Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
162/22.6T8SRP.E1
Relator: MARIA JOÃO SOUSA E FARO
Descritores: REVELIA OPERANTE
ALEGAÇÕES ESCRITAS
CONTRATO DE DEPÓSITO BANCÁRIO
TRANSFERÊNCIA DE FUNDOS
Data do Acordão: 09/14/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I. A omissão de despacho interlocutório a considerar confessados os factos articulados pelos Autores em consequência da revelia absoluta da Ré não configura nulidade processual à luz do disposto no art.º195º, nº1 do CPC;

II. Dado que a revelia absoluta supõe a ausência de constituição de mandatário judicial no decurso do prazo da contestação, não assiste ao réu, que esteja nessa situação, o direito de produzir alegações, não carecendo, por isso, de ser notificado para esse efeito, como resulta do disposto no art.º 249º, nº3 do CPC.

III. Quer à luz do Regime Jurídico dos Serviços de Pagamento (actualmente constante do DL n.º 91/2018, de 12 de Novembro), quer ao abrigo do disposto art.º 796º do Cód. Civil, a transferência de fundos pressupõe uma ordem do titular da conta de depósito, pelo que, não demonstrado este pressuposto, a responsabilidade pela quantia que sem autorização do mesmo seja levantada de tal conta recai sobre o banqueiro.

(Sumário elaborado pela Relatora)

Decisão Texto Integral:
I.RELATÓRIO

I.CAIXA DE CRÉDITO AGRÍCOLA DO GUADIANA INTERIOR, C.R.L., Ré nos autos à margem identificados, nos quais figuram como Autores AA e BB, veio recorrer da sentença, proferida em 12.4.2023, que julgando a acção totalmente procedente, a condenou a pagar aos mesmos Autores o “montante de 38.954,64 €, acrescido de juros de mora desde 2022.02.24, e a quantia de 5.000,00 €, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora desde a data do trânsito da presente sentença até integral e efectivo pagamento”, formulando, na sua apelação, as seguintes conclusões:

1.º O presente recurso vem interposto da douta sentença proferida pelo tribunal a quo, que decidiu julgar procedente a ação intentada pelos autores, porquanto deram- se como assentes todos os factos alegados pelos autores, nos termos do disposto nos artigos 567.º, n.º1 do Código de Processo Civil.

2.º Não obstante a ré não ter contestado a ação, impunha-se ao Tribunal a quo, antes de proferir a sentença, proferir despacho nos termos do artigo 567.º n.º 1 do C.P.C., no qual, declarasse os factos confessados pelos autores, o que não aconteceu.

3.º O Tribunal a quo apenas proferiu despacho com a referência 33137762 no qual consta apenas o seguinte: “Citação de 2022.10.24, ref. e expediente postal de 2022.11.03, ref.2339889: Cumpra o disposto no art.º 567.º, n.º 2, do CPC. Serpa “conforme despacho que se junta como documento n.º 1

4.º O Tribunal a quo, ao não proferir tal despacho, violou o disposto no artigo 567.º n.º 1 do C.P.C., e consequentemente, feriu a sentença de nulidade processual nos termos do artigo 195.º n.º 1 do C.P.C., pois foi omitido um ato que a lei prescreve, pelo que a sentença recorrida deve ser revogada.

5.º Mais, não obstante se considerarem confessados os factos, por falta de contestação, a causa deve ser julgada “conforme for de direito” (n.º 2, in fine, do artigo 567.º do CPC), que pode conduzir ou não à procedência da ação, já que há confissão dos factos, mas não do direito, estando-se perante o chamado efeito cominatório semipleno.

6.º Tendo o Mmo. Juiz do Tribuna a quo, antes de proferir a sentença, notificar as partes nos termos do n.º 2 do supra citado artigo.

7.º A sentença foi proferida no dia 12.04.2023, conforme consta da plataforma citius com a referência 33276007, sendo que por requerimento de 22.03.2023, com a referência 45098979 a ré juntou procuração a favor da mandatária, conforme documento n.º 2 que se junta.

8.º A partir de dia 22.03.2023, cessou a revelia inoperante da ré, pelo que o deveria o Tribunal mandar notificar a ré nos termos do artigo 567.º n.º 2 do C.P.C.

