Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
730/10.9TBPTM-B.E1
Relator: ELISABETE VALENTE
Descritores: SANÇÃO PECUNIÁRIA COMPULSÓRIA
CRÉDITO DO ESTADO
JUROS
Data do Acordão: 11/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - Os juros correspondentes à sanção legal prevista no artigo 13.º, n.º 1, alínea d), 2.ª parte, do RPOP e no artigo 829.º-A, n.º 4, do CC não gozam da regra de precipucidade (cfr. artigo 541.º do CPC) e só podem ser pagos pelo executado, não pelo credor (exequente ou reclamante) pelo que não devem ser pagos antes do capital devido ao exequente/ adquirente dos bens.
II - Entender o contrário – ou seja, que a sanção pecuniária compulsória devida ao Estado é paga com prioridade sobre o crédito exequendo – constituirá, em última análise, uma dupla penalização do credor/exequente, que não só não vê o seu crédito ser completamente liquidado, como tem ainda de suportar uma sanção criada em sua defesa.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes da secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

1 – Relatório.

Por apenso à execução de que o Banco (…), SA move contra (…), em 07.02.2023, foi proferida a seguinte decisão (recorrida):
«Reclamação, pelo Exequente, da nota de liquidação dos juros compulsórios em complemento da nota de honorários e despesas, e promoção de 30-1, que remete para a douta promoção de 20-10-22:
O Exequente insurge-se contra a liquidação de juros compulsórios, pelos fundamentos constantes da ref. 10703946, que se dão por reproduzidos, pedindo, a final, seja dado provimento à reclamação, ordenando-se à agente de execução que dê sem efeito a referida nota de liquidação, com todas as consequências legais.
O Ministério Público defende que os juros compulsórios devidos ao Estado devem ser satisfeitos antes do pagamento do capital devido ao Exequente, o que, no caso, não ocorreu.
Efectivamente, os juros compulsórios a imputar ao Estado tratam-se de juros legais e, como tal, devem ser satisfeitos antes do pagamento do capital devido ao exequente.
O artigo 829.º-A, n.º 4, do Código Civil, prevê que quando for estipulado ou judicialmente determinado qualquer pagamento em dinheiro corrente, são automaticamente devidos juros à taxa de 5% ao ano, desde a data em que a sentença de condenação transitar em julgado, os quais acrescerão aos juros de mora, se estes forem também devidos, ou à indemnização a que houver lugar. O montante da sanção pecuniária compulsória destina-se, em parte iguais, ao credor e ao Estado (n.º 3).
O Estado é credor legal desta quantia. E, neste putativo concurso entre exequente e Estado, isto é, saber se os juros legais compulsórios devidos ao Estado devem ser pagos antes do capital devido ao exequente, cabe trazer à luz o regime previsto pelo artigo 785.º do Código Civil.
Este estabelece como ordem de imputação presumida da quantia apurada, no caso de não chegar para cobrir tudo o que é devido, o pagamento de despesas, da indemnização, dos juros e do capital. O n.º 2 reforça que a imputação no capital só pode fazer-se em último lugar, a não ser no caso de o credor concordar em que se faça antes.
Veja-se o expendido nos acórdãos já aludidos na douta promoção de 20-10, designadamente do Tribunal da Relação de Évora, de 17-10-2019, no processo n.º 2720/16.9T8ENT.E1, e de 28-4-2022, no processo n.º 1380/20.7T8SLV-C.E1.
Ao contrário do entendido pelo Exequente, não há qualquer penalização, mas sim o pagamento, devido por lei, de um crédito que é do Estado e que, pela aludida ordem de imputação, precede a satisfação do capital devido ao Exequente.
Mesmo o Exequente beneficia, na consideração do valor pelo qual o imóvel lhe foi vendido/adjudicado, daquele regime: em primeiro lugar, o pagamento da quantia devida a título de juros e, só depois, a título de capital.
A não ser que disso prescinda, mas, a ser assim, apenas tem disponibilidade sobre a sua parte.
