Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2687/22.4T8FAR.E1
Relator: MÁRIO BRANCO COELHO
Descritores: MOBBING
ASSÉDIO LABORAL
REQUISITOS
RESOLUÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO
INDEMNIZAÇÃO POR DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Data do Acordão: 11/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1. Nas situações de carácter continuado ou duradouro, que se agravam com o decurso do tempo, o prazo de 30 dias à disposição do trabalhador para resolver o contrato com invocação de justa causa só se conta a partir do momento em que os efeitos da violação por parte do empregador assumem tal gravidade que a subsistência do contrato de trabalho se torna intolerável para o trabalhador.
2. O assédio laboral caracteriza-se não apenas pela prática de determinados comportamentos, mas ainda pela sua duração e pelas suas consequências.
3. Ocorre assédio laboral, justificador da resolução do contrato de trabalho, no seguinte quadro:
- insultos e comentários depreciativos constantes, dirigidos pela entidade patronal à trabalhadora;
- situações constrangedoras da trabalhadora com os clientes, motivadas pelos procedimentos impostos pela Ré, que os faziam sentir enganados e apresentar reclamação;
- críticas à forma de vestir e à conduta da trabalhadora como mãe;
- borrifadelas com uma mistura de água e vinagre, fazendo com que a trabalhadora tivesse de permanecer no seu posto de trabalho exalando cheiro a vinagre;
- marcação unilateral de férias, sem qualquer antecedência em relação ao seu início;
- o desrespeito pelo regime de horário flexível objecto de Parecer da CITE, impondo a entidade patronal à trabalhadora a prática do turno que finalizava às 23 horas, bem sabendo que tal era incompatível com os seus deveres de mãe, pois não tinha qualquer outro apoio para tomar conta da sua filha menor, nascida em 2018;
- tudo isto ocasionando na trabalhadora um quadro clínico de ansiedade generalizada e a necessidade de recorrer à baixa médica e a tratamento médico e medicamentoso, que se prolongou para lá da data de resolução do contrato.
4. Neste quadro, temos não apenas a prática de comportamentos hostis e humilhantes, continuados ao longo dos anos de duração da relação laboral, que visavam não apenas a conduta profissional, mas acima de tudo a própria individualidade da trabalhadora.
5. Demonstrado que a trabalhadora se sentiu desestabilizada emocionalmente, vendo-se ofendida na sua honra e consideração, tendo experienciado, ao longo do decurso do vínculo laboral, sentimentos de angústia, instabilidade emocional, desespero, frustração e humilhação, o que veio a afectar, de forma grave, a sua saúde psíquica, a ponto de ter ficado incapacitada para o trabalho por doença do foro mental, com necessidade de toma de medicação para a ansiedade e depressão, tem direito a ser-lhe concedido uma indemnização por danos não patrimoniais, nos termos das normas conjugadas do art. 29.º n.º 4 e do art. 28.º do Código do Trabalho.
6. Neste caso, uma indemnização por danos não patrimoniais no valor de € 8.000,00, peticionada pela trabalhadora, a pecar, será pela sua parcimónia.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora

No Juízo do Trabalho de Faro, AA propôs acção de processo comum contra J…, Lda., pedindo o reconhecimento da justa causa na resolução do contrato de trabalho que mantinha com a Ré e a condenação desta a pagar-lhe € 2.093,62 a título de acréscimo com deslocações decorrentes da transferência para local de trabalho diverso, € 912,00 a título de horas de formação profissional não proporcionada; € 6.400,63 a título de indemnização devida pela resolução do contrato por iniciativa da trabalhadora; e € 8.000,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais, tudo acrescido de juros de mora vencidos e vincendos.
Para o efeito, invocou assédio praticado pela entidade patronal que tornou praticamente impossível a manutenção da relação laboral.
Contestando, a Ré excepcionou a caducidade do direito, pois decorreram mais de 30 dias até à data de comunicação da resolução do contrato pela trabalhadora, e impugnou os factos alegados na petição inicial.
Alegando a ilicitude da resolução do contrato, a Ré deduziu reconvenção no montante de € 1.330,00.
Respondeu a A., alegando ter comunicado atempadamente a resolução do contrato.

Após julgamento, a sentença julgou improcedente a excepção de caducidade e, em relação aos pedidos, decidiu:
A) Julgar a acção parcialmente procedente, reconhecendo que a A. procedeu à resolução do contrato de trabalho com justa causa, condenando a Ré a pagar uma indemnização no valor de € 5.689,44 (calculada com referência a 40 dias de retribuição base por cada ano completo de antiguidade), bem como € 912,00 a título de horas de formação profissional não proporcionada, e € 8.000,00 pelos danos não patrimoniais, tudo acrescido de juros legais;
B) Absolver a Ré do restante peticionado;
C) Julgar improcedente o pedido reconvencional.

Inconformada, a Ré recorreu.
Visto que as suas conclusões não são, propriamente, um modelo de capacidade de síntese, como exigido pelo art. 639.º n.º 1 do Código de Processo Civil, aqui deixamos identificadas as questões que ali são abordadas:
1.ª Impugnação da matéria de facto – a Recorrente propõe que se considerem não provados os factos constantes da sentença nas als. S) a QQ), VV) a AAA), DDD) e EEE);
2.ª Excepção de caducidade – a Recorrente propõe que esta excepção seja julgada procedente, pois a trabalhadora esteve de baixa médica no período de 13.06 a 21.09.2021, e apenas comunicou a resolução do contrato por carta expedida a 18.10.2021;
3.ª Em consequência, deve ser julgado procedente o pedido reconvencional;
4.ª A indemnização por danos não patrimoniais, no valor de € 8.000,00 não tem fundamento factual nem jurídico.

Não foi oferecida resposta.
