Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
46/21.5T8ABT-G.E1
Relator: ISABEL DE MATOS PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: INVENTÁRIO PARA SEPARAÇÃO DE MEAÇÕES
CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
CRÉDITO BANCÁRIO
Data do Acordão: 10/26/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: - do acordo celebrado no âmbito do processo de divórcio no sentido de determinar a atribuição do uso da casa de morada de família ao cônjuge marido, até à partilha, declarando este assumir a obrigação de pagamento das prestações do empréstimo bancário, até à partilha, resulta que a assunção da obrigação de pagamento integral das prestações decorrentes do crédito contraído para aquisição da casa de morada de família se destinava a compensar a cônjuge mulher da atribuição de tal uso exclusivo ao cônjuge marido;
- sem embargo de tal acordo não ser oponível ao credor (artigo 406.º/2, do CC), nas relações entre os cônjuges e no âmbito do processo de inventário para partilha dos bens comuns, a verba relativa ao montante global pago a esse respeito não consubstancia o pagamento de uma dívida comum, o que ocorreria se o pagamento do valor integral das prestações por um dos cônjuges tivesse sido realizado sem qualquer acordo nesse sentido;
- por ter sido firmado o referido acordo, o pagamento, pelo cabeça-de-casal daquelas prestações, com bens próprios, traduz o cumprimento de uma obrigação da sua responsabilidade, não sendo de aplicar o regime inserto no artigo 1697.º, seja o n.º 1, seja o n.º 2;
- logo, nenhuma compensação é devida pela Interessada a esse respeito;
- uma vez que ao direito à ocupação exclusiva pelo cabeça-de-casal da casa de morada de família, consentida pelo acordo firmado entre as partes, corresponde a obrigação deste de pagar integralmente as prestações do empréstimo bancário para aquisição da mesma, o cabeça-de-casal não é devedor de quantia equivalente ao valor locativo da casa que ocupa;
- tendo o casal decido aplicar a verba de € 5.000,00 que foi doada à Interessada por sua mãe na realização de investimento na casa de morada de família, dotando-a de garagem, assiste à Interessado o direito a ser compensada pelo património comum pelo referido montante.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Évora


I – As Partes e o Litígio

Recorrente / Interessada: AA
Recorrido / Cabeça-de-Casal: BB

A Interessada AA requereu a instauração de inventário para partilha de bens na sequência do divórcio do casal. Apresentou relação de bens móveis comuns a partilhar, de bem imóvel e mencionou o passivo decorrente de empréstimo bancário contraído para aquisição da casa de morada de família.
O Cabeça-de-casal apresentou relação de bens. Dela consta, designadamente, sob a forma de Passivo:
- verbas relativas a saldos de crédito bancários:
- verba n.º 1: saldo de crédito imobiliário contraído para aquisição da casa de morada de família, com início em 07/08/2018;
- verba n.º 2: saldo de crédito Multifinalidades, com início em 07/08/2018;
- verba n.º 3: saldo de crédito Multifinalidades, com início em 05/04/2019;
- verba n.º 4: saldo do crédito automóvel;
- dívidas da Interessada ao Cabeça-de-casal a título de compensação de valores por ele exclusivamente pagos mensalmente e que são da responsabilidade de ambos, a saber:
- verba n.º 5: saldo da compensação devida relativa à verba n.º 1;
- verba n.º 6: saldo da compensação devida relativa à verba n.º 2;
- verba n.º 7: saldo da compensação devida relativa à verba n.º 3;
- verba n.º 8: saldo da compensação devida relativa à verba n.º 4;
- verba n.º 9: saldo da compensação devida decorrente do pagamento de IMI;
- verba n.º 10: saldo da compensação devida decorrente do IUC;
- verba n.º 11: saldo da compensação devida decorrente do pagamento de seguros de vida inerentes aos créditos bancários;
- verba n.º 12: saldo da compensação devida decorrente do pagamento de prémio de seguro a A..., SA.
A Interessada apresentou reclamação invocando, designadamente, o seguinte:
- nada dever ao Cabeça-de-casal pois, quando muito, existirá um crédito do Cabeça-de-casal contra o património comum ou um crédito a reclamar em de prestação de contas;
- ser de aditar a verba correspondente ao montante mensal de €350 desde março de 2022 a título de dívida do Cabeça-de-casal ao património comum, o que corresponde ao valor locativo da casa de morada de família que o Cabeça-de-casal vem ocupando;
- assim não se entendendo, deve o Cabeça-de-casal à Interessada metade desse valor;
- ser de aditar a verba de €5 000 a título de dívida do património comum à Interessada correspondendo à quantia doada pela mãe da Interessada e que foi empregue na construção de garagem edificada no prédio descrito na verba n.º 25 do ativo;
- assim não se entendendo, deve o Cabeça-de-casal à Interessada aquele valor.
A Interessada requereu a condenação do Cabeça-de-casal por litigância de má-fé a pagar-lhe a quantia não inferior a 20 UC, invocando que ao reclamar o pagamento de metade das prestações que vem suportando com o pagamento do crédito bancário contraído para a aquisição da casa de morada de família vai contra o que foi acordado e decidido no processo: que a casa de morada de família lhe ficaria atribuída até à realização da partilha, declarando ele assumir a obrigação de pagamento daquelas prestações.
Em resposta, o Cabeça-de-casal fez constar o seguinte:
- não aceita aditar qualquer valor a relação de bens como dívida sua ao património comum do casal;
- não aceita que acresça qualquer montante mensal por se encontrar a habitar a casa de morada de família;
- o imóvel constante da verba n.º 25 é propriedade de ambos, cabeça de casal e Interessada, pelo que o valor do empréstimo hipotecário que recai sobre o mesmo é igualmente da responsabilidade de ambos;
- não aceita aditar a relação de bens com um crédito de €5.000,00 a recair sobre si, nem sobre o património comum do ex-casal.