O artigo 829.º-A, n.º 4, do Código Civil estipula, pois, um adicional de juros que, assim, tem de ser pago antes do capital devido ao exequente.
No que concerne à alegação de prescrição, há que ter em conta o prazo de cinco anos, fixado pelo artigo 310.º, alínea d), do Código Civil. E este começa a correr a partir da exigibilidade da obrigação. Neste caso, os juros vencem desde a data em que a sentença de condenação transita em julgado até pagamento, mas com aquele limite de cinco anos, correspondente ao prazo da prescrição.
O prazo de prescrição considera-se interrompido nos termos do artigo 323.º, n.º 1, do Código Civil, cinco dias após apresentação do requerimento executivo pelo Exequente; isto é, o Exequente – como atrás já se referiu – beneficiou de novo prazo. O que poderia ter sucedido era o Exequente, também como já dito, prescindir de receber qualquer quantia a título de juros, incluindo compulsórios, mas isso seria possível apenas na parte que lhe fosse devida, não tendo qualquer poder de disposição sobre a proporção que cabe ao Estado.
Por conseguinte, considerando que a obrigação de juros, no caso, vence no “dia-a-dia” (Acórdão da Relação de Évora, de 11-4-2019, no processo n.º 224/17.1T8MMN-A.E1) e ainda que haja que ter em conta o limite de cinco anos, tal prazo foi interrompido por força da instauração da execução, e continuaram a vencer-se juros, com prazo ex novo (mesmo aresto citado na nota 2). Os contabilizados para além do referido período de cinco anos não podem, efectivamente, ser cobrados.
Por todo o exposto, atende-se parcialmente ao requerido, havendo lugar ao pagamento de juros compulsórios legais ao Estado, por meio do produto do bem imóvel vendido/adjudicado ao Exequente, mas com o limite de cinco anos, deferindo-se o requerido nesta medida e, no mais, indo indeferido.
Sem custas. Notifique».

Inconformado com tal decisão, veio o exequente interpor recurso contra a mesma, apresentando as seguintes conclusões do recurso (transcrição):
«A – Em decisão proferida pelo Tribunal ora recorrido foi parcialmente indeferida a Reclamação apresentada pelo Exequente da Nota de Liquidação dos Juros Compulsórios, contabilizados no montante de € 60.436,06 de acordo com o n.º 4 do artigo 829.º-A do Código Civil, efectuada pela Agente de Execução na sequência da promoção do Ministério Público, sendo a metade a favor do Estado a liquidar pelo Exequente.
B - O instituto da sanção pecuniária compulsória foi introduzido no nosso ordenamento jurídico por via do artigo 829.º-A, aditado ao Código Civil pelo Decreto-Lei n.º 262/2003, de 16 de Junho, com o seguinte teor:
“1 – Nas obrigações de prestação de facto infungível, positivo ou negativo, salvo nas que exigem especiais qualidades científicas ou artísticas do obrigado, o tribunal deve, a requerimento do credor, condenar o devedor ao pagamento de uma quantia pecuniária por cada dia de atraso no cumprimento ou por cada infração, conforme for mais conveniente às circunstâncias do caso.
2 – A sanção pecuniária compulsória prevista no número anterior será fixada segundo critérios de razoabilidade, sem prejuízo da indemnização a que houver lugar.
3 – O montante da sanção pecuniária compulsória destina-se, em partes iguais, ao credor e ao Estado.
4 – Quando for estipulado ou judicialmente determinado qualquer pagamento em dinheiro corrente, são automaticamente devidos juros à taxa de 5% ao ano, desde a data em que a sentença de condenação transitar em julgado, os quais acrescerão aos juros de mora, se estes forem também devidos, ou à indemnização a que houver lugar.”