Nesta Relação de Évora, a Digna Magistrada do Ministério Público produziu parecer, propondo que ao recurso seja negado provimento.
Cumpre-nos decidir.

Impugnação da matéria de facto
(…)
Em resumo, a impugnação da matéria de facto deduzida pela Recorrente vai julgada totalmente improcedente.

A matéria de facto fixa-se assim:
A) A Autora foi admitida ao serviço da empresa J…, Lda., em 01 de Maio de 2015 e pelo período de 1 ano, com início a 01 de Maio de 2015 e termo em 30 de Abril de 2016, para sob as suas ordens, direcção e fiscalização lhe prestar, mediante retribuição, os serviços correspondentes à categoria caixeira de 3ª e acessoriamente tarefas de limpeza da loja, mediante o pagamento do montante mensal ilíquido de 505,00 € (quinhentos e cinco euros), acrescido de subsídio de alimentação no valor diário de € 5,47 e abono para falhas no valor de € 15,82;[1]
B) A A. auferia ultimamente € 665,00 de vencimento base;
C) O horário de trabalho acordado foi de 40 horas semanais, distribuídas entre segunda a domingo, em regime de horário flexível;
D) A sociedade Ré tem por objecto comercial o exercício da actividade de hotelaria e comércio de vestuário e acessórios de moda, a retalho;
E) Consta da cláusula 3.ª do acordo de trabalho celebrado entre A. e R. que o trabalho seria prestado pela Autora no Centro Comercial Fórum Algarve, Loja …, em Faro;
F) A A. beneficiou de licença de maternidade até dia 26 de Julho de 2018;
G) Poucos dias antes do término da licença de maternidade, a A. solicitou à Ré que a sua actividade fosse prestada no turno da manhã, já que não tinha como compatibilizar a sua vida familiar com horários de trabalho mais tardios;
H) A Autora contava apenas, como rede de apoio na prestação de cuidados à criança, com uma avó de idade avançada e com o progenitor, este a trabalhar em turnos rotativos;
I) A Ré demonstrou abertura à solicitação apresentada e, poucos dias antes do regresso da Autora ao trabalho, apresentou à mesma um horário do qual decorria que a actividade passaria a ser prestada no estabelecimento da empregadora no Mar Shopping, em Loulé;
J) Nesta sequência a, A. veio a prestar, por instruções da Ré, os seguintes dias de actividade no Mar shopping Loulé: 4 dias em Julho, 24 em Agosto, 21 em Setembro, 23 em Outubro, 20 em Novembro, 24 em Dezembro de 2018, 20 em Janeiro, 22 em Fevereiro, 18 em Março, 24 em Abril, 21 em Maio, 23 em Junho, 14 em Julho, 8 em Agosto, 17 em Setembro, 19 em Outubro, 14 em Novembro, 14 em Dezembro de 2019, 15 em Janeiro, 12 em Fevereiro, 10 em Março, 13 em Agosto, 14 em Setembro, 12 em Outubro, 13 em Novembro e 15 em Dezembro de 2020;
K) A A. reside e residiu, durante todo o período do vínculo laboral, na Praia de Faro;
L) Da Praia de Faro ao Centro Comercial Mar Shopping, em Loulé, distam 13,8 km;
M) Da Praia de Faro ao Centro Comercial Fórum Algarve distam 7,1km;
N) A transferência da Autora para o estabelecimento de Loulé, significou um acréscimo de 6.70km por trajecto, importando um acréscimo de deslocações por cada dia de trabalho prestado no Mar Shopping de 13,40km (6.70km x 2);
O) Em virtude da dita transferência, a Autora necessitou percorrer as mencionadas distâncias em viatura própria;
P) A R. não ministrou à A. formação profissional nos anos de 2015 a 2018 e de 2020 e 2021;
Q) A A. enviou à R. carta datada de 18.10.2021, que a R. recebeu, com o seguinte teor:
“Durante a vigência do meu contrato de trabalho tenho vindo a ser submetida a condições de trabalho indignas, que constituem assédio moral, por parte de V. Exa, entidade empregadora, na pessoa da Exma. Senhora BB. As situações a que sou submetida têm vindo a agravar-se, tornaram-se numa escalada crescente de abusos, chegando a um ponto insustentável, destruindo a minha dignidade e degradando a minha saúde mental e impossibilitando a subsistência de qualquer relação laboral. Entre estes abusos passo a relatar alguns exemplos praticados de forma repetida e continuada pela Exma. Senhora BB. No cumprimento das minhas funções fui, reiteradamente, obrigada, por V. Exa, a vender artigos por si seleccionados, os quais diferenciava e diferencia, com o preço marcado a verde e código "01", sem que os mesmos fossem registados no respectivo programa de facturação, por forma a que o resultante da venda não fosse devidamente facturado, não apresentando assim a empresa tanto lucro e consequentemente não pagando os respectivos impostos e comissões de venda aos centros comerciais, onde se situam as duas lojas de V. Exa. Tudo isto com a agravante de não poder entregar a respectiva factura ao cliente, sempre que este a solicitava posteriormente, fazendo-me passar por constrangimentos e exposição ao enxovalho dos clientes sempre que estes voltam mais tarde e solicitam o referido documento ou pretendessem realizar uma troca, o que se tomava impossível pois não existia factura e V. Exa proíbe trocas se o cliente não apresentar factura. Sempre manifestei a V. Exa a minha repulsa por esta prática que V. Exa me obrigava a realizar sob pena de ser despedida, ouvindo de V. Exa frases desestabilizadoras e atemorizadoras como: "estás mal despede-te, porque é que não te despedes? ", "estás mal muda-te". Sempre que eu argumentava e dizia que nunca me iria despedir, porque sou mãe solteira de uma criança de 3 anos, e necessito muito do meu salário, V. Exa rebatia com "vais te despedir vais, porque eu não despeço ninguém, faço com que se despeçam". Fui também coagida a mentir aos clientes sempre que estes perguntavam se existia outra tabacaria no centro comercial e quando respondia que sim, explicando onde ficava e