Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
21/16.1ZRFAR.E1
Relator: LAURA GOULART MAURÍCIO
Descritores: CRIME
ANGARIAÇÃO DE MÃO DE OBRA ILEGAL
Data do Acordão: 11/21/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I. O que se prevê e pune no tipo legal de crime de angariação de mão de obra ilegal é a conduta de quem, com intenção de obter, para si ou para terceiro, enriquecimento ilegítimo, aliciar ou angariar com o objetivo de introduzir no mercado de trabalho cidadãos estrangeiros que não sejam titulares de autorização de residência ou visto que habilite ao exercício de uma atividade profissional.
II. O âmbito da norma pretende, assim, prevenir a conduta de quem intente lucrar economicamente por via do aliciamento de pessoas em situação irregular para desempenharem uma atividade laboral.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

Relatório
No Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo Central Criminal ..., Juiz ..., no âmbito dos autos com o NUIPC 21/16...., foram as arguidas AA, BB e CC submetidas a julgamento em Processo Comum e Tribunal Coletivo.
Após audiência de discussão e julgamento, o Tribunal, por Acórdão de 15 de setembro de 2022, decidiu:
- absolver a arguida AA da acusação da prática de sete crimes de auxílio à imigração ilegal, p. e p. pelo art. 183º n.º1 e 2 da Lei 23/2007, de 04.07, e de sete crimes de angariação de mão de obra ilegal, p. e p. pelo art. 185º n.º1 e 2 da Lei 23/2007, de 04.07;
- absolver a arguida BB da acusação da prática de sete crimes de auxílio à imigração ilegal, p. e p. pelo art. 183º n.º1 e 2 da Lei 23/2007, de 04.07;
- absolver a arguida CC da acusação da prática de sete crimes de auxílio à imigração ilegal, p. e p. pelo art. 183º n.º1 e 2 da Lei 23/2007, de 04.07, sem prejuízo da imputação de um deles sob a forma de participação;
- absolver a arguida BB da acusação da prática de quatro crimes de angariação de mão de obra ilegal, p. e p. pelo art. 185º n.º1 e 2 da Lei 23/2007, de 04.07;
- absolver a arguida CC da acusação da prática de cinco crimes de angariação de mão de obra ilegal, p. e p. pelo art. 185º n.º1 e 2 da Lei 23/2007, de 04.07;
- absolver a arguida BB da acusação da prática de três crimes de angariação de mão de obra ilegal mas apenas por referência ao crime qualificado nos termos do art. 185º n.º2 da Lei 23/2007, de 04.07, e sem prejuízo da sua imputação na forma simples;
- absolver a arguida CC da acusação da prática de dois crimes de angariação de mão de obra ilegal mas apenas por referência ao crime qualificado nos termos do art. 185º n.º2 da Lei 23/2007, de 04.07, e sem prejuízo da sua imputação na sua forma simples;
- condenar a arguida BB pela prática de:
i. um crime de angariação de mão de obra ilegal, p. e p. pelo art. 185º n.º1 da Lei 23/2007, de 04.07, na pena de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão;
ii. um crime de angariação de mão de obra ilegal, p. e p. pelo art. 185º n.º1 da Lei 23/2007, de 04.07, na pena de 2 (dois) anos de prisão;
iii. um crime de angariação de mão de obra ilegal, p. e p. pelo art. 185º n.º1 da Lei 23/2007, de 04.07, na pena de 2 (dois) anos de prisão;
- condenar, em cúmulo jurídico das penas singulares ora aplicadas, a arguida BB na pena conjunta de 3 (três) anos e 9 (nove) meses de prisão, suspensa na sua execução por idêntico período;
- condenar a arguida CC pela prática de:
i. um crime de angariação de mão de obra ilegal, p. e p. pelo art. 185º n.º1 da Lei 23/2007, de 04.07, na pena de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão;
ii. um crime de angariação de mão de obra ilegal, p. e p. pelo art. 185º n.º1 da Lei 23/2007, de 04.07, na pena de 1 (um) ano e 5 (cinco) meses de prisão;
iii. um crime de auxílio à imigração ilegal, como cúmplice, p. e p. pelo art. 183º n.º2 da Lei 23/2007, de 04.07, e pelo art. 27º do CP, na pena de 6 (seis) meses de prisão;
- condenar, em cúmulo jurídico das penas singulares ora aplicadas, a arguida CC na pena conjunta de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão, suspensa na sua execução por idêntico período.
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Inconformada com a decisão, a arguida BB interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:
1. O presente Recurso incide sobre a Sentença proferida nos autos à margem identificados, que condenou a Arguida pela prática, em autoria material, de um crime de angariação de mão de obra ilegal, na pena de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão; um crime de angariação de mão de obra ilegal, na pena de 2 (dois) anos de prisão; e um crime de angariação de mão de obra ilegal, na pena de 2 (dois) anos de prisão, previstos e puníveis pelo artigo 185º n.º 1 da Lei 23/2007, de 04.07, das quais resultaram, em cúmulo jurídico das penas singulares aplicadas, na pena conjunta de 3 (três) anos e 9 (nove) meses de prisão, suspensa na sua execução por idêntico período.
2. E versa sobre matéria de facto e de Direito, sendo que, a Arguida discorda da decisão proferida quanto à matéria de facto, assim como não se conforma com a sua condenação, e, ainda que a mesma devesse ser condenada, entende que a determinação da medida da pena por parte do Tribunal de 1º Instância deveria ser outra.
3. A Recorrente IMPUGNA A MATÉRIA DE FACTO vertida nos pontos 3), 5), 8), 21), 22) e 23) da decisão sobre os Factos Provados, que se encontram nas páginas 2. a 6. do douto Acórdão, os quais devem ser dados como não provados pelo Tribunal ad quem.
4. Isto porque, decidiu incorrectamente o Tribunal recorrido ao dar como provados os factos descritos nos pontos 3), 5), tendo fundamentado aquela decisão no depoimento da testemunha DD, a qual, com a animosidade que se apresentou para com a arguida BB, deveria merecer um especial cuidado e ponderação por parte do Tribunal recorrido, no momento em conferir ou não credibilidade ao seu depoimento.
5. De facto, esta Testemunha apresentou-se com um discurso agressivo, imbuído de espírito de “vingança” para com a Arguida ora Recorrente pelo que não se esperaria que a mesma dissesse exactamente o que sabe e o que observou, mas antes que a mesma prestasse um depoimento claramente intencionado no sentido de perturbar, ou prejudicar, a Recorrente.
6. Além de que, o seu depoimento situou-se num período temporal diferente daquele que está em discussão nos autos - disse ter trabalhado para a empresa D.... entre Janeiro a Junho de 2016 - e nem sequer soube identificar qualquer dos trabalhadores estrangeiros mencionados neste processo – nenhum dos nomes que referiu coincidiu com os dos cidadãos identificados nos autos
7. De modo que, ainda que se conferisse credibilidade absoluta àquele depoimento (como o Tribunal a quo decidiu conferir), o mesmo apenas poderia relevar para o período em que a Testemunha afirmou estar associada à empresa - Janeiro a Junho de 2016 -, e não para o período que se encontra mencionado na Acusação, e agora plasmado nos pontos dados como provados que constam do Acórdão - Julho a Outubro de 2016.
8. Quanto ao outro fundamento em que o Tribunal recorrido alicerçou a sua decisão quanto àquela matéria de facto dada como provada, nomeadamente, as declarações para memória futura, esta não deveriam ser valoradas, para demonstrar ou não aquela factualidade.
9. Isto porque, é compreensível que aquelas testemunhas, apenas ouvidas em declarações para memória futura, não reconheçam a outra Arguida, AA, porque nunca estiveram presencialmente com ela.
10. E aceita-se que os mesmos tenham considerado a Recorrente como a “patroa” da empresa, porque foi esta que se relacionou com eles (embora através da Arguida CC, que procedia às traduções), foi esta que lhes transmitiu o valor dos salários, que os transportava, e a quem contactavam, caso fosse necessário tratar de alguma situação.
11. A circunstância de aquelas testemunhas se relacionarem com a Arguida ora Recorrente e de esta lhes dar instruções de trabalho, não leva a concluir, com a certeza necessária que o processo penal exige, que a mesma seja gerente de facto da sociedade (factualidade esta que se revela preponderante no momento da aplicação do Direito aos factos).
12. Note-se que, a sociedade D... dedicava-se à disponibilização de trabalhadores (pág. 27 do douto Acórdão), tinha já alguma dimensão (a sede era em ... e angariava trabalho por todo o país, inclusive ...), e já havia trabalhadores estrangeiros associados à sociedade inscritos na segurança social desde Março de 2016 (pág. 21 do douto Acórdão).
13. Ou seja, de uma sociedade com estas características não é razoável concluir que o “patrão” lidasse directamente com os trabalhadores, e que ocupassse o seu tempo a angariar e a transportar trabalhadores pelo país (antes se ocupando com tarefas de gestão, contactos com clientes, planeamento, entre outros).
14. Ademais, não subsiste qualquer prova documental da responsabilidade (ou co-responsabilidade) pela gerência daquela sociedade por parte da Recorrente; os contratos de trabalho, inscrições na segurança social, entre outros documentos que constam dos autos, não estão assinados pela Recorrente.
15. Era a Arguida AA quem, de facto e de direito, geria todos os negócios societários e decidia em que termos eram afetadas as receitas às despesas e encargos da sociedade.
16. Aliás, foi dado como facto provado que esta arguida é sócia e gerente da mencionada sociedade (ponto 1) dos factos provados).
17. Já a arguida ora Recorrente efectuava a gestão de recursos humanos, conforme confessou na Contestação por si apresentada.
Fazia, portanto, parte do núcleo das suas funções, o acompanhamento de todas as necessidades de alimentação e habitação dos trabalhadores contratados, e, bem assim, a supervisão do respetivo trabalho, mais tais actos eram exercidos à ordem e sob instruções prévias da gerente da sociedade.
18. Em suma, nunca a arguida ora Recorrente praticou qualquer acto de que resultasse o exercício efetivo de funções de gerente da D... – LDA., nem interferiu no processo decisório, designadamente no que concerne à contratação de trabalhadores em situação ilegal.
19. Cumpre ainda esclarecer esta Tribunal que a eventual gerência de facto da Recorrente foi já apreciada pelo Juízo Local Criminal ... - Juiz ..., no Processo-crime com o nº 124/18.... (acessível por este Tribunal, pelo que não se junta ao presente Recurso, atento o Príncipio da economia processual).
