia de € 983,33 mensais até à efetiva entrega da fração.

2. Admitida a reconvenção, a instância foi considerada valida e regular, identificado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.

Teve lugar a audiência de discussão o julgamento e depois foi proferida sentença, em cujo dispositivo designadamente se consignou:
“(…) o Tribunal decide:

1. Reconhecer o direito de propriedade da Autora sobre a fração autónoma designada pelas letras ..., correspondente ao ..., destinado a habitação, do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Urbanização ..., ... (Edifício ...), freguesia ..., concelho ..., descrita na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...39 da freguesia ... (...), e inscrita na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...6 da freguesia ....

2. Condenar o Réu a entregar a fração referida em 1. à Autora, livre e desocupada de pessoas e bens, em bom estado de conservação e em perfeitas condições.

3. Condenar o Réu no pagamento de indemnização à autora pelos prejuízos que a sua conduta causou, no montante que se vier a apurar em ulterior incidente de liquidação.

4. Julgar totalmente improcedente a reconvenção e, consequentemente, absolver a Autora do pedido reconvencional.

5. Absolver a Autora do pedido de litigância de má-fé.”


3. O Réu recorre da sentença e conclui assim a motivação do recurso:
“I. Vem o presente recurso interposto da douta sentença que julgou a ação de reivindicação da propriedade procedente e, em consequência:

- Reconheceu o direito de propriedade da Autora sobre a fração autónoma designada pelas letras ..., correspondente ao ..., destinado a habitação, do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Urbanização ..., concelho ..., descrita na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...39 da freguesia de ... (...), e inscrita na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...6 da freguesia ...;

-Condenou o Réu a entregar a fração referida em 1 à Autora, livre e desocupada de pessoas e bens, em bom estado de conservação e em perfeitas condições;

- Condenou o Réu no pagamento de indemnização à Autora pelos prejuízos que a sua conduta causou, no montante que se vier a apurar em ulterior incidente de liquidação;

- Julgou totalmente improcedente a reconvenção e, consequentemente, absolveu a Autora do pedido reconvencional; - Absolveu a Autora do pedido de litigância de má-fé.

II. As questões a decidir eram, portanto, as seguintes:

a. Apurar da condenação do Réu na restituição à Autora do prédio identificado nos autos por falta de título legitimador dessa ocupação;

b. Apurar se é devida alguma indemnização à Autora a prestar pelos danos advenientes da privação do uso do prédio identificado nos autos e, em caso, afirmativo, qual o seu montante;

c. Apurar o valor da renda mensal para um prédio com as características do prédio reivindicado;

d. Apurar se o Réu sofreu danos com o desligamento da água, luz e gás e, em caso afirmativo, se lhe assiste o direito ao seu ressarcimento pela Autora;

e. Aquilatar do preenchimento dos pressupostos de condenação da Autora como Litigante de Má-Fé.

III.A convicção do Tribunal a quo quanto à factualidade dada como provada resultou dos depoimentos prestados pelas testemunhas DD e EE, companheira do Réu e marido da Autora, respetivamente, da prova documental junta aos autos e das posições assumidas pelas partes nos articulados.

IV. Não pode o Réu, aqui recorrente, conformar-se com a douta sentença do Tribunal a quo, porquanto, salvo devido respeito por opinião contrária, in casu, foram incorretamente julgados determinados pontos da matéria de facto, pois os meios probatórios impunham decisão de facto diversa da recorrida, verificando-se, ainda, uma incorreta aplicação do Direito aos factos em juízo e, para além disso, teve o Réu, ora apelante, conhecimento em momento posterior à sentença da existência de documento superveniente que poderá impor decisão diversa da tomada pelo Tribunal a quo.

V. Em primeiro lugar, não pode o Recorrente concordar com a decisão do Tribunal a quo no que respeita aos pontos a), b), c), d) e e) dos factos não provados.

VI. Deveria o Tribunal a quo ter sido considerado provado que:

a. O Réu ocupa a fração em causa desde 2007, mediante o pagamento de uma renda, que o valor dessa renda foi fixado em € 150,00, à data em que o Réu passou a residir na referida fração e que atualmente paga o montante de € 300,00, assim como, que após a morte do pai da Autora, e até ao presente, a renda passou a ser sempre paga ao irmão da Autora, CC. (pontos a), b) e c));

b. A Autora sempre teve conhecimento do contrato de arrendamento verbal mencionado em a) e nunca se opôs ao mesmo (pontos d) e e))

VII. Desde logo, os factos a), b) e c) considerados na douta sentença como não provados encontram-se em clara contradição com a motivação da sentença na parte em que, referindo-se ao depoimento da testemunha CC, menciona que:

“(…) as negociações terão ocorrido durante os almoços nos quais o mesmo também estaria presente (...)”

“Para além da afirmação de que terá ficado estipulado o pagamento de uma quantia mensal de € 150,00, em numerário, pelo Réu ao pai da Autora (…)”

“Referiu ainda a testemunha que, em razão do falecimento de seu pai, e até antes, em virtude da situação de doença deste, era o próprio quem recebia o pagamento da quantia de € 150,00, em numerário, e quem continuou a receber a quantia de € 300,00 sem elaborar documento de quitação e sem observância das obrigações fiscais inerentes à celebração do contrato de arrendamento.”

“(…) acrescentou que utilizava aquelas quantias para pagamento de despesas associadas às frações autónomas localizadas no prédio identificado em 1), incluindo a fração autónoma em questão nestes autos.”

VIII. Ademais, tal factualidade resulta da prova testemunhal e por declarações de parte produzida em sede de audiência de julgamento: a. Declarações de Parte do Réu:

(suprimiu-se a transcrição)

b. Testemunha CC:

(suprimiu-se a transcrição)

c. Testemunha DD:

(suprimiu-se a transcrição)

IX. Não pode igualmente o Recorrente concordar com a decisão do Tribunal a quo no que respeita ao ponto f) dos factos não provados.

X. Deveria o Tribunal a quo ter sido considerado provado que a Autora nunca se considerou como a real proprietária da fração identificada em 1) por saber que a mesma apenas integrou a sua esfera jurídica para salvaguarda do património conjugal dos seus pais.

XI. Desde logo, importa frisar que, após a audiência de discussão e julgamento dos presentes autos, o Réu, aqui Recorrente, tomou conhecimento de que se encontra em curso no mesmo juízo, ação destinada a obter a nulidade da doação que esteve na base aquisição da titularidade da fração ora em apreço pela Autora, com fundamento na simulação do negócio jurídico – questão prejudicial que deveria ter implicado a suspensão dos presentes autos, pois, a ser procedente, a Autora não será parte legítima para a presente ação, nem sequer parte interessada, porquanto repudiou a herança de seu pai e, portanto, nem sequer é herdeira do imóvel em juízo.

XII. Ademais, a factualidade supra referida resulta da prova testemunhal e por declarações de parte produzidas em sede de audiência de julgamento:

a. Declarações de Parte do Réu:

(suprimiu-se a transcrição)

b. Testemunhas:

XIII. A acrescer, há ainda, a pendência no mesmo juízo em que correram seus termos os presentes autos – sob o n.º de processo 1571/22.... – ação destinada a aferir da validade da doação que esteve na base aquisição da titularidade da fração ora em apreço pela Autora, na qual é peticionada a nulidade dessa doação com fundamento na simulação do negócio jurídico, pelo que procede agora, nos termos do disposto no n.º 1, do artigo 651.º do CPC à junção da Certidão Judicial com o presente recurso sob Doc. 1.