9.º Estando a ré já representada por mandatária, impunha-se ao tribunal a quo, cumprir o disposto no artigo 567.º n.º 2 do C.P.C., o que não fez, pelo que a sentença proferida está ferida de nulidade por omissão de ato que a lei determina, no termos do artigo 195.º n.º 1 do C.P.C, devendo a mesma ser revogada.

10.º Sem prescindir das nulidades já invocadas considera a recorrente os factos alegados pelos autores, não permitem ao Tribunal a quo decidir, em termos de decisão de Direito como o fez.

11.º Ao contrário do que o Tribunal a quo entendeu, há contradição e incompatibilidade interpretativa entre a matéria dada como assente e as previsões normativas do disposto nos artigos 71.º n.º 1 do DL 242/2012, de 7 de Novembro e 798.º, 799.º, 800.º, 496.º todos do Código civil.

12.º É requisito para responsabilizar o operador bancário estarmos perante uma operação de pagamento não autorizada pelo ordenante.

13.º Ora, os autores, na petição inicial apresentada, confessam nos artigos 7.º, 8.º, 9.º, 10.º e 11.º que a autora mulher cedeu os códigos recebidos no seu próprio telemóvel, conforme documento n.º 3 que se junta, sendo que a operação bancária em causa nos autos, foi autorizada pela própria autora mulher.

14.º O pressuposto da ilicitude para a consequente responsabilização da recorrente, está dependente da demonstração de que essa movimentação bancária foi feita sem autorização ou consentimento da titular da conta, sendo que os autores confessaram no próprio articulado da petição inicial, que as instruções para a realização da transferência bancária foram autorizadas e consentidas pela autora.

15.º Pelo que, verifica-se ter existido da parte da autora uma violação de um dever de cuidado que legal e contratualmente lhe estava imposto, pois o comportamento da autora integra o conceito de “negligência grave” pressuposto no artigo 72.º n.º 3 do DL 242/2012, de 7 de novembro.

16.º Consequentemente, deve a responsabilidade pelo risco desse dano competir inteiramente ao cliente, e não ao banco, aqui ré – vide acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, conforme acórdão proferido a 14.02.2023 no âmbito do processo 450/20.6T8MTA.L2-7 disponível emhttp://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/6b954d0611b02635802589650 0502ba4?OpenDocument

17.º Pelo que, a sentença recorrida enferma de erro de julgamento, na aplicação do direito uma vez que o decidido não corresponde à realidade normativa, impondo-se a sua revogação por violação do disposto no artigo 72.º n.º 3 do DL 242/2012, de 7 de Novembro.

Nestes termos, e nos mais de Direito que V.Exas. doutamente suprirão, deve o presente recurso merecer provimento, revogando-se a douta Sentença proferida, fazendo JUSTIÇA.

Essa será, Senhores Desembargadores, a expressão da JUSTIÇA!”.

2. Contra-alegaram os Autores defendendo a manutenção do decidido.

3. O objecto do recurso - delimitado pelas conclusões da recorrente (cfr.art.ºs 608ºnº2,609º,635ºnº4,639ºe 663º nº2, todos do CPC) circunscreve-se à apreciação das seguintes questões:

3.1. Se a omissão de despacho interlocutório a considerar confessados os factos articulados pelos Autores em consequência da revelia operante da Ré configura uma nulidade processual;

3.2. Se na sequência da junção da procuração pela Ré, a mesma deveria ter sido notificada para os efeitos do disposto no artigo 567.º n.º 2 do C.P.C. antes da prolação da sentença e, em caso afirmativo, se tal omissão constitui uma nulidade processual;

3.3. Reapreciação jurídica da causa: Da (in) existência da integralidade dos requisitos de responsabilização da Ré- entidade bancária – perante os seus clientes, ora Autores, à luz do Regime Jurídico dos Serviços de Pagamento (actualmente constante do DL n.º 91/2018, de 12 de Novembro).

