Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
72/20.1JAPTM.E1
Relator: MOREIRA DAS NEVES
Descritores: HOMICÍDIO
DOLO EVENTUAL
TENTATIVA
ARMA DE FOGO
AUSÊNCIA DE LICENÇA DE PORTE DE ARMA
Data do Acordão: 11/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Pratica um crime de homicídio na forma tentada, agravado, aquele que dispara um tiro de arma de fogo na direção de outra pessoa, admitindo vir a causar-lhe a morte, não estando autorizado a deter tal arma.
Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO
a. No …º Juízo Central Criminal de … procedeu-se a julgamento em processo comum perante tribunal coletivo de AA, nascido a …/…/1996, com os demais sinais constantes dos autos, aos quais foi imputada a autoria de:

- um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto nos artigos 131.º e 132.º, § 1.º e 2.º, als. c) e e), com referência aos artigos 22.º e 23.º do Código Penal e artigo 86.º, § 3.º da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro (lei das armas e munições);

- dois crimes de homicídio qualificado, na forma tentada, previstos nos artigos 131.º e 132.º, § 1.º e 2.º, al. e), com referência aos artigos 22.º e 23.º do Código Penal e artigo 86.º, § 3.º da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro

- e um crime de detenção de arma proibida, previsto no artigo 86.º, § 1.º, als. c) e e), com referência ao artigo 2.º, § 1.º als. p), s), ae) e ar), § 3.º, als. e) e p), e artigo 3.º, § 5.º, al. c), todos da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro.

Os assistentes deduziram pedido cível contra o arguido a título de danos não patrimoniais sofridos, dos quais vieram a desistir, estando estas desistências já homologadas.

O arguido apresentou contestação escrita e arrolou testemunhas.

Procedeu-se a julgamento e a final o tribunal coletivo proferiu acórdão condenatório, o qual sendo recorrido, no recurso respetivo veio a decidir-se que padecia de nulidade (artigo 379.º, § 1.º, al. a) ex vi artigo 374.º, § 2.º CPP), ordenando a baixa dos autos, reabertura de audiência e prolação de novo acórdão.

No Juízo de 1.º instância veio a proferir-se novo acórdão condenatório do arguido AA, nele se decidindo:

«a) operar a desqualificação do crime de homicídio qualificado para ofensa à integridade negligente, homologando-se a desistências e declarando-se extinto o procedimento criminal deduzido pelos ofendidos BB e CC contra o arguido AA (cfr. arts. 48.º, 49.º, n.º 1, 51.º, n.º 2, do CPP, e arts 116.º, n.º 2, e 148.º do Código Penal);

b) Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio agravado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22.º, 23.º, 131.º, do Código Penal e art. 86.º, n.º 3 da Lei n.º 5/2006 de 23 de Fevereiro, na pena de 5 anos e 8 meses de prisão;

c) Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material, de um crime de detenção de arma proibida, na forma consumada, p e p pelo art. 86.º, n.º 1.º, al. e), com referência aos artigos 2.º, n.º 3, als. e) e p), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 4 meses de prisão;

d) em Cúmulo jurídico, condenar o arguido AA na pena única de 5 anos e 9 meses de prisão.»

b. Inconformado o arguido interpôs novo recurso para este Tribunal da Relação, rematando a respetiva motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

«1. Perante o quadro fáctico, e resultando mais provável a negligência do que o não presumido dolo, e perante a manifestada desistência, impunha-se a absolvição do Arguido, ora Recorrente, o que se espera em sede de Recurso, que temos por merecedor de integral provimento.

2. Considerando-se que a utilização de arma constitui agravante, o que impede punição pelo mesmo tipo, não deverá haver lugar a punição pela detenção das munições da arma, a que não cabe punir.

3. Dispondo, o Arguido, de prazo para, voluntariamente, proceder à entrega da arma, ou das munições, e tendo-o feito, conforme resulta provado, nunca poderia ser condenado por detenção de arma proibida, voluntariamente apresentada.

4. Mostrando-se, o Arguido, inserido social, familiar e laboralmente, tendo confessado e contribuído para a descoberta da verdade, a não haver lugar a absolvição, tudo justificaria a atenuação da culpa, e da pena, que, não devendo ser superior ao mínimo legal, deveria ser suspensa na sua execução, como se espera em sede de Recurso, que temos por merecedor de integral provimento.