XIV. A certidão judicial ora junta, trata-se de documento superveniente, mais concretamente da Contestação à ação de reivindicação de propriedade referente a uma outra fração da qual é também a Autora proprietária, nos exatos moldes em que o é da fração objeto do presente recurso, contra o seu irmão, CC, sendo que nessa mesma Contestação foi ainda deduzido pedido reconvencional, a qual data de 30.09.2022.

XV. Denota—se evidente que o processo n.º 1571/22...., que corre termos no Juízo Central Cível ...- J..., se trata de uma causa prejudicial à presente ação, uma vez que no referido processo se discute em via principal uma questão que era essencial para a decisão dos presentes autos, no sentido em que se discute e pretende-se apurar um facto ou situação que é elemento ou pressuposto da pretensão formulada na causa dependente, de tal forma que a resolução da questão que está a ser apreciada e discutida na causa prejudicial poderia vir a interferir e influenciar a causa dependente, destruindo ou modificando os fundamentos em que esta se baseia.

XVI. Isto é, caso seja considerada a simulação de negócio e consequentemente a nulidade da doação, a fração ... dada de arrendamento ao Réu, regressará à esfera jurídica dos pais da Autora, contudo, tendo o pai da Autora falecido em 2013 e, tendo tanto a mãe da Autora, como a própria Autora com o consentimento do seu cônjuge repudiado em seu nome e em nome e nome dos seus filhos à herança aberta por óbito do seu marido, pai e avô, respetivamente, surge como único e universal herdeiro, CC (cfr. ponto 6 dos factos provados).

XVII. Verificando-se, assim, entre duas ações, nexo de prejudicialidade e, correndo ação na qual é arguida a nulidade da doação da fração objeto do presente litígio por ter a mesma por base um negócio simulado, no mesmo tribunal e juízo dos presentes autos, deveria o Tribunal a quo ter suspendido a instância até à decisão da causa prejudicial.

XVIII. Não pode também o Recorrente concordar com a decisão do Tribunal a quo no que respeita aos pontos h), o), p) e q) dos factos não provados.

XIX. Deveria o Tribunal a quo ter sido considerado provado que:

a. Nos dias 29 e 30 de Março de 2021, a Autora ordenou a desligação dos serviços de abastecimento de gás e eletricidade ao prédio identificado em 1) – ponto h) dos factos não provados;

b. Com a desligação dos serviços básicos essenciais, a Autora, com frieza, calculismo e insensibilidade, decidiu privar o Réu e o seu agregado familiar do acesso à água, eletricidade e gás, com o exclusivo propósito de pressionar o Réu a abandonar a fração de que é proprietária, apesar de bem saber que a mesma lhe havia sido arrendada – ponto o) dos factos não provados;

c. O Réu sofreu um prejuízo no montante de € 250,00, equivalente ao valor em alimentos que tinha no frigorífico e que se estragaram em resultado da desligação dos serviços de eletricidade – ponto p) dos factos não provados;

d. Em resultado das circunstâncias descritas em p), o Réu sentiu-se desesperado, nervoso e ansioso – ponto q) dos factos não provados.

XX. Desde logo, cumpre referir que ponto h) dos factos não provados encontra-se em plena contradição com o ponto 16) dos factos provados – o qual refere que em 24 de Março de 2021, a Autora ordenou a desligação do serviço de abastecimento de água referente à fração autónoma identificada em 1) – cabendo, por isso, questionar por que motivo o tribunal a quo distingue a desligação dos serviços de água da desligação dos serviços de eletricidade e gás, para mais tendo ocorrido todos em datas aproximadas e, na sequência quase imediata da segunda visita efetuada pela Autora e respetivo marido à fração (conforme ponto 11 dos factos dados como provados).

XXI. Tal factualidade resulta da prova testemunhal e por declarações de parte produzida em sede de audiência de julgamento:

a. Declarações de Parte do Réu:

(suprime-se a transcrição)

XXII. Consequentemente, exigia-se ainda ao Tribunal a quo, face à prova supra elencada, considerasse como provado o pedido reconvencional deduzido pelo Réu e que contempla o pagamento de uma indemnização face aos danos patrimoniais e não patrimoniais por este sofridos com a desligação dos serviços básicos de água, eletricidade e gás a mando da Autora.

XXIII. De todo o modo, sempre se diga que, ainda que a situação vertida nos presentes autos consubstanciasse um comodato, o que não se aceita nem admite, apenas se equaciona por mero dever de patrocínio, não poderia o tribunal a quo olvidar que o país atravessava uma situação pandémica, na qual, ao abrigo do decretamento de Estado de Necessidade, se encontravam vigentes normas especiais que impediam o corte do fornecimento de serviços básicos essenciais, como é o caso da água, eletricidade e gás, em causa nos presentes autos.

XXIV. Assim, a conduta da Autora, quando procede dolosamente ao desligamento desses serviços, denota-se típica e ilícita, geradora de prejuízos na pessoa do Réu e respetivo agregado familiar, merecedores de tutela jurídica e indemnizáveis, pelo que deveria o tribunal a quo ter julgado procedente por provado o pedido reconvencional e condenado a Autora nos exatos termos peticionados.

XXV. Do mesmo modo, não pode o Recorrente concordar com a decisão do Tribunal a quo no que respeita ao ponto i) dos factos não provados.

XXVI. Deveria o Tribunal a quo ter sido considerado provado que o Réu pretendeu, desde o início que o contrato que celebrou com o pai da Autora com respeito à fração autónoma identificada em 1) fosse reduzido a escrito.

XXVII. Tal factualidade resulta da prova testemunhal e por declarações de parte produzida em sede de audiência de julgamento:

a. Declarações de Parte do Réu:

(suprimiu-se a transcrição)

b. Testemunha CC:

(suprimiu-se a transcrição)

XXVIII. Não pode, de igual modo, o Recorrente concordar com a decisão do Tribunal a quo no que respeita ao ponto r) dos factos não provados.

XXIX. Deveria o Tribunal a quo ter sido considerado provado que a Autora intentou a presente ação de reivindicação sabendo da existência de um contrato de arrendamento que se encontra em vigor e através do qual foi cedido o gozo do imóvel reivindicado ao Réu.

XXX. Tal factualidade resulta da prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento:

a. Testemunha CC:

(suprimiu-se a transcrição)

XXXI. Deste modo, mais se impunha a condenação da Autora como litigante de má-fé em multa e indemnização a favor do Réu, tal como peticionado na Contestação/Reconvenção, por ser notório que a Autora litiga de má-fé na presente ação, seja porque alterou conscientemente a verdade dos factos (ao invocar ter ficado combinado entre as partes um comodato ao invés de um arrendamento, colocando o Réu na posição de um ocupa, quando bem sabe que o mesmo possui título válido para estar no locado) – omitindo, assim, factos relevantes para a boa decisão da causa e deduzindo pretensão

XXXII. Ademais, não pode o Recorrente concordar com a decisão do Tribunal a quo no que respeita aos pontos 9) e 11) dos factos provados.

XXXIII. Deveria o Tribunal a quo ter sido considerado não provado que:

a. Em Agosto de 2020, a Autora deslocou-se ao Algarve acompanhada pelo seu marido e pela sua mãe, tendo contactado diretamente o Réu, interpelando-o para proceder à entrega do imóvel identificado em 1), arrogando-se titular do direito de propriedade sobre o mesmo imóvel – ponto 9. dos factos provados;

b. Em março de 2021, a Autora voltou a contactar o Réu para que este lhe entregasse a fração autónoma identificada e 1), mas o Réu não entregou – ponto 11) dos factos provados.

