Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
544/19.0T8STB.E1
Relator: ANA MARGARIDA LEITE
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANOS FUTUROS
PREVISIBILIDADE
Data do Acordão: 09/14/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - Os danos futuros são indemnizáveis desde que previsíveis, requisito que se afere pelo grau de probabilidade da respetiva ocorrência;
II - A mera possibilidade da ocorrência de danos futuros não se mostra suficiente para sustentar a condenação na respetiva indemnização, ainda que se relegue a respetiva quantificação para decisão ulterior, dado que a previsibilidade de tais danos constitui requisito da respetiva indemnizabilidade.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 544/19.0T8STB.E1
Juízo Local Cível de Setúbal
Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal


Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:


1. Relatório

(…) intentou a presente ação declarativa, com processo comum, contra Seguradoras (…), S.A. peticionando que seja:
«a. Reconhecido que o causador das lesões e danos provocados na Autora foi exclusivamente do condutor do veículo terceiro segurado na Ré e, assim sendo, considerando a transmissão da responsabilidade operada pela celebração do contrato de seguro, a responsabilidade por parte da Ré pelos danos sofridos pela Autora.
b. Reconhecido o nexo de causalidade entre todos os danos provocados na Autora e resultantes do sinistro provocado pelo condutor do veículo terceiro segurado na Ré e, em consequência, ser condenada a indemnizar o Autora por todos os danos sofridos.
c. A Ré condenada no pagamento de uma indemnização no valor de € 1.870,34, a título de danos emergentes, em que € 1.750,34 dizem respeito aos pagamentos que a Autora teve de fazer a título de contribuições para a Segurança Social durante o período que esteve incapacitada para o trabalho e para não ficar lesada na sua carreira contributiva e € 120,00 em consultas médicas de psicologia.
d. A Ré condenada a indemnizar a Autora a título de lucro cessante, no montante de € 12.500,00, em que € 5.000,00 respeitam ao prejuízo pela perda de venda de automóveis na exposição no Fórum (…) na data do acidente e € 7.500,00 pelos rendimentos perdidos decorrentes da incapacidade temporária da lesada e os benefícios patrimoniais que deixou de obter em consequência da lesão.
e. A Ré condenada a indemnizar a Autora a título de danos futuros, no montante de € 13.655,00, em que € 6.155,00 respeitam aos gastos previsíveis com a segunda cirurgia a realizar, serviços hospitalares, medicamentos e outros, fisioterapia e deslocações e € 7.500,00 referentes à previsível perda económica de rendimentos, decorrentes da incapacidade pela segunda cirurgia e uma maior penosidade na execução das suas tarefas profissionais, a qual comporta direito indemnizatório a ser prestado pela Ré à Autora.
f. A Ré condenada a indemnizar a Autora a título de danos não patrimoniais, no valor de € 11.500,00, pelas lesões sofridas, transtornos físicos e emocionais inerentes, quer a nível físico, quer emocional, pela gravidade da lesão resultante do acidente, com elevado impacto na sua vida íntima e socio-profissional.
g. Bem assim, ser a Ré condenada em todos e quaisquer outros danos de que a Autora venha a sofrer, após a entrada da petição inicial e que sejam consequência do acidente relatado, acrescido dos juros que entretanto se vencerem após a citação da Ré até efetivo e integral pagamento, bem como a indemnizar a Autora do montante dos danos que se vierem a liquidar em execução de sentença e todas as despesas que se vierem a verificar após a instauração da ação e sejam consequência do acidente de que a Autora foi vítima.
h. A Ré condenada no pagamento de custas de parte e custas do processo.»
Peticiona as indicadas quantias a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos em virtude do atropelamento que descreve, ocorrido a 04-05-2017, em (…), pelo veículo de matrícula (…), a cujo condutor atribui a culpa exclusiva na sua produção, encontrando-se transferida para a ré a responsabilidade civil por danos causados a terceiros com a respetiva circulação, como tudo melhor consta da petição inicial.