20. De facto, resulta da douta Sentença proferida naquele processo, transitada em julgado, que a Recorrente não foi gerente de facto da sociedade D... – LDA., desde a constituição da sociedade.
21. Ora, se a Recorrente não foi considerada gerente de facto, não se concebe como pode agora ser decidido que era esta “quem definia as contratações de funcionários da D..., geria os dinheiros da sociedade, dava ordens e instruções sobre o dia-a-dia da sociedade e tomava as decisões dentro da sociedade.”, como o Tribunal recorrido entendeu julgar.
22. Portanto, inexistem dúvidas de que a arguida ora Recorrente nunca exerceu funções de gerente de facto, embora tenha sido funcionária da sociedade em causa.
23. Quanto ao que a outra Arguida declarou quanto a quem incumbia a gerência, e que também se encontra descrita na fundamentação plasmada na decisão sobre a matéria de facto, considera-se que a mesma não deve merecer relevância porque foi contraditória entre si, como aliás foi reconhecido no Acórdão (pág. 18 do douto Acórdão)
24. Assim, o Tribunal a quo decidiu indevidamente julgar como provada a factualidade descrita nos pontos 3) e 5) dos Factos Provados
25. De igual modo, foi indevidamente decidido pelo Tribunal o facto descrito nos pontos 8) e 21) dos Factos Provados, quanto a “de acordo com instruções da arguida BB (sem as quais não teria agido),” e “a arguida CC, de acordo com indicação da arguida BB”, respectivamente.
26. Salvo melhor entendimento, aquela matéria é conclusiva e não deveria constar da decisão quanto à matéria de facto, ou seja, saber se a Arguida CC actuaria ou não da mesma forma, com ou sem instruções da outra Arguida, ora Recorrente, é um resultado que pode ser alcançado a partir da factualidade dada como provada ou não provada, e não matéria factual per si.
27. Até porque, como acima transcrito, esta Arguida afirmou que a arguida AA seria a patroa.
28. Assim, o Tribunal a quo decidiu indevidamente julgar como provada a factualidade descrita nos pontos 8) e 21) dos Factos Provados.
29. Também não se encontra devidamente decidido os factos descritos nos pontos 22) e 23) dos Factos Provados, nas seguintes partes:
“querendo com isso que fossem pagos salários menores, ou não fossem pagos integralmente e proporcionar condições de trabalho, designadamente de horário de trabalho e alojamento, que um trabalhador com situação regularizada não aceitaria.” e “fazendo-o a arguida BB em proveito próprio e com intenção lucrativa, e sabendo a arguida CC que a arguida BB actuava voluntária e intencionalmente nos moldes descritos e com intenção lucrativa e que a auxiliava a praticar os factos descritos.”, respectivamente.
30. Quanto a estes o Tribunal a quo fundamentou a sua decisão ”nas regras da experiencia comum” e nas declarações prestadas para memória futura.
31. Ora, parece-nos insuficiente, e desadequado, o Sr. Julgador refugiar-se nas regras da experiência comum para daí inferir que a Recorrente visava uma finalidade economicamente proveitosa para si própria.
32. Mais uma vez, o Sr. Julgador parte de uma conclusão errada “a sociedade era, na prática, detida e usada pela arguida BB, pelo que os proventos que a sociedade obtivesse eram ainda proventos que esta arguida controlava (acendendo a eles e usando-os, deles beneficiando)” (pág. 25 do douto Acórdão), para a partir de tal conclusão dar como provado que a Recorrente agia em proveito próprio e com intenção lucrativa.
33. Tal como acima invocado, a Recorrente não era gerente da sociedade, não definia ou decidia ou destinos que a sociedade prosseguia.
34. Era sim a responsável pelos recursos humanos, conforme a mesma declarou em Audiência de Julgamento, o que não foi infirmado pela demais prova produzida nos autos.
35. Aliás, tal conclusão é a que melhor se coaduna com a factualidade dada como provada no ponto 24. dos factos provados
36. O que, no nosso entendimento, decorre das regras da experiência comum é que, em muitas empresas, a selecção e a relação diária com os trabalhadores, são as mais das vezes efectuadas, não pelo gerente, mas por outros trabalhadores, com experiência ou formação em recursos humanos, em que são delegadas pelo gerente precisamente essas funções
37. Poderia, quanto muito, vir a ser considerada um “braço direito” da gerência, o responsável pelo serviço “no terreno”, mas tal não se torna suficiente para conduzir às conclusões do Tribunal a quo, até porque, a testemunha EE (Advogada que prestava assessoria jurídica em matéria de estrangeiros à D....), se é certo que apenas prestou assessoria a partir de 2017, reconheceu a Arguida AA como gerente, e a Arguida BB ora Recorrente como funcionária.
38. O mesmo emergiu do depoimento da testemunha Ana lsabel Mesquita Cardoso, que conhece as Arguidas por com elas ter trabalhado a partir de 2017, e que confirmou que a AA era a gerente da empresa e a BB assumia funções de trabalhadora.
39. Se fosse efectivamente a Recorrente a “dona” da sociedade, em 2016, não se descortina qual a razão para, no ano seguinte, deixar de o ser, pois, em 2017, conforme resulta do depoimento daquelas duas testemunhas, nesse ano e posteriormente reconheciam como gerente não a Recorrente mas sim a Arguida AA.
40. Assim, não deveria ser dado como provado que foi a Recorrente que quis que fossem pagos salários menores, ou não fossem pagos integralmente, ou que quis proporcionar condições de trabalho que um trabalhador com situação regularizada não aceitaria.
41. Nem deveria ser dado como provado que foi a Recorrente que quis beneficiar do trabalho dos cidadãos Estrangeiros, em proveito próprio e com intenção lucrativa.
42. Pelo que, o Tribunal a quo decidiu indevidamente julgar como provada a factualidade descrita nos pontos 22) e 23) dos Factos Provados.
43. Assim, em síntese, deve a factualidade descrita nos pontos 3), 5), 8), 21) 22) e 23) dos Factos Provados, merecer decisão diversa por parte deste Tribunal, e, consequentemente, a solução jurídica aplicável aos outros ser distinta daquela proferida pelo Tribunal recorrido.
44. A Recorrente IMPUGNA A MATÉRIA DE DIREITO, designadamente, a IMPUTAÇÃO DE TRÊS CRIMES P. E P. PELO Nº 2 DO ARTIGO 183º DA LEI 23/2007, DE 04.07, pois, por força da alteração da matéria de facto, nos termos supra invocados, afigura-se uma decisão jurídica distinta aquela que foi proferida pelo Tribunal da 1º Instância.
45. Deverá ser afastada a aplicação do disposto no nº 2 do artigo 183º do mesmo diploma legal, uma vez que, quanto à Recorrente, não se encontra preenchido o elemento subjectivo especial do tipo, que é a existência de uma intenção lucrativa do agente.
46. A Recorrente, como funcionária da sociedade para a qual os trabalhadores identificados nos autos foram contratados, não retirou qualquer proveito próprio daquelas contratações, embora a mesma tenha intervindo no processo (mas não na decisão) das contratações.
47. Assim, ainda que tivesse praticados os factos descritos na Acusação, a Arguida não retirou qualquer proveito económico dos mesmos.
48. Como a própria Recorrente declarou em audiência de julgamento, e nenhuma prova produzida afastou ou contradisse o que resultou daquelas declarações, à Recorrente não foi atribuído nenhum aumento salarial ou qualquer outro benefício, por ter contactado e ou convencido os cidadãos estrangeiros identificados nos autos a trabalhar para a sociedade.
49. Nenhuma prova foi produzida quanto à existência daquele lucro, ainda que entendido num sentido comum e amplo, como equivalendo a qualquer vantagem material ou intelectual, ou quanto à intenção de a Recorrente retirar algum proveito daquela actuação.
50. Realça-se que a Recorrente era irmã da gerente e o provável é que não estivesse contratada a termo; não se alegou ou demonstrou que a mesma ganhava “por objectivos” nem nada indicia que aquela actuação teve outros fins que não fossem o da mera prestação do trabalho (progressão na carreira, prémio, aumento do dia de férias, entre outros).
51. Assim, entende a Recorrente que não lhe deveriam ser imputados três crimes p. e p. pelo nº 2 do artigo 183º da Lei 23/2007, de 04.07, pelo que deverá ser revogado o douto Acórdão proferido pelo Tribunal de 1º Instância.
52. Ademais, a Recorrente IMPUGNA A MATÉRIA DE DIREITO, designadamente, a IMPUTAÇÃO DE TRÊS CRIMES P. E P. PELO Nº 1 DO ARTIGO 185º DA LEI 23/2007, DE 04.07.
53. Deverá ser afastada a aplicação do disposto no nº 1 do artigo 185º do mesmo diploma legal, uma vez que, como já se adiantou, não houve qualquer intenção lucrativa para a própria Arguida BB, que tivesse resultado daqueles factos, e, consideramos que da prova produzida, também não resultou a evidência, ou certeza suficiente, de uma intenção lucrativa para terceiros, nomeadamente para a sociedade D....
54. De facto, nada resulta dos autos que esta sociedade tenha pretendido obter, com a força de trabalho dos cidadãos estrangeiros identificados nos autos, mais do que obteria com a força de trabalho de cidadãos em situação legalizada.
55. Note-se que, com maior ou menor regularidade, resulta dos autos que os salários eram pagos àqueles trabalhadores, as remunerações foram comunicadas à Autoridade Tributária, e foram efectuados os descontos devidos para a Segurança Social.
56. Os cidadãos estrangeiros identificados nos autos não trabalharam de forma clandestina, “no escuro”; pelo contrário, a relação laboral que aquela sociedade celebrou com os cidadãos está evidenciada em contratos de trabalho escritos, recibos de vencimento, transferências bancárias, entre outros, ou seja, esta atitude da empresa não se coaduna com a intenção de enriquecer de forma indevida à custa de outros.
57. Tiveram aqueles trabalhadores o mesmo tratamento que teriam quaisquer outros trabalhadores, estivessem eles em situação legal ou ilegal, fossem portugueses ou estrangeiros.