XXXIV. Desde logo, porque nenhuma prova foi produzida no sentido de corroborar esta versão, tendo sido inclusive produzida prova, em sede de audiência de julgamento, precisamente em sentido oposto:

a. Declarações de Parte do Réu:

(suprimiu-se a transcrição)

a. Testemunha DD:

(suprimiu-se a transcrição)

XXXV. Tendo como escopo toda a prova produzida, andou mal o tribunal a quo quando qualificou o contrato jurídico celebrado entre o Réu e o pai da Autora como um contrato de comodato, nos termos do disposto nos artigos 1129.º a 1141.º do Código Civil.

XXXVI. Deveria o Tribunal a quo ter considerado a existência do contrato de arrendamento com prazo indeterminado, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 1069.º e n.º 2, do artigo 12.º do Código Civil, porquanto, terem resultado provados os seus pressupostos, nomeadamente:

i. Nunca foi estipulado um prazo de duração do contrato (minuto 00:12:40 a 00:13:03 do depoimento da testemunha CC e minuto 00:45:03 a 00:45:24 das declarações de parte do Réu), aliás e o próprio tribunal a quo assume que não foi estipulado qualquer prazo, apenas aplicando erroneamente o regime jurídico do comodato ao invés do arrendamento;

ii. A falta de redução a escrito do contrato de arrendamento não é imputável ao Réu;

iii. O Réu utilizou o locado durante praticamente dez anos desde a aquisição da titularidade da fração pela Autora sem oposição da mesma;

iv. O Réu pagava uma renda de € 150,00 mensais ao pai da Autora e mesmo antes da morte deste passou a pagar a renda ao irmão da Autora, CC.

v. A renda sofreu uma atualização para € 300,00 mensais com a concordância da mãe da Autora, da Autora e do irmão da Autora, por se considerar o referido locado como um bem da família, após a morte do pai/marido destes.

vi. A renda em causa é paga pelo Réu desde 2007 até 2013 ao pai da Autora e parcos meses antes do falecimento deste até .../.../2021 ao irmão da Autora, CC e daí em diante até ao presente é a mesma depositada na Banco 1... em conta aberta em nome da Autora (pagamento de renda por mais de 6 meses).

XXXVII. Convalidando-se, desta forma, o contrato de arrendamento nulo por falta de redução a escrito em contrato de arrendamento válido, o que levaria a que fosse atendida pelo Tribunal a quo a exceção perentória invocada pelo Réu e importaria fosse o mesmo totalmente absolvido do pedido, tal como dispõe o n.º 3 do artigo 576.º do Código de Processo Civil.

XXXVIII. Até porque, ainda que possa o senhorio à luz do NRAU denunciar livremente o contrato de arrendamento sem determinação de prazo, tal denúncia apenas operaria mediante comunicação remetida ao arrendatário, sempre com antecedência não inferior a cinco anos sobre a data em que pretende a cessação do contrato, nos termos da al. c) do artigo 1101.º do Código Civil.

XXXIX. Não pode ainda colher, o argumento utilizado pelo tribunal a quo, como forma de afastar o arrendamento, pelo facto de considerar o valor fixado pelo pai da Autora e, mais tarde por esta em comum com a sua mãe e irmão, a título de renda pela utilização da fração pelo Réu, como mera compensação de certos encargos, por ser “diminuto”.

XL. Ora, sendo o arrendamento um contrato bilateral cujas condições são acordadas inter partis, nelas se integrando o valor estipulado a título de renda, seja ele qual for e para além disso, não demonstrou, nem sequer alegou a Autora a utilização do valor mensal pago a título de renda para pagamento de qualquer encargo respeitante ao locado.

XLI. Por esse motivo e, atento o princípio do dispositivo, teria o tribunal a quo de se cingir aos factos alegados pela Autora, nos quais não constam a alegação que fundamentou a sua decisão recorrida.

XLII. Assim, deveria o tribunal a quo ter reconhecido a existência de um contrato de arrendamento sem prazo determinado, assim como, o pedido reconvencional deduzido pelo Réu, no qual peticiona a condenação da Autora nos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos com a desligação dos serviços básicos de água, eletricidade e gás, por estar tal factualidade provada.

XLIII. Tal como deveria ter considerado a condenação da Autora em multa e indemnização a favor do Réu como litigante de má-fé, uma vez que é notório que a Autora litiga de má-fé na presente ação, seja porque alterou conscientemente a verdade dos factos (ao invocar ter ficado combinado entre as partes um comodato ao invés de um arrendamento, colocando o Réu na posição de um ocupa, quando bem sabe que o mesmo possui título válido para estar no locado).

XLIV. Seja porque omitiu factos relevantes para a decisão da causa (nomeadamente o facto de o Réu pagar renda pela utilização do locado e ainda o corte dos serviços básicos e essenciais para forçar a sua saída do locado), seja porque - ao instaurar a presente ação - deduziu uma pretensão cuja falta de fundamento não ignorava.

XLV. Estando provado o arrendamento, ao atuar a Autora ilicitamente como acuou (desligação dos serviços básicos e essenciais), privando o Réu do uso do locado, é tal facto suscetível de constituir, por si, um dano patrimonial indemnizável, consistente na lesão do direito de gozo temporário que, de acordo com o preceituado no artigo 1022.º do CC, lhe era lícito usufruir.

XLVI. Até porque, mesmo que fosse considerado o contrato de comodato ao invés do arrendamento, sempre se dirá que, na vigência desse contrato, seria sempre a Autora responsável pelos prejuízos causados ao Réu, quando dolosamente procede ao corte do fornecimento de água, eletricidade e gás na fração “comodata”.

XLVII. Considerando-se que a interpelação apenas foi efetuada em 12 de Maio de 2021, através de carta registada, na qual a Autora estipula que a entrega do locado deveria ocorrer até 31 de Maio de 2021 (ponto 12) dos factos provados), tendo o corte dos serviços básicos e essenciais ocorrido no decurso do mês de Março de 2021, estávamos claramente na vigência do contrato de comodato, mantendo-se as obrigações contratuais para ambas as partes.

XLVIII. Face ao supra exposto, andou mal o Tribunal a quo quando considerou na fundamentação de direito que a Autora procedeu à desligação dos serviços básicos e essenciais no âmbito dos poderes que lhe conferem o direito de propriedade, nos termos do disposto no artigo 1305.º do Código Civil.

XLIX. Para além do mais, admitindo-se por uma questão de mero patrocínio judiciário, a existência de um comodato, concedendo a Autora ao Réu, na sua interpelação, prazo para entrega da fração até 31 de Maio de 2021, apenas se verificaria a mora a partir de 01 de Junho de 2021, marco temporal a que o tribunal a quo deveria ter entendido para efeitos de contabilização da indemnização pela ocupação ilícita da fração por parte do Réu.

L. Tendo considerado o Tribunal a quo, como provado, que o Réu efetuou junto da Banco 1..., a favor da Autora, depósitos autónomos, intitulados de rendas referentes aos meses de Novembro a Dezembro de 2021 e de Janeiro a Setembro de 2022, não se entende o motivo pelo qual não se mostra vertido na fundamentação de direito, que ao valor que se vier a apurar em sede de indemnização pela ocupação ilícita por parte do Réu em sede de ulterior incidente de liquidação, deverão ser deduzidos os montantes supra referidos e ainda os que se mostrarem depositados a favor da Autora após Setembro de 2022.

LI. Ao decidir o Tribunal a quo como decidiu, não existe qualquer correlação entre o ponto 19) dos factos provados com a motivação, encontrando-se o mesmo em clara contradição com a motivação da sentença no que a esta parte respeita.

LII. Outro facto crucial, é o facto de a qualidade de proprietária da Autora da fração autónoma estar a ser posta em crise numa outra ação, o que a obter provimento prejudicaria o objeto dos presentes autos e imporia decisão diversa da recorrida e favorável ao Réu.