II- FUNDAMENTAÇÃO

4. Os factos a considerar no âmbito deste recurso são os que se deixaram exarados no antecedente relatório, sendo de relevar a seguinte ocorrência processual (após consulta do processo no citius):

4.1. Os Autores demandaram a Ré pedindo a sua condenação a pagar-lhes: “ 1. A quantia de 38.954,64 €, acrescida de juros de mora, nos termos do artigo 71º do nº 2 do já citado normativo legal, desde em que se verificou a operação não autorizada, até integral e efetivo pagamento; 2. A quantia de 5.000,00 €, acrescida de juros de mora, a título de danos não patrimoniais, desde em que se verificou a operação não autorizada, até integral e efetivo pagamento. 3.(…)”

4.2. Para tanto alegaram o seguinte:

a) Os AA celebram com a R. um Contrato de Abertura de Conta Bancária, com o número …;

b) Associada a essa conta bancária, os AA, em Fevereiro de 2022, tinham um depósito bancário, conta a prazo, no valor de 41.000,00 €.

c) Esse valor foi obtido pelos AA junto da R, em Agosto de 2021, mediante a concessão de um empréstimo bancário, e que estava reservado para ser utilizado no futuro próximo.

d) No dia 24/02/2022, pelas 11,19 h, a A. mulher recebeu uma mensagem no seu telemóvel, alegadamente proveniente do CA online, na qual foi solicitado alteração do limite de transferências para a quantia de 39.000,00 €.

e) Nesse mesmo dia pelas 11.24 h, a A. mulher, sem perceber o que tinha acontecido, ou seja, o motivo pelo qual recebeu a referida mensagem no seu telemóvel, recebeu uma chamada telefónica, de uma pessoa que se identificou como sendo do Departamento de Risco e Segurança da R, tendo-lhe perguntado se estaria a efectuar uma transferência na quantia de 39.000,00 €, tendo a A mulher respondido de forma clara e manifesta que não.

f) Essa pessoa que contactou a A. mulher, via telefone, explicou à mesma, que alguém estaria a tentar efectuar a referida transferência bancária, mais informando que a mesma teria de ser imediatamente cancelada, caso contrário o dinheiro seria transferido, tendo-lhe solicitado a sua colaboração no sentido de enviar os códigos que lhe haviam sido transmitidos via SMS.

g) A A. mulher, porque acreditou na pessoa que lhe telefonou e que se identificou como sendo do Departamento de Risco e Segurança do CA, a fim de impedir a execução da referida transferência, que lhe referiu corresponder à quantia exata de 38.954,64 €, acedeu em enviar-lhe os tais códigos que recebeu no seu telefone via SMS.

h) Essa mesma pessoa revelou ter total conhecimento de todos os dados e elementos pessoais dos AA, nº de conta bancária, nomes, telefones morada, o que lhes gerou convencimento de que era efectivamente funcionária da R.

i) Tais dados e elementos pessoais, foram fornecidos à referida pessoa sem qualquer autorização dos mesmos, mas sim diretamente através da Ré.

j) Sem que em momento algum os AA o tenham autorizado, no dia 24.2.2022 foi executada pela Ré a transferência do valor de 38.954,64 € da conta dos AA. que dele ficaram imediatamente privados;

k) Os AA. nunca facultaram a terceiros as suas credenciais do CA online, incluindo o número de adesão, chave multicanal, a palavra passe, e o código de autorização para a realização da dita transferência, que foi enviado para o seu telemóvel em momento prévio à realização, com indicação expressa da conta a debitar do Banco creditar e do montante a transferir;

l) Após o sucedido, de imediato, por escrito, os AA apresentaram uma reclamação junto da R, solicitando a devolução do valor da transferência, em Março de 2022;

m) Em resposta à reclamação apresentada pelos AA, em Maio de 2022, vem a R responder, com uma carta modelo, declinando qualquer responsabilidade pelo sucedido;

n) Em consequência da posição que a R adoptou, e que consta da carta que foi enviada aos AA, estes solicitaram a intervenção do seu advogado, o qual, mediante carta enviada em 13.07.2022 para a R, transmitiu a posição dos AA, e solicitou, novamente, que a mesma procedesse à devolução do valor transferido, no âmbito da execução da burla informática;

o) Em resposta a esta carta, via e-mail datado de 27.07.2022, os advogados da R, responderam, informando novamente que a R declinava qualquer responsabilidade sobre o sucedido.

p) Em consequência do sucedido – transferência fraudulenta, os AA têm vindo a passar por uma situação de grave e contínuo desequilíbrio emocional, com sintomas de ansiedade, angústia, nervosismo, o que foi agravado pelo facto da R, de forma totalmente desinteressada, nada ter feito para resolver a situação, tendo declinado a sua responsabilidade com o envio de uma simples carta modelo.

