Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | ANTÓNIO CONDESSO | ||
Descritores: | INSTRUÇÃO CRIMINAL REQUERIMENTO DE ABERTURA DA INSTRUÇÃO REQUISITOS IMPUGNAÇÃO PARCIAL DA ACUSAÇÃO GARANTIAS DE DEFESA DO ARGUIDO | ||
Data do Acordão: | 07/12/2023 | ||
Votação: | MAIORIA COM * VOT VENC | ||
Texto Integral: | S | ||
Sumário: | 1. Discordando o arguido da acusação no tocante a 7 dos 13 crimes de que foi acusado, indicando em concreto as razões de facto em que sustenta essa discordância, não pode o RAI ser rejeitado in limine (por inutilidade legal da instrução), apenas com o argumento de que seja qual for o resultado da instrução os autos sempre seguirão para julgamento. 2. A instrução integra, indubitavelmente, as garantias de defesa do arguido, tendo este, nesse âmbito, o impostergável direito à redução do objeto do processo (e logo do julgamento), não podendo invocar-se como obstáculo ao exercício de tal direito fundamental, razões de eficácia ou de celeridade. 3. Com efeito, o jurisprudência do Tribunal Constitucional vem reconhecendo ao arguido o direito à instrução, mesmo quando com a mesma se visa, apenas, uma não pronúncia parcial, afirmando, nesse âmbito, que «não podem eliminar-se as garantias previstas para uma dada fase processual com o argumento que os meios de defesa podem ser usados na fase processual subsequente»; e, ainda, que o art. 287.º, n.º 2 CPP «estabelece como requisito único a que deve obedecer o requerimento de abertura da instrução apresentado pelo arguido, a indicação, sem sujeição a formalidades especiais e por súmula, das razões de facto e de direito da sua discordância relativamente à acusação.» 4. A tese recorrida sobre o pretenso juízo valorativo abrangente de todo o processo, para além do flagrante atropelo ao normal exercício das garantias de defesa pelo arguido, leva também a resultados que logo evidenciam o seu desajustamento face à natureza dos direitos em causa. Tanto assim, porquanto, se a imputação dos crimes ao arguido ocorrera em acusações autónomas, ora porque praticados em comarcas diferentes, ora porque os respetivos processos tiveram distinto andamento, sempre teriam de ser admissíveis as respetivas instruções. 5. O conceito de «inadmissibilidade legal» a que alude o n.º 3 do art. 287.º CPP não acomoda uma situação como a referida em 1., caso em que sempre se revelaria inconstitucional, por violação do disposto no art. 32.º, n.º 1 da Constituição. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Évora[1] * I- RelatórioO arguido AA veio recorrer do despacho judicial que rejeitou o respectivo requerimento de abertura de instrução por inadmissibilidade legal, pedindo a admissão do mesmo. O MP respondeu ao recurso, pugnando pela respectiva improcedência. Nesta Relação, o Exº PGA emitiu parecer no mesmo sentido. * II- FundamentaçãoDespacho recorrido “- Da (in)admissibilidade da instrução requerida pelo arguido Carlos Relvas: O arguido AA foi acusado pela prática, em concurso real, de: a) um crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma consumada, p. e p. pelos artigos 143.º e 145.º, n.ºs 1, alínea a) e 2, ex vi do artigo 132.º, n.º 2, alínea l), todos do Código Penal (na pessoa de BB); b) três crimes de furto, na forma consumada, p. e p. pelo artigo 203.º, n.º 1 do Código Penal (sendo ofendida a empresa L...); c) um crime de ameaça, na forma consumada, p. e p. pelo artigo 153.º, n.º 1 do Código Penal (na pessoa de CC); d) um crime de dano, na forma consumada, p. e p. pelo artigo 212.º, n.º 1 do Código Penal (sendo ofendida a empresa L...); e) um crime de roubo, na forma consumada, p. e p. pelo artigo 210.º, n.º 1 do Código Penal (na pessoa de DD); f) três crimes de ameaça agravada, na forma consumada, p. e p. pelos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alínea a), por referência ao artigo 132.º, n.º 1, todos do Código Penal (nas pessoas de EE, FF e GG); e g) três crimes de ofensa à integridade física simples, na forma consumada, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal (nas pessoas de CC, EE e FF). * Vem o mesmo requerer a abertura da instrução, onde a final requer a sua não pronúncia quanto:a) Ao crime de ofensa à integridade física qualificada em que é ofendido HH; b) Ao crime de ameaça em que é ofendida CC; c) Ao crime de roubo em que é ofendido DD; d) Aos crimes de ameaça agravada em que são ofendidos EE e FF; e e) Aos crimes de ofensa à integridade física simples em que são ofendidos EE e FF. Nada é dito quanto aos demais crimes imputados ao arguido, nomeadamente aos três crimes de furto e ao crime de dano nos quais é ofendida a empresa L..., ao crime de ameaça agravada, no qual é ofendido GG, e ao crime de ofensa à integridade física simples, no qual é ofendida CC. * Cumpre saber se este requerimento é legalmente admissível, tendo em conta as finalidades legais da instrução.A instrução é uma fase processual facultativa que visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (art.