5. Todo o comportamento do Arguido, posterior aos factos, e, posteriormente, feito constar dos autos, revela desnecessário o cumprimento de pena em meio prisional, comprometedor de qualquer reabilitação, pelo que, a não se absolver, nunca qualquer pena deverá deixar de ser suspensa na sua execução, por reunidos os legais pressupostos para o efeito.

6. É contraditório considerar provada a inserção social, familiar e laboral, por um lado, e aplicar-se uma desnecessária reclusão efetiva, quando tudo impõe, se não a absolvição, a ameaça de pena, por ultrapassados e seriamente esbatidos quaisquer receios.

7. É contraditório, e contra as regras de experiência, concluir-se que, quem pretende matar, dispondo de arma com 8 munições, só realiza um único disparo, de chumbo fino, a cerca de 25 metros de distância, pelo que, sendo presumida a inocência, e restando a negligência, se impunha a absolvição.

8. Tendo, o douto Tribunal “a quo” entendido diferentemente, ultrapassou os limites da livre apreciação da prova, decidindo contra as regras de experiência, e contra a Constitucional presunção de inocência de que gozam os Arguidos, pelo que, impondo-se a absolvição, o presente Recurso merece provimento.

9. Entendendo-se diferentemente, visando a aplicação de penas a ressocialização do infrator, o Arguido nunca poderá ser condenado em pena que não seja próxima do limite mínimo, e necessariamente suspensa na sua execução, por verificados reunidos os legais pressupostos.

10. Em todo o caso, a contribuição do Arguido, para a descoberta da verdade, a sua confissão, a sua entrega voluntária da arma, e munições, a sua inserção, a inexistência de animosidades na comunidade, deverão produzir efeitos na redução da censura, cuja pena concreta, atenuada, sempre terá que ser suspensa na sua execução.

11. A aplicação de pena efetiva, no caso presente, contraria as regras de aplicação de pena, comprometendo qualquer ressocialização, possível e desejável em meio livre.

O circunstancialismos anteriormente admitido é diverso do que, presentemente, se constata, pelo que tudo justifica que, qualquer que seja a pena a aplicar, na eventualidade de se não optar pela absolvição, deverá ser suspensa na sua execução.

12. Não tendo resultado provado, ou improvado, que o Arguido fosse hábil no manuseamento de armas, resultando provado o seu desconhecimento sobre a eventual abertura do leque de chumbos, e, Constitucionalmente, se presumindo inocente, não pode considerar-se provada a intenção de matar, mas sim de, somente, assustar, com um único disparo, com chumbo fino, a cerca de 25 metros de distância, sem condições letais, como se verificou, negligente e efetivamente.

13. Releva, para além do mais, a circunstância de o Arguido, dispondo de mais munições, não as ter utilizado, e, não sendo, o dolo, presumido, restará admitir a intenção de assustar, se bem que com “gritante negligência”, pelo que justa será a absolvição.

14. Restando a dúvida, esta só pode beneficiar o Arguido, que, concretamente, perante os factos, nunca deverá cumprir qualquer reclusão, tudo impondo, a não se decidir absolver, a suspensão da execução de qualquer pena, sendo o presente Recurso merecedor de provimento.

15. Restando a negligência e a manifestada desistência de Procedimento, e tendo havido lugar à voluntária entrega da arma, e munições, dentro do prazo (até junho pf), impunha-se a absolvição, e nunca a manifestamente excessiva pena, que nunca poderia ser efetiva.

16. Importante, é que resulta dos autos, que são pacíficas as relações entre as famílias intervenientes, mostrando-se sanadas todas as divergências, e afastados quaisquer receios, designadamente por via da Declaração de Fls 1368 dos autos, apresentada em 13.MAI.2022, pelo que, se anteriormente se impunha acautelar algumas prevenções, diferente é o circunstancialismo hoje verificado, e reconhecido no douto Despacho de 08.ABR.2022, que alterou a medida de coacção, e que considera esbatidos qualquer dos perigos cautelares, tudo justificando que a pena única a aplicar deva ser substancialmente reduzida, e suspensa na sua execução, na eventualidade de o presente Recurso merecer parcial provimento.