C - Deste quadro normativo resulta a configuração de duas espécies de sanção pecuniária compulsória: uma prevista no n.º 1 do artigo 829.º-A, de natureza subsidiária, destinada a compelir o devedor à execução específica da generalidade das obrigações de prestação de facto infungível;
D - Outra, a que nos interessa no presente caso, prevista no n.º 4 do mesmo artigo, tendente a incentivar e pressionar o devedor ao cumprimento célere de obrigações pecuniárias de quantia certa, decorrentes de fonte seja negocial seja extra negocial com determinação judicial, que tenham sido, em qualquer dos casos, objeto de sentença condenatória transitada em julgado.
E - Consistindo num adicional automático (ope legis) de juros à taxa de 5% ao ano, independentemente dos juros de mora ou de outra indemnização a que haja lugar, tomando a designação de sanção pecuniária compulsória legal ou de juros compulsórios.
F – Emergindo da própria lei, de modo taxativo e automático, em virtude do trânsito em julgado de sentença que condene o devedor no cumprimento de obrigação pecuniária, sem necessidade de intermediação judicial.
G - Porém, em ambas essas modalidades o espírito é o mesmo, ou seja, levar o devedor a encarar as coisas a sério e a não desprezar o interesse do credor e o tribunal.
H – E ambas as modalidades previstas no artigo 829.º-A do C.C. constituem sanções, ou melhor, a mesma sanção – a sanção pecuniária compulsória – deferindo, porém, quanto à forma da contabilização, uma através da fixação de uma quantia pecuniária por cada dia de atraso ou por cada infracção e a outra dum adicional automático de 5% ao ano aos juros.
I - A questão em apreciação prende-se pois com a interpretação do n.º 4 do artigo 829.º-A do C.C., nomeadamente com o significado de juros compulsórios que a decisão em crise classifica como juros legais.
J – De acordo com a finalidade e as razões da introdução desta medida legislativa introduzida pelo artigo 829.º-A do C.C. expostas no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 262/2003, de 16 de Junho, os juros compulsórios previstos no n.º 4 do artigo 829.º-A do C.C. não são verdadeiros juros legais, constituindo, isso sim, uma sanção que visa, uma dupla finalidade de moralidade e de eficácia, pois com ela se reforça a soberania dos tribunais, o respeito pelas suas decisões e o prestígio da justiça, assegurando-se, ao mesmo tempo, o respeito e o acatamento das decisões judiciais.
K - Por outro lado, para que possamos alcançar se estes chamados juros compulsórios podem ser integrados na categoria de juros importa defini-los como um rendimento ou remuneração de uma obrigação de capital (previamente cedido ou devido a outro título), vencível pelo decurso do tempo, e que varia em função do valor do capital, da taxa de remuneração e do tempo de privação, considerando que a obrigação de juros também se encontra prevista na lei para casos em que não há prévia cedência de um capital, mas simples não cumprimento oportuno de uma obrigação imposta legalmente, embora esta seja ainda uma obrigação de capital pecuniário.
L – Ora, os juros compensatórios do n.º 4 do artigo 829.º-A do C.C. não gozam destas características; ou seja, não têm uma função reparadora. Pelo contrário, têm a função de pressionar o devedor ao cumprimento célere de obrigações pecuniárias de quantia certa.
M - Pelo que não estamos aqui, de forma alguma, perante uma remuneração de capital, mesmo que por desapossamento, porque o Estado não foi desapossado de nada.
N - Como o preâmbulo da lei deixa bem definido, embora apelidando-os de juros compulsórios, o que aqui encontramos é uma verdadeira sanção tendente a pressionar o devedor ao cumprimento célere de obrigações pecuniárias de quantia certa.
O - O próprio texto esclarece que se adopta “um modelo diverso para esses casos, muito similar à presunção adoptada já pelo legislador em matéria de juros, inclusive moratórios, das obrigações pecuniárias”. Ou seja, adopta-se um modelo similar aos juros, e não juros.
P - Desfeito o equívoco de que padece a decisão em crise, e a montante a promoção do Ministério Público, uma vez que não se trata de juros legais, não há qualquer fundamentação para invocar o artigo 785.º do C.C. para justificar a imputação em primeiro lugar a juros e só depois a capital.
