Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | FÁTIMA BERNARDES | ||
Descritores: | INFRAÇÕES TRIBUTÁRIAS SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO CONDIÇÃO OBRIGATORIEDADE PAGAMENTO MODIFICAÇÃO | ||
Data do Acordão: | 05/25/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Sumário: | I - Tendo o ora recorrente sido condenado, por sentença transitada em julgado, em pena de prisão, cuja respetiva execução foi suspensa pelo período de quatro anos, subordinada ao dever de pagamento da prestação tributária em falta e acréscimos legais, nos termos do disposto no artigo 14º do RGIT, estando a decorrer o prazo de suspensão da execução da pena, não é legalmente admissível a modificação/alteração daquele dever pelo de prestação de trabalho a favor da comunidade. II - Desde logo por que tal violaria o caso julgado. III - Por outro lado, se é certo que as regras de conduta e os deveres a que se encontra subordinada a suspensão da execução da pena de prisão podem ser modificados até ao termo do período de suspensão, sempre que ocorrerem circunstâncias relevantes supervenientes ou de que o tribunal só posteriormente tenha tido conhecimento (cf. artigos 51º, n.º 3 e 52º, n.º 4, do Código Penal), nunca poderá perder-se de vista o regime especial consagrado no artigo 14º do RGIT, que impõe a obrigatoriedade do condicionamento da suspensão da execução da pena de prisão ao dever de pagamento das prestações tributárias não entregues e legais acréscimos. IV - Perfilhando-se o entendimento maioritariamente defendido na doutrina e jurisprudência, de que é legalmente inadmissível subordinar a suspensão da execução da pena de prisão à prestação de trabalho a favor da comunidade, mesmo com o consentimento do condenado, necessariamente, não poderá, por via da modificação dos deveres a que foi subordinada a suspensão da execução da pena, ao abrigo do disposto no artigo 51º, n.º 3, do CPP, decidir-se substituir aqueles deveres, pelo de prestação de trabalho a favor da comunidade. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: 1. RELATÓRIO 1.1. No âmbito do processo comum n.º 215/04.2IDLSB, do Tribunal Judicial de Faro, 2º Juízo Criminal, foi o arguido AA condenado, por sentença proferida em 07/05/2012, transitada em julgado a 17/11/2019, pela prática, de um crime de fraude fiscal, p. e p. pelo artigo 103º, n.º 1, alíneas a) e b), do RGIT, na redação originária, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na respetiva execução, pelo período de 4 (quatro) anos, sendo a suspensão subordinada ao pagamento, nesse prazo, da prestação tributária em falta, no montante de €296.132,94 (duzentos e noventa e seis mil, cento e trinta e dois euros e noventa e quatro cêntimos) e acréscimos legais. 1.2. Por requerimento apresentado em 21/10/2022, com a Ref.ª Citius 41836871, o arguido/condenado requereu a modificação do dever de pagamento da prestação tributária, no valor de €296.132,94 e acréscimos legais, a que foi subordinada a suspensão da execução da pena em que foi condenado, por trabalho a favor da comunidade. Mais requereu o condenado a elaboração de relatório social nos termos do artigo 370º do CPP, sobre a situação pessoal, familiar, económica e financeira, com vista ao apuramento da factualidade alegada para fundamentar a requerida modificação da condição a que foi subordinada a suspensão da execução da pena de prisão aplicada. 1.3. Por despacho judicial proferido em 08/11/2022, com a Ref.ª Citius 126035915 foi indeferido o requerido pelo condenado, por inadmissibilidade legal. 1.4. Inconformado com o assim decidido, o arguido/condenado interpôs recurso para esta Relação, apresentado a respetiva motivação, da qual extraiu as seguintes conclusões: «I – O recurso interposto põe em crise a decisão da 1ª instância que indeferiu o pedido de substituição da condição suspensiva da pena de prisão e que considerou que o Arguido se encontra em incumprimento da condição. II – A decisão recorrida considera como penas de substituição da pena de prisão as penas de suspensão de execução da prisão e as penas de prestação de trabalho a favor da comunidade, considerando-as autónomas e entendendo que não podem substituir-se uma à outra sob pena de termos “uma mistura atrabiliária – e violadora, por conseguinte, do princípio da legalidade da pena – de duas diferentes penas