LIII. Dado que, conforme oportunamente já se demonstrou, corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de no Juízo Central Cível ...- J... – no mesmo juízo em que correram seus termos os presentes autos – sob o n.º de processo 1571/22...., pedido de nulidade da doação que esteve na base aquisição da titularidade da fração ora em apreço pela Autora, com fundamento na simulação do negócio jurídico, cfr. documento superveniente (superveniência subjetiva) já oferecido com o presente articulado sob Doc. 1.

LIV. Assim, existindo entre duas ações esse nexo de prejudicialidade e, correndo ação na qual é arguida a nulidade da doação da fração objeto do presente litígio por ter a mesma por base um negócio simulado, no mesmo tribunal e juízo dos presentes autos, deveria o Tribunal a quo ter suspendido a instância até à decisão da causa prejudicial, o que não fez.

Nestes termos, requer-se a V. Exas. Senhores Desembargadores, seja dado provimento ao presente recurso, considerando-o procedente e, em consequência seja revogada a douta sentença recorrida:

- Ordenando-se a suspensão da instância até à decisão definitiva da questão prejudicial que aprecia a validade da doação realizada à Autora e que contempla a fração em causa nos presentes autos e aí ser proferida sentença de acordo com aquela decisão;

Ou, subsidiariamente,

- Ser substituída por outra que declare procedente a exceção perentória invocada, absolvendo o Réu do pedido e, cumulativamente, ser Julgado procedente o pedido reconvencional por provado e, em consequência deverá a Autora ser condenada no pagamento ao Réu da quantia de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros) a título de danos patrimoniais e € 1.500,00 (mil e quinhentos euros) a título de danos não patrimoniais, ambos acrescidos de juros calculados à taxa legal em vigor desde a data da notificação do pedido reconvencional até efetivo e integral pagamento e, ainda ser a Autora condenada em multa como litigante de má fé e em indemnização justa a fixar prudentemente pelo Douto Tribunal.

Fazendo desta forma JUSTIÇA”

Respondeu a Autora por forma a defender a improcedência do recurso.

II - Objeto do recurso
Considerando que o objeto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso (artigos 635.º, n.º 4 e 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), que nos recursos se apreciam questões e não razões ou argumentos e que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido, importa decidir: i) a impugnação da decisão de facto, ii) se o Réu é arrendatário da fração, iii) se a Autora deve indemnizar o Réu, iv) se a indemnização devida pela privação do uso (só) é devida a partir de 1/6/2021, v) se a Autora litiga de má fé.
Pretende ainda o Réu que se ordene a suspensão da instância, por pendência de causa prejudicial, até à decisão definitiva do processo 1571/22.... que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de no Juízo Central Cível ..., no qual foi suscitada a nulidade da doação à Autora, por simulação do negócio, da fração objeto dos autos.

Esta pretensão comporta uma questão colocada ex novo no recurso no sentido em que não foi colocada na 1ª instância, nem obteve pronúncia na sentença recorrida.

Como é pacífico para a doutrina e para a jurisprudência, no nosso sistema, os recursos ordinários, como é o presente recurso de apelação, destinam-se à reponderação da decisão recorrida, o que significa que, em regra, “o tribunal de recurso não pode ser chamado a pronunciar-se sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida ou sobre pedidos que nela não foram formulados”[1], e isto porque os recursos visam modificar ou anular as decisões recorridas[2] e “não criar decisões sobre matéria nova não sendo lícito invocar e conhecer nos mesmos questões que as partes não tenham suscitado perante o tribunal recorrido”[3].
Assim, não tendo a decisão sob recurso resolvido qualquer questão relacionada com a suspensão da instância, por pendência de causa prejudicial, por não lhe haver sido colocada, não pode o recurso, neste particular, apreciar seja o que for, por se tratar de uma questão que o Réu não suscitou perante tribunal recorrido, nem este resolveu.
Por esta razão não se conhece desta questão no recurso.


III. Fundamentação
1. Factos
1.1. A 1ª instância julgou assim os factos:
Provado:
1) Encontra-se inscrita na Conservatória do Registo Predial ..., através da Ap. ...71 de 14-12-2012, a aquisição a favor da Autora, por doação de FF e GG, seus pais, da fração autónoma designada pelas letras ..., correspondente ao ..., destinado a habitação, do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Urbanização ..., ... (Edifício ...), freguesia ..., concelho ..., descrita sob o n.º ...39 da freguesia ... (...) e inscrita na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...6 da freguesia ....

2) O Réu é amigo de longa data do irmão da Autora, CC.

3) O Réu veio viver para o Algarve quando começou a trabalhar num dos estabelecimentos comerciais explorados por sociedade de que o Pai da Autora era sócio.

4) Em consequência do mencionado em 2) e em 3), em data anterior a 2012, o pai da Autora e o Réu acordaram, verbalmente, na cedência do gozo do imóvel identificado em 1) pelo pai da Autora ao Réu, para habitação deste.

5) Na vigência do acordo mencionado em 4), chegou a suceder que, durante o Verão, pelo menos em dois anos, o Réu restituiu ao pai da Autora a fração autónoma identificada em 1), para ser arrendada a terceiros, a fim de ser rentabilizada na época balnear.

6) O Pai da Autora, FF, faleceu em .../.../2013, sucedendo-lhe como único e universal herdeiro CC, irmão da Autora.

7) Na sequência do falecimento do pai da Autora, foi o irmão da Autora quem prosseguiu com a gestão dos negócios que eram do seu pai.

8) Após a morte do pai da Autora, o Réu continuou a ocupar a fração identificada em 1).

9) Em agosto de 2020, a Autora deslocou-se ao Algarve, acompanhada pelo seu marido e pela sua mãe, tendo contactado diretamente o Réu, interpelando-o para proceder à entrega do imóvel identificado em 1), arrogando-se titular do direito de propriedade sobre o mesmo imóvel.

10) O Réu não procedeu à entrega do imóvel identificado em 1) e deixou de responder aos contactos telefónicos da Autora e/ou do seu marido.

11) Em março de 2021, a Autora voltou a contactar o Réu para que este lhe entregasse a fração autónoma identificada em 1), mas o Réu não a entregou.

12) Em 12 de maio de 2021, através de carta registada, a Autora interpelou o Réu para que este, até 31 de maio de 2021, procedesse à entrega da fração autónoma identificada em 1), livre e desocupada de pessoas e bens, e procedesse à entrega das respetivas chaves, na morada da Autora.

13) Em resposta à comunicação referida em 12), o Réu remeteu à Autora comunicação, datada de 15 de junho de 2021, arrogando-se arrendatário da fração identificada em 1), invocando desconhecer a alteração de propriedade para a Autora.

14) No decurso das tentativas para que o Réu restituísse o imóvel identificado em 1) à Autora, o Réu começou por afirmar que iria entregar o imóvel, mas depois deixou de responder às tentativas de contacto da Autora (diretamente e/ou através do seu marido).

15) Desde a aquisição da propriedade da fração autónoma identificada em 1), a Autora nunca usufruiu da mesma.

16) Em 24 de março de 2021, a Autora ordenou a desligação do serviço de abastecimento de água referente à fração autónoma identificada em 1).

17) Por altura da Páscoa de 2021, em momento ulterior ao facto mencionado 16) e por causa dele, o Réu, juntamente com a sua companheira e o filho menor de ambos, teve de sair da fração identificada em 1) e de alojar-se em casa de familiares.

18) Nos contactos mantidos com o Réu em agosto de 2020, em março de 2021 e em maio de 2021, a Autora não apresentou prova documental da titularidade do direito de propriedade sobre a fração autónoma identificada em 1).

19) O Réu efetuou junto da Banco 1..., a favor da Autora, depósitos autónomos, intitulados de rendas referentes aos meses de novembro a dezembro de 2021 e de janeiro a setembro de 2022.