º 286º, n.º 1, do CPP). Considerando o legislador que a submissão de um cidadão a julgamento pela prática de um crime é um ato vexatório e oneroso, o legislador permite que os cidadãos possam questionar e submeter a apreciação judicial a acusação deduzida pelo MºPº tendo precisamente como fim não serem sujeitos a um julgamento público quando entendam que não há bases de facto ou de direito para tal. Ora no caso dos autos, o arguido não pretende eximir-se ao julgamento, antes pretende limitar o julgamento apenas a alguns dos crimes que lhe são imputados. Não é claramente esse o sentido da fase da instrução, que neste sentido mais não seria do que um “pré-julgamento” limitado a um leque de factos mais restrito e a apenas algumas questões jurídicas que seguramente teriam de ser dirimidas nessa fase. Esta antecipação parcial da defesa do arguido, a exercer em julgamento é pois alheia às finalidades legais da instrução e mais não seria do que uma multiplicação inútil e dilatória da atividade processual. Concordamos neste sentido com a jurisprudência do Acórdão da Relação de Coimbra de 30-06-2021 onde se conclui que: “I – A instrução deve ser requerida, quer relativamente a factos quer a questões jurídicas, com a finalidade definida no artigo 286.º, n.º 1, do CPP, qual seja, a de obtenção de uma decisão de pronúncia ou de não pronúncia. II – Assim, o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo arguido não pode extravasar o pretendido escopo de não ser submetido a julgamento. III – O critério definidor da submissão (ou não) da causa a julgamento funda-se num juízo valorativo abrangente de todo o processo e não apenas incidente sobre fragmentos do mesmo. IV – Deste modo, a diferente qualificação jurídica dos factos como única fundamentação da instrução só a poderá legalmente sustentar se tiver como objetivo a não pronúncia do arguido quanto a todos os crimes que lhe são imputados na acusação. V – Dito de outro modo, se a diversa qualificação jurídica dos factos descritos na acusação não é passível de produzir aquele resultado (não pronúncia do arguido), mantendo-se a imputação de um ou mais crimes, sempre a causa terá necessariamente de ser submetida a julgamento, sendo, em consequência, a instrução legalmente inadmissível.”. Por outras palavras uma instrução que não vise a finalidade legalmente definida para esta fase processual (no caso do arguido a sua não submissão a julgamento) é por natureza legalmente inadmissível e não deve ser admitida. * Pelo exposto e ao abrigo do disposto no artigo 287º, n.º 3 do CPP, rejeito o requerimento de abertura de instrução do arguido AA por inadmissibilidade legal da instrução”. * ApreciandoSão as seguintes as questões a apreciar: - aferir se o requerimento para abertura de instrução do arguido foi indevidamente rejeitado por inadmissibilidade legal (art. 287º., nº.3 CPP). - prisão preventiva e inconstitucionalidade. * Analisando o recurso, verifica-se que o arguido censura o despacho recorrido, basicamente, por entender ser ilegal a interpretação do art. 287º, nº3 CPP no sentido da inadmissibilidade da instrução se o arguido não visar a não pronúncia quanto a todos os crimes acusados (mas somente quanto a alguns) por não se evitar em tal caso a sua sujeição a julgamento, entendendo que a instrução por si reclamada é admissível, não se verificando qualquer situação de inadmissibilidade legal da instrução.Mais defende a inconstitucionalidade de tal interpretação do art. 287º, nº3 CPP no sentido de que cabe sempre rejeição imediata do RAI apresentado pelo arguido quando no mesmo apenas veio requerer a não pronúncia relativamente a parte dos crimes imputados na acusação, uma vez que a instrução visa a não sujeição do arguido a julgamento, independentemente, de tal instrução trazer ou não um beneficio para o requerente da instrução, nomeadamente, a sua libertação imediata por alteração da MC a que se encontra sujeito, por o mesmo violar grosseiramente as garantias de defesa do arguido e o princípio do contraditório, constitucionalmente protegido no art. 32º, nº1 CRP. * O artigo 286º., nº.1, do CPP indica como objectivo da instrução a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.E o art. 287º. CPP estipula o seguinte sob a epígrafe Requerimento para abertura da instrução “1. A abertura da instrução pode ser requerida, no prazo de 20 dias a contar da notificação da acusação ou do arquivamento: a) Pelo arguido, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público ou o assistente, em caso de procedimento dependente de acusação particular, tiverem deduzido acusação; ou b) Pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação. 2. O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do nº 3 do artigo 283º. 3. O requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução…”. A abertura de instrução, como decorre do artigo 287º., nº.1, al. a), do CPP - e no que ao presente caso aproveita - pode ser requerida pelo arguido relativamente a factos pelos quais o Ministério Público tiver deduzido acusação. O RAI, por seu turno, não está sujeito a formalidades especiais, devendo simplesmente conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação. No presente caso o arguido acusado por 13 crimes indica em concreto as razões de facto para discordar da acusação no tocante a 7 dos crimes em causa pedindo a respectiva não pronúncia quanto a eles. Poderá um tal requerimento ser rejeitado in limine (por inadmissibilidade legal da instrução) por ser esta última considerada inútil, uma vez que sempre viria a ter lugar o julgamento ao menos quanto aos outros 6 crimes, podendo ali o arguido defender-se de todos eles? A resposta é clara e evidente. Perante a Constituição e o CPP em vigor, a interpretação efectuada no despacho recorrido é manifestamente inconstitucional. Trata-se de uma interpretação que não entende o direito do arguido à instrução como uma verdadeira garantia de defesa deste, assegurada constitucionalmente; que onde a Constituição e o CPP asseguram inequivocamente o direito do arguido acusado à instrução e ao julgamento, vem contrapor uma perspectiva vincadamente logística do processo, distorcendo a adequada interpretação dos textos em causa e afirmando, simplesmente, que uma vez que sempre haverá julgamento, erradica-se por inútil o direito à instrução, constitucionalmente garantido ao arguido. Ora, o Tribunal Constitucional para além de assegurar que o arguido tem direito à instrução mesmo quando visa simplesmente um despacho de não pronúncia parcial (vd. Ac. TC 226/1997)[2], tem afirmado, também, recorrentemente que “não podem eliminar-se as garantias previstas para uma dada fase processual com o argumento que os meios de defesa podem ser usados na fase processual subsequente” e, ainda, que o art. 287º, nº2 CPP “estabelece como requisito único a que deve obedecer o requerimento de abertura da instrução apresentado pelo arguido, a indicação, sem sujeição a formalidades especiais e por súmula, das razões de facto e de direito da sua discordância relativamente à acusação. A esta exigência acrescerá, apenas caso o requerente o pretenda, a indicação dos actos de instrução que pretende que o juiz promova, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, espera provar” (vd, por ex., os Acds. TC 54/2000 e 46/2019). Por outro lado, inexistem quaisquer dúvidas sobre o facto do direito à instrução incorporar as garantias de defesa do arguido em processo penal. Escrevem, a propósito, Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, vol. I, notas ao art. 32º: “Em “todas as garantias de defesa” engloba-se indubitavelmente todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação”. E o mesmo tem afirmado o TC (vd. por ex. o Ac. 388/99) a par com outras considerações, igualmente, pertinentes na abordagem do presente caso. Tem-se entendido que “as normas do artigo 32º, n.ºs 1 ("a expressão condensada de todas as normas restantes" do artigo 32º da Constituição, no dizer de Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pág. 202) e 4 da Constituição da República, assegurando ao arguido todas as garantias de defesa e referindo a existência de uma instrução da competência de um juiz, impõem, não só que o processo criminal preveja, em princípio, a faculdade de o arguido provocar a comprovação judicial da acusação, como que os termos em que tal faculdade pode ser exercida não lhe retirem na prática consistência. A atribuição ao arguido, em regra, do direito de requerer a abertura de uma fase processual que "visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação (...) em ordem a submeter ou não a causa a julgamento" (n.