58. Acresce que, dos documentos juntos aos autos pela entidade bancária Novo Banco SA, ficou demonstrado, por um lado, que os trabalhadores FF, GG, e HH eram, todos eles, titulares conta bancária naquele banco , conforme Oficio junto aos autos em 30/06/2022 (sendo indiferente se outros trabalhadores, identificados os autos, tinham ou não conta bancária, pois que quanto a estes não se verifica o preenchimento do tipo objecto do crime imputado
59. E, por outro lado ficou demonstrado, conforme Extractos bancários juntos aos autos em 29/06/2022, que os trabalhadores recebiam, embora de modo parcelar, quantias nas suas contas bancárias, sendo que algum dinheiro era entregue em numerário, tendo o trabalhador GG, recebido milhares de euros, sendo a razão plausível para aqueles recebimentos é a de estar a receber na sua conta bancária o valor das suas despesas e dos outros seus colegas.
60. Em suma, a Recorrente quando, no âmbito das suas funções laborais, angariou e procedeu no sentido de os trabalhadores identificados nos autos, virem a ser trabalhadores da D..., não o fez com intuito de obter uma qualquer intenção lucrativa, para si própria, ou para a sociedade para a qual a mesma trabalhava,
61. Assim, não se encontra verificado o pressuposto da intenção lucrativa, necessário para a aplicação do nº 1 do 185º da Lei n.º23/2007, de 04 de Julho, e, portanto, deveria a Recorrente ser absolvida da prática de três crimes de angariação de mão de obra ilegal.
62. Sem prescindir de tudo quanto supra foi exposto,, não pode a Recorrente deixar de IMPUGNAR A MEDIDA CONCRETA DA PENA que lhe foi aplicada.
63. O Tribunal a quo decidiu aplicar uma pena única de 3 anos e 9 meses de prisão à Arguida, ora Recorrente, suspensa na sua execução por igual período (resultante do cúmulo jurídico das penas singulares de 2 anos e 4 meses de prisão, 2 anos de prisão; e 2 anos de prisão).
64. No caso em apreciação, há que considerar: O grau de ilicitude dos factos, que não é elevado, já que os trabalhadores em apreço já se encontravam a residir em território português, não foram contratados para trabalhar “no escuro”, não houve prática reiterada, tinham condições minimamente dignas de habitação e, quando se dirigiram às autoridades, foi pelo não pagamento de 15 dias de salário (e não por outros motivos mais gravosos).
65. O dolo, que não é intenso, pois deve ser considerado que a Recorrente era uma mera funcionária (e não a destinatária de qualquer lucro ou proveito da actuação que lhe é imputada).
66. A condição pessoal e a condição económica da Arguida, para o qual releva o facto de ter um filho menor a cargo, estar empregada e inserida socialmente.
67. A conduta anterior da arguida, sobre a qual não se pode omitir a existência de condenações criminais anteriores, as quais, no entanto, nada tiveram que ver com os crimes de que veio acusada, antes se tratando de crimes de natureza tributária, tendo o mais recente sido pratico no ido ano de 2012.
68. Da análise conjugada de todos os descritos elementos, afigura-se-nos que as penas parcelares aplicadas não foram criteriosamente fixadas pelo tribunal a quo, merecendo a decisão recorrida ser revogada, e substituída por outra que decida pela redução da medida concreta de cada uma das penas parcelares de prisão aplicadas em primeira Instância, pelo limite mínimo ou próximo do seu limite mínimo - atente-se que a moldura penal abstrata prevista para cada um dos crimes praticados é pena de prisão de 1 a 5 anos -
69. Consequentemente, o cúmulo jurídico deverá ser determinado de acordo com aquela redução de cada uma das penas singulares, devendo ser fixada uma pena conjunta inferior àquela que se encontra aplicada.
70. E, como a decisão proferida pelo Tribunal a quo, ao determinar uma pena única de 3 anos e 9 meses de prisão violou o art. 77.º, n.º 1, do Código Penal e o art. 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, deverá ser substituída por outra que fixe uma pena única à Recorrente inferior àquela que resulta daquela decisão.
Termos em que deve ser dado provimento ao recurso interposto, assim se fazendo, JUSTIÇA.
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O recurso foi admitido e fixado o respetivo regime de subida e efeito.
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O Ministério Público respondeu ao recurso interposto nos seguintes termos:
1. Salvo melhor opinião, não assiste razão ao ora recorrente.
2. Impugna o ora recorrente uma parte da matéria de facto dada como provada, designadamente os factos descritos nos pontos 3), 5), 8), 21), 22) e 23 na matéria de facto dada como provada do aresto em crise.
3. Acontece, porém, que relativamente aos pontos 3) e 5) da matéria de facto dada como provada, ao invés do que sustenta o ora recorrente, os elementos de prova carreados e produzidos em sede de audiência de discussão e julgamento fundamentam de forma segura e inabalável os supra aludidos pontos da matéria de facto dada como assente.
4. Com efeito, ao invés do afirmado pelo ora recorrente, considera-se que o depoimento da testemunha DD (que laborou diretamente com a ora recorrente) gozou de foros de seriedade e credibilidade, tendo descrito, pormenorizadamente, o papel desempenhado pelas arguidas no âmbito da atividade societária, tendo tal sido corroborado pelas demais testemunhas.
5. Aliás, tal como doutamente assinalado pelo Tribunal a quo, a animosidade demonstrada pela testemunha DD consubstancia, em função das regras da experiência comum, um mero sintoma da espontaneidade desse depoimento, sendo o mesmo pautado por uma clareza linear e, consequentemente, dotado de total verosimilhança.
6. Por seu turno, esse depoimento da testemunha DD compaginou-se com as declarações para memória futura, sendo a sua conjugação consentânea com as mais elementares regras da experiência comum, sendo igualmente certo que resulta do seu teor uma caraterização clara e linear sobre o papel desempenhado pelas coarguidas naatividade societária em causa.
7. Por fim, ainda sobre a impugnação dos pontos 3) e 5) da matéria de facto dada como provada, como acima mencionado, resulta da conjugação desses elementos probatórios, em função das mencionadas regras da experiência comum, que a arguida BB exerceu a gestão de facto da sociedade em causa e no período temporal indicado no libelo acusatório.
8. No que respeita aos pontos 8) e 21) da matéria de facto dada como provada, considera-se que as descrições impugnadas consubstanciam enunciados dotados de linguagem natural e exata, sendo, portanto, dotados de alcance semântico necessário e suficientemente narrativas da substância factual com relevância para a apreciação da conduta e sua subsunção jurídica à norma penal em causa.
9. Quanto aos pontos 22) e 23) da matéria de facto dada como provada, considera-se que o Tribunal a quo, ao invés do que sustenta o ora recorrente, que os elementos de prova carreados e produzidos em sede de audiência de discussão e julgamento fundamentam de forma segura e inabalável esses pontos da matéria de facto dada como assente.
10. Com efeito, a conjugação da prova indicada pelo Tribunal a quo para fundamentar a sua convicção é clara e linear sobre as funções desenvolvidas pelas arguidas no âmbito da atividade societária, sendo igualmente certo que daí resulta, inequivocamente, o móbil da ora recorrente em obter um proveito económico com a angariação dos trabalhadores identificados.
11. Efetivamente, a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento é contundente sobre a qualidade de gerente de facto da ora recorrente no âmbito da atividade societária e, consequentemente, como beneficiária direta dos proventos dessa empresa.
12. Em consequência, a factualidade indicada nessa matéria de facto dada como provada, ora impugnada, conjugada com os demais pontos dessa matéria de facto dada como provada, é inquestionavelmente subsumível aos elementos objetivos e subjetivos do tipo de crime previsto e punível pelo nº 1 do art. 185º da Lei nº 23/2007, de 4 de Julho.
13. Em sede de determinação concreta da pena, o aresto em crise foi assertivo, sopesando, convenientemente, o grau elevado da ilicitude da conduta da ora recorrente, as exigências de prevenção geral e, particularmente, os seus antecedentes criminais e a intensidade do dolo.
14. Com efeito, é notória a constante erosão em torno dos bens jurídicos em causa, sendo indispensável reafirmar os mesmos no seio da comunidade, circunstância que reivindica uma reação penal consequente para esse efeito.
15. Por conseguinte, o Tribunal a quo foi exemplar na interpretação dos comandos normativos invocados pelo ora recorrente, não merecendo, por isso, qualquer censura, tendo assegurado de forma conveniente a proteção e a reafirmação dos bens jurídicos em causa e, particularmente, as necessidades de prevenção especial relativamente ao ora recorrente.
16. Em suma, na determinação concreta da pena, o Tribunal a quo respeitou, integralmente, os comandos consagrados nos artigos 40º, 71º e 50º do Código Penal.
Por conseguinte, o recurso interposto não deverá de merecer provimento e, consequentemente, ser mantido o douto Acórdão.
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No Tribunal da Relação o Exmº Procurador-Geral Adjunto, emitiu Parecer no sentido do não provimento do recurso.
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Em 23 de outubro de 2023 foram os autos redistribuídos à ora relatora.
Conclusos os autos em 26 de outubro de 2023, foi, por despacho de 26 de outubro de 2023, determinado o cumprimento do disposto no art.417º, nº2, do CPP.
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Em 27 de outubro de 2023 foi cumprido o disposto no art.417º, nº2, do CPP, não tendo sido apresentada qualquer resposta.
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Realizado o exame preliminar determinou-se que fossem os autos aos vistos e à conferência.
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Fundamentação
Delimitação do objeto do recurso
O âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, só sendo lícito ao Tribunal “ad quem” apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. Ac. do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19/10/1995, DR I-A Série, de 28/12/1995 e artigos 403º, nº1 e 412º, nºs 1 e 2, ambos do CPP).
São, pois, as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respetiva motivação que o Tribunal ad quem tem de apreciar
No presente recurso, as questões colocadas à apreciação deste tribunal são:
- erro de julgamento da matéria de facto;
- não preenchimento dos elementos do tipo de crime de angariação de mão de obra ilegal
- medida das penas parcelares e única.
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Da sentença recorrida ( Factos)
“ 2. Factos provados
1) A arguida AA é sócia e gerente da D..., com sede em ....
2) A arguida AA é irmã da arguida BB.
3) Era a arguida BB quem definia as contratações de funcionários da D..., geria os dinheiros da sociedade, dava ordens e instruções sobre o dia-a-dia da sociedade e tomava as decisões dentro da sociedade.
4) A arguida AA assinava designadamente os contratos necessários à actividade da sociedade D....