Não provado:

a) O Réu ocupa a fração identificada em 1), desde 2007, mediante o pagamento de uma renda.

b) O valor da renda mencionada em a) foi fixado em € 150,00, à data em que o Réu passou a residir no imóvel identificado em 1), e atualmente tem o valor de € 300,00.

c) Após a morte do pai da Autora, e até ao presente, a renda mencionada em a) foi sempre paga ao irmão da Autora, CC.

d) A Autora sempre teve conhecimento do contrato de arrendamento verbal mencionado em a).

e) A Autora nunca se opôs ao contrato mencionado em a).

f) A Autora nunca se considerou real proprietária da fração identificada em 1) por saber que a mesma apenas integrou a sua esfera jurídica para salvaguarda do património conjugal de seus pais.

g) Corre termos no Juízo Central Cível ...-J..., no Tribunal da Comarca ..., o processo com o n.º 9705/17.... que tem como objeto a apreciação da nulidade do contrato de doação subjacente à aquisição do direito de propriedade pela Autora sobre o prédio identificado em 1).

h) Nos dias 29 e 30 de março de 2021, a Autora ordenou a desligação dos serviços de abastecimento de gás e eletricidade ao prédio identificado em 1).

i) O Réu pretendeu, desde o início, que o contrato que celebrou com o pai da Autora com respeito à fração autónoma identificada em 1) fosse reduzido a escrito.

j) O Réu veio viver para o Algarve no ano de 2006, tendo vindo trabalhar para o restaurante do pai da Autora, denominado S..., sito em concelho ..., a convite deste, altura em que ficou a dormir num quarto ali existente, de abril de 2006 a maio de 2007.

k) Posteriormente ao mencionado em j), o Réu começou a prestar o seu trabalho no ..., também em concelho ..., ao invés de o prestar no ... e passou a habitar a fração autónoma identificada em 1), mediante o pagamento de uma contrapartida, a título de renda, pagando mensalmente a aludida renda ao pai da Autora.

l) O Réu apresentou queixa-crime contra a Autora, cujo processo corre termos sob o n.º 321/21.... no Ministério Público- DIAP ....

m) Foi por imposição da mãe da Autora, GG, que o Réu desocupou o imóvel identificado em 1), durante dois verões.

n) O Réu anuiu à circunstância referida em n) por não ter, à data, a sua família constituída e também dada a relação de respeito existente entre o Réu e o pai da Autora.

o) Com a desligação dos serviços básicos e essenciais, a Autora, com frieza, calculismo e insensibilidade, decidiu privar o Réu e o seu agregado familiar do acesso à água, eletricidade e gás, com o exclusivo propósito de pressionar o Réu a abandonar a fração de que é proprietária, apesar de bem saber que a mesma lhe havia sido arrendada.

p) O Réu sofreu um prejuízo no montante de €250,00, equivalente ao valor em alimentos que tinha no frigorífico e que se estragaram em resultado da desligação do serviço de eletricidade.

q) Em resultado das circunstâncias descritas em p), o Réu sentiu-se desesperado, angustiado, nervoso e ansioso.

r) A Autora intentou a presente ação de reivindicação sabendo da existência de um contrato de arrendamento que se encontra em vigor e através do qual foi cedido o gozo do imóvel reivindicado ao Réu.

s) O valor de mercado de arrendamento de imóveis com a tipologia, estado de conservação e localização da fração autónoma identificada em 1) ascende a quantia não inferior a €983,33.


1.2. A impugnação da decisão de facto
1.2.1. Com fundamento nas suas declarações de parte e nos depoimentos das testemunhas CC e DD, o Réu considera que se provam os factos discriminados nas alíneas a) a c) dos factos não provados – “a) O Réu ocupa a fração identificada em 1), desde 2007, mediante o pagamento de uma renda”; “b) O valor da renda mencionada em a) foi fixado em €150,00, à data em que o Réu passou a residir no imóvel identificado em 1), e atualmente tem o valor de €300,00”; “c) Após a morte do pai da Autora, e até ao presente, a renda mencionada em a) foi sempre paga ao irmão da Autora, CC”.

O Réu alegou haver tomado de arrendamento, ao pai da Autora, a fração reivindicada e a matéria impugnada comporta os factos essenciais que serviram de fundamento a esta defesa.

Sobre esta matéria não foi produzida qualquer prova documental - não foi junto aos autos contrato de arrendamento, recibos de rendas ou outro comprovativo do pagamento das rendas; as rendas, argumenta-se, seriam pagas em numerário – resumindo-se a prova produzida, sem prejuízo do que adiante se dirá, às declarações de parte do Réu e ao depoimento da testemunha CC.

A decisão recorrida desconsiderou estas declarações e depoimento e explicou detalhadamente, as suas razões, designadamente: “as declarações de parte prestadas pelo Réu revelaram-se condicionadas pelo interesse inerente à sua posição processual”, foram “pouco espontâneas, tentando «adivinhar» intenções por trás das perguntas realizadas, denotando uma preocupação em responder da forma «correta», não foi “capaz de explicar circunstanciadamente as suas respostas”, procurou “subterfúgios quando pedidos esclarecimentos”; quanto à testemunha “CC, irmão da Autora, foi notória a existência de um clima de animosidade daquele para com esta, tendo CC admitido que se encontram desavindos e com litígios judiciais pendentes”, “revelou um depoimento evasivo e vago” “manteve um depoimento condicionado pela animosidade que caracteriza a sua relação com a Autora, medindo previamente o que ia dizendo, faltando-lhe por isso espontaneidade”.

Os depoimentos das testemunhas e as declarações de parte nos casos em que não importam confissão são apreciados livremente pelo tribunal [artº 396º, do Código Civil (CC) e 466º, nº3, do Código do Processo Civil (CPC)].

A prova livre contrapõe-se à prova legal, isto é, aos casos em que é a própria lei que estabelece a força probatória do meio de prova [cfr. v.g. artº 358º, do CC].
No sistema de prova livre, o juiz não está sujeito a regras que lhe determinam antecipadamente a forma como deve valor a prova, julga segundo a convicção que recolheu após avaliar as provas produzidas [artº 607º, nº5, do CPC].
“(…) ao julgador cabe, depois da prova produzida, tirar as suas conclusões, em conformidade com as impressões recém-colhidas e com a convicção que, através delas, se foi gerando no seu espírito, de acordo com as máximas da experiência aplicáveis.” [4]
Valorar livremente a prova testemunhal significará, em regra, atribuir maior relevância a determinados depoimentos em prejuízo de outros.

(…) dificilmente se concebe, em regime de prova livre, que seja de igual força a prova testemunhal de uma e de outra parte; o que o tribunal tem é de formar a sua convicção.”[5]

À luz destas regras, a decisão recorrida não levou em linha de conta – não conferiu credibilidade – às declarações de parte do Réu e ao depoimento da testemunha CC; por ser assim e ao invés do que se defende no recurso [conlª VII], já se vê que não existe – não se pode configurar - qualquer erro resultante do que por eles foi dito e do que se decidiu, o erro ou contradição resultaria do inverso, isto é, em não se conferir credibilidade aos depoimentos e decidir de acordo com eles.

O configurado erro da decisão de facto assente na desconformidade entre o que declarou o Réu e depôs a testemunha CC e o que se julgou provado, não se verifica, nem será, no caso, equacionável; o erro de julgamento, a existir, estaria a montante daquele, isto é, estaria nas razões pelas quais a decisão recorrida desconsiderou estas provas pessoais e, sobre estas razões, o recurso é absolutamente omisso.