º 1 do artigo 286º do Código de Processo Penal) deve, pois, incluir-se nas garantias de defesa em processo penal constitucionalmente impostas. A esta luz, afigura-se irrelevante, não só que a instrução tanto possa ser requerida pelo arguido como pelo assistente (relativamente a factos pelos quais não tenha sido deduzida acusação), como que seja, em regra, na actual lei processual penal, uma fase de realização facultativa. Mas, sendo facultativa a realização de instrução, facultativa não poderá ser, porém, a atribuição ao arguido do direito de decidir se pretende ou não requerê-la”. E, tão pouco, pode considerar-se decisiva a invocação dos valores da eficácia e celeridade processual. "Antes de mais, a celeridade encontra-se consagrada no artigo 32º da Constituição (cuja epígrafe é 'garantias de processo criminal'), que estabelece o dever de o arguido ser julgado 'no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa' (nº 2, in fine). Assim, não pode invocar-se a celeridade como fundamento legítimo para postergar garantias de defesa. Raciocinar nesses termos seria incorrer em petição de princípio, já que haveria que demonstrar justamente que as garantias de defesa não são aqui afectadas pela prevalência de um princípio de celeridade processual”. Acresce que a doutrina mais habilitada navega nas mesmas águas, sendo evidente que o presente caso jamais pode subsumir-se a uma situação de inadmissibilidade legal da instrução. Como ponderada e correctamente assinalava Souto de Moura, in Jornadas de Direito Processual Penal, págs. 119 a 123: “As condições de admissibilidade do requerimento e, portanto, a sua não rejeição, dependerão da tempestividade, da competência do juiz e da admissibilidade legal da própria instrução. No que a esta última condição diz respeito, a pergunta a que haverá que responder será: quando é que a lei não quer que haja instrução? Desde logo nos processos especiais. No processo comum, a lei não quis que se procedesse a instrução a requerimento do MP, em primeiro lugar. Depois, pretendeu que não houvesse instrução se requerida pelo arguido, quando exorbitasse dos factos da acusação. E quando requerida pelo assistente, se versasse factos já contemplados com a acusação do MP (cfr. arts. 286º, n°2 e 287º, n°s 1 e 2 do CPP). O n°2 do art. 287° parece revelar a intenção do legislador restringir o mais possível os casos de rejeição do requerimento da instrução. O que aliás resulta directamente da finalidade assinalada à instrução pelo n°1 do art. 286°: obter o controle judicial da opção do MP. Ora, se a instrução surge na economia do código com o carácter de direito, e disponível, nem por isso deixa de representar a garantia constitucional, da judicialização da fase preparatória. A garantia constitucional esvaziar-se-ia, se o exercício do direito à instrução se revestisse de condições difíceis de preencher, ou valesse só para casos contados. A instrução serve o arguido, na medida em que este pretenda subtrair-se a uma imputação que o molesta… Os factos que o arguido quer tratar na instrução serão, ou os concretamente presentes na acusação, ou os que, daí ausentes, de todo modo neutralizam, o efeito jurídico-penal dos factos da acusação. O arguido contrariará então directamente a acusação, ou carreará factos que retiram aos da acusação a repercussão penal pretendida pelo MP. E se o arguido requerer a instrução sem mencionar quaisquer factos sobre os quais pretende que essa instrução recaia? Ao contrário daquilo que a nosso ver se imporá relativamente ao assistente, parece-nos que neste caso nem por isso a instrução será inadmissível. Sempre que for possível extrair do requerimento, uma discordância que se reporte à acusação, mesmo que considerada no seu conjunto, então estaria preenchido o pressuposto da legitimidade do arguido. O JIC disporia neste caso, apesar de tudo, dum campo delimitado de factos de que partir, e que seriam os factos da acusação… No tocante ao requerimento subscrito pelo arguido, se se aceitar a posição referida, da não menção de factos nem por isso implicar sem mais, a rejeição do requerimento, então, os casos de rejeição serão mais, estando em causa o requerimento do assistente. Como que se atenderá ao interesse do arguido na instrução, com maior amplitude. E esta visão das coisas não nos repugnará se aceitarmos que a garantia constitucional da instrução se justifica antes de mais para o arguido… O requerimento da instrução é um pedido de reapreciação da decisão que encerrou o inquérito a partir evidentemente do conteúdo desse inquérito. É uma faculdade outorgada a quem a decisão de encerramento afectar, e na medida em que por ela for afectado… A rejeição do requerimento só poderá ter lugar no condicionalismo do nº2 do art. 287º do CPP”. Da mesma forma, Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, pág. 131 – “o arguido pode, no prazo de 20 dias a contar da notificação da acusação, requerer