Q - Demonstrado que está que o n.º 4 do artigo 829.º-A do C.C. estabelece uma sanção a impor ao devedor, não faz qualquer sentido subverter a interpretação deste artigo conjugando-o com quaisquer outros artigos que imponham o pagamento ao Estado antes do crédito do exequente, tanto o referido artigo 785.º do C.C., como o artigo 815.º conjugado com o artigo 541.º, ambos do C.P.C., porque se trata duma sanção e não de qualquer crédito graduado à frente do crédito do exequente ou d de qualquer valor correspondente a juros, custas ou despesas processuais.
R - Isto não quer dizer que o Ministério Público não pudesse nem devesse promover o cumprimento do artigo 716.º, n.º 3, do C.P.C., que estabelece uma obrigação de contabilização e pagamento dos juros compulsórios, mas uma obrigação que impende sobre o devedor / executado e não sobre o credor / exequente.
S - Executado esse a quem deve ser notificada a liquidação, e não ao exequente.
T - Assim sendo, da conjugação do disposto nos artigos 829.º-A, n.º 4, do C.C. e 716.º, n.º 3, do C.P.C., não subsistem dúvidas de que os juros compulsórios decorrem automaticamente da lei e são da responsabilidade do devedor / executado, não devendo o aqui. Recorrente suportar o pagamento de tal sanção.
U - Se assim não se entender, estar-se-á a penalizar o credor (o aqui Recorrente) e não o devedor (o Executado) que incumpriu a obrigação a que foi condenado, transferindo-se a sanção daquele que se quis punir para aquele que se quis proteger.
V - Ora, tendo sido extinta a execução face à inexistência de bens penhoráveis do Executado, sem que se mostre liquidado o montante correspondente aos juros compulsórios, incumbe, de facto, ao Ministério Público, em representação do Estado, requerer o prosseguimento da execução para a cobrança desses juros compulsórios, da responsabilidade do Executado / Devedor, não cabendo ao Exequente / Recorrente proceder ao seu pagamento ou tratar da sua cobrança.
W - Torna-se assim aberrante que se ignore por completo o estipulado no artigo 829.º-A do C.C., bem como as bases em que esta sanção se alicerça, e se parta a espinha dorsal obrigando o credor / exequente a pagá-la!
X - Decidir doutra maneira é subverter a razão última para que foi criada a sanção pecuniária compulsória prevista no artigo 829.º-A, n.º 4, do C.C, constituindo, em última análise, uma dupla penalização do credor/exequente, que não só não vê o seu crédito ser completamente liquidado, como teria ainda de suportar uma sanção criada em sua defesa, o que é no mínimo incongruente.
Y - Donde se conclui que, com esta decisão, o Tribunal a quo atropelou com estrondo o disposto no artigo 829.º-A, n.º 4, do C.C., interpretando-o como se de verdadeiros juros legais se tratasse o que não corresponde à intenção do legislador.
Z – Com esta decisão violou, pois, o tribunal recorrido o artigo 829.º-A, n.º 4, do C.C, e, em consequência, também o artigo 785.º do C.C. por inaplicável.
Termos em que, deve ser dado provimento ao presente recurso anulando a decisão recorrida e, acolhendo as razões do Exequente Apelante, defira a Reclamação apresentada da Nota de Liquidação dos Juros Compulsórios.
Assim V. Exas. farão a costumeira JUSTIÇA!»
Nas contra-alegações o MºPº defende o seguinte (transcrição):
«1.º - Os juros compulsórios a imputar ao Estado, devem ser satisfeitos antes do pagamento do capital devido ao exequente, por aplicação do artigo 785.º, do Código Civil e visto que se tratam de juros legais, ou seja, o artigo 829.º-A, n.º 4, do Código Civil estipula um adicional de juros, a ser pago antes do capital devido ao exequente, face à ordem de imputação dos pagamentos prevista no artigo 785.º, n.º 1, do mesmo diploma.