17. Acresce que, decorridos que se mostram dois anos de privação da liberdade, teve, o Arguido, a oportunidade de interiorizar o desvalor da sua conduta, mostrando-se reabilitado para a vida em liberdade, sob a ameaça de uma pena, suspensa na sua execução, o que tem perfeito suporte na circunstância de se mostrarem esbatidos quaisquer perigos cautelares, de nunca ter incumprido a medida de obrigação de permanência na habitação, de não haver notícia de qualquer contacto, ou incidente, não havendo perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, o que confere provimento ao presente Recurso.

18. Não necessita, pois, o reabilitado ora Recorrente, hoje, mais do que anteriormente, de cumprir reclusão, comprometedora da sua ressocialização, para que a sua futura conduta corresponda ao socialmente adequado, o que será confirmado pelos Serviços de Sociais competentes que o acompanharão, assim se justificando a suspensão da execução da pena a reduzir e a aplicar, em sede do presente Recurso, que temos por merecedor de provimento.

19. Devia, pois, o douto Tribunal “a quo” ter absolvido o Arguido, inexperiente no uso de armas, porquanto não resulta inequivocamente provado que, com a realização de um único disparo de chumbo fino, a cerca de 25 metros de distância, pretendesse mais do que, negligentemente, assustar o DD, para quem não resultaram sequelas relevantes, absolvendo-o, ainda, pela detenção das arma e munições, por as ter, voluntariamente, entregue, no prazo para que legalmente dispunha, e a entender-se diferentemente, condenado o Arguido, ora Recorrente, em pena única não superior a 3 anos de prisão, suspensa na sua execução, por verificados o legais pressupostos, e não o tendo feito, punindo-se em excesso, comprometendo a reintegração do agente na sociedade, violou, o douto Tribunal “a quo”, o disposto nos artigos 40º, nºs 2 e 2, 70º, 71º nºs 1 e 2, 50º, do Código Penal, e 127º e 410º nº 2, al.s a), b) e c) do Código de Processo Penal, e Constitucional presunção de inocência – in dubio pro reo - pelo que, merecendo provimento o presente Recurso, deverá revogar-se o douto Acórdão de Fls, a substituir por outro que, a não decidir pela absolvição, nunca a pena definitiva deverá ultrapassar os 3 anos de prisão, suspensa na sua execução, por reunidos os legais pressupostos.»

c. Recebido o recurso a ele respondeu o Ministério Público, dizendo em síntese que:

2. Os vícios a que se alude no artigo 410.º, n.º 2, alíneas a), b) e c), nada têm que ver com a valoração que o arguido/recorrente AA faz da prova produzida em julgamento, sendo que, aqueles têm que ser verificáveis pelo simples exame do texto da decisão sob recurso considerado na sua globalidade, sem possibilidade de abrigo em quaisquer outros elementos exteriores àquela, ainda que constem dos autos.

3. In casu, o arguido/recorrente AA limita-se a discordar da avaliação que o Tribunal «a quo» faz da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento e que se mostra conforme às regras da experiência comum.

4. Com efeito, quem, empunhando uma arma de fogo apta a disparar munições de calibre 12, a empunha e, a curta distancia (seguramente, não superior a 25 metros) efetua um disparo na direção do tórax (que aloja órgãos essenciais à vida) doutra pessoa, como se provou ter feito o arguido AA, obviamente que representa e quer acabar com a vida dessa pessoa, tanto mais, quando está desavindo com esta por a mesma manter ou ter mantido uma relação amorosa com a sua companheira.

5. Daí que, se o arguido AA representou ter matado uma pessoa com apenas um tiro e pretendia encetar fuga do local, não faria qualquer sentido o esgotar de todas as munições com que se encontrava carregada a arma de fogo com que se havia previamente munido.

6. Assim, contrariava as regras da normalidade humana, apelar a uma qualquer situação de negligência, pois que esta se reporta a uma situação de descuido e ou de imperícia do agente, sendo certo também que, conforme se escreveu no acórdão sob recurso:

(…)

7. Daqui que, não há que apelar como faz o recorrente ao principio in dubio pro reo (ou ao princípio da presunção de inocência), porquanto, o mesmo «É, pois, uma regra de valoração probatória dirigida ao tribunal de julgamento, que não o obriga a duvidar, nem, evidentemente, a julgar provados factos irracionais, ilógicos, contrários às leis da ciência ou às máximas da experiência somente porque o arguido os declara e lhe são favoráveis."