a abertura da fase da instrução, fundamentando o requerimento com as razões de facto e de direito que, na sua perspectiva, deverão conduzir à rejeição total ou parcial da acusação (art. 287º, nº3)”. E mais adiante na pág. 146 – “O arguido pode no seu requerimento alegar factos que impliquem alteração substancial da acusação (1) (1) Isto pode ocorrer porque o arguido pode ter interesse em defender na instrução que outro foi o crime que cometeu e não aquele porque vem acusado”. E na pág 150 – “II. Uma nota só de clarificação. Pode suceder e sucede frequentemente que o arguido é acusado de vários crimes ou são acusados vários arguidos. O arguido pode ser pronunciado por algum dos crimes e não pronunciado por outros e também podem ser pronunciados alguns arguidos e não pronunciados outros. Cada crime e cada arguido como que constituem o objecto e o sujeito de um só processo que só por conveniência de economia processual e atenta a conexão são objecto de um só processo”. Mais uma vez a tese do despacho recorrido (sobre o pretenso juízo valorativo abrangente de todo o processo) perde completamente o pé revelando-se perfeitamente ilógica e conduzindo, além do mais, a resultados absurdos. De facto, incorporando os crimes acusações autónomas, porque praticados em comarcas diferentes ou em face do distinto andamento dos respectivos processos, já seriam admissíveis as respectivas instruções. Vejam-se, ainda, Maia Gonçalves, Código de Processo Penal anotado, 10ª ed. 1999, art. 287º, nota 6 - “Questões sobre as quais o Código, na versão originária, não tomou posição expressa foram as de saber se a instrução é extensiva aos arguidos que a não tenham requerido e se é extensiva à parte remanescente da acusação quando o arguido a tenha requerido somente relativamente a uma parte da acusação” ou Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 3º ed., pág. 774 - “A circunstância de ter sido requerida a instrução em relação a uma parte dos factos da acusação ou por um dos arguidos não prejudica o dever de o Juiz retirar da instrução as consequências legalmente impostas em relação aos restantes factos e aos outros arguidos”. Finalmente, é certo que o próprio STJ (Ac. STJ 7-2005, DR 4-11-2005, Fix. Jur. Crime) já teve oportunidade de se debruçar sobre o conceito de “inadmissibilidade legal da instrução” ali incluindo, naturalmente, as situações em que da própria lei resulta, inequivocamente, como não admissível a instrução: “i) quando requerida no âmbito de processo especial – sumário ou abreviado [artigo 286.º, n.º 3, do Código de Processo Penal]; ii) quando requerida por quem não tem legitimidade para o efeito – pessoas diversas do arguido ou o assistente, iii) quando requerida pelo arguido ou pelo assistente, mas fora dos casos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 287.º do Código de Processo Penal; iv) quando o requerimento do assistente não configure uma verdadeira acusação; v) quando, requerida pelo arguido, se reporte a factos que não alterem substancialmente a acusação do Ministério Público, isto é, nos casos em que o assistente deduz acusação (artigo 284.º do CPP) e, vi) quando, requerida pelo assistente, em caso de acusação pelo Ministério Público, se reporte a factos circunstanciais que não impliquem alteração substancial da acusação pública (artigo 284.º do CPP)”. Ora, mais uma vez, o presente caso, tão pouco se acomoda a qualquer delas, não podendo o intérprete ou o julgador, improvisar com meros motivos de cariz logístico, distanciados de uma interpretação sistemática que tenha o texto da CRP à cabeça, criando a seu belo prazer novas causas de inadmissibilidade, para além daquelas que resultam directamente da lei. É que sendo facultativa a realização de instrução, facultativa não poderá ser, nem a atribuição ao arguido do direito de decidir se pretende ou não requerê-la, nem tão pouco o dever do Juiz conhecer da mesma. * Daí que, incorporando inequivocamente o direito à instrução atribuído ao arguido, as respectivas garantias de defesa e, sendo claro que o conceito de “inadmissibilidade legal” a que alude o nº3 do art. 287º CPP não acomoda seguramente uma situação como a presente, se imponha concluir que uma tal leitura dos dispositivos em causa (286º, nº1 e 287º, nºs 1 a 3 CPP) se revela, claramente, inconstitucional por violação do disposto no art. 32º, nº1 CRP como reclama o recorrente. Importa, pois, revogar o despacho recorrido, trazendo de novo o processado a melhores mares. * III- DecisãoTermos em que se concede provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que admita a instrução. Sem custas. Évora, 12/7/2023 António