A ré contestou, aceitando os factos relativos à dinâmica do acidente e impugnando parte da factualidade alegada.
Foi realizada audiência prévia, na qual se fixou o valor à causa e proferiu despacho saneador, após o que se identificou o objeto do litígio e se enunciou os temas da prova.
Foi realizada perícia médico-legal.
Realizada a audiência final, foi proferida sentença, na qual se decidiu o seguinte:
Pelo exposto, julgo a ação parcialmente procedente, por provada e, em consequência:
1) Reconheço que o causador das lesões e danos provocados na Autora foi exclusivamente do condutor do veículo terceiro segurado na Ré.
2) Absolvo a Ré do pagamento do valor de 1.750,34 euros respeitante aos pagamentos que a Autora fez a título de contribuições para a Segurança Social durante o período que esteve incapacitada para o trabalho.
3) Absolvo a Ré do pagamento do montante de 5.000,00 euros respeitante ao prejuízo pela perda de venda de automóveis na exposição no Fórum (…).
4) Condeno a Ré no pagamento do valor global de 4.168,05 euros a título de danos patrimoniais.
5) Condeno a Ré a indemnizar a Autora a título de danos patrimoniais, biológico presente e futuro no valor de 7.500 euros.
6) Condeno a Ré a indemnizar a Autora a título de danos não patrimoniais, no valor de 11.500,00 euros.
7) Condeno a Ré noutros danos futuros que possam vir a manifestar-se como consequência do acidente.
8) Condeno a Ré e a Autora no pagamento das custas do processo, na proporção do seu decaimento.
Registe e notifique.

Inconformada, a ré interpôs recurso desta decisão, limitado ao ponto 7 do segmento decisório, terminando as alegações com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem:
«1) O tribunal decidiu condenar a Ré: “7) Condeno a Ré noutros danos futuros que possam vir a manifestar-se como consequência do acidente” e é contra esta condenação que a Recorrente se insurge, pelos motivos que se passam a enunciar.
2) A Ré entende que a redacção do facto 48 podia e devia ser mais detalhada, isto é, incluindo especificamente os tratamentos que a Autora irá necessitar conforme foi determinado no INML.
3) Isto porque, se não ficar já a constar dos factos assentes que ajudas medicamentosas e tratamentos médicos regulares é que a Autora irá necessitar, poderá levantar dúvidas sobre o que pode ainda a Autora reclamar da Ré.
4) Desta forma, a Ré entende que de acordo com o facto 32 e com recurso ao que ficou determinado pelo INML, o facto 48 deve passar a ter a seguinte redacção:
48. Na sequência do acidente, a Autora carece de ajudas medicamentosas, através de medicação adequada para as dores, apoio psíquico e tratamentos médicos regulares, através de fisioterapia uma vez por ano e acompanhamento psiquiátrico.”
5) Na sequência da alteração da redacção do ponto 48 a Ré entende que também a condenação final será diferente.
6) O tribunal condenou a Ré noutros danos futuros que possam vir a manifestar-se como consequência do acidente.
7) Ora é com esta condenação que a Ré não está de acordo, desde logo porque a Autora quando formulou o pedido em sede de petição inicial ainda não tinha realizado a segunda cirurgia e por isso fazia sentido incluir um pedido genérico de condenação em danos futuros para liquidação da sentença.
8) Mas a partir do momento em que foi realizada a perícia e foi apurado que a Autora já tinha sido submetida à segunda intervenção e que daí para a frente só iria necessitar de ajudas medicamentosas, através de medicação adequada para as dores, apoio psíquico e tratamentos médicos regulares, através de fisioterapia uma vez por ano e acompanhamento psiquiátrico, o pedido da Autora ficou mais circunscrito.
9) Isto é, se no momento em que a Autora formulou o pedido, as hipóteses de condenação em danos futuros era maior, com o resultado da perícia ficou esclarecido quais as ajudas técnicas que a Autora iria passar a receber.