de substituição, cada qual com o sentido e os seus pressupostos próprios” III – Indeferindo a substituição da pena, indeferiu o pedido de elaboração de relatório social que o Arguido entender sustentá-lo. IV – Considerou a decisão recorrida que o Arguido ao não estar a efetuar pagamentos das dividas em execução fiscal, conforme informação da Autoridade Tributária, se encontra em incumprimento da condição a que foi sujeita a suspensão da sua pena de prisão. V – A condição de pagamento do valor em divida fiscal determina que o mesmo seja realizado no prazo de 4 anos a contar do transito em julgado da decisão. Não condiciona a que o pagamento seja feito parcelarmente pelo decurso do tempo, permitindo, até, o seu pagamento integral no fim do prazo. VI – O Arguido ainda tem 2 anos para completar os 4 anos da condição, pelo que o tribunal recorrido mal aplicou o direito ao considerar que o Arguido está em incumprimento, pelo que se requer a revogação da decisão nessa matéria. VII – Quanto respeita à possibilidade legal da substituição da condição de suspensão, ao tribunal recorrido também mal interpretou a lei, utilizando uma base doutrinal não aplicável ao caso. VIII – Contrariamente ao perfilhado pela decisão recorrida, o que o Prof. Dr. Figueiredo Dias considera inadmissível e uma mistura atrabiliária é a cumulação da condição de pagamento e de trabalho a favor da comunicada na mesma pena de suspensão da pena de prisão. VIX – E tal entendimento é vertido pela jurisprudência nos Acórdãos citados do Tribunal da Relação do Porto. VX – Demonstrativo de que o Arguido crê na legalidade do seu pedido e não é movido por nenhuma ideia temerária, é o acolhimento no entendimento pela legalidade da substituição perfilhada nas diversas decisões judiciais supra mencionadas e em concreto: “Sendo a suspensão da execução da pena sujeita ao cumprimento de deveres ou regras de conduta estas podem ser modificados até ao termo do período de suspensão, sempre que ocorrerem circunstâncias relevantes supervenientes ou de que o tribunal só posteriormente tenha tido conhecimento, o que significa que o conteúdo da pena de suspensão da execução da prisão está sujeito, dentro dos limites legais, mesmo independentemente de incumprimento do condenado, a uma cláusula rebus sic stantibus (artigos 51.º, n.º 3, 52.º, n.º 3 e 54.º, n.º2, do C. P, na redacção em vigor na data da decisão condenatória).” (Ac. TRC de 04 de Junho de 2008 ) “Sendo o trabalho a favor da comunidade uma pena de substituição em sentido próprio, entendemos que, em princípio, será de aplicar a crimes de pouca gravidade, especialmente quando estamos perante jovens e pessoas idosas, mas não quando o agente vem reiteradamente praticando crimes, designadamente da mesma natureza, e o crime em apreciação é praticado com grande frequência” (Ac TRC de 03 de Outubro de 2018 ). VX – Mais se tendo entendido que se o Arguido revela incapacidade financeira para cumprir a condição de pagamento, deve a mesma ser substituída sob pena de se determinar a sua extinção por incapacidade de pagamento não culposo do Arguido. VXI – A esse título veja-se a doutrina e jurisprudência: “se recolhe a ideia de que o arguido deve proceder ao pagamento segundo aquilo que puder de acordo com as suas forças.” No que foi depois secundado pelo Sr. Procurador-Geral da República, a propósito da previsão da possibilidade de pagamento em prestações: “se o arguido não pode indemnizar, o juiz não deve fixar essa obrigação condicionante.” (Ac. TRP de 26.10.2016 e Ac. TRP de 24.10.2018) “caberá ao Tribunal recorrido apreciar tal pretensão nessa exata perspetiva, ou seja, se se justificará ou não tal prorrogação tendo em vista o cumprimento da obrigação imposta ou se deverá desde já “queimar” essa fase e julgar extinta a pena pelo decurso do prazo da suspensão, uma vez que o incumprimento da condição não se deve a qualquer tipo de culpa grosseira, sempre no pressuposto de inexistir outra causa ou razão que impeça tal decisão”. (Ac. TRC de 11.10.17) VXII – O Recorrente demonstrou nos autos os motivos da sua incapacidade de pagamento da condição e manifestou nos autos a sua disponibilidade e capacidade para de forma útil e proveitosa à comunidade poder prestar trabalho a favor da comunidade , em vez de esperar pelo decurso dos 4 anos a invocar a extinção da condição por