Condesso Maria Filomena Soares Edgar Gouveia Valente (com voto de vencido) Declaração de voto Vencido, com todo o respeito pela opinião que fez vencimento, mas que não posso acompanhar pela seguinte ordem de razões: Entendo que nem a Constituição nem a lei prevêm um irrestrito direito à instrução e muito menos que tal direito irrestrito esteja inscrito nos direitos de defesa do arguido. Desde logo, importa sublinhar a notória contradição em que o recorrente incorre quando afirma, por um lado, que (i) “[e]staria tudo certo [rejeição do RAI que não vise a não pronúncia do arguido por todos os crimes acusados] caso a decisão recorrida não se tivesse esquecido de que o arguido está em prisão preventiva (…) pela prática dos crimes cuja não pronúncia se defendeu por total falta de indícios”, e por outro (ii) que bastará que haja “um benefício para o requerente da instrução” para esta ser legalmente admissível. De qualquer forma, admitindo que o recorrente, efectivamente, defende apenas aquela segunda das posições sobre a admissibilidade da instrução, sempre se dirá: É incontroverso que, no RAI, o arguido pede a não pronúncia e consequente arquivamento dos autos apenas quanto a parte dos crimes acusados, como se explicita detalhadamente na 1.ª parte da decisão recorrida. Sobre a questão em causa, teve já este TR oportunidade de se pronunciar em Acórdão de 08.05.2012[3]: “O artigo 286º, nº 1 do CPP define como escopo legal da instrução a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento. (…) Como começámos por referir, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de (no que agora nos interessa) deduzir acusação em ordem a submeter ou não a causa a julgamento. Parece-nos, deste modo, que a concepção legal da instrução repousa numa perspectiva processual utilitarista, ou seja, trata-se de uma fase processual que se justifica quando existe a possibilidade de extinguir o processo, evitando o julgamento; caso contrário, ou seja, quando o objecto da discussão não é susceptível de produzir esse resultado, apenas se reflectindo em qualquer modo específico do seu prosseguimento, a mesma não é admissível, dada a sua inutilidade e eventual redundância face ao julgamento subsequente. Também entendemos que não procede o argumento de que a admissibilidade alargada da instrução (como pugnada pelo recorrente) poderá ter outras eventuais consequências favoráveis ao arguido, pois estas são absolutamente alheias à justificação legal do instituto, tal como acima referimos. Com efeito, no que respeita a eventuais reflexos em medidas de coacção já decretadas, não vemos porque motivo uma pronúncia do JIC nesta fase possa ser sobrevalorizada relativamente à pronúncia do JIC que fixou anteriormente o estatuto coactivo do arguido; por outro lado, eleger este reflexo secundário de uma eventual re-qualificação jurídica a efectuar em sede de instrução para justificar a própria existência desta fase não nos parece tecnicamente acertado. Por outro lado, também nos parece que alterações decorrentes da decisão instrutória na competência do tribunal de julgamento (p. ex. passando a competência do tribunal colectivo – por o crime acusado tal determinar / ex. roubo – para o tribunal singular – em virtude da moldura punitiva do crime pronunciado isso impor / ex. furto simples) não são passíveis de integrar fundadamente qualquer argumento no sentido da admissibilidade da instrução para exclusiva qualificação diversa dos mesmos factos da acusação, sem que esteja em causa o prosseguimento dos autos: com efeito, sempre o tribunal de julgamento poderá operar nova re-qualificação, podendo até, no exemplo que apontámos, tal circunstância implicar nova demora processual por este tribunal se declarar incompetente, sendo necessária então a intervenção do tribunal colectivo. Por último, quaisquer efeitos outros que uma diferente qualificação através da instrução possa implicar, das duas uma, ou impedem o prosseguimento dos autos para julgamento (ex. amnistia) e aí entendemos que aquela é admissível ou não o impedem, o que gera a admissibilidade da mesma. O critério para avaliar da admissibilidade da instrução é, com efeito, sempre o mesmo e encontra-se alternatividade recortada pela lei: arquivar os autos ou submeter a causa a julgamento. (…) É o que se passa nos presentes autos: mesmo que a decisão instrutória fosse inteiramente favorável ao arguido ora recorrente, sempre a causa (o processo) transitar(á)ia para julgamento. Consequentemente, nos termos do artº 287º, nº 3 do CPP, estamos perante uma situação em que se impunha legalmente a rejeição do requerimento para abertura da instrução por inadmissibilidade legal da mesma.” Em face do teor esclarecedor do trecho que reproduzimos e dada a até notável similitude com os presentes autos, pouco há a acrescentar: também aqui o recorrente pretende uma não pronúncia apenas quanto a uma parcela dos crimes acusados, ou seja, qualquer que fosse a decisão a proferir, sempre o processo seguiria para julgamento[4], não sendo, assim, passível de integrar um dos escopos estruturais da instrução nos exactos termos recortados pela lei, precisamente evitar tal julgamento, o que a posição que fez vencimento ignora. A questão merece, quanto a mim, assim, uma resposta negativa. 