2º - Não há qualquer penalização do credor/exequente, como este defende, por não ver o seu crédito ser completamente liquidado, tendo ainda de suportar uma sanção criada em sua defesa, mas sim uma satisfação, devida por lei, de um crédito que é do Estado, em defesa do prestígio e da soberania dos Tribunais, e que, pela aludida ordem de imputação, precede a liquidação do capital devido ao Exequente, e de que este acaba por beneficiar na implementação de tal regime, ao se distribuir o valor pelo qual o imóvel lhe foi vendido/adjudicado, em primeiro lugar ao pagamento da quantia devida a título de juros (moratórios e compulsórios) e, depois, a título de capital.
3º - Assim, cremos, pelo que foi exposto, que a decisão ora em crise deve ser mantida.
Termos em que, se nos afigura, deverá a decisão recorrida ser mantida na íntegra, assim se negando provimento ao recurso.
Porém, V. Exas., como sempre, decidirão superiormente conforme for de lei e de JUSTIÇA»
Colhidos os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

Foram dados como provados os seguintes factos:
1. Em 10.02.2017, "(…), Sucursal da S.A. (…)" intentou acção executiva contra (…) e (…), que corre termos neste juízo sob o n.º 224/17.1T8MMN, para pagamento da quantia de € 32.752,24;
2. A exequente deu à execução uma sentença judicial proferida no dia 03.10.2011, junta aos autos principais, cujo teor se dá aqui integralmente por reproduzido para todos os efeitos legais, da qual consta o seguinte com relevo para os autos:
"Nestes termos (…) decide-se julgar a presente acção parcialmente procedente e, em consequência: 1. Condenar, solidariamente, os Réus (…) e (…) a pagarem à Autora Banco (…), S.A.: a. A quantia de € 631,42 (...) – correspondente à 27.ª a 32.ª prestações não pagas relativamente ao contrato n.º (…) – acrescida de juros de mora à taxa anual contratada de 18,976% que sobre o montante de cada uma das prestações se venceu até efectivo e integral pagamento e de imposto de selo sobre tais juros; b. A quantia de € 3.146,39 (…) – correspondente ao capital em dívida relativamente ao contrato n.° (…) – acrescida de juros de mora à taxa anual contratada de 18,976% desde a data da citação até efectivo e integral pagamento e de imposto de selo sobre tais juros; 2. Determinar que a quantia de € 190,88, seja imputada nos valores em dívida com observância do estatuído no artigo 785.º do CC; 3. Condenar o Réu (…) a pagar à Autora Banco (…), S.A.: a. A quantia de € 2.758,14 (...) correspondente à 29.ª a 39.ª prestações não pagas relativamente ao contrato n.° (…) – acrescida de juros de mora à taxa anual contratada de 19 390% que sobre o montante de cada uma das prestações se venceu até efectivo e integral pagamento e de imposto de selo sobre tais juros; b. A quantia de € 6.593,85 (...) – correspondente ao capital em dívida relativamente ao contrato n.° (…) – acrescida de juros de mora à taxa anual contratada de 19,390% desde a data da citação até efectivo e integral pagamento e de imposto de selo sobre tais juros; (...)";
3. A sentença mencionada em 2 transitou em julgado no dia 07.11.2011;
4. O embargante foi citado para a execução em 19.04.2017.
Resulta ainda da análise dos autos que a execução foi extinta por falta / insuficiência de bens penhoráveis.

2 – Objecto do recurso.

Questão (única) a decidir tendo em conta o objecto do recurso delimitado pela recorrente nas conclusões da sua alegação, nos termos do artigo 684.º, n.º 3, do CPC: Saber se, tendo sido extinta a execução, face à inexistência de bens penhoráveis do Executado, sem que se mostre liquidado o montante correspondente aos juros compulsórios a pagar ao Estado, estes devem ou não ser satisfeitos antes do pagamento do capital devido ao exequente, ou seja, se constituirá a sanção pecuniária compulsória devida ao Estado uma prioridade sobre o crédito exequendo.

3 - Análise do recurso.