impossibilidade não culposa. VXIII – Encontram-se reunidos os pressupostos legais para que o tribunal recorrido tivesse deferido a substituição da condição da suspensão da pena de prisão por trabalho a favor da comunidade, pelo que essa devia ter sido a decisão. TERMOS EM QUE SE REQUER A V.EXAS. A REVOGAÇÃO DA DECISÃO PROFERIDA POR ERRÓNEA APLICAÇÃO DO DIREITO , NOS TERMOS DO ART.410º DO CPP, E A SUA SUBSTITUIÇÃO POR OUTRA QUE DEFIRA O PEDIDO DE SUBSTITUIÇÃO DA CONDIÇÃO DE SUSPENSÃO DA PENA DE PRISÃO POR PRESTAÇÃO DE TRABALHO A FAVOR DA COMUNIDADE, DETERMINANDO-SE A REALIZAÇÃO DO RELATÓRIO SOCIAL, CONSIDERANDO-SE QUE O ARGUIDO ESTÁ EM PLENO CUMPRIMENTO DA CONDIÇÃO APLICADA. O que se requer a V. Exas., fazendo-se assim a tão costuma justiça». 1.5. O recurso foi regularmente admitido. 1.6. O Ministério Público, junto da 1.ª instância, apresentou resposta ao recurso, pronunciando-se no sentido de dever ser rejeitado, mantendo-se a decisão recorrida, formulando as seguintes conclusões: «A.- O recorrente veio interpor recurso do douto despacho proferido pelo Tribunal a quo a 8/11/2022, referência CITIUS 126035915 que indeferiu a substituição da condição de suspensão da pena de prisão aplicada ao condenado de proceder ao pagamento de € 296.132,94, por uma condição de suspensão de prestação de trabalho a favor da comunidade. B.- A pretensão do recorrente não tem qualquer fundamento legal ou fáctico. C.- A pena de prestação de trabalho a favor da comunidade e a suspensão da pena de prisão, são penas autónomas da pena de prisão, substituindo-a, como bem salienta o recorrente. D.- Ora, é precisamente por não serem penas principais e por serem penas autónomas da pena de prisão que elas não se podem cumular entre si, porque o incumprimento de uma pena de substituição pressupõe o cumprimento da pena substituída, o que seria inviável no caso do pretendido pelo recorrente. Qual seria a pena a cumprir pelo condenado em caso de incumprimento, a pena substitutiva de suspensão da execução da pena de prisão? E.- A pena de substituição já foi fixada aquando da prolação da sentença que foi confirmada pelo Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Évora, isto é, a pena de prisão foi suspensa na sua execução pelo período de 4 anos, pena autónoma aplicada, já transitou em julgado e não pode ser modificada. F.- O artigo 14.º, do Regime Geral das Infrações Tributárias, é claro e expresso: a suspensão da execução a pena de prisão é sempre condicionada ao pagamento da prestação tributária. G.- Sobre a razoabilidade da imposição do pagamento dos valores referidos no artigo 14.º, do RGIT, nas situações de incapacidade financeira do condenado, muitas têm sido as decisões dos tribunais das instâncias superiores que sobre aquela norma se vêm pronunciando, sendo unânime que a mesma não padece de inconstitucionalidade, por um lado, e que exige da parte do julgador um juízo sobre a razoabilidade da condição, conforme superiormente decidido pelo AUJ do Supremo Tribunal de Justiça, n.º 8/2012 (in DR, I série, n.º 206, de 24/10/2012), por outro. H.- Aliás, outra não podia ser a opção do legislador, caso contrário a mensagem que perpassaria é que o crime compensa, isto é, que os sujeitos passivos de imposto poder-se-iam locupletar do valor de impostos que tinham de entregar e que a consequência legal para esse comportamento era manterem uma situação patrimonial confortável. I.- Concluímos, assim, que o recurso apresentado deve ser julgado totalmente improcedente por falta de fundamento legal e porque o acolhimento da sua pretensão violaria, além do caso julgado, o disposto no artigo 14.º, do Regime Geral das Infrações Tributárias. Termos em que, deve ser rejeitado o recurso apresentado pelo recorrente e, consequentemente, ser mantida a douta sentença nos seus precisos termos DECIDINDO NESTA CONFORMIDADE SERÁ FEITA JUSTIÇA!.» 1.7. Subidos os autos a este Tribunal, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de o recurso dever ser julgado improcedente, por falta de fundamento legal e porque o acolhimento da pretensão do recorrente violaria, além do caso julgado, o disposto no artigo 14º do Regime Geral das Infrações Tributárias. 1.8. Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, não tendo sido exercido o direito de resposta. 1.9. Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir. 2. FUNDAMENTAÇÃO 2.2. Despacho recorrido * Referência eletrónica CITIUS n.º 10584567Nos presentes autos, por acórdão proferido em 11.07.2019, pelo Tribunal da Relação de Évora, foi confirmada a sentença proferida em 07.05.2012, pelo Juízo Criminal de Faro, que condenou o Arguido AA a uma pena de prisão de 1 (um) ano e 6 (seis) meses, determinando a suspensão da sua execução por 4 (quatro) anos, subordinada ao pagamento da prestação tributária em falta no valor de €296.132,94 e acréscimos legais. Em conformidade com o promovido pelo Ministério Público, com cópia do ofício da Autoridade Tributária de 02.08.2022 (referência eletrónica CITIUS n.º 10375017), foi o arguido notificado para, querendo, justificar porque ainda não pagou as quantias em dívida e condição para a suspensão da pena de prisão que lhe foi aplicada. Mediante o requerimento de 21.10.2022, veio o Arguido solicitar a realização de relatório social. Com vista nos autos, o Ministério Público pugnou pelo indeferimento do requerido e que seja o condenado advertido para a falta de cumprimento da condição de suspensão da execução da pena de prisão que lhe foi aplicada. Cumpre decidir. Nos termos do preceituado no artigo 370.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o tribunal pode em qualquer altura do julgamento, logo que, em função da prova para o efeito produzida em audiência de julgamento, o considerar necessário à correta determinação da sanção que eventualmente possa vir a ser aplicada, solicitar a elaboração de relatório social ou de informação dos serviços de reinserção social, ou a respetiva atualização quando aqueles já se encontrem no processo. Para mais, se durante o período da suspensão o condenado deixar de cumprir qualquer dever ou regras de conduta impostas, deverá providenciar-se, seja através da elaboração de relatório social, seja por quaisquer outras diligências, no sentido de apurar os reais motivos que estiveram na base do incumprimento do arguido, para depois, com os elementos recolhidos, decidir em conformidade e, eventualmente, pela revogação da suspensão da execução da pena, se, de tais elementos resultar uma culpa grosseira do arguido nesse incumprimento (artigo 56.º, n.º 1, al. a), do Código Penal) – cfr. Ac. do TRE de 22/09/2020 (Renato Barroso), proc. n.º 54/14.2PBPTM.E2. Posto isto, por um lado, foi já aplicada, nos presentes autos, ao arguido a concreta sanção determinada, e, por outro, ainda não é este o momento próprio para analisar a segunda circunstância – revogação da suspensão da execução da pena –, mostrando-se, assim, a realização de relatório social sem qualquer utilidade, neste momento. Por ora, cabe tão-só advertir o arguido, ao abrigo do preceituado no artigo 55.º, al. a), do Código Penal, de que não se encontra cumprida a condição a que se mostra subordinada a suspensão da pena de prisão e que, nos termos do disposto artigo 56.º, n.º 2, al. a), do Código Penal, a suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado, infringir grosseiramente ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos. Pelo exposto, indefere-se o requerido. Notifique, sendo o arguido com a advertência de que não se encontra cumprida a condição a que se mostra subordinada a suspensão da execução da pena de prisão e que, nos termos do disposto artigo 56.º, n.º 2, al. a), do Código Penal, a suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado, infringir grosseiramente ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos.». 2.3. Apreciação do mérito do recurso Conforme supra referimos, a questão suscitada é a de saber se pode ser modificada a condição a que ficou subordinada a suspensão da execução da pena de prisão aplicada, por sentença transitada em julgado, do pagamento da prestação tributária em falta, nos termos previstos no artigo 14º do RGIT, por prestação de trabalho a favor da comunidade. Évora, 25 de maio de 2023 Fátima Bernardes (Relatora) Fernando Pina Beatriz Marques Borges _______________________________________ [1] Neste sentido cf., por todos, na doutrina, Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas Editorial Notícias, pág. 354 e, na jurisprudência, Acórdãos desta RE de 03/02/2015, proc. 42/11.0GDSTC.E1 e de 24/01/2017, proc. 300/12.7GBODM.E1 e Ac. da RC de 17/05/207, proc. 149/15.5PFCBR.C1, todos acessíveis in www.dgsi.pt. |