2.ª questão – Reflexos na prisão preventiva. Vem o recorrente afirmar que “[e]ra só o que faltava que o arguido, preso preventivamente, precisasse de esperar pela fase de julgamento para vir defender que os crimes pelos quais está preso preventivamente não têm qualquer sustentabilidade probatória, requerendo a sua não pronúncia e a sua libertação imediata.” Salvo o devido respeito, o recorrente confunde de forma grosseira os planos jus processuais atinentes às medidas de coacção (especificamente a prisão preventiva) e à fase processual da instrução. Com efeito, sempre pode o arguido sindicar através do competente recurso (cfr. art.º 219.º) a decisão que decreta a prisão preventiva, por não ter “qualquer sustentabilidade probatória”, sendo que, complementarmente, tal medida pode vir a ser imediatamente revogada nos casos recortados pelo art.º 212.º, n.º 1, prevendo a lei ainda um mecanismo de segurança através do reexame dos respectivos pressupostos de acordo com as alíneas a) e b) do n.º 1 do art.º 213.º. Por seu turno, sem prejuízo daqueles meio contencioso e reexame poderem, como é óbvio, ocorrer durante a fase de instrução, as questões relativas especificamente são alheias aos fins próprios da instrução, que não é a sede própria para discutir quaisquer vicissitudes da medida de coação em causa, sem prejuízo de, na decisão de pronúncia, se dever proceder ao citado reexame, como previsto na mencionada alínea b) do n.º 1 do art.º 213.º. Consequentemente, a decisão sobre a instrução não tem, in casu, quaisquer reflexos sobre a prisão preventiva, que é objecto de decisão no quadro legal específico que regula o respectivo regime. 3.ª questão – Inconstitucionalidade. Segundo o arguido, o despacho recorrido “é contrário à nossa Constituição pelo que se alega aqui e para todos os efeitos legais a inconstitucionalidade da norma contida no nº 3 do artigo 287º do Código de Processo Penal, por violação do art. 32º, nº1 da CRP, na interpretação segundo a qual, cabe sempre rejeição imediata do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido quando no RAI que apresentou apenas veio requerer a não pronúncia por parte dos crimes imputados na acusação, uma vez que a instrução visa a não sujeição do arguido a julgamento, independentemente, de tal instrução trazer ou não um beneficio para o requerente da instrução, nomeadamente, a sua libertação imediata por alteração da MC a que se encontra sujeito, por o mesmo violar grosseiramente as garantias de defesa do arguido e o princípio do contraditório, constitucionalmente protegido no art.º 32º/1 C.R.P., nos termos e com os fundamentos supra expostos.” Desde logo, cumpre assinalar que o recorrente não explica de forma minimamente compreensível de que forma aquela interpretação do n.º 3 do art.º 287.º viola as garantias de defesa a alude o art.º 32.º, n.º 1 da CRP, esgotando-se a invocação nos seus próprios termos. De qualquer forma, sendo a instrução uma fase facultativa (art.º 286.º, n.º 2), não se vê de que forma poderá a sua não realização, de acordo com as finalidades recortadas na lei (n.º 1 do art.º 286.º) afectar quaisquer garantias de defesa (que o recorrente, sublinha-se, não indica), que podem / devem ser salvaguardadas antes (durante o inquérito) e depois (no julgamento), onde não se inclui, como vimos, um irrestrito direito à instrução, mostrando-se constitucionalmente deferido à lei ordinária o recorte das situações em que pode existir instrução, sendo, nesses casos, necessário que a mesma seja dirigida por um juiz. Com efeito, a interpretação referida, em nossa opinião, apenas se poderá sindicar em sede de (in)constitucionalidade se se sindicar também a estrutura essencial e os fins que a lei atribui à instrução, o que o recorrente não faz nem entendemos que exista qualquer razão para tal sindicabilidade. Aliás, é extremamente significativo que a CRP, que dedica um dos números (4) do preceito que recorta as “garantias de processo criminal” à fase da instrução aí tenha feito verter apenas que toda a instrução é da competência de um juiz e as condições de delegação actos instrutórios pelo JIC, nada prevendo quanto a qualquer direito irrestrito do arguido à instrução, devolvendo tal faculdade à lei ordinária, que, como vimos, condiciona a realização da instrução ao escopo utilitário de evitar o julgamento. Querer introduzir um direito irestrito à instrução nas garantias de defesa previstas genericamente no n.