q) Sem o valor de que ficaram privados, os AA sentem-se desprotegidos quanto a uma necessidade de urgência no futuro, o que, veio agravar ainda mais o seu estado de ansiedade e angústia;

r) Foi uma falha no sistema de proteção de acesso a conta bancária dos AA. por terceiros, que possibilitou que os mesmos estivessem munidos de todos os elementos da conta bancária dos AA, nomeadamente identificação dos mesmos, telemóvel associado a conta, saldo bancário, o que permitiu que a tal pessoa que se fez passar por funcionária da R, se identificasse como tal, identificasse os AA, identificasse a sua conta bancária, identificasse o saldo bancário que os mesmos tinham e tivesse acesso ao seu telemóvel, o que criou nos AA, a total convicção e credibilidade, de que estariam a falar efectivamente com uma pessoa do Banco.

4.3 A Ré foi citada por carta registada com aviso de recepção em 26.10.2022 e não contestou.

4.4. Em 11.1.2023 foi proferido o seguinte despacho: “Citação de 2022.10.24, ref. e expediente postal de 2022.11.03, ref.2339889:

Cumpra o disposto no art.º 567.º, n.º 2, do CPC.”.

4.5. De tal despacho foi notificado o ilustre mandatário dos AA por ofício expedido em 12.1.2023;

4.6. Mediante requerimento de 22.3.2023, a Ré fez juntar aos autos procuração a favor de ilustre mandatária.

II. FUNDAMENTAÇÃO

5. Do mérito do recurso

5.1. Da omissão de despacho interlocutório a considerar confessados os factos articulados pelos Autores em consequência da revelia absoluta da Ré.

Entende a apelante que a omissão de tal despacho configura uma nulidade processual nos termos do disposto no art.º 195º, nº1 do CPC.

Desde já se diga não haver dúvidas que estamos em presença de uma situação de revelia (absoluta) operante: a Ré foi pessoalmente citada e não contestou, nem juntou procuração a mandatário judicial no prazo da contestação - cfr. art.º 567º, nº1 do CPC - sendo que não ocorre nenhuma das situações específicas enunciadas nas diversas alíneas do art.º 568 do mesmo código.

Por conseguinte, tal revelia operante importa a confissão dos factos articulados pelo autor como determinado por aquele primeiro preceito: “consideram-se confessados os factos articulados pelo autor”.

Como se vê da letra da lei, não se prevê a prolação de qualquer despacho interlocutório pelo juiz a considerar confessados os factos articulados pelo autor, o que bem revela não ser indispensável que o juiz o profira e, por consequência, que tenha sido omitido um acto ou uma formalidade que a lei prescreva.

Aliás, a este propósito pronunciou-se Alberto dos Reis [1]nos seguintes termos: “Pode pôr-se esta dúvida: será indispensável que o juiz perante a ocorrência descrita no art.º 488º, lavre despacho em que julgue confessados os factos ou bastará que mande observar os trâmites processuais fixados no artigo, isto é, mande facultar aos advogados o exame do processo para alegarem por escrito?

Parece-nos aceitável qualquer das soluções mas julgamos preferível a primeira.

Se o juiz se limita a mandar seguir os termos previstos no art.º 488º significa manifestamente que tem por verificados os pressupostos de que depende a aplicação da cominação e se reserva para, na sentença final, julgar confessados os factos articulados pelo autor.”.

A utilidade da prolação do despacho interlocutório que explicitamente impõe a cominação seria, segundo o mesmo autor, a possibilidade de o réu contra ele reagir de imediato por meio de agravo caso achasse que não era caso de a aplicar.

Ora, no regime recursório actual inexiste sequer essa possibilidade já que tal despacho não comporta recurso autónomo e só seria passível de ser impugnado no recurso que viesse a ser interposto da sentença (cfr. art.º644º do CPC).

Por conseguinte, no NCPC para além de continuar a não haver obrigatoriedade de o proferir, nem sequer há utilidade em fazê-lo.

Termos em que improcede a suscitada nulidade pois, como dissemos, não se pode considerar que tenha sido omitido um acto ou uma formalidade que a lei prescreva.

5.2. Da (des)necessidade de notificação da ilustre mandatária constituída pela Ré para os efeitos do disposto no artigo 567.º n.º 2 do C.P.C. antes da prolação da sentença.