8. No que tange à entrega da arma e munições pelo arguido AA verifica-se que, não existiu qualquer entrega voluntária (a entrega foi realizada pelo ilustre defensor daquele bastante tempo depois de o arguido se encontrar sujeito à medida de coação de prisão preventiva) e, bem ainda, a data em que ocorreu a entrega não era abrangida quer pelo regime excecional previsto no artigo 8.º, n.º 1, da Lei n.º 50/2019, de 24 de julho, posto que a entrega ocorreu após o prazo concedido por esta, assim como, se mostra afastado regime previsto na 5/2021, de 19 de fevereiro de 2021, porquanto, a sua aplicação reporta-se a período temporal posterior àquele em que ocorreu a entrega das armas e munições em causa.

9. Resulta do acórdão condenatório que o arguido/recorrente AA foi condenado pela prática do crime de detenção de arma proibida em virtude, não da detenção da arma, mas sim das munições, razão pela qual, inexistiu qualquer dupla valoração.

10. A este propósito e, porque o Ministério Público não interpôs recurso do «novo acórdão» exarado a fls. 1547 e sgts, não poderemos deixar de referir os motivos pelos quais tal não sucedeu, no que tange à imputação do crime de detenção de arma proibida, relativamente ao facto de o arguido AA deter uma arma de fogo.

11. Em face dos factos provados e não provados, afigura-se-nos não ser possível configurar (ou distinguir) duas diferenciadas unidades fáctico-normativas para firmar uma situação de concurso efetivo, pois que, não se apurou quanto tempo (para além daquele em que utilizou a arma para a prática do crime de homicídio na forma tentada) o arguido AA deteve a arma, sabendo fazê-lo de forma ilegal, por não estar legalmente habilitado a ter a referida arma na sua disponibilidade.

12. Conjeturar um período de duração da detenção ilegal anterior seria atuar in mala partem, ao arrepio do disposto no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, razões pelas quais, nos conformamos com o acórdão condenatório.

13. No caso em apreço, os fatores invocados pelo arguido/recorrente AA para que ocorresse uma degradação do quantum da pena de prisão em que o mesmo foi condenado, assim como, para que aquela fosse suspensa na sua execução, já foram tidos em conta no acórdão condenatório (naturalmente com exceção da desistência de queixa, posto que, estando em causa crimes públicos aquela não tem qualquer efeito legal), sendo certo que, as elevadas exigências de prevenção especial e geral a tal obstariam.

14. Conforme é sabido, no que tange ao crime de homicídio, são muito elevadas as exigências de prevenção geral (cfr. a este propósito o Acórdão do STJ de 02/06/2021), sendo que, in casu, também são elevadas as exigências de prevenção especial.

15. A estre propósito escreveu-se o seguinte no acórdão sob recurso:

(…)

16. Ao arguido/recorrente AA foram aplicadas as penas parcelares de 5 anos e 8 meses (pelo crime de homicídio agravado na forma tentada) e de 4 meses de prisão pelo crime de detenção de arma proibida e, em cúmulo, a pena única de 5 anos e 9 meses de prisão. Quer isto dizer que as penas parcelares foram aplicadas abaixo do ponto médio da moldura penal abstratamente aplicável e a pena resultante do cúmulo muito perto da pena mínima (cujo quantum impediria a suspensão da execução – cfr. artigo 50.º, n.º 5, do Código Penal), razões pelas quais, também nesta parte, censura alguma merece o acórdão sob recurso.