V. Exa estava presente ameaçava-me com frases como: "se não concordas com as minhas ordens despede-te", "no final do mês vais receber à outra tabacaria". Era ainda obrigada a dizer aos clientes IQOS que não sabia da existência da Pop-Up IQOS quando estes tinham ordens de troca de dispositivos para esse ponto de troca e não para a tabacaria de V. Exa, causando-lhes transtorno, sendo obrigada a mentir-lhes dizendo que teriam que ligar novamente para a linha de apoio e pedir a troca para a tabacaria de V.Exa. pois era um engano da Tabaqueira II SA e não existia outro ponto de trocas no centro comercial além do de V.Exa. Essa pressão que V. Exa exercia sobre mim tinha o intuito de gerar números perante a Tabaqueira II SA e retribuições extra para a sua empresa, compreendo tudo isto, mas acredito, e sempre o manifestei, que temos que ser íntegros e honestos com os Clientes pois o nosso dever como representantes da marca IQOS é prestar um serviço de excelência e não obrigar o cliente a telefonemas demorados quando bastava explicar que o ponto de troca que procuravam estava a meros 25 metros dali. Tudo isto me causou muita ansiedade pois violava de forma repetida a minha integridade e honestidade, sem falar nos diversos aborrecimentos com os clientes que ficavam furiosos e revoltados descontando a sua frustração em mim por lhes estar a dificultar a resolução de um problema que seria resolvido com um simples: - a sua troca não é aqui é na Pop-Up IQOS que fica já ao sair da nossa porta. V. Exa sempre se recusou a marcar-me as férias com antecedência e avisou-me consecutivamente com menos de uma semana de antecedência do dia de início das minhas férias, o que me impossibilitou a organização da minha vida pessoal. Essa prática era a mesma com os horários, que lhe solicitei vezes sem conta e me informava ao domingo para ir trabalhar na segunda. Apesar de eu ter um horário fixo, que teve parecer positivo do CITE, o local de trabalho é variável e preciso de saber com antecedência para poder organizar a minha vida pessoal, pois como sabe a minha filha apenas depende de mim. V. Exa nunca escondeu o seu desagrado pela minha pessoa, sempre adoptou comportamentos violadores do dever de me respeitar, nunca escondeu que pretendia que me despedisse, proferindo diversos comentários depreciativos e ofensas verbais, tais como: "burra", "inútil", "incompetente". "és má mãe". "vestes-te como uma mulher da vida". Chegando a proibir-me de ir de calções quando todas as outras colegas, incluindo V. Exa o faziam livremente. V. Exa. desrespeita-me consecutivamente quando não responde às minhas comunicações, como por exemplo quando lhe solicito que me informe quantos dias de férias terei e quando será o meu primeiro dia de trabalho após as mesmas, causando-me episódios de ansiedade pois receio que alegue que apenas teria x dias de férias e que faltei ao serviço. V. Exa sempre me dificultou a vida, como aconteceu aquando do meu pedido de horário flexível, que V. Exa recusou e teve que ser apreciado pelo CITE que emitiu parecer positivo ao referido pedido. Mesmo assim V. Exa, em meados de Junho do corrente ano, decidiu violar esse parecer e enviou-me uma comunicação a informar que no dia imediatamente a seguir eu teria que fazer o horário nocturno, em vez do já estabelecido, que seria das 10h às 19h. Apesar dos meus apelos V. Exa recusou veemente alterar a sua nova, causando-me ataques de pânico que me obrigaram a ter de recorrer a auxílio médico e ao uso de medicação até hoje. Este episódio causou-me grave prejuízo à minha saúde emocional e psicológica e conduziu à minha incapacidade temporária para o trabalho, Apesar de ser conhecedora do meu estado de saúde, V, Exa enviou-me uma comunicação a informar que tinha solicitado a verificação da minha incapacidade temporária para o trabalho, facto que me destabilizou, pois mais uma vez estava a violar a minha dignidade e honestidade num momento em que precisava de tranquilidade para me recuperar, pois ao fazer tal pedido às autoridades competentes estava a pôr em causa a veracidade da minha falta de saúde. Mas como ficou provado, em junta médica, eu estava efectivamente incapacitada para trabalhar e essa incapacidade foi promovida pelas coacções e comentários depreciativos, abusivos e atemorizadores que V. Exa exerceu repetidamente sobre mim. Por último, para minha enorme surpresa, recebi uma nova comunicação, no dia 19 de Novembro do presente ano, aquando da minha solicitação sobre o dia em que me apresentaria de novo ao meu posto de trabalho, pois estou actualmente a gozar férias forçadas, no qual me foi transmitido o horário de trabalho que novamente vai contra o parecer do CITE. Neste novo horário de trabalho, estou de folga no Sábado e no Domingo, o que não vai de encontro ao parecer do CITE, pois, o mesmo reitera que as minhas folgas de trabalho são fixas e à Sexta-feira e ao Sábado, de forma a conseguir conciliar a minha vida pessoal e profissional, como é do conhecimento de V. Exa. Outro facto que tive em conta, ao escrever esta comunicação, é que apesar de nunca me ter facultado qualquer formação dos Jogos Santa Casa, obrigou-me a pagar centenas de auras, quando por desconhecimento das regras e procedimentos dos Jogos Santa Casa, rasguei uma raspadinha e duas lotarias, após o pagamento do premio aos clientes. V. Exa sabia que ignorava essas regras e ainda assim penalizou-me gravemente, obrigando-me a pagar sob pena de ser despedida, segundo V. Exa "com justa causa". Por todo o exposto, venho pelo presente comunicar a V. Exa a resolução do contrato de trabalho, celebrado no dia 1 de Maio de 2015, com justa causa, com efeitos a partir da recepção da presente carta. Nestes termos, solícito que seja passada e entregue, nos termos do artigo 43.