10) Assim, no entender da Ré o Tribunal deveria ter circunscrito a condenação da Ré aos factos que resultaram demonstrado após o decorrer do processo que se iniciou em 2019, mas que só teve sentença no final de 2022 e por isso, a decisão deveria incluir especificamente a condenação em liquidação de sentença, conforme a Autora peticionou, mas que o tribunal omitiu na decisão.
11) Face ao exposto, a Ré entende que a condenação deve passar a ser:
7) Condeno a Ré em liquidação de sentença, no pagamento das despesas de medicação adequadas para as dores, apoio psíquico, fisioterapia uma vez por ano e acompanhamento psiquiátrico, que possam vir a manifestar-se como consequência do acidente.”
A autora apresentou contra-alegações, pronunciando-se no sentido da improcedência da apelação deduzida pela ré.
Face às conclusões das alegações da recorrente, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, cumpre apreciar as questões seguintes:
- da impugnação da decisão relativa à matéria de facto;
- da obrigação de indemnização por danos futuros.
Corridos os vistos, cumpre decidir.


2. Fundamentos

2.1. Decisão de facto

2.1.1. Factos considerados provados em 1.ª instância:
1. A Autora, no dia 4 de maio de 2017, pelas 20h, foi vítima de um acidente por atropelamento na via pública, na Rua de (…), em (…).
2. O acidente foi provocado pelo condutor do veículo de marca (…), matrícula (…) e tomador de seguro/segurado (…), com o número de identificação fiscal (…), residente na Rua de (…), 439, frente D, em (…).
3. A Seguros (…), S.A., foi incorporada, por fusão, na Companhia de Seguros (…), S.A., a qual alterou a denominação da firma para Seguradoras (…), S.A..
4. Entre a Ré, na qualidade de seguradora, e (…), na qualidade de segurado, foi celebrado um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel titulado pela Apólice n.º (…) e regulado pelas Condições Gerais e Particulares.
5. Na sequência da participação de sinistro recebida, a Ré deu início às diligências para determinar a responsabilidade pelo sinistro, tendo concluído que a mesma pertenceu ao veículo por si seguro, tendo assumido a responsabilidade pela regularização do sinistro perante a Autora.
6. A Ré assumiu o seu tratamento clínico da Autora entre os dias 25.07.2017, data da primeira consulta pelos serviços clínicos da Ré, e 27.12.2017, data da alta clínica.
7. Em resultado do atropelamento a Autora foi transportada para o serviço de urgência da CUF Descobertas, onde foi observada e aconselhado que fizesse repouso.
8. Nos dias posteriores sofreu muitas dores e grande agonia, tendo recorrido a uma consulta de ortopedia na CUF onde lhe foi diagnosticada a doença fraturaria – a Autora sofreu Traumatismo do joelho direito com fratura e afundamento do planalto tibial externo
9. No dia 19 de maio de 2017, foi submetida a uma cirurgia no Hospital CUF Descobertas para redução da fratura da tíbia, com material de osteossíntese, tendo despendido o valor de 4.085,58 euros.
10. Do resultado da nota de alta de ortopedia, onde se encontra descrito o acidente e as lesões sofridas pela Autora, retira-se que a mesma sofreu fratura do planalto tibial, rotura do corno anterior do menisco externo e condropartia de grau II/III do condilo femoral interno e os procedimentos cirúrgicos para redução da fratura com colocação de substituto ósseo, fixação com parafusos e placa e reinserção do menisco externo.
11. Quando teve alta hospitalar e no regresso a casa a Autora sentiu-se completamente dependente, deprimida e frustrada, depois de ter sido submetida a uma cirurgia, com todos os transtornos físicos e emocionais a ela inerentes, foi-lhe administrada uma imensidão de fármacos.
12. Em consequência do acidente de que foi alvo e das lesões sofridas e após cirurgia e convalescença ortopédica, teve de fazer fisioterapia diariamente e durante dois meses com o que despendeu o valor global de 275 euros.