17. Termos em que, por o douto acórdão condenatório não padecer de qualquer vício, assim como, não incorreu na violação dos princípios do in dubio pro reu, da presunção da inocência e ou da livre apreciação da prova e ou de qualquer norma legal, sendo certo também que, o Tribunal «a quo» apreciou corretamente a prova validamente produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, concluindo que, o arguido AA incorreu na prática dos crime de homicídio agravado, na forma tentada e de detenção de arma proibida e, bem ainda estabeleceu criteriosamente a pena concretamente a aplicar, deverá o acórdão condenatório ser mantido na integra.»

d. Neste Tribunal Superior o Ministério Público produziu douto parecer, em que sustenta a sem razão do recurso.

e. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, respondeu o arguido/recorrente reafirmando as suas razões, sintetizando, como já fizera no recurso, que considerará justa uma pena de prisão suspensa na sua execução.

f. Consigna-se que mercê das contingências que tal determinaram os presentes autos foram redistribuídos neste Tribunal da Relação no pretérito dia 24 de outubro de 2023, sendo da responsabilidade deste relator e respetivos adjuntos o que sucedeu apenas dessa data em diante.

O presidente da Secção Criminal e os Desembargadores adjuntos tiveram vista dos autos, tendo-se realizado a conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

II – Fundamentação

A. Delimitação do objeto do recurso

Sem prejuízo do dever de conhecimento oficioso dos vícios indicados no artigo 410.º, § 2.º do CPP e nulidades, o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, visando permitir e habilitar o tribunal ad quem a conhecer as razões de discordância face à decisão recorrida. Entendimento este que vem sendo pacífico na jurisprudência (1).

Neste contexto constatamos serem as seguintes as questões que cumpre apreciar e sobre as quais importa decidir:

i) Erro de julgamento da decisão da matéria de facto; ii) in dubio pro reo; iii) Qualificação jurídica dos factos; iv) Escolha e medida da pena.

B. No acórdão recorrido julgaram-se provados e não provados os seguintes factos, pelas razões indicadas na respetiva motivação, que para melhor compreensão se transcrevem:

«1. Em data não concretamente apurada mas situada no período compreendido entre os meses de Janeiro e Abril de 2019, o arguido teve conhecimento do envolvimento amoroso entre DD (ou o filho deste último – EE), e a sua companheira, FF.

2. Nessa ocasião o arguido separou-se da sua então companheira passando a residir com os seus dois filhos menores na residência dos seus pais, sita na Rua …, Bairro …, n.º …, em ….

3. Posteriormente, o arguido acabaria por reatar o seu relacionamento com FF, continuando a residir na morada acima indicada.

4. Assim, no dia 12 de Abril de 2020, ao sair do interior da dita residência com o intuito de adquirir tabaco para o seu consumo, o arguido verificou que DD se encontrava junto da casa CC, sita na Rua …, no mesmo bairro (Bairro …, em …).

5. Acto contínuo, o arguido retornou ao interior da sua então residência, sita na Rua …, Bairro …, n.º …, em …, e uma vez ali foi buscar a espingarda de marca …, modelo …, de calibre 12, e um total de 8 (oito) cartuchos de calibre 12, que detinha naquele local.

6. Na posse da dita arma de fogo e munições, cerca das 18h20m, o arguido dirigiu-se à residência de CC, sita na Rua …, no Bairro …, em …, fazendo-se transportar no veículo automóvel de marca …, modelo …, de cor azul, com a matrícula ….

7. Aí chegado, e ao verificar que no passeio junto da sobredita residência se encontravam diversos indivíduos da família …, nomeadamente DD, BB e CC, o arguido estacionou a sobredita viatura, e saiu do seu interior, após o que se dirigiu à bagageira da dita viatura.

8. Nesse momento, em acto contínuo e sem nada que o fizesse prever, o arguido muniu-se da sobredita espingarda, que fazia transportar na bagageira do dito veículo automóvel e estava devidamente municiada com sete cartuchos e, empunhando-a na direcção de DD e efectuou um disparo a uma distância não superior a vinte e cinco metros, vindo a atingir com projécteis:

- DD no tórax e membro superior direito, mas também:

- O menor CC (nascido a …2013), na zona da face esquerda, incluindo o olho esquerdo;

- BB na zona da face, no tórax e no membro superior direito; e

9. Após, o arguido regressou ao interior do sobredito veículo automóvel e iniciou a condução, colocando-se em fuga para parte incerta.

10. O arguido viria a ser interceptado por elementos da G.N.R., na mesma data, cerca das 23h30m, na localidade da …, concelho de ….

11. Posteriormente, no dia 18.05.2020, e através do seu Defensor, o arguido procedeu à entrega voluntária da espingarda e munições acima indicadas, objectos esses que o arguido havia dissimulado numa zona de mato sita no Bairro …, em …, após a prática dos factos acima descritos.