° do Decreto- lei n.º 220/2006, de 3 de Novembro, a declaração comprovativa da situação de desemprego —.Modelo RP 5044-DGSS, no prazo de 5 dias úteis, bem como a entrega do Certificado de Trabalho, previsto no artigo 341.° do Código do Trabalho, indicando as datas de admissão e de cessação, bem como o cargo ou cargos desempenhados. Em virtude da presente comunicação de despedimento com justa causa, solicito ainda que sejam processados os créditos laborais a que tenho direito, bem como a devida indemnização, prevista no artigo 396º do Código do Trabalho e os valores retroactivos referentes às minhas deslocações para a segunda loja da J…, Lda., sita no Centro Comercial MAR Shopping Algarve. Relembro que os créditos referentes ao pagamento das referidas deslocações já haviam sido solicitados, por carta registada com AR, pelas minhas advogadas e que V. Exa se recusou a regularizar. Neste sentido aguardo o pagamento dos valores que me são devidos e o envio do respectivo recibo, sob pena de avançar judicialmente para a cobrança coerciva dos meus direitos. Atentamente,”;
R) Uma vez recepcionada a carta, a Ré comunicou ao Instituto da Segurança Social, IP o fim do vínculo com referência à data da recepção da carta, 22.10.2021, tendo indicado como motivo “justa causa por iniciativa do trabalhador”;
S) Durante toda a vigência do acordo de trabalho, a Ré, na pessoa da sua então gerente BB, impôs à Autora que não procedesse à facturação de parte dos produtos que vendia aos clientes;
T) Tendo por várias vezes a Autora manifestado desconforto relativamente a essa prática, a representante da Ré sempre respondeu, em tom agressivo: “estás mal, despede-te! Porque é que não te despedes?! Estás mal? Muda-te!”;
U) Quando, por várias vezes, a Autora rebateu, explicando que jamais se poderia “despedir” atento o facto de ser mãe solteira com uma criança de 3 anos a cargo, a legal representante da Ré dizia “vais-te despedir, vais, porque eu não despeço ninguém, mas faço com que se despeçam!”;
V) A Ré, na pessoa da sua legal representante, instruía ainda a Autora a mentir aos clientes por si atendidos, dizendo-lhes que não existia outra tabacaria no Centro Comercial onde pudessem adquirir produtos não transaccionados pela casa, quando tal não correspondia à verdade;
W) Quando clientes da IQOS se apresentavam com ordens de troca de dispositivos da marca para o ponto “Pop-Up IQOS”, localizado no mesmo centro comercial, a Ré impunha à Autora que os ludibriasse no intuito de os convencer de que esse ponto de troca não existia e que a indicação do mesmo, na ordem de troca, derivava de lapso, quando tal não correspondia à realidade;
X) Por ordem expressa da Ré, na pessoa da respectiva representante legal, a Autora tinha ainda que direccionar os mesmos clientes a ligar para a linha de apoio da IQOS, a fim de pedirem a anulação da ordem de troca emitida e a sua substituição por outra, agora referida ao estabelecimento da Ré, com o intuito de gerar números perante a empresa detentora da marca e com isso obter vantagens consubstanciadas em remunerações extraordinárias indexadas aos referidos números;
Y) Sempre que a Autora demonstrava resistência em cumprir com as supra descritas ordens, ou sempre que a Autora desafiava as mesmas, indicando aos clientes onde se localizava a tabacaria onde se deveriam dirigir de acordo com a ordem de troca, a legal representante da empregadora dizia, em tom ameaçador: “se não concordas com as minhas ordens, despede-te! No final do mês vais receber à outra tabacaria. Ou fazes o que eu te mando, ou não te pago o salário”;
Z) Ao forçar-se a cumprir as ordens da legal representante da Ré, por medo de sofrer represálias, a Autora sentiu-se muitas vezes violada na sua integridade e honestidade, o que lhe causava ansiedade e sentimentos de tristeza;
AA) Alguns clientes IQOS aperceberam-se de que a Autora lhes estava a dificultar a resolução de uma questão que era simples e ficaram furiosos, o que expressaram junto da mesma, fazendo que esta sofresse vergonha e mal estar emocional;
BB) Muitas vezes, quando a Autora cometia um qualquer lapso no trabalho, a legal representante da Ré borrifava-a com uma mistura contendo vinagre;
CC) Nos dias em que tal acontecia, a Autora tinha que permanecer no local de trabalho, a executar as habituais tarefas de atendimento ao cliente enquanto exalava a vinagre, o que lhe causou sentimentos de profundo constrangimento e humilhação;
DD) Durante todo o curso do vínculo laboral a legal representante da Ré chamava frequentemente à Autora “burra”; “inútil”; “incompetente”; “bruxa”; “anormal”; “monstro”;
EE) A legal representante da Ré, no espaço da loja, pedia frequentemente à Autora para lhe dar passagem através da expressão “sai da frente, vaca”;
FF) A legal representante da Ré disse várias vezes à Autora, quando esta se referia à filha: “és má mãe”;
GG) A legal representante da Ré dizia frequentemente à Autora: “não fazes nada bem feito”; “gente burra como tu não devia nascer”; “não serves para nada”;
HH) Sempre que a Autora questionava a Ré relativamente à lógica e ao sentido de uma qualquer instrução que lhe era dada, a legal representante da Ré dizia-lhe “não penses muito, porque ninguém te paga para pensar!”;
II) Durante todo o período em que a Autora trabalhou ao serviço da Ré, a legal representante desta criticou frequentemente a roupa da Autora através de comentários depreciativos, tendo dito várias vezes a esta: “vestes-te como uma mulher da vida”, quando a Autora sempre se apresentou ao trabalho com roupa adequada às suas funções;