5) A arguida CC foi contratada para trabalhar para a sociedade D... pela arguida BB, cumprindo as ordens da arguida BB, transmitindo essas ordens aos trabalhadores, transportando-os de carrinha entre os alojamentos e os locais de trabalho, pagando salários a trabalhadores com o dinheiro que a arguida BB ia disponibilizando, efectuava as compras necessárias para os alojamentos e efectuava a limpeza desses alojamentos.
6) No início de Julho de 2016, as arguidas CC e BB deslocaram-se à zona do ..., em Lisboa, acompanhadas de um cidadão ..., à procura de cidadãos para trabalhar para a D....
7) Naquela zona, as arguidas CC e BB contactaram II, JJ, FF, GG e KK, cidadãos de nacionalidade ..., a quem prometeram trabalho na área da agricultura, com o pagamento de € 4,00 por hora de trabalho, com alojamento e alimentação por conta da sociedade, prometendo também a sua legalização, e que assim convenceram a trabalhar para a referida sociedade, tendo início a prestação do trabalho em Julho de 2016.
8) LL foi contactado por cidadão ... em Lisboa, para trabalhar para a D... tendo, após contactos telefónicos, se deslocado para ... onde foi recebido pela arguida CC com quem acertou trabalhar para aquela sociedade e prometendo esta a sua legalização, de acordo com instruções da arguida BB (sem as quais não teria agido), tendo início a prestação do trabalho em Julho de 2016, tendo dito ás arguidas CC e BB que estava ilegal em Portugal, não possuindo autorização de residência.
9) As arguidas BB e CC disseram a II, JJ, FF, GG e KK para em dia não determinado de Julho de 2016 apanharem o comboio de Lisboa e dirigir-se para ..., o que aqueles, juntamente com LL, fizeram.
10) Em final de Junho ou início de Julho de 2016 a arguida BB dirigiu-se ao alojamento onde pernoitava HH, no ..., cidadão de nacionalidade ..., e perguntou-lhe se queria trabalhar para si / para a sociedade D..., prometendo trabalho na área da agricultura, com o pagamento de € 3,00 por hora de trabalho, com alojamento por conta da sociedade, pagamento de alimentação (4 € /dia) e prometendo ainda a sua legalização.
11) Nesta sequência e tendo aceite a proposta de trabalho, HH dirigiu-se para ... no início de Julho de 2016.
12) Quando contactados, como referido em 7) e 10), os indivíduos referidos disseram, em 7), ás arguidas BB e CC, e, em 10), à arguida BB que estavam em situação irregular em Portugal, não possuindo autorização de residência.
13) Em ..., as arguidas BB e CC entregaram contratos de trabalho escritos a LL, II, JJ, FF, GG, HH e KK, para assinarem, tendo a arguida AA, que não estava presente, assinado esses contratos de trabalho como gerente da sociedade D... em momento não determinado.
14) Os dados constantes do contrato de trabalho não correspondiam à retribuição nem horário de trabalho que os trabalhadores efectivamente iam ter, nem se destinaram a regularizar a situação deles em território nacional.
15) LL, II, JJ, FF, GG, HH e KK trabalharam os meses de Julho e Agosto em ... por conta e às ordens da sociedade D..., cumprindo as ordens e instruções que eram transmitidas pela arguida CC que por sua vez as recebia da arguida BB.
16) LL, II, JJ, FF, GG, HH e KK ficaram alojados durante pelo menos 20 dias, em Julho de 2016, numa casa com três quartos e uma casa de banho, em ..., que alojava pelo menos 9 pessoas no seu interior (incluindo estes trabalhadores).
17) Trabalhavam entre 8 a 12 horas por dia (salvo GG, que trabalhava 8 horas por dia), sendo que pelo menos LL e HH trabalhavam 7 dias por semana.
18) No dia 1 de Setembro de 2016, uma carrinha da D... conduzida pela arguida CC, transportou LL, II, JJ, FF, GG, HH e KK para umas estufas em ..., ..., ..., para apanharem produtos agrícolas.
19) Nos primeiros dias, os cidadãos nepaleses pernoitaram numa residencial, e depois passaram a pernoitar num contentor.
20) Durante Setembro e Outubro de 2016, trabalharam pelo menos 8 horas por dia (salvo quanto ao JJ, no período durante o qual esteve em Lisboa durante algum tempo) segundo instruções das arguidas BB e CC, recebendo 3 euros por hora, não recebendo qualquer remuneração nos dias em que não trabalhassem.
21) Pouco antes do dia 26 de Outubro de 2016, como LL, II, JJ, FF, GG, HH e KK se queixavam da falta de pagamento da remuneração, a arguida CC, de acordo com indicação da arguida BB, disse-lhes que já não eram trabalhadores da D... e mandou-os sair do contentor onde pernoitavam, não tendo LL, II, JJ, FF, GG, HH e KK recebido a totalidade das remunerações que lhes eram devidas pelo período de tempo que trabalharam para a D....
22) As arguidas BB e CC quiseram aliciar, a primeira, os sete cidadãos estrangeiros referidos nos factos provados e, a segunda, os seis cidadãos estrangeiros referidos nos factos provados, alguns dos quais não tinham a sua situação regularizada em território português (LL, HH, FF e GG) e nenhum possuía autorização de residência no nosso país ou visto de trabalho, a trabalhar para a D..., querendo com isso que fossem pagos salários menores, ou não fossem pagos integralmente, e proporcionar condições de trabalho, designadamente de horário de trabalho e alojamento, que um trabalhador com situação regularizada não aceitaria.
23) As arguidas BB e CC sabiam que ao contratarem, transportarem, alojarem e, a primeira, beneficiar do trabalho dos sete cidadãos estrangeiros nos moldes descritos, estrangeiros dos quais LL, HH, FF e GG não tinham a sua situação regularizada em território português, não tendo os sete estrangeiros autorização de residência no nosso país ou visto de trabalho, favoreciam e facilitavam a permanência ilegal de pessoas estrangeiras (LL, HH, FF e GG) no território nacional, fazendo-o a arguida BB em proveito próprio e com intenção lucrativa, e sabendo a arguida CC que a arguida BB actuava voluntária e intencionalmente nos moldes descritos e com intenção lucrativa e que a auxiliava a praticar os factos descritos.
24) A arguida BB é a mais nova de cinco irmãos, proveniente de agregado em que o pai (contabilista) e a mãe (comerciante) asseguraram de forma adequada a subsistência do agregado. Existia uma dinâmica relacional equilibrada ao longo do seu processo de crescimento, tendo integrado o agregado de origem até se casar aos 20 anos.
Abandonou a escolaridade aos 17 anos, tendo concluído o 6º ano, reportando as reprovações a problemas de visão, os quais motivaram 2 intervenções cirúrgicas.
Em adulta frequentou algumas formações, que não concluiu.
Iniciou o seu percurso profissional aos 17 anos, numa fábrica de carnes do avô, desempenhando funções na área comercial dos 18 aos 20 anos.
Na sequência do seu casamento começou a trabalhar no escritório de contabilidade do seu pai, no qual desempenhou funções de apoio àquela actividade durante cerca de 7 anos. Após permanecer um período de cerca de 2 anos e meio inactiva, para cuidar do pai acamado, após o falecimento deste começou a trabalhar em empresas de trabalho temporário, na área de recursos humanos.
Desde os 30 aos 46 anos desempenhou funções nas áreas comerciais e de recursos humanos em sociedades que manteve em empresas de trabalho temporário, que determinaram alguns contactos com o sistema penal.
Do matrimónio resultou um filho, actualmente com cerca de 30 anos. Divorciou-se aos 27 anos, tendo reintegrado com o filho o agregado de origem, até o falecimento do seu pai. Posteriormente, residiu em habitação própria e, em 2002, iniciou novo relacionamento afectivo, passando a viver em união de facto com um companheiro, de cuja relação tem um filho, actualmente com 14 anos. Na sequência de desentendimentos decorrentes de problemas financeiros, aquele relacionamento terminou.
No período dos factos residia com o filho mais novo num apartamento arrendado. Esteve cerca de 6 anos em situação de desemprego. As despesas da habitação onde residia estavam a cargo da D....
Em 2018, aquela empresa suspendeu a actividade, tendo sido constituída outra empresa com sede no mesmo local e na mesma área “L..., Lda”, associada à irmã, a qual, em Setembro de 2021, passou a quota e a gerência para a arguida, mudando o nome da empresa para “F...”.
Desde então, é a gerente desta sociedade, que contrata cidadãos estrangeiros para colocação laboral em empresas de diversos ramos que solicitem os seus serviços.
A actual empresa terá sido objecto de fiscalizações levadas a cabo pelo CEF e ACT, sem registo de irregularidades.
Com o seu vencimento mensal, no valor 705 euros, suporta o pagamento da renda da habitação onde reside e as despesas fixas.
Mantém uma relação próxima com o filho mais velho, já autonomizado, assim como com os irmãos, que a têm apoiado.
Ao nível social, não reporta participação activa relevante, não sendo alvo de sentimentos de animosidade ou rejeição.
Foi condenada:
- por decisão de 10.01.2008, transitada em 14.07.2008 [proc. ...4 do Tribunal ...], na pena de 3 anos de prisão, suspensa por igual prazo com imposição de deveres, e na pena de 170 dias de multa à taxa diária de 7 euros, pela prática em 2000 de três crimes de abuso de confiança (fiscal) continuado (art. 105º n.º1 do RGIT) e um crime de abuso de confiança contra a segurança social (RGIT) – penas declaradas extintas pelo cumprimento.
- por decisão de 24.04.2009, transitada em 14.05.2009 [proc. .../04 do Tribunal ...], na pena de 120 dias de multa à taxa diária de 7 euros, pela prática em Outubro de 2000 de um crime de abuso de confiança contra a segurança social continuado (art. 107º n.º1 do RGIT) – pena declarada extinta pelo cumprimento.
- por decisão de 23.10.2012, transitada em 14.06.2013 [proc. ...9 do Tribunal ...], na pena de 2 anos de prisão, suspensa por igual prazo com imposição de deveres, pela prática em Agosto de 2009 de um crime de fraude fiscal (art. 103º n.º1 do RGIT) – pena declarada extinta pelo cumprimento.