II – O Objeto do Recurso
Foi proferido despacho saneador no âmbito do qual foi decidido, designadamente, o seguinte:
«D) Manter, na relação de bens, na parte do passivo, as verbas n.ºs 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11 e 12 (…);
E) Indeferir a reclamação apresentada contra a relação de bens, na parte em que a interessada AA pediu um valor locativo mensal referente à ocupação, por parte do cabeça-de-casal, da casa de morada de família, desde o divórcio, até à partilha.
F) Indeferir a reclamação apresentada contra a relação de bens, na parte em que a interessada AA pediu uma compensação em relação à quantia de € 5.000,00, que lhe foi doada por sua mãe.
G) Indeferir os pedidos de retirada do apoio judiciário, ao cabeça-de-casal e de condenação do mesmo, como litigante de má fé, formulados pela interessada AA.»
Relativamente às verbas do passivo, foi determinado o seguinte:
«que, em sede de conferência de interessados, seja indicado o montante total com que o cabeça-de-casal pagou, com dinheiro próprio, os empréstimos bancários contraídos para a aquisição da casa de morada de família e do veículo automóvel e todos os demais empréstimos que consubstanciam despesas comuns do casal, incluindo o IMI e o pagamento de seguros, que são despesas comuns do casal, sendo que todas elas o cabeça-de-casal se encontra a pagar em exclusivo e sendo que, no mapa da partilha, será abatido ao valor do património comum, o valor pago, às instituições bancárias e a todas as demais entidades, exclusivamente com bens próprios do cabeça-de-casal, ficando o mesmo credor do património comum.»