JJ) A legal representante da Ré proibiu expressamente a Autora de usar calções no local do trabalho, mas permitiu a todas as outras trabalhadoras que o fizessem com a frequência desejada;
KK) A legal representante da Ré sempre marcou unilateralmente as férias a gozar pela Autora, sem qualquer antecedência relativamente à data de início das mesmas;
LL) Quando a Autora interpelava a Ré no sentido de ser informada acerca de quando teria que se apresentar ao trabalho após as férias, a legal representante da empresa não se dignava, por vezes, a responder;
MM) O que ocasionou grande stresse na Autora, uma vez que a mesma ficava na dúvida acerca da duração das suas férias e com receio de estar a faltar injustificadamente ao trabalho;
NN) Com as práticas mencionadas, a Ré procurou e conseguiu desestabilizar a Autora no que respeita à organização da sua vida pessoal e familiar, com o que causou relevante sofrimento emocional à mesma;
OO) A partir de Agosto de 2020, e após um longo período em que esteve afecta, com exclusividade, à Loja do Mar Shopping, a trabalhadora passou a prestar actividade também na loja do Fórum Algarve, em Faro, alternando a sua actividade entre uma e outra lojas, consoante as instruções da Ré para cada semana;
PP) Tais instruções assumiam a forma de um horário semanal remetido às trabalhadoras;
QQ) Apesar dos pedidos da A. para que o horário fosse apresentado com alguma antecedência, a legal representante da Ré sempre se recusou a fazê-lo, informando quase sempre a trabalhadora do seu horário semanal na véspera do início de execução do mesmo, muitas vezes ao final do dia, o que dificultou de sobremaneira a organização da vida familiar da Autora, para grande aumento da ansiedade desta;
RR) Em 25.02.2020, a Autora requereu à Ré a prestação de trabalho em regime de horário flexível, com fundamento no facto de ter uma filha de 2 anos de idade, cujo pai nem sempre estava disponível para prestar o devido apoio, já que trabalhava em regime de turnos variáveis na sua duração e folgas rotativas;
SS) Requereu a Autora que o horário de trabalho fosse fixado das 10h00 às 14h00 e das 15h00 às 19h00, tendo entretanto acabado por aceitar o horário contra proposto pela empregadora na sequência do pedido: das 9h00 às 13h00 e das 14h00 às 18h00;
TT) Mais requereu a Autora que as suas folgas fossem fixadas à sexta feira e ao domingo, o que teve a recusa da Ré;
UU) Colocado o assunto à apreciação da CITE, esta emitiu parecer desfavorável à recusa da Ré em 15 de Abril de 2020;
VV) Apesar do teor do parecer emitido pela CITE, do acordo firmado entre A. e R. quanto ao horário de trabalho a praticar, e das razões que lhe subjazem, em 12 de Junho de 2021 a legal representante da Ré comunicou à Autora que esta deveria apresentar-se ao trabalho no dia seguinte, a fim de prestar actividade no turno que iniciava às 19h e finalizava às 23h00;
WW) Uma vez que era totalmente impossível à Autora compatibilizar o exercício dos seus deveres de mãe com o horário estabelecido, já que se encontrava separada do pai da criança e não dispunha de qualquer outro apoio, a Autora ficou muito angustiada, tendo exposto as suas razões à legal representante da Ré por email da mesma data;
XX) Não tendo a representante legal da Ré respondido, a Autora tentou ligar-lhe várias vezes, tendo a primeira ignorado as chamadas;
YY) Após o que a Autora se passou a sentir cada vez mais desesperada e ansiosa, sem saber o que fazer, o que culminou num ataque de pânico, tendo tido que recorrer, nesse dia, a auxílio médico, tendo-lhe sido determinada baixa médica;
ZZ) A partir daí o estado de saúde da Autora perigou substancialmente, tendo a mesma sido diagnosticada com “Ansiedade Generalizada, com base em mau relacionamento laboral e maus-tratos verbais por parte da entidade patronal”;
AAA) Em virtude deste quadro de ansiedade patológica generalizada, a Autora foi medicada com um ansiolítico (Sedoxil) e um medicamento antidepressivo (Sertralina), que manteve até início do ano de 2022;
BBB) Tendo a Ré solicitado a verificação da incapacidade da Autora, foi a mesma confirmada pela Comissão de Verificação do Instituto da Segurança Social , I.P.;
CCC) Por se sentir melhor, ainda que medicada, em 18.09.2021, a Autora informou a Ré, na pessoa da sua representante, que regressaria ao trabalho a 22.09.2021, data em que cessaria a sua última baixa, tendo a legal representante da Ré respondido que a partir do término da baixa a Autora se deveria considerar de férias, apesar de as mesmas não se encontrarem marcadas, nunca tendo sido colhida a opinião da Autora quanto às respectivas datas;
DDD) Tudo com o intuito de desestabilizar as emoções da Autora e de lhe impossibilitar a organização da vida pessoal;
EEE) A Autora sentiu-se ofendida na sua honra e consideração, tendo experienciado, ao longo do decurso do vínculo laboral, sentimentos de angústia, instabilidade emocional, desespero, frustração e humilhação, o que veio a afectar, de forma grave, a sua saúde psíquica, a ponto de a mesma ter ficado incapacitada para o trabalho por doença do foro mental, com necessidade de toma de medicação para a ansiedade e depressão, o que se prolongou até ao final de 2021;
FFF) A Autora esteve de baixa médica, ininterruptamente, no período de 13 de Junho 2021 até 21 de Setembro de 2021;
GGG) No ano de 2019, a Autora frequentou o curso de Formação Profissional de Segurança, Higiene e Saúde no Trabalho – Comércio e Serviços com a duração de 35 horas.