A sentença considerou que os juros compulsórios a pagar ao Estado são juros legais e, como tal, devem ser satisfeitos antes do pagamento do capital devido ao exequente, entendimento do qual o recorrente discorda.
Vejamos:
Nos termos do artigo 829.º-A aditado ao Código Civil pelo Decreto-Lei n.º 262/2003, de 16 de Junho, com o seguinte teor:
“1 – Nas obrigações de prestação de facto infungível, positivo ou negativo, salvo nas que exigem especiais qualidades científicas ou artísticas do obrigado, o tribunal deve, a requerimento do credor, condenar o devedor ao pagamento de uma quantia pecuniária por cada dia de atraso no cumprimento ou por cada infração, conforme for mais conveniente às circunstâncias do caso.
2 – A sanção pecuniária compulsória prevista no número anterior será fixada segundo critérios de razoabilidade, sem prejuízo da indemnização a que houver lugar.
3 – O montante da sanção pecuniária compulsória destina-se, em partes iguais, ao credor e ao Estado.
4 – Quando for estipulado ou judicialmente determinado qualquer pagamento em dinheiro corrente, são automaticamente devidos juros à taxa de 5% ao ano, desde a data em que a sentença de condenação transitar em julgado, os quais acrescerão aos juros de mora, se estes forem também devidos, ou à indemnização a que houver lugar.”
Insurge-se o recorrente, em suma, contra o entendimento de que o artigo 829.º-A, n.º 4, do Código Civil, estipula um adicional de juros que tem de ser pago, antes do capital devido ao exequente.
O recorrente defende que os juros compulsórios previstos no n.º 4 do artigo 829.º-A do C.C. não são verdadeiros juros legais, pois não correspondem a uma remuneração de capital, não têm uma função reparadora do desapossamento do capital, antes constituem uma sanção.
E assim sendo, o artigo supra referido não pode ser aplicado e conjugado com quaisquer outros artigos que imponham o pagamento ao Estado antes do crédito do exequente, tanto o referido artigo 785.º do C.C., como o artigo 815.º conjugado com o artigo 541.º, ambos do C.P.C., porque se trata duma sanção e não de qualquer crédito graduado à frente do crédito do exequente ou de qualquer valor correspondente a juros, custas ou despesas processuais.
Sobre tal questão não há unanimidade.
Por um lado, há quem defenda que a sanção pecuniária compulsória prevista no artigo 829.º-A, n.º 4, do CC, se traduz num adicional de juros, calculados à taxa de 5%, destinada em partes iguais ao Estado e ao credor, juros que são devidos automaticamente desde o trânsito em julgado da sentença condenatória, isto é, juros devidos por força da lei e, como tal, deverão ser pagos antes do capital devido ao exequente / adquirente dos bens, como resulta do artigo 875.º do Código Civil.
Neste sentido, por exemplo, o Ac RE de 17 de janeiro de 2019, Proc. n.º 2720/16.9T8ENT.E1, Relatora: Cristina Dá Mesquita e o Ac. do TRE de 28/04/2022, Proc. n.º 1380/20.7T8SLV-C.E1, relatado por Dr. Mário Coelho (disponíveis em www.dgsi.pt).
Na mesma linha de entendimento, Vânia Filipe Magalhães, Revista Julgar “O papel do juiz no cumprimento das obrigações: a sanção pecuniária compulsória” Online, dezembro de 2022 | 31, onde se pode ler o seguinte na defesa desta posição:
«A sanção pecuniária compulsória legal, apesar da sua autonomia e de reverter 50% para o Estado que também assume a qualidade de credor, emerge de um único crédito, sem o qual a mesma não será devida.
Entende-se, assim, que a sanção deverá ser paga na totalidade segundo a mesma regra, mesmo que metade reverta para o Estado, devendo ser assegurado o pagamento antes do capital devido ao credor, assegurando-se o seu pagamento integral segundo a regra instituída no artigo 785.º do Código Civil, sob pena de tratamento indiferenciado, sem justificação, do Estado face ao credor.