13. Esteve incapacitada para trabalhar, de baixa médica, de 4 de maio de 2017 até ao dia 27 de dezembro de 2017.
14. As repercussões e consequências do acidente na vida da Autora verificaram-se ao nível da sua saúde física, padecendo de muitas dores na perna lesionada, assim como dificuldades em dobrar o joelho, notando que devido à imobilização da mesma tem tido perdas significativas da massa muscular, o que a deixa bastante apreensiva.
15. Também na sua vida quotidiana, com a lesão sofrida, a sua vida não mais foi a mesma.
16. A Autora tinha 45 anos de idade à data do acidente e era uma pessoa bastante ativa, que gostava de praticar desporto, o que fazia regularmente três vezes por semana e lhe proporcionava um enorme bem estar físico e psicológico e que deixou de poder fazer.
17. É uma pessoa que releva a aparência estética e imagem cuidada, gostava de usar sapatos de salto alto, o que deixou de poder usar por ter ficado a coxear, o que abala dolorosamente a sua autoestima.
18. Ficou com alterações significativas na sua imagem corporal, com uma cicatriz enorme no joelho da perna lesionada, impedindo-a de voltar a vestir uma mini saia ou calções, peças que faziam parte do seu vestuário e que adorava usar e usava com grande frequência, o que a deixa profundamente triste.
19. A Autora é empresária em nome individual desde 2012, dedicando-se ao comércio de automóveis usados, adquiridos maioritariamente na Alemanha, acarretando vários procedimentos administrativos e legais e gastos imensos, quer com a compra dos automóveis, quer com os dispêndios com a legalização dos veículos.
20. A atividade da Autora implica que a mesma se desloque ao estrangeiro para aquisição dos veículos.
21. Na data do acidente, em 4 de maio de 2017, tinha uma exposição de automóveis no Fórum (...) com a exposição de vinte automóveis.
22. Em virtude e consequência direta do acidente e lesão sofrida, não pode acautelar a exposição, tendo recorrido à ajuda do marido, o qual nem sempre podia estar presente, tendo apenas resultado a venda de cinco automóveis, quando em exposições anteriores o normal de vendas era pelo menos de catorze ou quinze automóveis.
23. Isto porque, não pode estar presente na exposição, como fazia sempre e, por isso, não pode acautelar a exposição e encetar as diligências de marketing essenciais e necessárias à captação de interesse de potenciais compradores, sendo a sua presença e imediação com os mesmos, imprescindível para o sucesso da venda dos automóveis.
24. Sendo os automóveis de rápida desvalorização comercial, estas exposições constituem uma ótima oportunidade e meio para a venda com sucesso e rápido escoamento dos veículos.
25. Depois do acidente, com a cirurgia, com as sessões de fisioterapia diária e tendo ficado incapacitada de trabalhar, teve que despedir o funcionário que tinha, porque deixou de ter capacidade económica para lhe pagar e a sua atividade durante o período em que esteve incapacitada ficou totalmente inativa.
26. Não obstante não poder trabalhar e não ter qualquer fonte de rendimento, com receio de ficar lesada na sua carreira contributiva, continuou às suas expensas a pagar as contribuições para a segurança social, num total de 1.750,34 euros (mil setecentos e cinquenta euros e trinta e quatro cêntimos).
27. Do acidente resultaram também repercussões na sua vida familiar, no relacionamento com o seu filho e marido.
28. A Autora sempre teve uma postura de vida e atitude protecionista para com o seu filho de onze anos de idade.
29. Sempre foi uma mãe presente que acautelava as suas deslocações à escola, o que durante o tempo em que esteve incapacitada não o pode fazer, pois não podia conduzir e teve que alterar o conforto e segurança a que estava habituado, tendo o mesmo que se deslocar de transportes públicos o que o fez sentir desacompanhado e pouco apoiado, tendo causado na Autora uma tristeza e desgaste emocional.