Confrontados estamos, pois – ainda que meramente em termos de resultado – com a avaliação da prova. A decisão recorrida não atribuiu credibilidade às declarações de parte do Réu e ao depoimento da testemunha CC e explicou as suas razões; o Réu, sem afrontar tais razões, considera que tal prova merece credibilidade (embora não o expresse em forma de letra a impugnação assenta, necessariamente, neste pressuposto).

Como já escrevemos no Ac. desta Relação de 23/11/2017 (proc. nº 7334/16.0T8STB.E1), “a impugnação da matéria de facto não visa derrogar o princípio da livre apreciação das provas pelo juiz, consagrado, entre outros, no artº 607º, nº5, do CPC e, assim, a (re)apreciação da prova na 2ª instância, deve conciliar-se com este princípio, o que significa que a impugnação da matéria de facto não se basta com a simples evocação de uma convicção probatória formada pelo impugnante que divirja da ajuizada em 1ª instância, é necessário a especificação de concretos meios probatórios que imponham decisão diversa da decisão recorrida (artº 640º, nº1, al. b), do CPC), o que não se verifica quando o fundamento da impugnação consiste numa avaliação diferente da prova produzida a propósito do facto impugnado”.

Entendimento que resulta, aliás, com mais propriedade, do acórdão do Tribunal Constitucional nº 198/2004, ao expressar: “A censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode consequentemente assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objetivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objetivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção. Doutra forma, seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão.”[6]

No caso, a divergência inicia por se centrar na valoração da prova, ou seja, o Réu visa a substituição da convicção do julgador pela convicção que ele próprio adquiriu por via das suas declarações enquanto parte e do depoimento da testemunha CC; não se questionando a liberdade do Réu formar uma convicção própria sobre a prova e até de seccionar esta por forma a reter aquela que melhor se ajusta à defesa dos seus interesses, há-de concordar-se, que uma tal convicção, em si, é irrelevante para impor – assim o exige o artº 662º, nº1, do CPC - a alteração que preconiza, uma vez que a convicção não é prova produzida, mas tão só uma das suas possíveis leituras.

Resta-nos o depoimento de DD, companheira do Réu que habitou com este na fração reivindicada, desde 2010 e terá ouvido, em 2021, a conversa na qual a Autora interpelou o Réu para que este lhe entregasse a fração; depoimento insuficiente para, com base nele, se concluir pelo pagamento de rendas - que afirmou verificarem-se mas nunca presenciou - - uma vez que foi patente o seu embaraço quando chamada a descrever a reação do Réu, seu companheiro, à exigência de entrega da fração pela Autora, terminando por afirmar que o Réu pediu um prazo para a entrega e não se opôs a esta (minutos 18:50 a 20:10 do depoimento), o que não se coaduna, à luz das regras da experiência e da normalidade das coisas, com o pagamento de rendas e a sua qualidade de arrendatário.

O Réu terá pago ao falecido pai da Autora despesas relativas a luz e água da fração, uma vez que era ele quem habitava a fração e beneficiava dos respetivos consumos, mas não foi produzida prova do pagamento de rendas; em sentido oposto, isto é, indiciando que o Réu não pagou rendas, nem celebrou com o falecido pai da Autora qualquer contrato de arrendamento, subsiste o depoimento da testemunha EE corroborado pela troca de emails documentada nos autos (doc. 1 junto com a réplica) de acordo com a qual o Réu se conformou em sair da fração – “estou a tratar de arranjar uma solução, assim que tiver uma data prevista digo-te” – e a circunstância de o Réu, durante o verão, restituir a fração ao pai da Autora para este a rentabilizar, arrendando-a a terceiros, como sem impugnação, se prova [ponto 5 dos factos provados], circunstâncias que revelam, à luz das regras da experiência da vida e da normalidade das coisas, não se comportar o Réu como arrendatário da fração.

A prova produzida não impõe decisão diversa da recorrida quanto à matéria impugnada, a impugnação, nesta parte, improcede.

1.2.2. Solução que envolve a improcedência da impugnação da decisão de facto vertida nas alíneas d) e e) dos factos não provados - a Autora sempre teve conhecimento do contrato de arrendamento verbal mencionado em a); a Autora nunca se opôs ao contrato mencionado em a)pois, por definição, a Autora não poderia ter conhecimento ou opor-se a um contrato de arrendamento que não se prova haver existido.

1.2.3. Com fundamento nas suas declarações de parte e no depoimento da Testemunha DD, o Réu impugna a decisão de facto vertida nos pontos 9 e 11 dos factos provados – “9) Em agosto de 2020, a Autora deslocou-se ao Algarve, acompanhada pelo seu marido e pela sua mãe, tendo contactado diretamente o Réu, interpelando-o para proceder à entrega do imóvel identificado em 1), arrogando-se titular do direito de propriedade sobre o mesmo imóvel”; “11) Em março de 2021, a Autora voltou a contactar o Réu para que este lhe entregasse a fração autónoma identificada em 1), mas o Réu não a entregou” – considerando que, para além do que consta do ponto 12 dos factos provados - “12) Em 12 de maio de 2021, através de carta registada, a Autora interpelou o Réu para que este, até 31 de maio de 2021, procedesse à entrega da fração autónoma identificada em 1), livre e desocupada de pessoas e bens, e procedesse à entrega das respetivas chaves, na morada da Autora - não se prova qualquer interpelação da Autora ao Réu para entregar a fração.

Argumenta que não foi feita prova sobre esta matéria e que das declarações do Réu e da testemunha DD resulta o oposto.

A decisão recorrida motivou, designadamente, assim as respostas:

“No que concerne à prova dos factos elencados nos pontos 9), 10) e 11), a sua afirmação dimana do depoimento da testemunha EE, em conjugação com o depoimento da testemunha DD e com a matéria de teor confessória levada a assentada, conforme decorre da compulsa da ata da audiência final”.

Ouvida a prova, não encontramos razões para divergir; o depoimento da testemunha EE apoia a decisão de facto impugnada e a prova que serve de fundamento à impugnação, ao invés do afirmado no recurso, corrobora tal depoimento; as declarações de parte do Réu ao reconheceu haver “sido interpelado pela Autora, quer presencialmente, quer por comunicação escrita, para proceder à entrega do imóvel” (cfr. assentada em ata de 4/10/2022); o depoimento da testemunha DD, como já referido, por haver ouvido, no ano de 2021, a conversa na qual a Autora interpelou o Réu para que este lhe entregasse a fração.

A prova produzida não impõe decisão diversa da proferida em 1ª instância.

A impugnação improcede quanto a esta matéria.

A apreciação da demais matéria impugnada mostra-se prejudicada pela solução de direito; infra tornaremos a esta questão.


2. Direito
2.1. Se o Réu é arrendatário da fração
Ao pedido de entrega da fração, o Réu opôs a sua qualidade de arrendatário, oposição que decaiu em 1ª instância por falta de prova.

Consignou-se, em essência (ressalvados aspetos de pontuação): “(da matéria factual apurada nos autos, resultou como não provado o pagamento de quaisquer quantias a título de renda pelo Réu, havendo que concluir-se que o pai da Autora cedeu a utilização gratuita ao Réu do imóvel identificado em 1) dos factos provados, para que este nela instalasse a sua habitação. Não resultou provado que as partes do respetivo contrato tenham estipulado a obrigação de o Réu satisfazer, em contrapartida pela concessão do gozo temporário do prédio, uma retribuição. (…) E como é evidente, nem a junção aos autos dos documentos comprovativos dos depósitos efetuados junto da Banco 1..., a favor da Autora, intitulados de rendas referentes aos meses de novembro a dezembro de 2021 e de janeiro a setembro de 2022, requerida pelo Réu em requerimento apresentado em 06-09-2022, possui a virtualidade de converter a gratuitidade do acordo celebrado entre o pai da Autora e o Réu. Deste modo, cumpre concluir que resultou comprovado nos autos que o pai da Autora entregou ao Réu, de forma gratuita, a fração autónoma identificada em 1) dos factos provados, de que era dono, ao réu, para que o mesmo aí habitasse. Posto isto, a factualidade provada permite subsumir a relação contratual descrita ao regime do contrato de comodato.”