Inconformada, a Interessada apresentou-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida. As conclusões da alegação do recurso são as seguintes:
«1. O Tribunal a quo, salvo erro e o devido respeito, cometeu erro de atividade, porquanto fez errada interpretação e aplicação das normas processuais. Bem como cometeu erro de julgamento, porquanto fez errada interpretação e aplicação das normas de direito substantivo.
2. Lavrou o Tribunal a quo ao ter decidido que:
“D) Manter, na relação de bens, na parte do passivo, as verbas nºs 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11 e 12, com o entendimento supra exposto quanto ao seu pagamento.”
3. Dando-se como reproduzidas as verbas nº 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11 e 12 do Passivo, que a interessada, ora reclamante reclamou pedindo a sua eliminação.
4. Pois, aquando da tentativa de conciliação do divorcio sem consentimento, para divorcio por mútuo consentimento, foi acordado algo diverso entre as partes.
5. Assim, e conforme consta da sentença recorrida:
“Na ata da tentativa de conciliação do divórcio sem consentimento, para divórcio por mútuo consentimento, diligência realizada no dia 1/3/2021, no âmbito do processo de divórcio nº 46/21.5T8ABT do Juízo de Família e Menores ... do Tribunal Judicial da Comarca de ..., consta que os interessados acordaram o seguinte: «A casa de morada de família fica atribuída ao cônjuge marido até à partilha, declarando este assumir a obrigação do pagamento das prestações do empréstimo bancário para aquisição da mesma, até à partilha ». (o sublinhado é nosso)
6. Sendo tal acordo, objeto de despacho transitado em julgado, que homologou o mesmo, no que toca ao destino da casa de morada de família.
7. Acordo, esse, nos termos da Lei necessário para a conversão do divórcio para mútuo consentimento.
8. Tal decisão transitou em julgado, fazendo caso julgado, vinculando quer as partes quer o Tribunal a quo.
9. Por outro lado, e em todo o caso, a ora recorrente não deve tais montantes ao cabeça de casal. A existir tal divida, a mesma será um crédito que o cabeça de casal terá sobre o património comum do casal. E assim, deveria ter sido relacionado pelo cabeça de casal, o que não aconteceu.
10. Ou, no máximo, seria um crédito a reclamar em sede de prestação de contas.
11. Tal como foi alegado pela interessada!
12. Sucede que, o Tribunal a quo, ao contrario da sentença que proferiu e homologou tal acordo entre as partes, violando a autoridade do caso julgado, e a própria sentença que proferiu, decidiu manter tal passivo.
13. Pois, segundo a sentença, os empréstimos em causa são dívidas comuns do casal, ou dívidas que responsabilizam ambos os cônjuges, e estando o cabeça-de-casal, por estar a pagar exclusivamente as mesmas, com dinheiro próprio, no mapa da partilha, será abatido ao valor do património comum, o valor pago, às instituições bancárias e a todas as demais entidades, exclusivamente com bens próprios do cabeça-de-casal, ficando o mesmo credor do património comum.
14. Com o devido respeito, em grande confusão lavou o douto despacho de que se recorre.
15. Assim, como é obvio, os empréstimos em causa, são despesas comuns do casal!
16. Daí, a recorrente não ter impugnado as verbas nº 1, 2, 3, 4 do Passivo.
17. Sendo, já se vê, a ora recorrente igualmente responsável perante tais credores bancários, pelo pagamento de tais créditos que foram concedidos ao casal.
18. Porém, outra coisa completamente diferente, é a responsabilidade pelo pagamento desse passivo perante tais credores, do modo como foi assumido pelos devedores, ora cabeça de casal e interessada. Sendo que, tal acordo, inter partes (cabeça de casal e interessada) em nada vincula terceiros (isto é, credores) que não intervieram nesse acordo!
19. E é aqui que reside a confusão do Tribunal a quo!
20. Assim, o cabeça de casal e a interessada, acordaram, o que foi homologado por sentença, transitada em julgado, que: «A casa de morada de família fica atribuída ao cônjuge marido até à partilha, declarando este assumir a obrigação do pagamento das prestações do empréstimo bancário para aquisição da mesma, até à partilha».
21. Ora, apesar de tal acordo não vincular os credores, e assim não desonerar de tais obrigações, a ora interessada, recorrente. No entanto, tal acordo inter partes, isto é, entre o cabeça de casal e a interessada, vincula os mesmos.
22. Vinculação, essa, resultante de acordo homologado por sentença, que faz caso julgado. E assim, inclusive, do conhecimento oficioso do Tribunal a quo, que não poderá ir contra uma sua sentença! Sob pena de violação de Caso Julgado! O que se verifica na sentença recorrida!
23. Assim, atendendo ao acordado entre o cabeça de casal e a interessada em sede de conferencia de interessados. Isto é, que a casa de morada de família seria atribuída ao cabeça de casal, assumindo este em contrapartida, a obrigação do pagamento das prestações do empréstimo bancário para aquisição da mesma, até à partilha.
24. Assim, deverá ser revogada a sentença, na parte que decidiu que:
“D) Manter, na relação de bens, na parte do passivo, as verbas nºs 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11 e 12, com o entendimento supra exposto quanto ao seu pagamento.”
25. Bem como deverá ser revogado “o entendimento supra exposto quanto ao seu pagamento.”
26. Pois, para além de tal violar acordo entre as partes, homologado por sentença, tal decisão e seus fundamentos, consubstanciam uma dupla nulidade, nos termos do art. 615º nº 1 c), d), e) do Cód. Proc. Civil.
27. Como resulta da relação de bens apresentada pelo Cabeça de casal, este relacionou as verbas nºs 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11 e 12 do passivo, como sendo créditos do cabeça de casal sobre a interessada, ora recorrente.
28. Sucede que, esse foi a causa de pedir que suportou o respetivo pedido formulado pelo cabeça de casal.
29. Ao contrário do peticionado pelo cabeça de casal e contra o pedido deste, o Tribunal a quo decidiu que por tais montantes pagos pelo cabeça de casal, não resulta um crédito sobre a interessada, mas sim sobre o património comum.
30. Consubstanciando tal decisão uma nulidade, porquanto, o juiz conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento; bem como condenou em objeto diverso do pedido.
31. Mas outra nulidade mais grave foi cometida! Pois, os fundamentos da decisão estão em manifesta contradição.
32. Assim, os fundamentos da decisão da alínea D), estão em ostensiva e manifesta oposição com os fundamentos para “E) Indeferir a reclamação apresentada contra a relação de bens, na parte em que a interessada AA pediu um valor locativo mensal referente à ocupação, por parte do cabeça-de-casal, da casa de morada de família, desde o divórcio, até à partilha.”
33. Consubstanciando tal contradição nos fundamentos da sentença uma nulidade nos termos do art. 615.º nº 1 c) do Cód. Proc. Civil.
34. Lavrou o Tribunal a quo ao ter decidido que:
“E) Indeferir a reclamação apresentada contra a relação de bens, na parte em que a interessada AA pediu um valor locativo mensal referente à ocupação, por parte do cabeça-de-casal, da casa de morada de família, desde o divórcio, até à partilha.”
35. Para suportar tal decisão consta da decisão recorrida não ser devido à interessada AA qualquer valor locativo mensal referente à ocupação, por parte do cabeça-de-casal, da casa de morada de família.
Isto porque,
“A jurisprudência seguida por este Tribunal tem entendido, a propósito da compensação devida ao interessado que não habita a casa de morada de família, que, tendo as partes acordado que a utilização da casa de morada de família, pelo cabeça-de-casal, teria como contrapartida o pagamento, por este, do empréstimo contraído para a sua aquisição (como sucede no presente caso), não é possível – porque não está escrito no acordo efetuado aquando do divórcio – fixar uma outra contrapartida, a pagar ao ex-cônjuge que não habita a casa de morada de família e que nem sequer paga o empréstimo contraído para a compra da mesma.