30. No relacionamento com o seu marido a situação de dependência do mesmo, quer a nível de assistência, quer económico no período de convalescença foi profundamente perturbador, sendo uma pessoa com dificuldade em pedir ajuda, mesmo daqueles que lhe são mais queridos e íntimos.
31. Tem a sua auto-estima profundamente abalada, não gostando do seu corpo conforme se apresenta em consequência das lesões sofridas com o acidente, tendo dificuldades no relacionamento intimo e sexual com o seu marido, quer pela sua apresentação estética, quer por não conseguir corresponder, conforme o fazia, face à dificuldade e dores que sente quando dobra a perna lesionada.
32. Em 28.12.2020, foi submetida a nova cirurgia, para retirar a material osteossíntese, com a qual despendeu o valor de 3.947,60 euros, tendo sofrido dores e transtornos, durante o tempo de incapacidade e de reabilitação fisiátrica pós cirúrgica e de recuperação fisiátrica pelo menos uma vez por ano.
33. Antes da cirurgia referida em 33, a Autora fez exames e consultas tendo despendido o valor global de 54,45 euros.
34. Após a realização da cirurgia referida em 33, a Autora teve consultas tendo despendido o valor global de 46,00 euros.
35. O acidente transformou a vida da Autora e a expectativa em relação à mesma.
36. A lesão sofrida causou-lhe, desde o primeiro momento até à atualidade, mal-estar, tanto a nível psicológico como físico, ocupacional e social, tendo-lhe sido diagnosticado “Perturbação Pós – Stress Traumático”, tendo sido submetida a acompanhamento psicológico e nessa sequência gasto o valor de 120,00 euros (cento e vinte) euros, com consultas médicas.
37. Assim, a vida da Autora mudou desde o dia em que foi atropelada, quer a nível físico, quer emocional, pela gravidade da lesão resultante do acidente, com elevado impacto na sua vida íntima e socio-profissional.
38. Tendo tido um decréscimo de vendas, pois com as limitações físicas e psicológicas provocadas pelo acidente, o seu negócio ficou parado, durante período de tempo não concretamente apurado.
39. As lesões sofridas pela Autora consolidaram-se em 27.12.2017.
40. A Autora sofreu um período de ITA entre 04.05.2017 e 06.10.2017, e de ITP – 50% - entre 07.10.2017 e 27.12.2017.
41. O défice funcional temporário total fixou-se em 51 dias.
42. O défice funcional temporário parcial fixou-se em 221 dias.
43. O défice funcional permanente de integridade físico-psíquica fixou-se em 9 pontos.
44. A repercussão temporária na atividade profissional total fixou-se em 119 dias.
45. A repercussão temporária na atividade profissional parcial fixou-se em 118 dias.
46. Quanto à repercussão permanente na atividade profissional parcial, as sequelas implicam esforços suplementares.
47. O quantum doloris foi fixado no grau 4, numa escala de 0 a 7 pontos, ao passo que o dano estético foi fixado no grau 2, em idêntica escala.
48. Na sequência do acidente, a Autora carece de ajudas medicamentosas e tratamentos médicos regulares.
49. Após o acidente e até 25.07.2017, a Autora foi submetida a consultas e fez exames, com o que despendeu o valor global de 437,40.
50. A Ré liquidou à Autora as perdas salariais devidas pelos períodos de ITA e ITP, calculadas de acordo com o rendimento fiscalmente declarado, num total de 3.019,73 euros, assim como o valor de 1.589,56 euros a título de serviços hospitalares, o valor de 123,80 euros a título de medicamentos e outros e o valor de 871,15 euros com deslocação/transporte.