Como se vê da tramitação que enunciámos, só em 22.3.2023 é que a Ré fez juntar aos autos procuração a favor de ilustre mandatária, ou seja, quando há muito se mostrava ultrapassada a fase da discussão.

Com efeito, a mesma inicia-se com a notificação ao mandatário do autor para produzir alegações no prazo de 10 dias, o que, no caso, ocorreu em 12.1.2023 e terminou em 26.1.2023.

Dado que a revelia absoluta supõe a ausência de constituição de mandatário judicial no decurso do prazo da contestação, não assiste ao réu, que esteja nessa situação, o direito de produzir alegações, não carecendo, por isso, de ser notificado para esse efeito, como resulta do disposto no art.º 249º, nº3 do CPC.[2]

Por conseguinte, nenhuma nulidade foi, também neste conspecto, cometida.

5.3. Reapreciação jurídica da causa: Da (in) existência da integralidade dos requisitos de responsabilização da Ré- entidade bancária – perante os seus clientes, ora Autores, à luz do Regime Jurídico dos Serviços de Pagamento (actualmente constante do DL n.º 91/2018, de 12 de Novembro).

Argumenta a apelante que existiu, por parte da autora, uma violação de um dever de cuidado que legal e contratualmente lhe estava imposto, pois o comportamento da autora integra o conceito de “negligência grave” pressuposto no artigo 72.º n.º 3 do DL 242/2012, de 7 de Novembro.

Cremos que não lhe assiste a menor razão perante os factos que ficaram provados e que são afinal os que reproduzimos supra no ponto 4.2.

O que tal quadro bem evidencia é que foi efectuada uma transferência de cerca de 40 mil euros de uma conta bancária aberta na Ré -sem consentimento dos autores- através da plataforma electrónica que a instituição de crédito em causa disponibiliza aos seus clientes e que lhes permite efectuar operações bancárias através da internet, designadamente pagamentos e transferências.

Tal serviço disponibilizado pela Ré, denominado de homebanking, pressupõe, naturalmente que a mesma dote o seu sistema informático de mecanismos de segurança que impeçam a intrusão de terceiros nos seus registos e sobretudo vedem o acesso aos dados pessoais dos seus clientes.

Ora, resultou provado que foi a ocorrência de uma falha no sistema de protecção de acesso a conta bancária dos AA. por terceiros, que possibilitou que os mesmos estivessem munidos de todos os elementos da conta bancária dos AA, nomeadamente identificação dos mesmos, telemóvel associado a conta, saldo bancário, o que permitiu que tal pessoa que se fez passar por funcionária da R, se identificasse como tal, identificasse os AA, identificasse a sua conta bancária, identificasse o saldo bancário que os mesmos tinham e tivesse acesso ao seu telemóvel, o que criou nos AA, a total convicção e credibilidade, de que estariam a falar efectivamente com uma pessoa do Banco (cfr. supra 4.2., alínea r)).

Desde já importa esclarecer que o diploma citado pela apelante já não estava em vigor à data a execução da transferência em causa por ter sido revogado pelo artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 91/2018, de 12 de Novembro, que aprovou o novo Regime Jurídico dos Serviços de Pagamento e da Moeda Electrónica, transpondo a Directiva (UE) 2015/2366.

Para o nosso caso relevam as normas do capítulo III do mesmo diploma que rege sobre os “Direitos e obrigações relativamente à prestação e utilização de serviços de pagamento”.

Nos termos do nº1 do art.º113º (Prova de autenticação e execução da operação de pagamento) “ Caso um utilizador de serviços de pagamento negue ter autorizado uma operação de pagamento executada, ou alegue que a operação não foi corretamente efetuada, incumbe ao respetivo prestador do serviço de pagamento fornecer prova de que a operação de pagamento foi autenticada, devidamente registada e contabilizada e que não foi afetada por avaria técnica ou qualquer outra deficiência do serviço prestado pelo prestador de serviços de pagamento.”.

Recaindo sobre a instituição de crédito, como do mesmo preceito decorre, o ónus da prova de que o cliente consentiu na execução da transferência em causa, a factualidade provada é claramente reveladora de que tal prova não foi feita no caso em apreço, resultando demonstrado precisamente o contrário, i.e., que a transferência não foi efectivamente autorizada, como se viu.