Com efeito, o pagamento do empréstimo contraído para a aquisição da casa de morada de família surge como consequência da atribuição do uso da casa de morada de família ao ex-cônjuge que nela habita, pelo que, sendo esse ex-cônjuge a pagar em exclusivo o empréstimo (como sucede no presente caso) não deve ficar onerado com o pagamento de uma outra quantia não especificamente prevista no acordo de divórcio.”
35. Assim, o Tribunal a quo entendeu, que in casu, o cabeça de casal ao pagar as prestações mensais do empréstimo contraído como contrapartida de utilizar a casa de morada de família, tal é impeditivo de lhe se ser peticionada outra quantia pela utilização de tal casa.
36. Daí, resulta já se vê, que a procedência de tal fundamento, implica necessariamente, que o Tribunal a quo deveria ter julgado procedente o não manter, na relação de bens, na parte do passivo, as verbas nºs 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11 e 12.
37. Pois,
a) foi acordado pelas partes homologada por sentença transitada em julgado:
«A casa de morada de família fica atribuída ao cônjuge marido até à partilha, declarando este assumir a obrigação do pagamento das prestações do empréstimo bancário para aquisição da mesma, até à partilha».
b) Porém, apesar do acordado e decidido com transito em julgado, o Tribunal a quo decide “D) Manter, na relação de bens, na parte do passivo, as verbas nºs 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11 e 12, com o entendimento supra exposto quanto ao seu pagamento.”
Pois, entende (ao contrario do acordado e julgado), que os montantes que o cabeça de casal paga com dinheiro próprio, deverá ser abatido ao património comum.
c) Porém, em manifesta oposição com a decisão em D), decide:
“E) Indeferir a reclamação apresentada contra a relação de bens, na parte em que a interessada AA pediu um valor locativo mensal referente à ocupação, por parte do cabeça-de-casal, da casa de morada de família, desde o divórcio, até à partilha.”
Isto porque, como tendo o cabeça de casal como contrapartida de utilizar em exclusivo a casa de morada de família, a obrigação de pagar a prestação mensal do empréstimo contraído para a aquisição da mesma. Não lhe pode ser exigido qualquer valor locativo, pois, já está onerado com a obrigação de pagamento de tais prestações mensais!
37. Assim, por um lado, o cabeça de casal pode reclamar do património comum as prestações mensais e demais encargos, pela utilização em exclusivo da cada de morada de família até à partilha!!!
38. Por outro lado, não lhe pode ser exigido o pagamento de qualquer valor pela utilização em exclusivo da casa de morada de família, pois, já se encontra onerado com o pagamento dessas prestações mensais!!!
39. Ora, das duas uma, ou é revogada a decisão proferida na alínea D), ou é revogada a decisão proferida na alínea E).
40. Pois, os fundamentos de ambas são contraditórios.
41. Assim, deverá ser revogada a decisão proferida na alínea E) e deferir reclamação apresentada contra a relação de bens, na parte em que a interessada AA pediu um valor locativo mensal referente à ocupação, por parte do cabeça-de-casal, da casa de morada de família, desde o divórcio, até à partilha.”
42. Tanto mais que, e como resultada sentença:
“Note-se que o cabeça-de-casal, desde a data do divórcio, é quem habita, em exclusivo, a casa de morada de família, como o próprio referiu quando prestou depoimento de parte no presente inventário.
A interessada AA, por sua vez, habita numa casa arrendada, como a própria referiu quando foi inquirida no inventário e foi confirmado pelas testemunhas CC e DD.”
43. Lavrou o Tribunal a quo ao ter decidido que:
“F) Indeferir a reclamação apresentada contra a relação de bens, na parte em que a interessada AA pediu uma compensação em relação à quantia de € 5.000,00, que lhe foi doada por sua mãe.”
44. Para tanto consta da sentença os seguintes fundamentos:
- “a mãe da interessada AA doou, a esta, no dia 31/8/2016, a quantia de €5.000,00, sendo que a interessada e o então marido, o ora cabeça-de-casal, destinaram essa quantia à compra de uma casa anexa à casa de morada de família, para o casal construir aí uma garagem.”
- “O regime de bens deste casal era o regime da comunhão de adquiridos, conforme assento de casamento junto aos autos apensos de divórcio.”
- “A doação foi feita durante o casamento, a um dos cônjuges.”
- “Por isso, o dinheiro doado era um bem próprio da interessada AA, nos termos do disposto no artº 1722º, al. b) do C.C.”
- “No entanto, este montante foi usado na compra de uma casa, onde foi construída uma garagem e não foi alegado, por nenhum dos interessados, quanto custou a casa que os interessados compraram”
45. Ora, daqui resulta que não tendo sido alegado e assim não tendo sido provado, se o valor maior aplicado nesse imóvel, é o resultante do dinheiro doado à interessada, que era um bem próprio, ou se do dinheiro comum do casal, não de pode considerar tal bem, um bem próprio da interessada.
46. Sendo que, nem tal foi peticionado ou alegado pela interessada.
47. Porém, fixa o art. 1726º nº 2 do Cód. Civil:
“2. Fica, porém, sempre salva a compensação devida pelo património comum aos patrimónios próprios dos cônjuges, ou por estes aqueles, no momento da dissolução e partilha da comunhão.”
48. Assim, provado que ficou, e de acordo com a sentença recorrida, que foi usada a quantia de € 5.000,00, na compra de uma casa, onde foi construída uma garagem. Quantia, essa, de € 5.000,00, que era um bem própria da interessada AA.
49. Esta nos termos do art. 1726º nº 2 do Cód. Civil, tem um crédito sobre o património comum do casal de € 5.000,00.
50. Pelo que, deverá ser igualmente revogada, nesta parte, a sentença recorrida.
51. Lavrou o Tribunal a quo em erro ao ter decidido:
“G) Indeferir os pedidos de (…) de condenação do mesmo, como litigante de má fé, formulados pela interessada AA.”
52. Ora, e como resulta dos autos, o cabeça de casal com a relação de bens que apresentou, pretendeu um enriquecimento ilegítimo.
53. Pois, veio o cabeça de casal requerer nos presentes autos, o pagamento pela interessada, de metade das prestações que suporta pelo empréstimo bancário, contraído para a aquisição da casa de morada de família, desde a data em que foi decretado o divorcio.
54. Sucede que, ficou acordado e decidido em sede de Tentativa de Conciliação, no âmbito do processo de divórcio (Proc. 46/21.5T8ABT) que a casa de morada de família ficaria atribuída ao executado/embargante até à realização da partilha e mais aquele declarou assumir a obrigação do pagamento das prestações do empréstimo bancário para a aquisição da mesma.
55. O que foi objeto de decisão transitada em julgado.
56. Assim, o cabeça de casal ao reclamar metade do pagamento de tais prestações à requerente, para alem de cometer um venire contra factum proprium, vai contra o que foi acordado e decidido nos autos principais.
57. Pelo que, o cabeça de casal litiga em conformidade com manifesta e ostensiva má-fé processual, nos termos do art. 542º, 543º do Cód. Proc. Civil.
58. Assim, o cabeça de casal, faz tabua rasa do que foi acordado na tentativa de conciliação, conforme resulta da respetiva ata, como supra exposto.
59. Pelo que, não pode reclamar nestes autos o pagamento das prestações do empréstimo que contraiu, após divórcio, à ora exequente. Quando, utiliza em exclusivo a casa que foi de morada de família, contra a assunção do pagamento de tais prestações mensais.
60. Maior exemplo de litigância de má-fé processual, será difícil de encontrar.
61. Assim, o cabeça de casal deduz pretensão cuja falta de fundamento não pode ignorar até pela pessoalidade dos factos em causa.
62. Alterando a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa.
63. Fazendo do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, entorpecer a ação da justiça.
64. Devia, assim, o cabeça de casal ser condenado de forma exemplar como litigante de má-fé.
65. Devendo ser condenado em indemnização a favor da interessada, esta última não inferior a 20 UCs, ou em montante a fixar pelo presente Tribunal, e em multa.
66. Tudo nos termos do art. 543º do Cód. Proc. Civil.
67. Pelo que, nesta parte a sentença violou o disposto nos arts. 542º e 543º ambos do Cód. Proc. Civil, devendo a mesma ser revogada.
68. Em consequência, deverá ser revogada a condenação na parte das custas.»