º 1 do art.º 32.º da CRP é, salvo o devido respeito, exercício que nem a letra nem o espírito da lei fundamental permitem. Relativamente ao princípio do contraditório (art.º 32.º, n.º 5, 2.ª parte), também não nos parece que seja posto em causa pela não realização da instrução em razão do não prosseguimento dos escopos legalmente previstos, pois as respectivas dimensões (direito de o juiz ouvir as razões das partes - da acusação e da defesa - em relação a assuntos sobre os quais tenha de proferir uma decisão, direito de audiência de todos os sujeitos processuais e o direito do arguido intervir no processo e de se pronunciar e contraditar todos os testemunhos, depoimentos ou outros elementos de prova ou argumentos jurídicos trazidos ao processo[5]) sempre se mostram asseguradas, desde logo na possibilidade que o arguido teve de apresentar a sua pretensão quanto à instrução através da dedução do RAI e, antes (no inquérito) e depois (no julgamento), através dos mecanismos legalmente previstos para a respectiva intervenção quanto às matérias que lhe dizem respeito. Também não se vislumbra qualquer violação ao princípio da tutela jurisdicional efectiva (cfr. art.º 20.º, números 1 e 5 da CRP), que, frise-se, também o recorrente não explica, pois a instrução, como fase facultativa e submetida a determinados fins, não configura qualquer dificuldade excessiva e materialmente injustificada no direito de acesso aos tribunais[6], pois tal acesso sempre, como vimos, está assegurado nas fases anterior e posterior do processo. Duas últimas notas: Costuma avançar-se que a instrução é uma válvula de escape que visa poupar o arguido as consequência vexatórias do julgamento. Caso assim se considere, é óbvio que a instrução que não evita o julgamento, também não evita tais consequências, não constituindo motivo para considerar a instrução admissível apenas quanto a parte dos crimes acusados. Por outro lado, a não admissibilidade da instrução nas situações em causa não diminiu as garantias de defesa concedidas em função da estrutura do tribunal de julgamento, pois o tribunal colectivo (atenta a imputação global dos crimes acusados) até será garante de garantias acrescidas. Em síntese, entendo que inexiste qualquer das invocadas inconstitucionalidades. * Por tudo o exposto, mais entendo que o recurso não deveria merecer provimento.Edgar Valente _______________ [1] Relator por vencimento [2] Ac. TC 226/1997 – “11. No sistema processual penal português, a instrução assume hoje - e após a entrada em vigor do Código de 1997 - um carácter puramente facultativo e não pode ter lugar nas formas de processo sumária e sumaríssima (artigo 286º, nº 2): em processo comum, ela pode ser requerida pelo assistente como modo de reacção a um despacho de arquivamento do Ministério Público, nos casos de crime público e semipúblico (artigos 277º e 287º, nº 1, alínea b)); pode ainda ser requerida pelo assistente que pretenda promover uma alteração dos factos constantes da acusação do Ministério Público (artigos 284º, nº 1 e 287º, nº 1, alínea b)); e pode, finalmente, ser requerida pelo arguido que pretenda obter um despacho de não pronúncia - total ou parcial (artigo 287º, nº 1, alínea a))”. [3] Proferido no processo n.º 226/09.1PBEVR.E1, disponível em www.dgsi.pt, no qual foi relator o presente signatário, acórdão que, curiosamente, o recorrente cita expressamente como concordante com a posição que defende. [4] Segundo Pedro Soares de Albergaria (in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, tomo III, 2.ª edição, 2022, Almedina, páginas 1255/6), constituirá razão para rejeitar o RAI por inadmissibilidade legal da instrução “a circunstância de os termos do requerimento do arguido serem em si mesmos insuficientes para obstarem à introdução do feito em juízo (p. ex., instrução com vista à mera alteração da qualificação jurídica do crime imputado de modo a tornar inadmissível certa medida de coação)”. [5] Assim, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP, Constituição da República Portuguesa, Anotada, volume I, Coimbra Editora, 2007, 4.ª edição, páginas 522 e 523. [6] J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, idem, página 416. |