51. A Autora procedeu à cessação da atividade a 17.06.2019.

2.1.2. Factos considerados não provados em 1.ª instância:
- que a autora tenha tido um prejuízo de pelo menos 5.000,00 euros (cinco mil) euros na exposição de automóveis no Fórum (…) que decorria em Maio de 2017, atendendo a que por cada carro que deixou de vender perdeu cerca de 1.000,00 euros (mil) euros de lucro imediato;
- o concreto período de tempo em que a Autora esteve sem exercer a sua atividade como consequência do acidente;
- a concreta perda de rendimento que a Autora teve na sequência da segunda cirurgia.

2.2. Apreciação do objeto do recurso

2.2.1. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
A apelante põe em causa a decisão sobre a matéria de facto incluída na sentença recorrida, preconizando a alteração da redação do ponto 48 da factualidade provada.
Sob a epígrafe Modificabilidade da decisão de facto, dispõe o artigo 662.º do Código de Processo Civil, no seu n.º 1, que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Esta reapreciação da decisão proferida sobre determinados pontos da matéria de facto deve, de forma a assegurar o duplo grau de jurisdição, ter a mesma amplitude que o julgamento efetuado na 1.ª instância, o que importa a apreciação da prova produzida, com vista a permitir à Relação formar a sua própria convicção.
Está em causa, no caso presente, a reapreciação da decisão proferida pela 1.ª instância quanto ao concreto ponto de facto indicado pela recorrente, com vista a apurar se, face à prova produzida, a respetiva redação deve ser modificada.
Defende a apelante que o facto constante do ponto 48 – com a redação: Na sequência do acidente, a Autora carece de ajudas medicamentosas e tratamentos médicos regulares – deve passar a ter a redação que se transcreve: «Na sequência do acidente, a Autora carece de ajudas medicamentosas, através de medicação adequada para as dores, apoio psíquico e tratamentos médicos regulares, através de fisioterapia uma vez por ano e acompanhamento psiquiátrico».
O apelante fundamenta a indicada pretensão na reapreciação do relatório da perícia médico-legal efetuada à apelada, sustentando que este meio de prova especifica as ajudas medicamentosas e os tratamentos médicos regulares de que a autora previsivelmente necessitará, o que impõe um maior detalhe na redação do aludido ponto de facto.
Vejamos se lhe assiste razão.
Extrai-se da fundamentação da sentença recorrida que a decisão relativa ao ponto de facto em apreciação se baseou no relatório da perícia médico legal, especificando-se o seguinte:
Relatório da perícia médico-legal de avaliação do dano corporal, que serviu para prova dos factos descritos em 7, 8, 9, 10, 32 e 39 a 48 dos factos provados. Em termos valorativos, os exames periciais configuram elementos meramente informativos, de modo que, do ponto de vista da jurisdicidade, cabe sempre ao julgador a valoração definitiva dos factos pericialmente apreciados, conjuntamente com as demais provas. Assim, a força probatória das respostas dos peritos é fixada livremente pelo tribunal, tal como decorre do expressamente previsto pelo artigo 389.º do Código Civil. No caso concreto, está em causa a avaliação do dano corporal sujeito a critérios de avaliação rigorosos que obedecem a critérios legais como se disse. Ora, o juízo técnico e científico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador. Perante o exposto, não tendo sido infirmada a conclusão e avaliação do relatório pericial, concorda-se com o mesmo.
Reapreciado o relatório da perícia médico-legal realizada à autora, invocado no supra citado excerto da sentença recorrida, verifica-se que consta da respetiva fundamentação, além do mais, o seguinte:
- Dependências Permanentes de Ajudas:
 Ajudas medicamentosas (correspondem à necessidade permanente de recurso a medicação regular - ex: analgésicos, antiespasmódicos ou antiepilépticos, sem a qual a vítima não conseguirá ultrapassar as suas dificuldades em termos funcionais e nas situações da vida diária). Neste caso medicação adequada para as dores e apoio psíquico;
 Tratamentos médicos regulares (correspondem à necessidade de recurso regular a tratamentos médicos para evitar um retrocesso ou agravamento das sequelas - ex.: fisioterapia). Neste caso necessidade de acompanhamento em ortopedia e psiquiátrico.