Foram apresentadas contra-alegações. O Recorrido sustenta não enfermar a decisão de qualquer nulidade e inexistir fundamento para acolher as pretensões esgrimidas no recurso.

Cumpre conhecer das seguintes questões:
i. Da nulidade da decisão;
ii. Do débito da Interessada decorrente da obrigação de pagamento das prestações do crédito bancário contraído para a aquisição da casa de morada de família;
iii. Do crédito do património comum contra o Cabeça-de-casal pela ocupação exclusiva deste da casa de morada de família;
iv. Do crédito da Interessada contra o património comum pela verba de € 5.000,00;
v. Da litigância de má-fé.

III – Fundamentos
A – Dados a considerar: os supra relatados e, bem assim, o seguinte:
1 - A Interessada e o Cabeça-de-casal contraíram matrimónio no dia 7 de Agosto de 2010, sem convenção antenupcial.
2 - A mãe da Interessada AA doou a esta, no dia 31/08/2016, a quantia de €5 000, quantia que o casal empregou na construção da garagem edificada no prédio identificado sob a Verba n.º 25 do ativo – facto admitido por acordo.
3 - Na ata da tentativa de conciliação do divórcio sem consentimento, para divórcio por mútuo consentimento, diligência realizada no dia 1/3/2021, no âmbito do processo de divórcio nº 46/21.5T8ABT do Juízo de Família e Menores ... do Tribunal Judicial da Comarca de ..., consta que os interessados acordaram o seguinte: «A casa de morada de família fica atribuída ao cônjuge marido até à partilha, declarando este assumir a obrigação do pagamento das prestações do empréstimo bancário para aquisição da mesma, até à partilha.»
4 – O Cabeça-de-casal vem ocupando em exclusivo a casa de morada de família – facto admitido por acordo.
5 – O Cabeça-de-casal vem suportando, em exclusivo, o pagamento das prestações junto das instituições bancárias – facto admitido por acordo.
6 – Da relação de bens consta apenas um bem imóvel, relacionado sob a verba n.º 25 pelo valor de €71 744,08, correspondendo ao prédio urbano sito em ..., ..., prédio de 2 pisos afeto a habitação – cfr. certidão do registo predial que instrui a relação de bens.
Os factos provados resultam dos documentos juntos aos autos e aos autos de divórcio a que estes se encontram apensos, e da circunstância de terem sido admitidos por acordo em face do regime inserto no art. 574.º do CPC.