Não se trata de equiparar a sanção às custas para os efeitos do disposto no artigo 541.º do Código de Processo Civil (que se entende não ser aplicável) mas sim assegurar o seu pagamento integral segundo a regra instituída no artigo 785.º do Código Civil.
Interpretação diversa implicaria um tratamento diferenciado para a quota parte do credor (que seria paga nos termos do artigo 785.º do Código Civil) e para a quota parte do Estado (que não seria pago nos termos do referido preceito legal), privilegiando aquela em detrimento desta, sem qualquer justificação, quando a sanção é una e apenas reverte metade para o credor e metade para o Estado, o que constituiria violação do direito a um processo equitativo a que se reporta o artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, bem como do direito à igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, processualmente previsto no artigo 4.º do Código de Processo Civil.»
E por outro lado, há quem defenda que, os juros correspondentes à sanção legal prevista no artigo 13.º, n.º 1, alínea d), 2.ª parte, do RPOP e no artigo 829.º-A, n.º 4, do CC não gozam da regra de precipuidade (cfr. artigo 541.º do CPC) e só podem ser pagos pelo executado, não pelo credor (exequente ou reclamante) pelo que não devem ser pagos antes do capital devido ao exequente / adquirente dos bens.
Neste sentido, por exemplo J. H. Delgado de Carvalho, em artigo publicado por IPPC 19/05/2023, “Juros compulsórios: o problema da precipuidade”, onde se lê o seguinte:
«2. Os juros compulsórios a que aludem o artigo 13.º, n.º 1, alínea d), 2.ª parte, do RPOP e o artigo 829.º-A, n.º 4, do CC não são nem juros moratórios, nem integram o conceito de custas processuais, nomeadamente, como encargos ou custas de parte (cfr. artigo 3.º do RCP); eles fazem parte da dívida exequenda, embora sejam um acréscimo legal autónomo.
Com efeito, é a própria lei que os distingue e autonomiza dos juros de mora. A parte final do n.º 4 do artigo 829.º-A do CC prevê a cumulação do pagamento dos juros compulsórios com os juros de mora.
A obrigação de pagamento dos juros compulsórios não é da responsabilidade do credor exequente ou reclamante, dado que o sujeito passivo da obrigação de pagamento daqueles juros é a parte vencida na ação na qual foi proferida a sentença em execução ou, por outras palavras, a parte que tiver sido condenada quanto ao objeto do litígio (cfr. artigo 829.º-A, n.º 4, do CC), salvo acordo em contrário das partes.
Assim, o responsável pelo pagamento dos juros compulsórios é sempre o executado.
Por conseguinte, os juros correspondentes à sanção legal prevista no artigo 13.º, n.º 1, alínea d), 2.ª parte, do RPOP e no artigo 829.º-A, n.º 4, do CC não gozam da regra de precipuidade (cfr. artigo 541.º do CPC); à vista disso, aqueles juros só podem ser pagos pelo executado, não pelo credor (exequente ou reclamante). No caso de adjudicação, o que o Agente de Execução deve fazer, depois de pago o credor que requereu a adjudicação, é elaborar nova previsão do valor em dívida na execução (735.º, n.º 3, do CPC), incluindo aqueles juros nessa previsão (o melhor será até fazer uma liquidação separada).
Deste modo, há que concluir que aquela sanção legal, embora possa integrar as despesas da execução nos termos do n.º 3 do artigo 735.º do CPC, não tem a natureza nem de juros de mora, nem de custas de parte; por modo que o valor relativo àquela sanção não deverá ser retirado, de forma precípua, na data do cálculo efetuado pelo Agente de Execução, antes da transmissão dos bens, se houver valores que devam ser entregues ao credor (exequente ou reclamante), ou dispensando este credor do depósito desses juros, no caso de adjudicação.»