Mas há mais: dentre as obrigações do prestador de serviços de pagamento associadas aos instrumentos de pagamento[3], avulta precisamente a de assegurar que as credenciais de segurança personalizadas do instrumento de pagamento só sejam acessíveis ao utilizador de serviços de pagamento que tenha direito a utilizar o referido instrumento ( cfr. art.º 111º, nº1 a) ).

Como se viu, tal obrigação foi grosseiramente violada pela instituição bancária pois, como resultou provado, a pessoa que se fez passar por funcionário da Ré revelou ter total conhecimento de todos os dados e elementos pessoais dos AA, nº de conta bancária, nomes, telefones morada, o que lhes gerou convencimento de que o era efectivamente ( cfr. supra 4.2. h) , sendo que tais dados e elementos pessoais, foram fornecidos à referida pessoa sem qualquer autorização dos mesmos, mas sim diretamente através da Ré ( cfr. supra 4.2.i)).

Em regra, e nos termos do artigo 114º, o prestador de serviços de pagamento do ordenante deve reembolsá-lo imediatamente do montante da operação de pagamento não autorizada e repor a conta de pagamento debitada na situação em que estaria se a operação de pagamento não autorizada não tivesse sido executada. Caso o reembolso não ocorra imediatamente, o utilizador do serviço tem direito ao pagamento de juros moratórios, contados dia a dia, desde a data em que o ordenante haja negado ter autorizado a operação de pagamento executada até à data do reembolso efectivo, calculados à taxa legal, acrescida de 10 pontos percentuais, podendo ainda ter direito a uma indemnização.

Obrigação que, como se viu, a Ré também não cumpriu o que determinou a propositura da presente acção por parte dos Autores com vista ao seu ressarcimento e cujo desfecho não poderia ter sido outro que não o decidido na sentença recorrida.

De todo o modo, cremos que caso não fosse tutelado pelo citado diploma, o apuramento da responsabilidade da mesma instituição de crédito poderia, também, ser feita à luz do contrato de depósito bancário, ao qual efectivamente se aplica, sem mais considerandos, a teoria do risco (por força do disposto no art.º 796º/1 do Cód. Civil, segundo o qual nos contratos que importem a transferência de domínio sobre certa coisa ou que constituam ou transfiram um direito real sobre ela, o perecimento ou deterioração de uma coisa por causa não imputável ao alienante corre por conta do adquirente).

Isto é: Por força do disposto no art.º 796º do Cód. Civil sempre estaria a Ré adstrita a restituir aos Autores a quantia que sem autorização dos mesmos foi levantada da sua conta bancária.

Com efeito, ficou estabelecida a existência entre Autores e Ré de um contrato de depósito (bancário) que é o contrato pelo qual uma pessoa entrega uma quantia pecuniária a um banco, o qual dela poderá livremente dispor, obrigando-se a restituí-la, mediante solicitação, e de acordo com as condições estabelecidas [4], sendo que o artº 796º do Cód.Civil se aplica a todos os contratos reais ( ad constitutionem ) como o depósito em que o depositante perde o domínio sobre o bem – artº 1185ºdo Cód.Civil.

Nessa conformidade, a Instituição responde pelos danos decorrentes do perecimento do dinheiro que lhe foi entregue, visto que a transferência da propriedade acarreta a transferência dos riscos inerentes à mesma, ficando o depositante na categoria de credor de determinado montante[5].

Por conseguinte, e tendo a Ré executado a transferência do valor de 38.954,64 € da conta dos AA., que dele ficaram imediatamente privados, sem autorização dos mesmos, deve suportar o risco de os ter transferido indevidamente.

Como bem se explica no douto Acórdão da Relação de Guimarães de 4.10.2011[6]: “Importa, porém, ir um pouco mais longe, indagando das razões da disciplina daquele artigo 796º.