B – As questões do Recurso
i. Da nulidade da decisão
Na ótica da Recorrente, o Tribunal de 1.ª Instância tomou conhecimento de questão de que não podia conhecer e condenou em objeto diverso do pedido. O que teve lugar a propósito da pretensão do cabeça-de-casal de ver reconhecidos créditos seus sobre a Interessada, ora Recorrente, tendo o Tribunal consignado que os montantes pagos pelo Cabeça-de-casal constituem créditos deste contra o património comum.
Nos termos do disposto no art. 615.º/1 do CPC, é nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
São as nulidades típicas da sentença, que se reconduzem a vícios formais decorrentes de erro de atividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal e que se mostrem obstativos de qualquer pronunciamento de mérito.[1]
Nos termos do disposto no artigo 3.º/ 1 do CPC, o tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada a deduzir oposição. Em consonância com tal regime, o artigo 608.º/2 do CPC estatui que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
Está em causa o princípio dispositivo.
No que respeita a saber quais sejam as questões a apreciar, importa atentar na configuração que as partes deram ao litígio, levando em conta a causa de pedir, o pedido e as exceções invocadas pelo demandado. Assim, as questões serão apenas as questões de fundo, isto é, as que integram matéria decisória, tendo em conta a pretensão jurídica que se visa obter. Não serão os argumentos, as motivações produzidas pelas partes, mas sim os pontos de facto ou de direito relevantes no quadro do litígio, ou seja, os concernentes ao pedido, à causa de pedir e às exceções.[2]
Na verdade, o pedido e a causa de pedir plasmados na petição inicial por via da qual se exerce o ónus de impulso processual é que conformam o objeto do processo. As questões suscitadas pelas partes só ficam devidamente individualizadas quando se souber qual é o objeto dela (o pedido) senão também qual o fundamento ou razão do pedido apresentado (causa de pedir).[3] E o objeto da sentença há de ser idêntico ao objeto do processo, assim se afirmando a identidade entre a causa de pedir e a causa de julgar.[4] Donde, a sentença não pode versar senão as questões suscitadas pelas partes, salvo as de conhecimento oficioso (art. 608.º/2/2.ª parte do CPC) e não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir (art. 609.º/1 do CPC), sob pena de nulidade (art. 615.º/1/als. d) e e), respetivamente, do CPC).
No caso em apreço, está em causa a definição dos bens que devem integrar a relação de bens comuns a partilhar no inventário instaurado na sequência do divórcio do casal e, bem assim, dos créditos e dívidas, com identificação dos respetivos devedores e credores – cfr. art. 1098.º do CPC.
O despacho de saneamento do processo a que alude o art. 1110.º do CPC, tendo em vista resolver todas as questões suscetíveis de influir na partilha e na determinação dos bens a partilhar (cfr. al. a) do n.º da citada disposição legal), toma em consideração o teor da relação de bens apresentada pelo cabeça-de-casal, as reclamações apresentadas à relação de bens e a resposta que seja prestada a tais reclamações.
Ora, tendo o Cabeça-de-casal relacionado créditos seus contra a Interessada e tendo esta, na reclamação apresentada, sustentado que, “a existir tal dívida, a mesma será um crédito que o cabeça-de-casal terá sobre o património comum do casal”[5], é de concluir que a decisão tomada em sede de despacho de saneamento nesta matéria, decidindo que o Cabeça-de-casal é credor do património comum pelo pagamento integral das prestações junto das instituições financeiras, acolheu posição avançada pela Interessada reclamante.
Na medida em que a decisão não extravasou o âmbito no qual se processou a discussão entre as partes, antes conformando a pretensão do Cabeça-de-casal ao que resultou ser devido face ao teor da reclamação apresentada pela Interessada, afigura-se não enfermar a decisão de nulidade por apreciação de questões de que não se podia tomar conhecimento nem por ter fixado objeto diverso do pedido.
Segue a Recorrente sustentando que a decisão assenta em fundamentos que estão em manifesta contradição. É que foi indeferida a pretensão de lhe atribuir crédito correspondente ao valor locativo da casa ocupada pelo Cabeça-de-casal com fundamento na circunstância de tal ocupação exclusiva ter já como contrapartida a obrigação de pagamento da totalidade da prestação mensal do empréstimo bancário (não sendo devidas outras contrapartidas) e, ao mesmo tempo, foi determinado que o Cabeça-de-casal pode reclamar do património comum as prestações mensais que pagou. Deverá, então, ser reconhecido o direito a valor locativo mensal decorrente da ocupação exclusiva da casa de morada de família pelo Cabeça-de-casal.
A contradição que implica na nulidade da decisão é a contradição entre os fundamentos e a decisão (cfr. al. c) do n.º 1 do art. 615.º do CPC). Ocorre quando a construção da sentença é viciosa, uma vez que os fundamentos referidos conduziriam logicamente, não ao resultado expresso, mas a uma decisão de sentido oposto; ocorre quando a decisão briga com o fundamento, está em oposição com ele[6], quando o fundamento repele a decisão.
A alegada circunstância de os fundamentos de um segmento decisório serem contraditórios com os fundamentos de outro segmento decisório (podendo, eventualmente, evidenciar falta de consistência argumentativa subjacente a uma ou a outra concreta decisão) não acarreta a nulidade da decisão, o vício formal a que alude o art. 615.º do CPC.
Termos em que se conclui não se verificar a nulidade do despacho de saneamento.

ii. Do débito da Interessada decorrente da obrigação de pagamento das prestações do crédito bancário contraído para a aquisição da casa de morada de família
Não obstante a Recorrente sustentar que deverá ser revogada a decisão na parte que decidiu manter, na relação de bens, na parte do passivo, as verbas n.ºs 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11 e 12[7], certo é que os argumentos esgrimidos dizem apenas respeito às verbas n.ºs 5 e 6, aos saldos referentes à compensação pelo pagamento integral das prestações do empréstimo bancário contraído para aquisição da casa de morada de família. Dado que o crédito versado na verba n.º 2 do passivo teve início na mesma data do crédito imobiliário (cfr. declaração emitida pelo Banco ..., SA), temos como certo e seguro que se trata de crédito (neste caso, designado de Multifinalidades) destinado a viabilizar a aquisição da casa de morada de família por indisponibilidade de capitais próprios suficientes para o efeito.
E, neste segmento, com razão.
Trata-se, é certo, de dívida da responsabilidade de ambos os cônjuges, contraída por ambos – cfr. art. 1691.º/1/al. a) do CC. Por ela respondem os bens comuns do casal, e, na falta ou insuficiência deles, solidariamente, os bens próprios de qualquer dos cônjuges – cfr. art. 1695.º/1 do CC.
No entanto, foi acordado entre as partes e judicialmente homologado o seguinte: «A casa de morada de família fica atribuída ao cônjuge marido até à partilha, declarando este assumir a obrigação do pagamento das prestações do empréstimo bancário para aquisição da mesma, até à partilha.»
Através de tal instrumento, as partes estabeleceram o acordo no sentido de determinar a atribuição do uso da casa de morada de família ao cônjuge marido, até à partilha; mais acordaram que, até à partilha, recaía sobre o cônjuge marido a obrigação do pagamento das prestações do empréstimo bancário contraído para aquisição dessa mesma casa. Atentos os moldes em que foi estabelecido o acordo (atribuíram o uso da casa de morada de família ao cônjuge marido, declarando este assumir a obrigação do pagamento das mencionadas prestações), resulta evidente que a assunção da obrigação de pagamento integral das prestações decorrentes do crédito contraído para aquisição da casa de morada de família se destinava a compensar a cônjuge mulher da atribuição de tal uso exclusivo ao cônjuge marido. Foi essa a contrapartida económica fixada para o uso da casa de morada de família pelo cônjuge marido.
Sem embargo de tal acordo não ser oponível ao credor (art. 406.º/2 do CC), certo é que, nas relações internas, entre aqueles que firmaram o acordo, vigora o regime decorrente do art. 406.º/1 do CC.
Nas relações entre os cônjuges e no âmbito do processo de inventário para partilha dos bens comuns, a verba lançada pelo cabeça-de-casal sob os n.ºs 5 e 6 não consubstancia o pagamento de uma dívida comum, o que ocorreria se o pagamento do valor integral das prestações por um dos cônjuges tivesse sido realizado sem qualquer acordo nesse sentido – caso em que teria aplicação o regime inserto no art. 1697.º/1 do CC, nos termos do qual quando por dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges tenham respondido bens de um só deles, este torna-se credor do outro pelo que haja satisfeito além do que lhe competia satisfazer;
Por ter sido firmado o acordo com o referido teor, em sede de processo de divórcio, determinando que ao uso exclusivo da casa de morada de família pelo cônjuge marido correspondia a obrigação deste de pagamento integral das prestações do empréstimo bancário para a aquisição da mesma, é de concluir que o pagamento, pelo Cabeça-de-casal daquelas prestações, com bens próprios, traduz o cumprimento de uma obrigação da sua responsabilidade. Não tem lugar, pois, a aplicação do regime inserto no art. 1697.º, seja o n.º 1 seja o n.º 2 (este relativo a dívidas da responsabilidade de um só dos cônjuges pelas quais responderam bens comuns).[8]
Por conseguinte, nenhuma compensação é devida pela Interessada pelo pagamento das prestações do empréstimo bancário para aquisição da mesma, até à partilha.
O que implica na exclusão das verbas n.ºs 5 e 6 do passivo da relação de bens.
Não foi demonstrado, nem sequer alegado, que a verba n.º 7 era relativa a pagamentos inerentes ao crédito bancário contraído para aquisição da casa de morada de família. Donde, não se subsume às prestações do empréstimo bancário para aquisição da mesma versadas no acordo estabelecido entre as partes, pelo que não está sujeita ao regime aqui configurado.
O que vale para as demais verbas do passivo (8 a 12), relativamente às quais nenhum argumento foi aduzido em sede de recurso.