12. Como consequência directa e necessária do referido disparo, os ofendidos DD, BB e CC sofreram os ferimentos que infra se discriminam:

a) DD, sofreu lesões e ferimentos nas seguintes zonas:

- Tórax: no terço externo da região escapular direita, cicatriz rosada, pouco aparente, medindo 5mm de comprimento (sob a qual se palpa pequena tumefação arredondada); na mesma região, mas sem localização mais interna, cicatriz rosada, pouco aparente, medindo 5mm de comprimento (sob a qual não se palpa qualquer tumefacção); e

- Membro superior direito: na face póstero-interna do punho, cicatriz rosada, pouco aparente, medindo 5mm de comprimento (sob a qual não se palpa qualquer tumefacção), que terão resultado de traumatismo de natureza perfurante e lhe determinaram um período de 141 (cento e quarenta e um) dias de doença, com afectação da capacidade para o trabalho geral e profissional por idêntico período. Do evento resultaram as consequências permanentes acima descritas, que sob o ponto de vista médico-legal se traduzem em cicatrizes que desfiguram, mas não de maneira grave o ofendido DD. Do evento não resultou, em concreto, perigo para a vida do referido ofendido.

b) BB sofreu lesões e ferimentos nas seguintes zonas:

- Face: a nível do canto interno do olho direito, cicatriz rosada, longitudinal, pouco aparente, medindo 5mm de comprimento; na região infra-auricular direita (perto do ângulo direito da mandíbula), cicatriz rosada, longitudinal, pouco aparente, medindo 5mm de comprimento; na região mentoniana, ligeiramente à esquerda da linha média, vestígio cicatricial rosado, pouco aparente, medindo 2mm de diâmetro sob o qual se palpa pequena tumefacção arredondada;

- Tórax: no terço externo da região clavicular direita, vestígio cicatricial rosado, pouco aparente, medindo 2mm de diâmetro, sob o qual se palpa pequena tumefacção arredondada; no terço externo da região escapular direita, vestígio cicatricial rosado, pouco aparente, medindo 2mm de diâmetro, sob o qual se palpa pequena tumefacção arredondada; na região dorsolombar direita, vestígio cicatricial rosado, pouco aparente, medindo 2mm de diâmetro, sob o qual se palpa pequena tumefacção arredondada; e

- Membro superior direito: na face póstero-externa do ombro (na transição para o braço), vestígio cicatricial rosado, pouco aparente, medindo 2mm de diâmetro, sob o qual se palpa pequena tumefacção arredondada, que terão resultado de traumatismo de natureza perfurante e lhe determinaram um período de 45 (quarenta e cinco) dias de doença, com afectação da capacidade para o trabalho geral e profissional por idêntico período. Do evento resultaram as consequências permanentes acima descritas, que sob o ponto de vista médico-legal se traduzem em cicatrizes que desfiguram, mas não de maneira grave o ofendido BB. Do evento não resultou, em concreto, perigo para a vida do referido ofendido.

c) CC sofreu lesões e ferimentos na hemiface esquerda, incluindo o olho esquerdo, designadamente: ptose da pálpebra superior esquerda; área cicatricial, com 5mm de diâmetro, anteriormente à orelha esquerda; área cicatricial, com 5mm de diâmetro, lateralmente à comissura labial esquerda.

- tais lesões ainda não se encontram consolidadas, uma vez que CC não teve alta da consulta de oftalmologia, mantendo tratamentos. Na última consulta realizada o menor apresentava uma diminuição importante na acuidade visual do olho esquerdo. O mesmo apresenta, ainda, ptose da pálpebra superior esquerda a qual é visível à distância social (mais de 1,5m).

13. Ao agir da forma descrita, disparando na direcção do ofendido DD, do modo como o fez, o arguido representou como possível atingir o corpo daquele em zona vital e dessa forma provocar-lhe a morte e, ainda assim, conformou-se com esse resultado, o qual não se concretizou por motivos alheios à sua vontade.