- por decisão de 07.06.2013, transitada em 06.09.2013 [proc.../09 do Tribunal ...], na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, substituída por prestação de trabalho a favor da comunidade, pela prática em Setembro de 2001 de um crime de abuso de confiança contra a segurança social (art. 107º n.º1 do RGIT) – pena declarada extinta pelo cumprimento.
- por decisão de 06.11.2013, transitada em 11.12.2013 [proc. ...1 do Tribunal ...], na pena de 10 meses de prisão, substituída por prestação de trabalho a favor da comunidade, pela prática em 2009 de um crime de abuso de confiança contra a segurança social (art. 107º n.º1 do RGIT) – pena declarada extinta pelo cumprimento.
- por decisão de 06.11.2013, transitada em 11.12.2013 [proc. ...1 do Tribunal ...], na pena de 10 meses de prisão, substituída por prestação de trabalho a favor da comunidade, pela prática em 2009 de um crime de abuso de confiança contra a segurança social (art. 107º n.º1 do RGIT) – pena declarada extinta pelo cumprimento.
- por decisão de 26.11.2013, transitada em 08.01.2014 [proc. ...2 do Tribunal ...], na pena de 16 meses de prisão, substituída por prestação de trabalho a favor da comunidade, pela prática em Dezembro de 2012 de um crime de abuso de confiança fiscal (art. 105º n.º1 do RGIT) – pena declarada extinta pelo cumprimento.
O processo de crescimento da arguida CC decorreu num contexto familiar economicamente desfavorecido e marcado pelo precoce falecimento do progenitor, quando aquela contava com 7 anos. A progenitora desenvolveu actividade como empregada de limpeza e posteriormente como cantoneira na Junta de Freguesia .... A arguida, filha única, acompanhava e apoiava a progenitora nos serviços de limpeza, fora do horário lectivo.
Habilitou-se com o 9º ano de escolaridade. Iniciou aos 17 anos actividade laboral no sector têxtil onde permaneceu cerca de 5 anos, com um desempenho regular.
Contraiu matrimónio aos 19 anos, união que durou 5 anos e da qual resultou o nascimento de uma filha. Posteriormente encetou novo relacionamento afectivo, vivendo em união de facto um ano, tendo nascido um filho desta união. Este descendente nasceu com paralisia cerebral, com consequências ao nível da locomoção, pelo que a arguida entre 2009 e 2014 se dedicou exclusivamente ao apoio e à recuperação do filho, até este conseguir autonomia na marcha. Depois o filho permaneceu com o progenitor no sentido de continuar a beneficiar dos cuidados de saúde.
Em 2014 emigrou para a ..., onde permaneceu até 2016, exercendo actividade laboral na área da restauração.
Tendo por referência a data dos factos, depois de regressar da ... viveu um curto período em ..., passando posteriormente a residir com a progenitora, enquadramento familiar que mantém. Há cerca de um ano encetou novo relacionamento afectivo com elemento que passou a integrar o agregado familiar.
O filho da arguida permanece com o progenitor e frequenta um curso profissional de informática. A filha vive com a madrinha, em ..., e é estudante de enfermagem. Os filhos mantêm contactos regulares com a arguida, sobretudo o mais novo.
Vivenciou à data dos factos dificuldades económicas, tendo recorrido ao apoio da progenitora para regressar a casa
Não exerce actividade profissional desde há um ano por motivos de saúde (foro cardiovascular e de ortopedia), subsistindo com o apoio da progenitora, reformada com o montante de 320 €, e com o vencimento do companheiro, trabalhador de hotelaria, no valor de 800 €.
Não tem condenações registadas no seu CRC.
3. Factos não provados
Não se logrou provar que:
a) a arguida AA concordava e sabia de todos os processos efectuados pela arguida BB, nomeadamente a contratação de cidadãos em situação irregular em Portugal.
b) a arguida AA disponibilizava dinheiro à arguida CC para esta pagar a trabalhadores.
c) a D... dedicava-se à agricultura, nomeadamente a apanha de tomate e trabalho em estufas.
d) a deslocação referida em 6) dos factos provados ocorreu no dia 1 de Julho.
e) as arguidas sabiam que aquele local é frequentado por cidadãos que se encontram em situação irregular em território nacional, designadamente que não têm visto de permanência válido para estarem em Portugal ou autorização para o exercício de actividade profissional em território nacional.
f) as arguidas CC e BB iam abordando cidadãos de nacionalidade estrangeira, com a ajuda do cidadão de nacionalidade ..., e entabulavam conversa com eles, prometendo trabalho na área da agricultura, com o pagamento de € 4,00 por hora de trabalho, com alojamento e alimentação por conta da sociedade, e ainda prometiam a legalização daqueles cidadãos que abordavam (para além dos referidos em 7) dos factos provados).
g) LL foi contactado pelas arguidas CC e BB na zona referida em 6) dos factos provados e nas condições indicadas em 7) dos factos provados.
h) a prestação de trabalho referida em 7) e 8) dos factos provados teve início no dia 8 de Julho.
i) em 9) dos factos provados, as arguidas BB e CC disseram para apanharem o combóio no dia 07.07.2016, tendo dito igualmente a LL para apanhar o comboio e na data referida.
j) em 8) e 12) dos factos provados, os indivíduos também disseram que não tinham especificamente visto ou autorização para exercer trabalho profissional ou para permanecer em território nacional.
l) HH dirigiu-se para ... no dia 7 de Julho.
m) ao chegarem a ..., LL, II, JJ, FF, GG, HH e KK foram recolhidos pela arguida CC e foram levados para as instalações da sociedade D....
n) a arguida AA, em 13) dos factos provados, sabia que os trabalhadores estavam em situação irregular em território nacional.
o) foi em ... que os trabalhadores disseram o que consta de 8) e 12) dos factos provados.
p) os contratos de trabalho não se destinaram a inscrever os trabalhadores na segurança social.
q) durante o período em causa e apesar do acordado, a sociedade D..., através das arguidas, não garantiu a alimentação de LL, II, JJ, FF, GG, HH e KK, o que os levou a conversar novamente com a arguida CC.
r) nessa sequência, a arguida CC, após conversar com a arguida BB e receber instruções desta, acordou que a sociedade D... asseguraria a alimentação, mas LL, II, JJ, FF, GG, HH e KK só iriam receber € 3,00 por hora de trabalho.
s) em 16) dos factos provados, ficaram alojados na casa referida em Julho e Agosto de 2016.
t) em 17) dos factos provados, todos trabalhavam 7 dias por semana, e trabalhavam dez horas certas por dia, na apanha do tomate.
u) em 18) dos factos provados, iam apanhar especificamente feijão e pepino.
v) em 19) dos factos provados, os indivíduos ficaram na residencial durante a primeira semana, foram para o contentor no dia 08.09.2016, e este contentor não tinha água corrente e viviam nele sete trabalhadores para além dos cidadãos nepaleses.
x) os factos descritos em 21) dos factos provados ocorreram no dia 26.09.2016, os indivíduos ali referidos também se queixavam das condições de habitabilidade e de trabalho e não foi paga apenas a remuneração relativa ao mês de Outubro de 2016.
z) a arguida CC quis aliciar um sétimo cidadão estrangeiro e agiu em proveito próprio e com intenção lucrativa (própria).
aa) a arguida AA quis aliciar sete cidadãos estrangeiros que não tinham a sua situação regularizada em território português e que não possuíam autorização de residência no nosso país ou visto de trabalho, a trabalhar para a D..., querendo com isso pagar salários menores e proporcionar condições de trabalho, designadamente de horário de trabalho e alojamento, que um trabalhador com situação regularizada não aceitaria.
bb) a arguida AA sabia que, ela e as demais arguidas, ao contratarem, transportarem, alojarem, explorarem e beneficiarem do trabalho dos sete cidadãos estrangeiros, os quais não tinham a sua situação regularizada em território português e que não possuíam autorização de residência no nosso país ou visto de trabalho, favoreciam e facilitavam a permanência ilegal de pessoas estrangeiras no território nacional, fazendo-o em proveito próprio e com intenção lucrativa.
cc) LL, II, JJ, FF, GG, HH e KK afirmaram terem apresentado declaração de interesse no SEF quando foram contactados, razão pela qual a arguida AA os contratou.”
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- Do alegado erro de julgamento da matéria de facto
Alega a arguida/recorrente, em síntese, que “ (…) IMPUGNA A MATÉRIA DE FACTO vertida nos pontos 3), 5), 8), 21), 22) e 23) da decisão sobre os Factos Provados, que se encontram nas páginas 2. a 6. do douto Acórdão, os quais devem ser dados como não provados pelo Tribunal ad quem.”
Consignou o Tribunal a quo na motivação da decisão recorrida:
“ (…)
II. A matéria descrita em 1 deriva dos elementos documentais de fls. 69/220/791/888/950 e a matéria descrita em 2 decorre dos elementos identificativos das arguidas, tendo também sido admitida pela arguida BB.
No que toca ao descrito em 3 e 5, e aos termos da intervenção das arguidas BB e CC (mormente como referido na parte final de 15 ou em 20), atendeu-se, primeiramente, ao depoimento descomprometido e honesto, da testemunha DD [que trabalhou para a arguida BB e assumiu a posição meramente formal de sócio da D..., a pedido daquela BB], a qual, sem esconder as suas animosidades pessoais (o que constituiu, aliás, sintoma da sua honestidade, sem dissimulações), reportou com clareza o papel das arguidas no âmbito da actividade societária. Tal depoimento colheu corroboração dos depoimentos das testemunhas LL, II, HH, JJ, FF, KK e GG, ouvidas em declarações para memória futura, e na medida em que estas testemunhas, em termos coincidentes e de forma consistente e verosímil, indicaram sempre a arguida BB como a patroa e a arguida CC como uma espécie de gerente no terreno, e sem que tenham alguma vez referenciado a arguida AA (com quem nunca contactaram). Mesmo na assinatura dos contratos de trabalho pelas aludidas testemunhas, esta AA esteve ausente, apenas contactando aquelas testemunhas com as arguidas BB e CC [mais que uma gerente pouco diligente, a arguida AA seria uma gerente demissionária e desinteressada]. Acresce que a própria arguida CC afirmou que recebia instruções da arguida BB, não referindo qualquer contacto relevante com a arguida AA – sendo sintomático que nos momentos finais dos factos, em Outubro de 2016, quando surge a situação de conflito com os trabalhadores não pagos (e ponto onde as versões das arguidas BB e CC também não são coincidentes), os contactos que mantém e as instruções que recebe são sempre da arguida BB (e a própria BB também relata estes factos em termos dos quais resulta assumir neles uma posição central). O que se mostra mais significativo por se tratar de situação delicada, que fica entregue a subordinados sem que a principal interessada, a gerente AA, intervenha ou algo faça (atitude incompreensível de um normal ou mediano gerente). Sendo também sintomático que a arguida CC afirme que quando contacta a arguida BB para se informar sobre os pagamentos em falta, em Outubro, esta lhe responda logo, sem remeter para a arguida AA ou sem necessidade de obter junto dela informações (ponto, aliás, que também mal se ajusta à versão da arguida BB quando esta sustenta que dos pagamentos apenas sabia o que a arguida AA lhe dizia). Aliás, a arguida CC também afirma que a arguida AA seria a patroa mas depois afirma igualmente que nada sabe nada sobre ela (trata-se de uma patroa omissa, silenciosa, o que só se compreende justamente porque se trata de patroa meramente aparente). Coincidentemente, no proc. ...1 ficou proibida de exercer funções de gerente durante o período da prestação de trabalho a favor da comunidade (ignora-se qual o período em causa, mas a pena apenas vem a ser declarada extinta por decisão de 10.04.2017, tendendo a compreender assim o período em causa) [v. CRC dos autos].