iii. Do crédito do património comum contra o Cabeça-de-casal pela ocupação exclusiva deste da casa de morada de família
Uma vez que ao direito à ocupação exclusiva pelo Cabeça-de-casal da casa de morada de família, consentida pelo acordo firmado entre as partes, corresponde a obrigação deste de pagar integralmente as prestações do empréstimo bancário para aquisição da mesma, afigura-se não ser este devedor de quantia equivalente ao valor locativo da casa que ocupa.
Inexiste, pois, fundamento para levar a crédito do património comum qualquer verba a tal respeito.

vi. Do crédito da Interessada contra o património comum pela verba de € 5.000,00 que lhe foi doada
A Interessada Reclamante arroga-se de um crédito pelo montante de €5 000 contra o património comum.
Trata-se da quantia que lhe foi doada por sua mãe e que foi empregue na construção de garagem edificada no prédio descrito na verba n.º 25 do ativo.
O regime de bens aplicável é o da comunhão de adquiridos, por força do disposto no art. 1717.º do CC.
Nos termos do disposto no art. 1722.º/1/al. b) do CC, são considerados próprios dos cônjuges os bens que lhes advierem depois do casamento por sucessão ou doação.
Então, a verba de €5 000 constitui bem próprio da Interessada.
O casal destinou tal verba a projeto de edificação de garagem que serve a casa de morada de família.
O art. 1726.º do CC estabelece o seguinte:
1. Os bens adquiridos em parte com dinheiro ou bens próprios de um dos cônjuges e noutra parte com dinheiro ou bens comuns revestem a natureza da mais valiosa das duas prestações.
2. Fica, porém, sempre salva a compensação devida pelo património comum aos patrimónios próprios dos cônjuges, ou por estes àquele, no momento da dissolução e partilha da comunhão.
Não está em causa a definição da natureza própria ou comum da referida garagem. Na verdade, nenhum litígio existe a esse respeito; nenhum imóvel foi relacionado, seja enquanto bem próprio de um dos cônjuges, seja enquanto bem comum, para além daquele que integra verba n.º 25, que constitui a casa de morada de família.
Por conseguinte, cabe tomar a aplicação da verba de €5 000 como a realização de investimento naquele imóvel.
Atento o valor pelo qual o imóvel está relacionado, assiste à Interessada o direito a ser compensada pelo património comum pelo montante de €5 000, conforme determina o art. 1726.º/2 do CC.