Acompanhamos esta última posição, remetendo para as razões invocadas, mas especialmente sensíveis especialmente ao argumento de que, entender o contrário – ou seja, que a sanção pecuniária compulsória devida ao Estado é paga com prioridade sobre o crédito exequendo – constituirá, em última análise, uma dupla penalização do credor/exequente, que não só não vê o seu crédito ser completamente liquidado, como tem ainda de suportar uma sanção criada em sua defesa, o que se afigura incompreensível, tanto mais que a sanção em causa, do n.º 4 do artigo em causa tende a incentivar e pressionar o devedor ao cumprimento célere de obrigações pecuniárias (como refere Correia das Neves, Manual Juros, 3ª ed., pág. 35, trata-se de “coagir o devedor a pagar”).
Também neste sentido, o Ac. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 14-09-2022, Proc. n.º 12/07.3GCMBR-D.C1, Relatora: Isabel Valongo, onde se pode ler o seguinte:
«I – Estando em causa apenas o cumprimento parcial da obrigação exequenda, o n.º 3 do artigo 716.º do Código Civil aponta para a irrazoabilidade de o Estado retirar do valor já obtido a percentagem (de 2,5%) fixada, no artigo 829.º-A daquele diploma, a título de sanção pecuniária compulsória.
II – Por outro lado, em caso de venda de bens penhorados – salvo quando o valor exequendo fique integralmente pago –, a sanção pecuniária compulsória não está entre as despesas judiciais que, por força do artigo 541.º do Código de Processo Civil, saem precípuas do produto dos bens penhorados.
III – Posição diversa, ou seja, entendimento no sentido de o artigo 541.º do CPC prever a sanção pecuniária compulsória quando a quantia reclamada pelo exequente não está totalmente paga, afronta o princípio da proporcionalidade e o direito de propriedade privada, previstos, respectivamente, nos artigos 18.º e 62.º da CRP.
(…) o artigo 716.º, n.º 2, do CPC estipula que se a execução compreender juros a vencer-se a sua liquidação é feita a final.
9ª A expressão a final só pode ser entendida como o momento de pagamento integral e efetivo do valor da dívida exequenda, que ainda não se verificou.
10ª Parece-nos assim que não pode ser o exequente compelido a pagar prematuramente os juros compulsórios, quando ainda nem sequer viu o seu crédito satisfeito integralmente.»
(…) e conclui:
“Não tem qualquer aplicabilidade a estas situações o disposto no artigo 785.º, n.º 1, CC, que se refere à imputação do cumprimento quando a prestação realizada pelo solvens não permite extinguir a dívida e o devedor não procede a qualquer designação. Porém, trata-se aí do pagamento a um único accipiens sendo que, no caso da venda executiva de bem penhorado, é o artigo 541.º do CPC que efetua a designação das dívidas que saem precípuas do produto dos bens penhorados. Não há qualquer similitude ou relação de complementaridade entre o disposto no artigo 785.º CC e a disposição do artigo 541.º CPC.»
E ainda no mesmo sentido, Ac. RP de 11-01-2021, Processo: 6040/06.9TBVNG-D.P1, relator: Fernanda Almeida, onde se pode ler :
«II - Em caso de venda de bens penhorados – a não ser que o valor exequendo fique integralmente pago – a sanção pecuniária compulsória do n.º 4 do artigo 829.º-A não está entre as despesas judiciais que saem precípuas do produto dos bens penhorados.
III - Admitir que o artigo 541.º CPC contempla a sanção do n.º 4 do artigo 829.º-A, quando a quantia exequenda não está integralmente satisfeita, será atentar contra o princípio da proporcionalidade do artigo 18.º da Constituição, bem como contra o direito de propriedade privada contemplado no artigo 62.º, n.º 1, da Constituição.»
Em suma:
Impõe-se a revogação do despacho recorrido que deve ser substituído por outro que defira a reclamação apresentada.

Sumário: (…)

4- Dispositivo:

Pelo exposto, decidem os Juízes deste Tribunal da Relação, julgar o recurso procedente e consequentemente revogar o despacho recorrido, deferindo-se a reclamação apresentada pelo exequente.
Sem custas.
Évora, 7.11.2023
Elisabete Valente
Maria João Sousa e Faro
Maria Adelaide Domingos