Ainda quanto ao descrito em 5, a arguida CC ainda admitiu grande parte das funções em causa (notando-se, quanto aos pagamentos, que era a única explicação plausível para a estregas de dinheiro que a testemunha DD referia).
Quanto ao descrito em 4, trata-se de asserção que decorria com normalidade da posição (formal) da arguida AA enquanto gerente, sendo corroborada pela circunstância de ter sido esta arguida quem assinou os contratos de trabalho juntos ao processo (fls. 13 e ss. e 163) – documentos estes que assim também suportam a asserção da parte final de 13.
No que toca ao descrito em 6 a 13 e 15 a 21, tal matéria decorreu, em primeira linha, dos depoimentos das aludidas testemunhas LL, II, HH, JJ, FF, KK e GG, que se mostraram sempre essencialmente conformes e intrinsecamente coerentes, com apoio, quanto ao descrito em 13, nos referidos contratos juntos aos autos.
Sem que as versões das arguidas BB e CC, que relataram versões em parte distintas das versões daquelas testemunhas (embora admitindo também parte dos factos objectivos em causa), se mostrassem capazes de abalar a confiança depositada naqueles depoimentos.
Assim, a versão da arguida BB não mereceu crédito por, além do contraste com os demais elementos probatórios referidos, apresentar notórias fragilidades extrínsecas (sendo claramente marcada por uma intenção auto desresponsabilizadora, apostada em excluir qualquer papel relevante nos factos que, nos seus termos e excesso, se mostrava implausível) e sobretudo intrínsecas (segundo a sua versão, oferecia-se como mera autómata cumpridora de ordens, excessivamente ignorante). Com efeito, a forma como descreve o contacto com os estrangeiros (estes é que ligaram para o escritório da sociedade, a arguida apenas os foi buscar, havendo ainda entrevistas prévias à contratação) mostra-se no mínimo demasiado cândida e implausível; afirmou que a cada trabalhador era dado um recibo, o que contrasta com os termos do apenso de pagamentos e a sua explicitação na análise de fls. 233 (confirmada em audiência, de forma coerente, pela testemunha MM, inspector do SEF que efectuou aquela análise); mostrou-se claramente evasiva quando se questionou a forma como foi abordada a situação dos estrangeiros em Portugal, acabando por referir de forma minimalista apenas que, questionados, os estrangeiros disseram que tinham condições para trabalhar em Portugal, ficando assim a questão arrumada – quando os próprios passaportes (fls. 12 e ss. e 168), que a arguida BB admitiu ter visto, sugerem fortemente a ilegalidade da situação dos trabalhadores, por terem todos entradas fora de Portugal (..., ..., ..., ...), alguns em datas bastante distanciadas da data em que os visados são contactados, e por alguns deles terem vistos já caducados (fls. 12 , fls. 32, fls. 53 ou fls. 169), pelo que a afirmação se estranha [situação esta que também tornava ao menos mais plausível que os visados tivessem, como afirmaram, desde logo anunciado a sua situação]; sendo que depois também acaba por reconhecer que sabia que não tinham autorização de residência em Portugal, mas achando que tal não era problemático; o que torna incompreensível que também afirme ter ido duas vezes ao SEF para avaliar a sua legalização, dando explicações incoerentes e implausíveis para realizar tal diligência - sendo mormente significativo que, segundo disse, tenha procurado saber como legalizar trabalhadores mas nunca tenha referido a situação dos seus trabalhadores concretos, omissão que não tinha razão para existir dado que a arguida estava convencida da regularidade da actuação desenvolvida…; sendo que esta convicção também não é coerente com os dados comuns, pois, à data e hoje em dia, constitui conhecimento generalizado, fazendo parte da informação partilhada pela generalidade da comunidade, que a utilização de estrangeiros está sujeita a exigências específicas, associadas à legalidade da sua situação em território nacional; e convicção aquela da arguida que também se estranha porque à data já havia trabalhadores estrangeiros associados à D... (e, pelo nome, provavelmente nepaleses) inscritos na segurança social desde Março de 2016 (fls. 175 e ss.), pelo que a forma de lidar com tal tipo de trabalhadores não poderia ser inteiramente desconhecida (a contratação de estrangeiros não era uma novidade, a primeira vez que sucedia). Donde não se ter atribuído qualquer valor persuasivo ás declarações desta arguida, não tendo também por isso servido para afectar o capital de convencimento dos demais elementos probatórios referidos.
O mesmo vale ainda para as declarações da arguida CC, igualmente parciais e incoerentes com outros dados probatórios – referindo-se apenas, por significativa, a afirmação de que, em Lisboa, a arguida BB questionou os estrageiros especificamente sobre a sua situação junto do SEF das finanças e da segurança social, tendo estes afirmado estar tudo tratado e mostrado passaportes e telemóveis, o que, além de contrastar com a versão, mais singela e cândida, da arguida BB, e ser contrária à versão das testemunhas referidas, é notoriamente implausível: não só, como se referiu, os passaportes apresentados logo indiciam a ilegalidade da sua situação, como as aludidas testemunhas nada tinham para mostrar nos telemóveis (nem se vê o que lá poderiam ter…). Sendo que esta arguida assumiu ainda em julgamento uma postura (mormente aquando do depoimento da aludida testemunha DD, sucessivamente se manifestando com interjeições), que se mostrava nas antípodas da candura e inocência que tendia a colocar na sua versão (ao ponto de negar falsamente, invocando ter tido um ataque de tosse, uma clara interjeição oral, dirigida à aludida testemunha quando esta depunha).
Em 8, o papel subordinado da arguida CC suporta a asserção relativa ao papel determinante da arguida BB (interessada na contratação), e o mesmo vale quanto ao descrito em 21 – ainda com apoio nas declarações da arguida CC quando refere actuar segundo as instruções daquela, o que se ajusta ao seu aludido papel (e asserção que é extensível também a matéria que a arguida não admite mas se demonstra).
No que concerne à delimitação da situação dos cidadãos estrangeiros quanto à sua permanência em Portugal, atendeu-se aos vistos constantes das fotocópias dos seus passaportes, considerando que onde os vistos fossem válidos (não caducados), essa permanência era lícita (e já que o visto faculta a entrada mas também a estadia/permanência durante o prazo de validade do visto, embora subordinada à finalidade do visto) – ressalva-se apenas a situação de KK, cujo visto não era legível, assim ficando afastada a possibilidade de afirmar uma permanência irregular (por caducidade do visto).
Em especial e quanto aos pagamentos, a versão das aludidas testemunhas LL, II, HH, JJ, FF, KK e GG era ainda corroborada pelo exame dos documentos apresentados (referidas fls. 233), o qual revela, mormente, que inexiste qualquer elemento comprovativo do pagamento dos subsídios, que o pagamento das horas de trabalho nunca contempla o pagamento do trabalho extraordinário, ou que ocorre duplicação de recibos que é, no mínimo sugestiva das condutas descritas. E os depósitos bancários também não confirmam os pagamentos – ao invés, ou tais pagamentos não existem de todo, ou, quando existem, apenas ocorrem em Outubro de 2016 (antes não existia qualquer conta/movimento) e têm valores muito limitados (fls. 1093 e ss.). Versão esta que, note-se, a arguida BB não contraria sequer, já que, na linha da sua defesa, se refugia atrás da arguida AA (o que sabia era-lhe dito por esta arguida). Quanto à arguida CC, afirmou que os pagamentos eram todos feitos por transferência bancária (o que é falso, como os aludidos dados bancários revelam; aliás, nem todos os visados tinham contas bancárias), tendo ainda afirmado que os pagamentos foram integralmente realizados, o que sustentou no facto de os visados lho terem dito mas, questionada porque o teriam dito (de mais a mais quando a crise final surge por falta de pagamentos), afirma singelamente «só disseram isso», dando assim conta da falta de seriedade da sua afirmação (incompreensível que, queixando-se de faltarem pagamentos e sendo expulsos do local de trabalho, se lembrem, sem mais, de dizer isto; trata-se ainda de afirmação que não pode surgir descontextualizada, de forma gratuita ou arbitrária, tendo que haver um enquadramento que justifique a sua aparição, o que a arguida não consegue facultar justamente por a asserção não ser séria).
Quanto ao descrito em 14, tal deriva da contraposição entre os contratos de trabalho (v.g. termos da remuneração e horário de trabalho, com valor remuneratório global e 40 horas de trabalho semanal, face aos horários e forma remuneratória em concreto praticada, como deriva dos depoimentos das testemunhas trabalhadoras referidas e, em parte, está reflectido nos factos provados).
Quanto aos elementos descritos em 22 e 23, tal matéria, em momentos essenciais negada pelas arguidas BB e CC, inferia-se ainda com manifesta clareza, à luz das regras da experiência, da descrita conduta das arguidas, no quadro dos papéis que, segundo os factos apurados, lhes cabiam – e ainda em função das declarações das testemunhas LL, II, HH, JJ, FF, KK e GG.