v. Da litigância de má-fé
Nos termos do n.º 1 do art. 542.º do CPC, tendo litigado de má-fé, a parte será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta pedir. Em face do disposto no n.º 2 do citado preceito, a litigância de má-fé, desde que revestida de dolo ou negligência grave, pode ser considerada sob dois aspetos:
- a má-fé material, que abrange os casos de dedução de pretensão ou de oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar, a alteração da verdade dos factos ou a omissão de factos relevantes para a decisão da causa;
- a má-fé instrumental, relativa à omissão grave do dever de cooperação, ao uso manifestamente reprovável do processo ou dos meios processuais para conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, para entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
Como ensina Abrantes Geraldes[9], as partes devem estar cientes de que, no âmbito da resolução de conflitos de direito privado, devem pautar-se pelas regras da cooperação intersubjetiva, pela lealdade e pela boa-fé processual. A lei, porém, não pede a nenhuma das partes que se entregue, sem luta. Por isso, a todas é garantida a possibilidade de fazerem vingar as respetivas posições, desde que estejam convencidas da sua legitimidade, mesmo que assentem em normas jurídicas objetivamente injustas, ou desde que não sejam excedidos certos limites para além dos quais se considera ilegítimo o exercício dos direitos processuais. Comportamentos dolosos ou gravemente culposos, materializados na dedução de pretensões ou de oposições manifestamente infundadas, assentes na alteração censurável da verdade dos factos, corporizados na grave violação do dever de cooperação ou, por fim, exteriorizados através do uso ilegítimo de instrumentos do direito adjetivo, com vista à obtenção de objetivos ilegais, à ocultação da verdade ou ao entorpecimento ou retardamento da atividade dos tribunais, são considerados ilícitos e, por isso, merecedores de sanções de natureza cível, independentemente do resultado final da ação ou da execução.
Ora, o citado art. 542.º do CPC, ao referir o dolo ou negligência grave como tipificadores da litigância de má-fé, “passou a sancionar, ao lado da litigância dolosa, a litigância temerária: quer o dolo, quer a negligência grave, caracterizam hoje a litigância de má-fé, com o intuito, como se lê no preâmbulo do diploma, de atingir uma maior responsabilização das partes.”[10] Assim, pode dizer-se que “a má-fé psicológica, o propósito de fraude, exige, no mínimo, uma atuação com conhecimento ou consciência do possível prejuízo do ato; tal conhecimento ou consciência pode corresponder quer a dolo eventual quer a negligência consciente e, neste último quadro, aquela consciência pode reportar-se a uma simples previsão do prejuízo resultante do ato, nada se fazendo para o evitar, isto é, mesmo assim pratica-se o ato que se tem como potencialmente lesante.”[11]
Afirmada que seja a litigância de má-fé, sujeita-se a parte à condenação em multa bem como ao pagamento de indemnização à parte contrária, se tiver sido pedida. Os montantes da condenação do litigante de má-fé têm que corresponder, por um lado, ao grau de culpa do litigante e à maior ou menor censurabilidade do comportamento que adotou, acrescendo, no que concerne à indemnização, que ela deve corresponder ao reembolso das despesas a que a má-fé do litigante tenha obrigado a parte contrária, incluindo os honorários do mandatário, e na satisfação dos restantes prejuízos sofridos pela parte contrária como consequência direta ou indireta da má-fé – art. 543.º do CPC. Sendo que na avaliação e graduação da culpa atender-se-á à diligência do bom pai de família, mas atendendo às circunstâncias do caso. Uma vez que a má-fé se traduz na violação do dever de probidade que o art. 8.º do CPC impõe às partes (dever de não formular pedidos injustos, não articular factos contrários à verdade e não requerer diligências meramente dilatórias), é pela intensidade da violação deste dever de probidade que se há de sancionar, através da aplicação da multa, a conduta do litigante de má-fé. A indemnização, se tiver sido pedida, será arbitrada por aplicação de um prudente arbítrio, assente num critério de razoabilidade que deve ter em consideração, sobretudo, a natureza e a complexidade da causa, bem como a dimensão do comportamento processual indevido.[12]
No caso sub judice, a Recorrente considera que o Recorrido incorreu em litigância de má-fé ao reclamar o pagamento de parte das prestações que suportou com o crédito bancário bem sabendo que beneficia do uso exclusivo da casa de morada de família contra a assunção do pagamento daquelas prestações.
Afigura-se que se trata de caso de improcedência de pretensão do Recorrido que não implica juízo de censura no âmbito do instituto da litigância de má-fé, tal como preconizado em 1.ª Instância. O Recorrido procurou exercitar um direito que entendeu assistir-lhe, inexistindo elementos que permitam afirmar conduta dolosa ou gravemente negligente.
De resto, também a Recorrente pretendeu relacionar dívida do Recorrido ao património comum à razão mensal de €350 decorrente do uso exclusivo da casa de morada de família. Ao que procedeu bem conhecendo o teor da cláusula inserta no acordo firmado em sede de divórcio, e sem fazer de menção de tal pretensão ficar condicionada ao deferimento da pretensão do Recorrido de a considerar devedora de metade das prestações bancárias pagas integralmente por ele.
Termos em que se acompanha a decisão proferida em 1.ª Instância no sentido de não se alcançar fundamento para condenação do Recorrido por litigância de má-fé.

As custas recaem sobre a Recorrente e o Recorrido na proporção do decaimento, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário – art. 527.º, n.º 1, do CPC.

Sumário: (…)


IV – DECISÃO
Nestes termos, decide-se pela parcial procedência do recurso, em consequência do que se revoga a decisão recorrida relativamente às verbas n.ºs 5 e 6 do passivo, que vão excluídas da relação de bens, e na parte em que indeferiu a compensação de € 5.000,00 à Interessada, determinando-se seja relacionado o crédito de € 5.000,00 (cinco mil euros) da Interessada sobre o património comum,
Confirmando-se, no mais, a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente e Recorrido na proporção do decaimento, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário.

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Évora, 26 de outubro de 2023
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Francisco Matos
José Manuel Lopes Barata

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[1] Ac. STJ de 23/03/2017 (Tomé Gomes).
[2] Acs. STJ de 07/04/2005 (Salvador da Costa) e de 14/04/2005 (Ferreira de Sousa).
[3] Alberto dos Reis, CPC Anotado, vol. V, p. 54.
[4] Alberto dos Reis, CPC Anotado, vol. V, p. 56.
[5] Cfr. art. 5.º da reclamação à relação de bens.
[6] Cfr. Alberto dos Reis, CPC anotado, vol. V, p. 141 e 142.
[7] Cfr. conclusão n.º 24 da alegação do recurso.
[8] Neste sentido, cfr. Ac. TRC de 07/10/2014 (Maria João Areias).
[9] E seguindo de perto o que deixa exposto in Temas Judiciários, I vol., p. 303 e ss.
[10] José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2.º, Coimbra, 2001, pág. 195.
[11] Ac. STJ de 06/01/2000 (Lúcio Teixeira).
[12] Ac. STJ de 30/09/2004 (Araújo de Barros).