APLICANDO O DIREITO
Da caducidade do direito de resolução do contrato de trabalho
Impondo o art. 395.º n.º 1 do Código do Trabalho que o trabalhador comunique a resolução do contrato ao empregador, por escrito, nos 30 dias subsequentes ao conhecimento dos factos que a justificam, deve entender-se que, nas situações de carácter continuado ou duradouro, que se agravam com o decurso do tempo, o prazo só se conta a partir do momento em que os efeitos da violação por parte do empregador, no contexto da relação laboral, assumem tal gravidade que a subsistência do contrato de trabalho se torna intolerável para o trabalhador[2].
Ponderando, ainda, que o prazo apenas começa a correr quando o trabalhador tem conhecimento de todos os factos que lhe permitam ajuizar da seriedade e dimensão da lesão dos seus direitos, nomeadamente para poder avaliar se é impossível a manutenção da relação laboral[3], vejamos a partir de que momento se deve considerar que a A. conhecia todos os factos que lhe permitiam formular tal juízo.
Na sua carta de resolução, a A. identifica um comportamento global de assédio praticado pela gerência da Ré, que culminou no quadro de ansiedade generalizada e baixa médica a partir de 13.06.2021, com necessidade de tratamento médico e medicamentoso, que se manteve até ao início de 2022 – al. AAA) dos factos provados – e na marcação inopinada das férias a partir de 22.09.2021, mais uma vez sem consulta da trabalhadora e que continuava a atitude de desconsideração pessoal e profissional que esta vinha sofrendo.
Ponderando que o juízo a formular acerca da caducidade do direito de resolução não é coincidente com a avaliação da justa causa, pode-se afirmar que aquela excepção é estritamente analisada na perspectiva invocada no acto de resolução do contrato de trabalho.
Na carta de resolução, invocam-se factos continuados até 22.09.2021 que, na perspectiva da trabalhadora, se mostraram violadores das suas garantias legais ou convencionais e tornando intolerável a manutenção da relação laboral, culminando com a carta de resolução enviada a 18.10.2021.
E como veremos mais adiante, o assédio laboral caracteriza-se não apenas pela prática de determinados comportamentos, mas ainda pela sua duração e pelas suas consequências – e estas estão demonstradas nos autos, através do quadro clínico diagnosticado à trabalhadora que motivou a sua baixa médica até 21.09.2021 e pela necessidade de recurso a tratamento medicamentoso, que sabemos se ter mantido até depois da cessação do contrato de trabalho, i.e., até início de 2022.
Independentemente do juízo a formular acerca da existência de justa causa, os factos descritos na carta de resolução do contrato de trabalho podem ser considerados continuados no tempo, prolongando-se até aos 30 dias anteriores ao envio da carta, pelo que se conclui pela improcedência da invocada excepção de caducidade, sem prejuízo do juízo a formular quanto à justa causa.

Da justa causa na resolução do contrato por iniciativa da trabalhadora
De acordo com o art. 394.º n.º 2 al. b) do Código do Trabalho, constitui justa causa de rescisão do contrato pelo trabalhador, o comportamento do empregador que se traduza em violação culposa das garantias legais ou convencionais do trabalhador. Por seu turno, a al. f) do mesmo normativo acrescenta ser igualmente justa causa de resolução do contrato a ofensa à integridade moral, honra ou dignidade do trabalhador, punível por lei, praticada pelo empregador ou seu representante.
Tal como na justa causa de despedimento, também aqui se exige um comportamento culposo da entidade patronal que, pela sua gravidade e consequências danosas, torne impossível a subsistência da relação de trabalho. Ou seja, deve existir nexo de causalidade entre aquele comportamento e a impossibilidade de subsistência da relação laboral.
Quanto ao primeiro dos requisitos – comportamento culposo do empregador – o mesmo pressupõe um comportamento (por acção ou omissão) imputável ao mesmo, a título de culpa, que viole algum dos seus deveres decorrentes da relação laboral. O procedimento do empregador tem de ser imputado a título de culpa, embora não necessariamente sob a forma de dolo; se não procede com o cuidado a que, segundo as circunstâncias está obrigado e de que era capaz, isto é, se age com negligência, poderá, verificados os demais requisitos, dar causa à resolução do contrato de trabalho pelo trabalhador com justa causa.
Mas não basta tal comportamento. Com efeito, necessário é também que a conduta seja, de per se e face às suas consequências, de tal modo grave que, segundo critérios de objectividade e razoabilidade, não seja possível a subsistência do vínculo laboral.
A gravidade do comportamento culposo do empregador deve ser aferida com base em critérios de objectividade e razoabilidade, segundo o entendimento de um bom pai de família, em termos concretos, relativamente à empresa, e não com base naquilo que o trabalhador considere subjectivamente como tal. Os arts. 394.º n.º 4 e 351.º n.º 3 do Código do Trabalho impõem que se atenda, no quadro de gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses do trabalhador, ao carácter das relações entre as partes ou entre o empregador e os seus funcionários e às demais circunstâncias que ao caso se mostrem relevantes.
Quanto à impossibilidade prática de subsistência da relação laboral, a mesma verifica-se por deixar de existir o suporte psicológico mínimo para o desenvolvimento da relação laboral, quando se esteja perante uma situação de absoluta quebra de confiança entre o trabalhador e a entidade patronal, de tal modo que a subsistência do vínculo laboral representaria uma exigência desproporcionada e injusta, não sendo objectivamente possível exigir ao trabalhador a manutenção da relação laboral.