Em especial e quanto ao conhecimento da situação dos trabalhadores contratados (que as arguidas BB e CC negaram), relevava logo a versão, credível, das testemunhas LL, II, HH, JJ, FF, KK e GG, as quais afirmaram terem esclarecido a sua situação, mormente colocando perante as arguidas a questão da sua legalização, que as arguidas prometem realizar e, assim, também se seguia que elas conheceriam a situação dos estrageiros em causa (sem as testemunhas reportarem especificamente o visto de trabalho, a falta deste era circunstância inerente à necessária legalização que é pretendida e prometida). Tal conhecimento é, neste contexto, inelutável – sendo que a conduta dos estrangeiros, expondo a sua situação, também se mostra curial, quer porque os trabalhadores saberiam que assim que se iniciassem as formalidades inerentes aos contratos a sua situação teria que ser desvelada, quer porque eles teriam um interesse imediato na sua legalização (sendo a actividade laboral justamente uma via de a tal aceder), quer porque, como referido, os próprios passaportes que apresentam indiciam a irregularidade da situação de permanência de alguns deles e a irregularidade para efeitos laborais da situação de todos eles [aliás, os passaportes também estão identificados em cada um dos contratos celebrados, pelo que as arguidas teriam acesso a eles]. Neste quadro, a negação das arguidas em causa não se mostrou relevante.
Quanto à intenção lucrativa da arguida BB, a utilização laboral das aludidas testemunhas, no quadro de uma actividade empresarial (e societária) por natureza com escopo lucrativo, permite sustentar directamente uma visada finalidade economicamente proveitosa para a arguida. Tal asserção torna-se ainda mais clara a partir das especificidades da situação: propõem pagamento da alimentação, omitido depois nos contratos e não pago; alojamentos pouco curiais – 9 pessoas em 3 quartos e uma casa de banho; ou 8 pessoas num contentor; remuneração mínima global no contrato e remuneração por hora na sua execução; trabalho semanal de 40 horas, equivalente a 8 hrs. x 5 dias, e carga laboral mais extensa na prática; redução do valor horário de 4 para 3 euros e pagamentos irregulares ; falta de pagamento de valor correspondente a horas extraordinárias, falta de pagamento de subsídios de férias e natal e, a final, pagamentos incompletos a todos os trabalhadores; não inscritos na segurança social, não eram também pagas as contribuições devidas a esta entidade – tudo, em geral, fornecendo um quadro precário, a que trabalhadores nacionais não se sujeitariam. Especificidades estas que revelam interesse próprio na maximização dos proveitos do trabalho assalariado, e assim revelando a intenção lucrativa em causa. Afirmação que a mediação da sociedade D... não prejudica pois, como deriva de factos provados e dos elementos de prova que os sustentam, a sociedade era, na prática, detida e usada pela arguida BB, pelo que os proventos que a sociedade obtivesse eram ainda proventos que esta arguida controlava (acendendo a eles e usando-os, deles beneficiando) [notando-se que a sociedade tinha como única sócia a arguida AA, que, como resulta dos factos provados e da prova que os sustenta, não tinha qualquer papel relevante na sociedade e, assim, não constituía obstáculo à actuação da arguida BB, sua irmã].
Já no que toca à arguida CC, assalariada e subordinada (sem que tivesse qualquer participação económica na actividade desenvolvida), os dados objectivos disponíveis não permitem assegurar que esta tivesse uma intenção lucrativa própria. Com efeito, os seus rendimentos relacionam-se com a sua prestação laboral, não se relacionando com ganhos próprios derivados da actividade dos trabalhadores estrangeiros. A actividade destes poderia ser uma forma de viabilização do seu vínculo laboral – por poder contribuir para garantir a solvabilidade da sua entidade patronal – mas tal é incerto (não se demonstra qualquer relação directa entre a manutenção do seu vinculo laboral e utilização dos cidadãos estrangeiros em causa) nem se mostra claro que tal ponderação fosse por ela realizada. Nem se vislumbra outro ganho, material ou não , que esteja no seu horizonte intencional e possa relevar nesta sede.
No que toca à arguida AA, a imputação a esta arguida da assinatura dos contratos deriva do nome aposto, associado à qualidade da arguida (à data gerente da sociedade, como deriva dos documentos já referenciados), face ainda ás regras da normalidade e à circunstância de esta imputação nunca ter sido impugnada, mormente pela arguida (não se trata de valorar o seu silêncio em desfavor da arguida mas apenas de realçar que, face aos dados disponíveis, não se vislumbram plausíveis explicações alternativas quanto à autoria da assinatura, e aquela omissão não contribui para excluir esta conclusão por não facultar explicação que não tenha sido contemplada pelo tribunal).
Trata-se de asserção suportada pelo regime do art. 127º do CPP e na inexistência de regra processual que imponha diligência probatória especial para desvelar a matéria em causa, mormente o confronto da assinatura (assim se afastando posição distinta invocada em sede de alegações).
Assim, esta arguida vinha probatoriamente associada aos factos a partir:
- das declarações das arguidas CC e BB, e
- da referida assinatura dos contratos.
Ora, e quanto ao primeiro elemento, já ficou exposto por que aquelas declarações das arguidas não mereceram crédito, mormente na fixação do papel de cada agente dos factos. Quanto ao segundo elemento, a mera assinatura, de mais a mais no quadro definido em 3 dos factos provados e na linha do já exposto, não permite qualquer tipo de afirmação segura quanto aos conhecimentos desta arguida AA, ou ao sentido da sua vontade, no que aos aspectos criminais respeita. Por fim, nenhuma das testemunhas ouvidas em declarações para memória futura teve contacto com ela, mesmo, como referido, aquando da assinatura dos contratos. Neste quadro, permaneceu um espaço de incerteza quanto ao exacto papel desta arguida AA, e ao alcance dos seus conhecimentos. E assim, esta dúvida, racionalmente fundada nos termos expostos (e não superável), impediu a formação de uma convicção segura sobre a matéria em causa e, desta forma, conduziu à exclusão do descrito nas al. a), n), aa) e bb) dos factos não provados.
Os factos reportados em 23 decorreram dos relatórios sociais (em que, pelas suas fontes e metodologia, se confiou no essencial – salvo na parte que conflituava com matéria factual apurada em julgamento) e dos CRC juntos aos autos.
Em especial e quanto à matéria da al. c) dos factos não provados, assentava num equívoco: a sociedade dedica-se à disponibilização de trabalhadores (mormente para actividades agrícolas) e não própria ou directamente a actividades agrícolas. Donde a sua exclusão.
Na al. q) dos factos não provados, a ambiguidade (e generalidade) da expressão «não garantiu a alimentação» justifica a sua exclusão, considerando também que dos depoimentos prestados não decorre que a alimentação fosse causa da queixa realizada.
O teor de fls. 72 e ss. e 205, associado ao depoimento da testemunha NN [inspectora do trabalho que se deslocou ao local] não confirma a alegação quanto à água corrente nos contentores, inexistindo outra prova relevante.
Quanto aos demais factos não provados que não foram expressamente considerados, foram excluídos por não ter sido produzida prova que os confirmasse ou por se terem apurado factos distintos, incompatíveis com aqueles que se excluíram.
Os demais factos constantes das contestações constituem negação dos factos principais, ou instrumentais dessa negação, ou não têm relevo autónomo.
A testemunha EE [advogada que prestava assessoria jurídica em matéria de estrangeiros à D...] não revelou, de um lado, conhecimentos directos sobre os factos em discussão (só prestou assessoria em 2017, após os factos em discussão); de outro lado, o seu depoimento não confirmou qualquer ignorância original das arguidas que a testemunha fosse colmatar - aliás, a preocupação com a situação dos trabalhadores estrangeiros que, segundo a testemunha, era então vivenciada não é apenas compatível com os factos apurados (e o seu eventual relevo criminal) como até seria sua possível consequência natural, dado este processo criminal estar já pendente, com arguidas constituídas, sendo por isso natural que se abandonassem condutas desviantes.
Face aos elementos expostos, também não mereceu relevo o depoimento da testemunha OO [que teria trabalhado, a partir do início de 2017, nos escritórios de empresa da arguida AA, não tendo conseguido, porém, estabelecer uma relação clara com a D...], por, além de se situar em período posterior à data dos factos, também se não ajustar à realidade objectiva apurada em julgamento e já reportada, suportada em prova plural, coincidente e consistente, e, como referido, positivamente valorada pelo tribunal – sem que este depoimento facultasse elementos que abalassem tal valoração.
Eliminaram-se:
-menções conclusivas (ou adjectivos ou advérbios de modo), que constituem meras qualificações, veiculam juízos de valor ou contêm matéria jurídica, sem conteúdo factual concreto [v.g. «exercia as funções de gerência de facto da sociedade conjuntamente com a sua irmã e arguida AA», «estratégicas», «representava a sociedade», «exercia as funções de facto de chefia», «o que conseguiram»]. O mesmo vale para a menção «explorarem» por envolver uma específica valoração (juízo de valor) dos factos descritos.
- a menção a que «fizeram trabalhar» os visados por constituir valoração retirada da alegação subsequente (se folgassem não recebiam qualquer remuneração).”
O ataque à decisão da matéria de facto realizado pela recorrente é deste modo, feito pela via da credibilidade que o tribunal deu a determinados meios de prova.
No fundo o que a recorrente faz é invocar erro de julgamento na apreciação da prova.
A este nível compete avaliar se a decisão do julgador é, ou não, uma solução plausível segundo as regras da experiência, sendo que em caso afirmativo ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção.
E, antecipando a conclusão, dir-se-á desde já que a opção levada a cabo pelo julgador não foi feita de forma caprichosa ou arbitrária. Pelo contrário, mostra-se plenamente objetivada e com absoluta transparência, não procedendo a argumentação da recorrente.
Lendo a motivação da decisão de facto, facilmente se constata que foram essenciais à formação da convicção do tribunal as declarações para memória futura prestados pelas testemunhas LL, II, HH, JJ, FF, KK e GG e o depoimento da testemunha DD, que a recorrente pretende desvalorizar.
Contrariamente ao que a recorrente alega, quando o tribunal não dispuser de outra prova, os depoimentos de testemunhas, opostas, em maior ou menor medida, ao declarado pelo (s) arguido (s), ou ao teor do depoimento de outra testemunha podem fundamentar uma sentença condenatória se depois de examinadas e valoradas as versões contraditórias se considerar aquela versão verdadeira em função de todas as circunstâncias que concorrem no caso.