Consagra-se nele o princípio res perit domino, segundo o qual, potenciando-se a relação de ingerência existente entre a coisa e aquele que sobre ela exerce poderes de facto, se faz impender sobre este a responsabilidade pelo perecimento ou deterioração dessa coisa. Acontece que, em ordenamentos jurídicos como o nosso, onde se adoptou o, pela primeira vez consagrado no Código de Napoleão, princípio da consensualidade (artigo 408º, nº 1, do Código Civil - «a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato»), tornou-se especialmente difícil lidar com aqueloutro princípio, na medida em que o titular do direito real passou a não ser necessariamente aquele que exerce tais poderes de facto. Daí uma certa ambiguidade do nº 1 do artigo 796º do Código Civil ao enunciar, como factor de transmissão do risco de perecimento da coisa, em alternativa à transferência do direito real sobre a mesma, uma anómala “transferência do domínio”. Como se o dominus não fosse o titular do direito. Ou, ainda mais impressivamente, nos nºs 2 e 3 do mesmo preceito, ao excepcionar casos em que a coisa tenha continuado em poder do alienante. É esse o alcance que se colhe da afirmação de Miguel Nuno Pedrosa Machado, Sobre Cláusulas Contratuais e Conceito de Risco, BFDUL, págs. 146 e 147, de que “o artigo 796º do Código Civil está redigido às avessas: ele não se mostraria sequer necessário se o princípio geral que se destinasse a afirmar fosse o da aplicação da regra res suo domino perit, porque isso já resultava da eficácia real dos contratos; a sua necessidade e a sua utilidade provêm daquilo que, na letra da lei, surge formalmente como excepção, e que é a introdução no nosso ordenamento do segundo sistema de distribuição do risco contratual – o da transferência deste de acordo com a detenção da coisa”. (…) Como é consabido e faz parte dos princípios gerais da responsabilidade civil, o risco exclui a culpa. E, na verdade, in casu, o risco que se transfere para o adquirente nada tem a ver com a culpa, mas antes com o domínio sobre a coisa. Daí que, coerentemente, se excepcionem os casos em que a coisa continuou em poder do alienante. Desse modo, será desajustado pretender excluir a responsabilidade que desse risco decorre afastando a culpa, nos termos do preceituado no artigo 799º. Efectivamente, não é possível elidir o que não é sequer pressuposto.

Aliás, muito significativamente, embora estejam integrados ambos na secção do Código Civil relativa ao não cumprimento das obrigações, o artigo 796º figura na subsecção relativa à “impossibilidade do cumprimento e mora não imputáveis ao devedor” e o artigo 799º na subsecção que concerne à “falta de cumprimento e mora imputáveis ao devedor.. Extraindo as necessárias consequências do que supra se expende, forçoso será concluir que a maior ou menor diligência com que os funcionários do banco réu actuaram na efectivação das transferências dos montantes que saíram da conta dos autores é questão irrelevante para a solução do presente dissídio. Como bem se compreende, só se a perda do montante depositado fosse imputável aos autores, como previsto na parte final do nº 1 do artigo 796º, é que tal risco deixaria de correr por conta do banco réu que, como depositário, sobre ele exercia com carácter de exclusividade poderes de domínio. Sendo que, fossem quais fossem os cuidados que o banco tomasse para tentar evitar tal risco, nunca poderiam eles consubstanciar causa de exclusão da sua responsabilidade perante os depositantes. “.

Em suma: em qualquer dos regimes apreciados, a transferência de fundos pressupõe uma ordem do titular da conta de depósito, pelo que, não demonstrado este pressuposto, a responsabilidade recai sobre o banqueiro, como na sentença bem se decidiu.

III. DECISÃO

Por todo o exposto, se acorda em julgar a apelação improcedente e em manter a sentença recorrida.

Custas pela apelante.

Évora, 14 de Setembro de 2023

Maria João Sousa e Faro (relatora)

Maria Adelaide Domingos

Maria da Graça Araújo

______________________________________

[1] IN CPC anotado, vol.III, pag.10.

[2] Vide também neste sentido, A.Geraldes, Paulo Pimenta e L.F.Sousa in CPC, anotado, vo.I,3ªed.pag.567.

[3] I.e. um dispositivo personalizado ou conjunto de procedimentos acordados entre o utilizador e o prestador de serviços de pagamento e a que o utilizador de serviços de pagamento recorra para emitir uma ordem de pagamento ( cfr. art.º 2º) .

[4] Assim, Paula Ponces Camanho in Do Contrato de Depósito Bancário , pag. 93.

[5] Cfr.Fuzeta da Ponte in “Da Problemática da Responsabilidade dos Bancos decorrente do Pagamento de Cheques com Assinaturas Falsificadas”, pag. 72 e 73..

[6] Relatado pelo Desembargador Araújo de Barros e consultável na Base de Dados do IGFEJ.