Sumariando o que se deixou expresso, Pedro Romano Martinez[4] esclarece que «sempre que o empregador falta culposamente ao cumprimento dos deveres emergentes do contrato estar-se-á perante uma situação de responsabilidade contratual; e, sendo grave a actuação do empregador, confere-se ao trabalhador o direito de resolver o contrato. O trabalhador só pode resolver o contrato se do comportamento do empregador resultar uma justa causa de desvinculação. Deste modo, nem toda a violação de obrigações contratuais por parte do empregador confere ao trabalhador o direito de resolver o contrato; é necessário que o comportamento seja ilícito, culposo e que, em razão da sua gravidade, implique a insubsistência da relação laboral.»
Ou, como afirma João José Abrantes[5], «para que haja justa causa exige-se que ocorra um comportamento culposo da entidade empregadora violador dos seus deveres contratuais e, desse comportamento resultem efeitos de tal modo graves, que determinem a impossibilidade da manutenção da relação laboral. O comportamento do empregador tem de ser grave em si mesmo nas suas consequências, ou seja, tem de ser de molde a comprometer a viabilidade futura da relação de trabalho.»
A propósito das situações de assédio moral, Maria do Rosário Palma Ramalho[6] assinala, entre as várias formas de assédio, «o assédio moral discriminatório, em que o comportamento indesejado e com efeitos hostis se baseia em qualquer factor discriminatório que não o sexo (discriminatory harassement); e o assédio moral não discriminatório, quando o comportamento indesejado não se baseia em nenhum factor discriminatório, mas, pelo seu carácter continuado e insidioso, tem os mesmos efeitos hostis, almejando, em última análise, afastar aquele trabalhador da empresa (mobbing)
O assédio moral ou mobbing, engloba comportamentos que isoladamente seriam lícitos e poderiam até parecer insignificantes, mas que ganham relevo distinto quando inseridos num determinado procedimento e reiterados ao longo do tempo. Como refere Júlio Gomes[7], «o principal mérito da figura consiste em que ela permite ampliar a tutela da vítima, ligando entre si factos e circunstâncias que, isoladamente considerados pareceriam de pouca monta, mas que devem ser reconduzidos a uma unidade, a um projecto ou procedimento».
Ainda de acordo com o ensinamento deste autor[8], aquilo que caracteriza o mobbing são três facetas: a prática de determinados comportamentos, a sua duração e as consequências destes. Em primeiro lugar, estão em causa comportamentos hostis, humilhantes ou vexatórios – revestindo o assédio uma polimorfia de comportamentos – e frequentemente ilícitos. Em segundo lugar, é a repetição de tais comportamentos hostis, que transforma um mero conflito pontual num assédio moral. Em terceiro lugar, as consequências de tais comportamentos sobre a saúde física e psíquica da vítima e sobre o seu emprego, conduzindo-a a um processo de exclusão profissional.
Júlio Gomes[9] adverte também «que nem todos os conflitos no local de trabalho são, obviamente, um mobbing, sendo, aliás, importante evitar que a expressão assédio se banalize. Nem sequer todas as modalidades de exercício arbitrário do poder de direcção são necessariamente um mobbing, quer porque lhes pode faltar um carácter repetitivo e assediante, quer porque não são realizados com tal intenção. (…) Em todo o caso, e como já se disse, o principal mérito da figura consiste em que ela permite ampliar a tutela da vítima, ligando entre si factos e circunstâncias que isoladamente considerados pareceriam de pouca monta, mas que devem ser reconduzidos a uma unidade, a um projecto ou procedimento, sendo que a eventual intenção do agressor pode relevar para explicar a fundamental unidade de um comportamento persecutório.»
A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça vem afirmando que “não é toda e qualquer violação dos deveres da entidade empregadora em relação ao trabalhador que pode ser considerada assédio moral, exigindo-se que se verifique um objectivo final ilícito ou, no mínimo, eticamente reprovável, para que se tenha o mesmo por verificado. Mesmo que se possa retirar do art. 29.º do Código do Trabalho que o legislador parece prescindir do elemento intencional para a existência de assédio moral, exige-se que ocorram comportamentos da empresa que intensa e inequivocamente infrinjam os valores protegidos pela norma – respeito pela integridade psíquica e moral do trabalhador.”[10]
A primeira instância considerou que os factos provados se enquadravam no conceito de assédio laboral, proibido pelo art. 29.º n.º 1 do Código do Trabalho, e estamos de acordo com tal qualificação.
Não iremos repetir todos os dados de facto, pois esses já estão expostos.
Mas importa realçar os insultos e os comentários depreciativos constantes, as situações constrangedoras com os clientes motivadas pelos procedimentos impostos pela Ré, que os faziam sentir enganados e apresentar reclamação, as críticas à forma de vestir e à sua conduta como mãe, e as borrifadelas com uma mistura de água e vinagre, fazendo com que a trabalhadora tivesse de permanecer no seu posto de trabalho exalando cheiro a vinagre.
E, em cima de tais humilhações, temos não apenas a marcação unilateral de férias, sem qualquer antecedência em relação ao seu início, mas ainda o desrespeito pelo regime de horário flexível objecto do Parecer n.º 223/2020 da CITE, impondo a Ré à trabalhadora a prática do turno que finalizava às 23 horas, bem sabendo que tal era incompatível com os seus deveres de mãe, pois não tinha qualquer outro apoio para tomar conta da sua filha menor, nascida em 2018.
Neste quadro, temos não apenas a prática de comportamentos hostis e humilhantes, continuados ao longo dos anos de duração da relação laboral, que visavam não apenas a conduta profissional, mas acima de tudo a própria individualidade da trabalhadora.