No caso em apreço, conforme resulta da motivação da decisão de facto, o Tribunal recorrido deu credibilidade às declarações para memória futura das testemunhas LL, II, HH, JJ, FF, KK e GG e ao depoimento da testemunha DD e não deu credibilidade às declarações das arguidas nem relevo ao depoimento das testemunhas EE e OO, tendo justificado plenamente as razões por que o fez, que expressamente consignou na motivação da sentença, como supra transcrito.
E, deste modo, nada permite retirar àquelas declarações para memória futura das testemunhas LL, II, HH, JJ, FF, KK e GG e ao depoimento da testemunha DD a credibilidade que o Tribunal “a quo” lhes atribuiu.
Os depoimentos destas testemunhas não possuem incongruências, contradições, falhas de memória, inexatidões ou hiatos que sejam adequados a suscitar dúvidas sobre a sua veracidade.
Como se salienta no Ac. do STJ de 27-2-2003, proc.º n.º140/03, rel. Cons.º Carmona da Mota :”II O valor da prova, isto é a sua relevância enquanto reconstituinte do facto delituoso imputado ao arguido, depende fundamentalmente da sua credibilidade, ou seja, da sua idoneidade e autenticidade. III A credibilidade da prova por declarações depende essencialmente da personalidade, do carácter e da probidade moral de quem as presta, sendo que tais características e atributos, em princípio, não são apreensíveis ou detetáveis mediante o exame e análise das peças ou textos processuais onde as declarações se encontram documentadas, mas sim através do contacto pessoal e direto com as pessoas.
IV. O tribunal de recurso, salvo casos de exceção, deve adotar o juízo valorativo formulado pelo tribunal recorrido".
Verifica-se, assim, que a recorrente se limita a sustentar que a leitura que o Tribunal fez da prova produzida não é a adequada, não demonstrando, no entanto, que a análise da prova à luz das regras da experiência ou a existência de provas irrefutáveis não consentiam tal leitura, pondo em causa a apreciação da prova feita pelo Tribunal recorrido, tecendo as suas próprias considerações quanto à prova produzida.
Porém, atentando nas declarações para memória futura das testemunhas LL, II, HH, JJ, FF, KK e GG e no depoimento da testemunha DD, bem como na vasta documentação junta aos autos e especificada na motivação da sentença, não vemos razões para concluir no sentido defendido pelo recorrente e alterar a decisão do tribunal recorrido quanto à matéria de facto.
Em julgamento o que tem que ficar provado, para além de qualquer dúvida razoável, é a participação do arguido nos factos, o que resultará naturalmente do facto de o tribunal se convencer, com base em toda a prova produzida e na sua análise crítica, à luz das regras normais da experiência e da sua livre apreciação, de que os factos ocorreram tal como plasmados na matéria de facto assente.
Mais se dirá que a discordância da recorrente quanto à forma como o tribunal recorrido decidiu a matéria de facto não assenta na existência de provas que impusessem decisão diversa da que foi proferida, centrando-se, sim, na forma como foram apreciadas, analisadas e valoradas as provas produzidas, insurgindo-se contra a credibilidade que foi reconhecida a declarações para memória futura e depoimento de testemunhas, bem como documentação inserta nos autos, e em que assentou, com particular incidência, a convicção do Tribunal a quo, como resulta da motivação da decisão de facto, pretendendo a recorrente fazer substituir pela sua a convicção formada pelo tribunal recorrido.
Pretensão da recorrente, porém, sem fundamento, pois que a convicção adquirida pelo tribunal a quo, clara e fundamentada, mostra-se suportada pelos meios de prova que como relevantes e credíveis foram considerados na motivação, apresentando-se como plausível e conforme com as regras da experiência comum.
E, assim sendo, é manifesto que a prova produzida em audiência não impõe decisão diversa da recorrida, inexistindo fundamento para proceder às pretendidas alterações de matéria de facto, sendo improcedente o recurso neste particular.
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- Do alegado, pela recorrente, não preenchimento dos elementos típicos do crime de mão de obra ilegal.
Dispõe o art.185º da Lei 23/2007, de 04.07, que:
1 — Quem, com intenção lucrativa, para si ou para terceiro, aliciar ou angariar com o objetivo de introduzir no mercado de trabalho cidadãos estrangeiros que não sejam titulares de autorização de residência ou visto que habilite ao exercício de uma atividade profissional é punido com pena de prisão de um a cinco anos.
2 — Quem, de forma reiterada, praticar os atos previstos no número anterior, é punido com pena de prisão de dois a seis anos.
3 — A tentativa é punível.
Assim, o que se prevê e pune no tipo legal em causa é a conduta de quem, com intenção de obter, para si ou para terceiro, enriquecimento ilegítimo, aliciar ou angariar com o objetivo de introduzir no mercado de trabalho cidadãos estrangeiros que não sejam titulares de autorização de residência ou visto que habilite ao exercício de uma atividade profissional, ou seja a previsão típica determina que o âmbito da norma pretende prevenir a conduta de quem intente lucrar economicamente por via do aliciamento de pessoas em situação irregular para desempenharem uma atividade laboral.
“II - Para efeitos de preenchimento do tipo criminal de angariação de mão–de–obra ilegal (previsto actualmente no art. 185º da Lei 23/2007, de 4 de Julho), “aliciar” é seduzir, atrair, oferecer ou prometer algo (geralmente dinheiro ou bens), para que se faça ou consiga uma coisa ou uma actuação por parte da pessoa que é objecto de tal acto, e tal elemento típico pode ter-se por preenchido mesmo que o indivíduo objecto de aliciamento não haja entretanto desempenhado qualquer actividade laboral efectiva.” (Ac. do TRP, de 14-09-2022, in www.dgsi.pt).
Ora, analisando os atos objetivos dados como provados, e atentando na matéria de facto assente como provada, conclui-se serem os mesmos suficientes para caracterizar a ação típica do crime de angariação de mão de obra ilegal, mostrando-se preenchidos os elementos típicos do aludido crime.
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- Da medida das penas, parcelares e única
Alega a arguida/recorrente, em síntese, que as penas, parcelares e única, aplicadas são claramente exageradas, perante os factos dados como provados.
Ora, a recorrente mostra-se condenada pela prática de:
i. um crime de angariação de mão de obra ilegal, p. e p. pelo art. 185º n.º1 da Lei 23/2007, de 04.07, na pena de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão;
ii. um crime de angariação de mão de obra ilegal, p. e p. pelo art. 185º n.º1 da Lei 23/2007, de 04.07, na pena de 2 (dois) anos de prisão;
iii. um crime de angariação de mão de obra ilegal, p. e p. pelo art. 185º n.º1 da Lei 23/2007, de 04.07, na pena de 2 (dois) anos de prisão;
- e, em cúmulo jurídico das penas singulares aplicadas, na pena conjunta de 3 (três) anos e 9 (nove) meses de prisão, suspensa na sua execução por idêntico período.
Conforme salienta o Prof. Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, Aequitas, Editorial Notícias, 1993 § 454, «a diminuição da culpa ou das exigências da prevenção só poderá, por seu lado, considerar-se acentuada quando a imagem global do facto, resultante da atuação da (s) circunstâncias (s) se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa ser razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respetivo. Por isso tem plena razão a nossa jurisprudência – e a doutrina que a segue- quando insiste em que a atenuação especial só em casos extraordinários ou excecionais pode ter lugar: para a generalidade dos casos, para os «casos normais», lá estão as molduras penais normais, com os seus limites máximo e mínimo próprios».
A conduta da arguida é grave, reveladora de um desrespeito pelos bens jurídicos protegidos neste tipo de ilícitos criminais, quer pelas circunstâncias em que ocorreu a sua conduta, quer pelas consequências para as vítimas.
Acresce que, a juntar ao seu grau de culpa, surge ainda o elevado grau de indiferença manifestado pela mesma relativamente aos valores comunitários em causa espelhado em toda a sua atuação ao longo da audiência de julgamento, não tendo as suas declarações, como referido na motivação do Acórdão recorrido, merecido crédito “ (…) por, além do contraste com os demais elementos probatórios referidos, apresentar notórias fragilidades extrínsecas (sendo claramente marcada por uma intenção auto desresponsabilizadora, apostada em excluir qualquer papel relevante nos factos que, nos seus termos e excesso, se mostrava implausível) e sobretudo intrínsecas (segundo a sua versão, oferecia-se como mera autómata cumpridora de ordens, excessivamente ignorante) (…)”, e não demonstrando arrependimento, que permite concluir que a mesma não interiorizou, ainda, o desvalor da sua conduta.
Atendendo às necessidades de prevenção geral, as mesmas situam-se já num grau médio/elevado, na medida em que estas condutas perturbam os princípios fundamentais de vivência em sociedade causando insegurança na comunidade.
E, no que diz respeito à prevenção especial, a qual temos por média/alta, teremos que atender ao modo como os crimes ora em apreço foram perpetrados e à intensidade do dolo - que foi sempre direto - que presidiu à sua resolução, bem como aos antecedentes criminais da ora recorrente.
A favor da arguida apenas se apurou o mostrar-se laboral e familiarmente inserida.
Assim, considerando todas as circunstâncias, ponderando em conjunto todos os factos e a personalidade da arguida recorrente e atenta a moldura dos crimes, não podem considerar-se desajustadas, excessivas ou desproporcionadas as penas, parcelares e única, em que foi condenada, não merecendo reservas a elencagem de fatores de medida das penas parcelares e única a que procedeu a decisão recorrida.
O tribunal recorrido teve em atenção todos os elementos disponíveis no processo que interessavam em sede de graduação das penas, parcelares e única, sendo avaliada a conduta da arguida em função dos parâmetros legais, que foram respeitados, nada havendo a acrescentar relativamente aos argumentos já aduzidos na fundamentação utilizada para a determinação da medida das penas parcelares e única em relação aos crimes por que foi condenada que justifique a respetiva alteração, pois que as mesmas se mostram criteriosas, adequadas e proporcionais.
Termos em que o recurso improcede também neste particular.
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Decisão
Face ao exposto, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:
- negar provimento ao recurso interposto, mantendo-se o Acórdão recorrido.
- Custas pela recorrente, fixando a taxa de justiça em 3 Ucs.
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Elaborado e revisto pela primeira signatária
Évora, 21 de novembro de 2023
Laura Goulart Maurício
Margarida Bacelar
Maria Clara Figueiredo