Das conclusões do mencionado relatório, por seu turno, e no que respeita a ajudas técnicas permanentes, consta o seguinte:
- Ajudas técnicas permanentes: ajudas medicamentosas; tratamentos médicos regulares.
Da análise do relatório da perícia médico-legal decorre, com clareza, que as ajudas medicamentosas e os tratamentos médicos regulares a que alude este segmento conclusivo se encontram especificados no transcrito excerto da fundamentação, consistindo, respetivamente, em medicação adequada para as dores e apoio psíquico e em acompanhamento em ortopedia e psiquiátrico.
Como tal, impõe-se determinar a modificação da redação do ponto de facto impugnado, de forma a limitar o respetivo âmbito através da especificação dos indicados elementos constantes da fundamentação do relatório da perícia.
Porém, não se vislumbra que decorra do relatório da perícia qualquer outra indicação relativa aos tratamentos a efetuar, designadamente que o acompanhamento em ortopedia se traduza em fisioterapia uma vez por ano, inexistindo fundamento para se consignar tal indicação no ponto de facto em apreciação.
Em suma, procede parcialmente a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, em consequência do que se determina a alteração do ponto 48 da factualidade provada, passando a ter a redação seguinte: Na sequência do acidente, a Autora carece de ajudas medicamentosas – medicação adequada para as dores e apoio psíquico – e de tratamentos médicos regulares – acompanhamento em ortopedia e psiquiátrico.

2.2.2. Obrigação de indemnização por danos futuros
Pretende a autora, com a presente ação, ser indemnizada por danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos em virtude de atropelamento ocorrido no dia 04-05-2017, em (…), pelo veículo de matrícula (…) – relativamente ao qual havia a ré assumido a responsabilidade civil emergente de danos causados a terceiros –, atribuindo ao condutor do veículo a culpa exclusiva na verificação do sinistro e baseando o pedido formulado na responsabilidade civil extracontratual.
Não vem posta em causa no recurso a questão da culpa na verificação do acidente, que a 1.ª instância concluiu caber em exclusivo ao condutor do veículo de matrícula (…), nem a questão da responsabilidade pelo ressarcimento dos danos sofridos pela autora em consequência de tal evento lesivo, que a decisão recorrida considerou competir à ré, em virtude de ter assumido a responsabilidade civil emergente de danos causados a terceiros pelo aludido veículo.
A ré limitou o recurso interposto ao ponto 7 do segmento decisório – com a redação seguinte: Condeno a Ré noutros danos futuros que possam vir a manifestar-se como consequência do acidente –, sustentando que tal condenação deverá ser circunscrita aos danos futuros previsíveis que não se encontrem incluídos nos montantes indemnizatórios já arbitrados na sentença, defendendo seja revogada tal condenação e substituída pela seguinte: «Condeno a Ré em liquidação de sentença, no pagamento das despesas de medicação adequadas para as dores, apoio psíquico, fisioterapia uma vez por ano e acompanhamento psiquiátrico, que possam vir a manifestar-se como consequência do acidente».
Vejamos se lhe assiste razão.
Na sentença proferida nos presentes autos, reconheceu-se ser devida à autora indemnização pelos danos patrimoniais futuros decorrentes da incapacidade permanente geral de que ficou a padecer, em resultado das sequelas das lesões causadas pelo atropelamento ocorrido no dia 04-05-2017.
No que respeita a danos futuros, dispõe o n.º 2 do artigo 564.º do Código Civil o seguinte: Na fixação da indemnização pode o tribunal atender aos danos futuros, desde que sejam previsíveis; se não forem determináveis, a fixação da indemnização correspondente será remetida para decisão ulterior.