Segundo o artº 1022º, do Código Civil (CC) a locação é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição.

E de acordo com o artº 1023º, a locação diz-se arrendamento quando versa sobre coisa imóvel, aluguer quando incide sobre coisa móvel.

O gozo temporário da coisa imóvel e a retribuição são elementos essenciais do contrato de arrendamento.

“(…) é essencial à perfeição do arrendamento que as partes tenham acordado no montante da retribuição que deve ser paga pelo locatário ou no critério que permita a sua fixação. De contrário, é de concluir (…) que as partes não chegaram a efetuar o contrato (artº 232º)”.[7]

No caso, demonstra-se que o pai da Autora, em data anterior a 2012, cedeu ao Réu o gozo da fração reivindicada da qual este fez habitação até à altura da Páscoa de 2021 [pontos 4 e 17 dos factos provados] mas não se demonstra o pagamento pelo Réu de qualquer contrapartida pelo gozo da fração; não se demostrou o pagamento de rendas em 1ª instância, nem se demonstra no recurso por efeito da improcedência da impugnação da decisão de facto vertida nas alíneas a) a c) dos factos não provados [ponto 1.2.1 supra].

A decisão recorrida conforma-se com a lei e com os factos que se provam; o recurso, assente numa alteração da decisão de facto que não se reconhece, não merece proceder.

Improcede o recurso quanto a esta questão.

Solução que prejudica a apreciação da impugnação da decisão de factos relativa às alíneas f), i) e r) dos factos não provados – “f) A Autora nunca se considerou real proprietária da fração identificada em 1) por saber que a mesma apenas integrou a sua esfera jurídica para salvaguarda do património conjugal de seus pais; “i) O Réu pretendeu, desde o início, que o contrato que celebrou com o pai da Autora com respeito à fração autónoma identificada em 1) fosse reduzido a escrito”; r) A Autora intentou a presente ação de reivindicação sabendo da existência de um contrato de arrendamento que se encontra em vigor e através do qual foi cedido o gozo do imóvel reivindicado ao Réu” – uma vez que não sofre alteração seja qual for o resultado deste conhecimento.

2.2. Se a Autora deve indemnizar o Réu

A decisão recorrida julgou improcedente o pedido reconvencional - condenação da Autora no pagamento da quantia de € 1.750,00, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais por prejuízos decorrentes do desligamento da água, luz e gás na fração – por considerar que a Autora tinha o direito de mandar desligar o serviço de abastecimento de água à fração [único corte de serviços que julgou provado – ponto 16 dos factos provados].

Consignou: “(…) resultou provado que a Autora procedeu à desligação do serviço de abastecimento de água à fração autónoma em referência nos autos. Fê-lo, todavia, no âmbito dos poderes que lhe conferem direito de propriedade, dispondo da fração que lhe pertence, dentro dos limites da lei, porquanto o seu direito não está sujeito a qualquer restrição decorrente de direito de terceiro – artigo 1305.º do Código Civil. Posto isto, julga-se totalmente improcedente a reconvenção.”

Diverge o Réu acentuando que a privação de serviços básicos essenciais a que a Autora o sujeitou, a si e à sua família, constituem um ato ilícito em primeiro lugar porque comportam a violação de obrigações contratuais – proporcionar o gozo da coisa – do senhorio e, de qualquer forma, ainda que o contrato fosse havido de comodato, o Réu dispunha de um prazo para abandonar o imóvel – 31/5/2021 – e os serviços foram desligados em data anterior - Março de 2021 – em plena vigência do contrato de comodato.

Segundo o artigo 798.º do CC, o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor.

Coloca-se a questão do incumprimento de obrigações pela Autora e consequente responsabilidade pela reparação de prejuízos causados ao Réu numa dupla perspetiva, embora subsidiária; enquanto senhoria ou enquanto comodante.

A Autora não se configura nos autos como senhoria, nem como comodante o que compromete ab initio o dever de indemnizar fundado no incumprimento das respetivas obrigações; não se configura como senhoria, enquanto adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato de arrendamento (artigo 1057.º do CC), porquanto o contrato havido entre o pai da Autora e o Réu não pode haver-se como de arrendamento, pelas razões já explicadas [ponto 2.1. supra]; não se configura como comodante porquanto não emprestou a fração ao Réu – nem tal se alega – nem sucedeu nos direitos e obrigações do comodante, seu pai.

Proporcionando, o pai da Autora ao Réu, o gozo da fração sem qualquer contrapartida, o acordo assume a natureza de comodato (artigo 1129.º do CC) tal como qualificado pela decisão recorrida. Contrato que teve por comodante o pai da Autora, e não esta que nele não outorgou, por isto que as obrigações que do comodato resultaram para o comodante – v.g. o dever de se abster de atos que impeçam ou restrinjam o uso da coisa pelo comodatário (artigo 1133.º do CC) – não vinculam a Autora por terceira em relação ao contrato (artigo 406.º, n.º 2, do CC).

A Autora adquiriu a fração, dada de empréstimo ao Réu, por doação de seus pais [ponto 1 dos factos provados], o que significa que as obrigações do comodante cessaram com a doação e isto porque, já se escreveu e estamos inteiramente de acordo, “é de entender que, transmitido o direito ao abrigo do qual foram assumidas as obrigações do comodante (ou de outros contratos geradores de direitos pessoais de gozo), as mesmas não transitam para a esfera jurídica do adquirente, atenta a sua qualidade de terceiro cujo direito de propriedade prevalece sem as limitações decorrentes de contratos celebrados por anterior ou anteriores proprietários.”[8]

De facto, a lei não prevê para o adquirente do direito do comodante o regime que estabelece para o adquirente do direito do locador – o adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato sucede nos direitos e obrigações do locador (artigo 1057.º do CC) – o que significa que o adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato de comodato não sucede nos direitos e obrigações do comodante os quais, sem prejuízo de convenção em contrário, cessam com a transmissão do direito.

A Autora, proprietária da fração, não pode ser havida como senhoria, nem como comodante da fração.

Assim, o provado desligamento dos serviços de água à fração, da iniciativa da Autora - 16) Em 24 de março de 2021, a Autora ordenou a desligação do serviço de abastecimento de água referente à fração autónoma identificada em 1) – não envolve o incumprimento de qualquer obrigação por esta assumida perante o Réu, nem dá lugar à reparação de prejuízos por este eventualmente sofridos. Comporta um ato que se insere nos poderes de proprietário da fração, como se decidiu em 1ª instância e cujo exercício não se tem - nem tal se alega – como disfuncional; tenha-se em vista que a Autora, antes de diligenciar pelo desligamento dos serviços de abastecimento de água, o que se veio a verificar em 24 de março de 2021, já havia interpelado o Réu, em agosto de 2020, para entregar a fração (ponto 9 dos factos provados), ou seja, o corte dos serviços de abastecimento de água ocorreu mais de seis meses após a interpelação ao Réu para entregar a fração, tempo razoável para este organizar a sua vida e entregar a fração que ocupava sem consentimento e contra a vontade da sua legítima proprietária e que revela não haverem sido excedidos os limites da boa-fé no exercício do direito.

O corte do abastecimento de água à fração, na enunciada envolvência factual, não constitui um facto ilícito e minguando este pressuposto da obrigação de indemnizar, a Autora não se mostra obrigada a reparar os prejuízos alegados pelo Réu.