E visto que tudo isto teve consequências na integridade mental da trabalhadora, provocando-lhe um quadro de ansiedade generalizada e a necessidade de recorrer a ansiolíticos e antidepressivos, somos a concluir que estão reunidos os três requisitos que caracterizaram o assédio laboral não discriminatório:
a) comportamentos hostis, humilhantes ou vexatórios;
b) reiteração de tais comportamentos; e,
c) consequências na saúde física e psíquica da trabalhadora e sobre o seu emprego.[11]
E assim concluímos como fez a primeira instância, os factos comprovam que a trabalhadora foi vítima de assédio laboral, praticado pela entidade patronal, violador do núcleo essencial da sua dignidade pessoal e profissional, e tal constitui justa causa de resolução do contrato de trabalho, nos termos gerais do art. 394.º n.º 2 als. b) e f) do Código do Trabalho.
Como tal, não pode a Ré obter a procedência do pedido reconvencional por si formulado, por a tal obstar o art. 399.º do mesmo Código.

Da indemnização por danos não patrimoniais decorrente do assédio laboral
O fundamento legal do direito indemnizatório por danos não patrimoniais resultantes de assédio laboral resulta das normas conjugadas dos arts. 29.º n.º 4 e 28.º do Código do Trabalho: a prática de assédio confere à vítima o direito de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, nos termos gerais de direito.
Considera a Recorrente que não se justifica a condenação a esse título efectuada na sentença recorrida, no valor de € 8.000,00, invocando a sua falta de fundamento factual e jurídico.
Quanto ao fundamento factual, já o analisámos aquando da apreciação da impugnação da matéria de facto, e julgou-se provado o quadro de ansiedade generalizada, a necessidade de recurso a tratamento médico e medicamentoso e, ainda, que a A. se sentiu desestabilizada emocionalmente, vendo-se ofendida na sua honra e consideração, tendo experienciado, ao longo do decurso do vínculo laboral, sentimentos de angústia, instabilidade emocional, desespero, frustração e humilhação, o que veio a afectar, de forma grave, a sua saúde psíquica, a ponto de ter ficado incapacitada para o trabalho por doença do foro mental, com necessidade de toma de medicação para a ansiedade e depressão, que se prolongou até ao final de 2021.
Estão, pois, demonstrados os danos não patrimoniais provocados pelo comportamento da Ré, e quanto à medida da indemnização, a primeira instância aceitou o valor do pedido formulado pela trabalhadora, de € 8.000,00, que, a pecar, será pela sua parcimónia.
Com efeito, esta Relação de Évora já teve a oportunidade de fixar uma indemnização no montante de € 10.000,00, a título de danos morais, por comportamentos semelhantes – o que fez no Acórdão de 04.04.2018 (Proc. 903/16.0T8STC.E1), já citado em nota de rodapé.
Não podemos afirmar, pois, que o valor da condenação efectuado pela primeira instância seja excessivo ou não se enquadre nas práticas jurisprudenciais nesta matéria, motivo pelo qual também esta parte do recurso não procede.

DECISÃO
Destarte, decide-se negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida.
As custas pela Recorrente.

Évora, 7 de Novembro de 2023

Mário Branco Coelho (relator)
Emília Ramos Costa
Paula do Paço

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[1] Rectificaram-se lapsos materiais constantes da sentença recorrida, relativos ao ano de início do contrato (era o ano de 2015 e não o de 2025) e ao dia de termo (era o dia 30 de Abril de 2016, e não o dia 20). Tais datas são as que constam do contrato de trabalho junto como documento n.º 1 com a petição inicial, aceite por ambas as partes.
[2] Neste sentido, cfr. o Acórdão da Relação do Porto de 07.05.2012 (Proc. 470/10.9TTVNF.P1), e o Acórdão da Relação de Coimbra de 17.01.2013 (Proc. 889/11.8TTLRA.C1), ambos publicados em www.dgsi.pt.
Nesta Relação de Évora, vide os Acórdãos de 13.07.2017 (Proc. 532/11.5TTSTR.E1) e de 13.07.2022 (Proc. 3295/19.2T8STR.E1), também publicados em www.dgsi.pt.
[3] Cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09.09.2009 (Proc. 3444/06.0TTLSB.S1), disponível no mesmo local.
[4] In Direito do Trabalho, 3.ª ed., Almedina, 2006, págs. 1010/1.
[5] In Direito do Trabalho, Ensaios, Lisboa, 1995, pág.126.
[6] In Direito do Trabalho, Parte II – Situações Laborais Individuais, 6.ª ed., Almedina, 2016, pág. 189.
[7] In Direito do Trabalho, Relações Individuais de Trabalho, vol. I, Coimbra Editora, 2007, pág. 426.
[8] Loc. cit., págs. 428 a 430.
[9] Desta vez em “Algumas observações sobre o mobbing nas relações de trabalho subordinado”, e-book do CEJ “O Assédio no Trabalho”, Setembro de 2014, págs. 120 e 121.
[10] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09.05.2018 (Proc. 532/11.5TTSTR.E1.S1), publicado em www.dgsi.pt, confirmando o aresto desta Relação de Évora de 13.07.2017, igualmente publicado na mesma base de dados, em que o Relator foi o mesmo do presente.
[11] Analisando os requisitos do assédio laboral, vide os Acórdãos desta Relação de Évora de 13.07.2017 (supra identificado), de 14.09.2017 (Proc. 838/13.9TTSTB.E1), de 04.04.2018 (Proc. 903/16.0T8STC.E1), de 14.07.2021 (Proc. 82/20.9T8BJA.E1), de 09.02.2023 (Proc. 239/21.5T8BJA.E1), de 11.05.2023 (Proc. 1245/21.5T8TMR.E1) e da mesma data de 11.05.2023 (Proc. 412/21.6T8PTG.E1), todos publicados em www.dgsi.pt.