Em anotação ao preceito, explica Ana Prata (CÓDIGO CIVIL: Anotado, Coord. Ana Prata, volume I, Coimbra, Almedina, 2017, pág. 724) o seguinte: «O n.º 2 tem implícita a distinção entre os danos presentes e os futuros, sendo a fronteira temporal entre estes a “da data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal” (vide n.º 2 do artigo 566.º) e os momentos ulteriores: presentes são, pois, todos os danos ocorridos até àquela ocasião, futuros sendo os posteriores». Acrescenta a autora (loc. cit.): «A lei prevê a indemnização dos danos futuros, apenas exigindo a sua previsibilidade. Podem não estar determinados nem ser determináveis, hipótese em que a fixação da indemnização será remetida para decisão futura».
No que respeita à exigência de previsibilidade, requisito de indemnizabilidade dos danos futuros estatuído no n.º 2 do citado artigo 564.º, esclarecem António Menezes Cordeiro/A. Barreto Menezes Cordeiro (CÓDIGO CIVIL COMENTADO, Coord. António Menezes Cordeiro, II – Das Obrigações em Geral, Faculdade de Direito Universidade de Lisboa, Almedina, 2021, pág. 579) que «estamos dentro da ideia básica de probabilidade requerida pelo 563.º».
Sob a epígrafe Nexo de causalidade, dispõe o artigo 563.º do Código Civil que a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.
Da análise conjugada destes preceitos decorre que os danos futuros são indemnizáveis desde que sejam previsíveis, requisito que se afere pelo grau de probabilidade da respetiva ocorrência.
Como tal, a mera possibilidade da ocorrência de danos futuros não se mostra suficiente para sustentar a condenação na respetiva indemnização, ainda que se relegue a respetiva quantificação para decisão ulterior, dado que a previsibilidade de tais danos constitui requisito da respetiva indemnizabilidade.
Impõe-se, assim, a alteração da decisão recorrida, na parte relativa ao impugnado ponto 7 do segmento decisório, em que se condenou a ré noutros danos futuros que possam vir a manifestar-se como consequência do acidente.
Analisando a factualidade tida por provada, é de considerar que o requisito de previsibilidade se encontra preenchido relativamente aos danos futuros consignados na nova redação do ponto 48 de 2.1.1. [Na sequência do acidente, a Autora carece de ajudas medicamentosas – medicação adequada para as dores e apoio psíquico – e de tratamentos médicos regulares – acompanhamento em ortopedia e psiquiátrico], os quais se mostram, assim, indemnizáveis, cumprindo remeter a fixação da indemnização correspondente para decisão ulterior, conforme dispõe a 2.ª parte do n.º 2 do citado artigo 564.º.
Nesta conformidade, na parcial procedência da apelação, há que revogar o ponto 7 do segmento decisório da sentença recorrida e, em substituição, condenar a ré a pagar à autora as quantias que vierem a ser liquidadas em decisão ulterior, relativas às despesas com medicação adequada para as dores e apoio psíquico, bem como acompanhamento médico em ortopedia e em psiquiatria, emergentes da incapacidade permanente geral de que ficou a padecer em resultado do acidente ocorrido no dia 04-05-2017.


Em conclusão: (…)


3. Decisão

Nestes termos, acorda-se em julgar parcialmente procedente a apelação, em consequência do que se decide:
a) condenar a ré a pagar à autora as quantias que vierem a ser liquidadas em decisão ulterior, relativas às despesas com medicação adequada para as dores e apoio psíquico, bem como acompanhamento médico em ortopedia e em psiquiatria, emergentes da incapacidade permanente geral de que ficou a padecer em resultado do acidente ocorrido no dia 04-05-2017;
b) revogar, em conformidade, o ponto 7 do segmento condenatório da sentença recorrida e absolver a ré do mais abrangido por tal ponto.
Custas por apelante e apelada, na proporção de 1/10 para a primeira e 9/10 para a segunda.
Notifique.
Évora, 14-09-2023
(Acórdão assinado digitalmente)
Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite
(Relatora)
José Manuel Tomé de Carvalho
(1.º Adjunto)
Rui Manuel Machado e Moura
(2.º Adjunto)