O recurso improcede quanto a esta questão.

Solução que prejudica o conhecimento da impugnação de facto relativa às als. h), o), p) e q) dos factos não provados uma vez que não sofre alteração por efeito do resultado deste conhecimento.

2.3 Se a indemnização devida pela privação do uso da fração é devida a partir de 1/6/2021

A decisão recorrida relegou para liquidação ulterior o pedido de condenação do Réu no pagamento de uma indemnização pela privação do uso da fração.

Ajuizou, designadamente, assim (ressalvados aspetos de pontuação): “(…) resulta provado, sobejamente, que o Réu tem vindo a ocupar o imóvel contra a vontade da Autora, com consequentes prejuízos para a Autora. Não há dúvida que o Réu ocupa a fração autónoma identificada nos autos pertencente à Autora, com isso violando o direito subjetivo desta, ou seja, o direito de propriedade, que é um direito absoluto. O Réu sabia bem que ocupava ilicitamente o imóvel pertencente à Autora sem ter direito para tal, sendo nesta consciência da reprobabilidade da sua conduta que se descobre inequivocamente a sua culpa. Por fim, resulta provado que a Autora sofreu danos com tal ocupação. Donde, encontram-se preenchidos todos os pressupostos para que proceda o pedido de indemnização pela privação do uso do imóvel, embora inexistam neste momento, elementos para fixar o seu quantitativo. Nestes termos, o apuramento do montante desses danos deve ser relegado para ulterior incidente de liquidação, o que se determina.”

O recurso coloca duas questões a este respeito: i) a indemnização só é devida a partir de 1 de junho de 2021, atento o prazo concedido pela Autora ao Réu para desocupar a fração [conclª XLIX]; ii) à indemnização que vier a ser encontrada devem ser deduzidos os montantes depositados a título de renda [conclª L].

A primeira questão assenta, de direito, na consideração que vigorando entre as partes um contrato de comodato, a ocupação ilícita por parte do Réu só ocorreu com a mora na desocupação, isto é, a partir de 1/6/2021 data da interpelação para desocupar a fração (ponto 12 dos factos provados].

Como já se referiu [ponto 2.2. supra], entre a Autora e o Réu não foi celebrado nenhum acordo de comodato, nem a Autora sucedeu nos direitos e obrigações do comodante, seu pai; o comodato cessou com a aquisição da fração pela Autora, por doação de seus pais, razão pela qual não se pode, com propriedade, invocar um contrato em que a Autora não foi parte, nem sucedeu na posição contratual e, ademais, cujos efeitos há muito – em 14/12/2012 [ponto 1 dos factos provados] - cessaram, para daí retirar efeitos de cumprimento ou incumprimento contratual.

A Autora não estava obrigada a facultar ao Réu o gozo da fração, deu-lhe conhecimento da sua qualidade de proprietária e interpelou-o para entregar a fração, em agosto de 2020 [ponto 9 dos factos provados], data a partir da qual o Réu ficou ciente que ocupação da fração era ilícita por violar direitos da Autora.

A tanto não obsta a provada circunstância de a Autora não haver apresentado então prova documental da titularidade do direito de propriedade sobre a fração (ponto 18 dos factos provados), uma vez que ainda que o Réu estivesse em dúvida quanto à qualidade de proprietária da Autora, não podia estar em duvida, ou erro, quanto à obrigação de restituição da fração, dado que o comodato não tinha prazo o que obrigava o Réu a restituir a fração logo que lhe fosse exigida [artº 1137º, nº2, do CC], pelo comodante ou pelos seus herdeiros como sempre seria o caso da Autora e o Réu não ignorava.

Por isto que o termo inicial relevante para o computo da indemnização pela privação do uso é agosto de 2020, como peticionado pela Autora e não a interpelação de 12 de maio de 2021 (ponto 12 dos factos provados), a qual é equacionável, na concreta envolvência factual, como um marco temporal a partir do qual se esgotaram os esforços extrajudiciais de resolução do litígio.

Já quanto à segunda questão o Réu tem razão.

Prova-se que depositou, na Banco 1..., a favor da Autora quantias intituladas de rendas referentes aos meses de novembro a dezembro de 2021 e de janeiro a setembro de 2022 (ponto 19 dos factos provados), quantias estas que deverão ser deduzidas ao montante da indemnização pela privação do uso da fração a liquidar.

Nesta parte e com este alcance, o recurso procede.

2.4. Se a Autora litiga de má fé

A decisão julgou improcedente o pedido de condenação da Autora como litigante de má-fé.

O Réu reitera no recurso a litigância de má-fé da Autora; argumenta: “(…) é notório que a Autora litiga de má-fé na presente ação, seja porque alterou conscientemente a verdade dos factos (ao invocar ter ficado combinado entre as partes um comodato ao invés de um arrendamento, colocando o Réu na posição de um ocupa, quando bem sabe que o mesmo possui título válido para estar no locado), seja porque omitiu factos relevantes para a decisão da causa (nomeadamente o facto de o Réu pagar renda pela utilização do locado e ainda o corte dos serviços básicos e essenciais para forçar a sua saída do locado), seja porque - ao instaurar a presente ação - deduziu uma pretensão cuja falta de fundamento não ignorava” [cclºs XLIII e XLIV].

O pedido da Autora procedeu e tal significa, para efeitos dos autos, que a pretensão que deduziu em juízo tinha fundamento e não o contrário.

Acresce que os factos alegados pela Autora foram, genericamente, julgados provados e determinaram a procedência da ação e a improcedência da defesa do Réu, o que significa que tais factos, igualmente para efeitos dos autos, representam a verdade dos factos e correspondem aos factos relevantes para a decisão da causa e não uma verdade alterada ou uma omissão de factos relevantes como se argumenta no recurso.

Os autos não permitem concluir pela litigância de má-fé da Autora.

O recurso procede parcialmente, restando alterar a decisão recorrida em conformidade.


3. Custas
Vencidos nos recursos, incumbe à Autora recorrida e ao Réu recorrente o pagamento das custas (artigo 527.º, nºs 1 e 2, do CPC), que se fixa em 1/20 e 19/20, respetivamente.

Sumário (da responsabilidade do relator – artigo 663.º, n.º 7, do CPC): (…)

IV. Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto, na procedência parcial do recurso, em alterar a decisão recorrida por forma a que, na liquidação da indemnização pela privação do uso da fração (ponto 3 do dispositivo), se tome em consideração os depósitos das quantias intituladas de rendas, a que se reporta o ponto 19 dos factos provados, mantendo-a em tudo o mais.

Custas pelo Recorrente e pela Recorrida na proporção de 19/20 e 1/20, respetivamente.

Évora, 26/10/2023
Francisco Matos
José Manuel Tomé de Carvalho
Eduarda Branquinho


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[1] Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos, pág. 395 e Jurisprudência aí indicada; no mesmo sentido, Lebre de Freitas, CPC anotado, 2ª ed., 3º vol. Tomo I, pág. 5 e Abrantes Geraldes, Recursos, novo regime, pág. 23.
[2] É o que decorre, entre outros, dos artigos 627.º, n.º 1, 631.º e 639.º, n.º 1, todos do C.P.C..
[3] Cfr., entre outros, Ac. STJ de 6/2/1987, BMJ, 364º - 714.
[4] Lebres de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anotado, vol. 2º, 4ª ed., pág. 709.
[5] Alberto dos Reis, CPC anotado, vol. IV, pág. 340.
[6] Diário da República n.º 129/2004, Série II de 2004-06-02.
[7] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, vol. 2º, 4ª ed., reimpressão, pág. 343.
[8] Ac. da RL de 16/05/2006 (proc. 3834/2006-7) disponível em www.dgsi.pt