13.1 Sabendo que naquele local, junto ao ofendido DD se encontravam, entre outros, BB e o menor CC, não tendo quanto a estes respeitado o dever de cuidado que podia e era capaz, pois a probabilidade de lhes acertar, como acertou, e causar danos com chumbos do disparo efectuado na visão do ofendido CC e no corpo de BB, como causou, era muito elevada, circunstâncias que representou.

14. Na realidade, o arguido atingiu a região dorsal (tórax) do ofendido DD, região que aloja órgãos essenciais à vida, com projécteis, sendo este um instrumento plenamente adequado a causar a morte, quando actuando sobre as dita região corporal.

15. O arguido agiu livre e conscientemente, movido pelo com ciúmes do envolvimento amoroso entre o ofendido DD, e a companheira do arguido (FF), ciente que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.

16. O arguido não é titular de licença de uso e porte de arma ou qualquer outra que a habilitasse a ter em seu poder quer a arma de fogo, quer as munições acima indicadas, bem sabendo que não as podia deter nas circunstâncias descritas.

17. Não obstante, agiu com o propósito concretizado de ter em seu poder a dita arma de fogo e respectivas munições, conhecendo a natureza e as características das mesmas, bem sabendo, que não era titular de licença de uso e porte de arma e que, assim, não as podia deter.

18. O arguido agiu, quanto à detenção da arma e munições, de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas descritas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

19. O arguido tem registado o seguinte antecedente criminal:

a) Por sentença de 15.1.2015, transitada em julgado a 16.2.2015, foi condenado no âmbito do processo n.º 43/14.7…, do Juízo Local Criminal de …, J…, pela prática em 29.1.2014 de um crime de furto qualificado na pena de 1 ano 3 meses de prisão, substituída por 480 horas de trabalho a favor da comunidade, pena entretanto declarada extinta pelo cumprimento.

20. AA vive com a companheira e os três filhos do casal, com 6 anos, 3 anos e 6 meses de idade, numa moradia unifamiliar arrendada, com boas condições de habitabilidade, inserida numa zona balnear não associada a problemáticas sociais. À data dos factos, AA e a sua família constituída integravam o seu agregado familiar de origem, residindo em … numa habitação atribuída à família pela autarquia local.

O arguido desenvolvia atividade laboral de carácter sazonal como vendedor de bolas de Berlim com licença, de saco às costas na praia do ….

Nos períodos de inverno, dedicava-se à venda ambulante em feiras e na compra e venda de viaturas automóveis. Auferia um rendimento variável que quantifica na ordem dos €500/600 mensais. Atualmente não trabalha, subsistindo o agregado do rendimento social de inserção, no montante de €419, e do auxílio dos familiares. Apresenta como principal despesa a quantia de €400 referente à renda da habitação.

AA constituiu agregado familiar próprio precocemente, de acordo com a tradição da etnia cigana, tendo o mesmo, à data, 16 anos e a sua companheira 13 anos de idade.

Mantém um relacionamento afetivo gratificante, pese embora o recente envolvimento extraconjugal mantido pela companheira do arguido.

Antes de concluir a escolaridade obrigatória, AA abandonou o sistema de ensino durante a frequência do 5.º ano de escolaridade, após várias retenções, reportando um fraco investimento escolar.

AA iniciou o seu percurso laboral na venda ambulante, com cerca de 12 anos, auxiliando os seus progenitores. Experienciou ainda, alguns períodos de trabalho na área da construção civil e como comissionista numa empresa de telecomunicações.

Presentemente, no âmbito do presente processo encontra-se sujeito à medida de coação de OPHVE, desde 29jul2020, mantendo um comportamento consentâneo com as normas a que está sujeito e de colaboração com estes serviços.

AA dispõe do apoio da sua família de origem e companheira, elementos que se constituem como seu suporte emocional. Perspetiva, caso a sua situação judicial o permita, regressar à atividade da venda ambulante e continuar a residir na zona onde vive no presente.

No meio laboral de venda de bolas de Berlim, o arguido goza de boa reputação, sendo considerado e estimado pelos colegas.

2.2 Factos não provados

A - O arguido agiu movido por razões menores e fúteis

B - O arguido sabia que ao disparar a arma caçadeira, os chumbos do cartucho abriam em leque, aumentando o potencial de atingir terceiros além do visado pelo disparo.

*

A demais factualidade, por ser conclusiva, redundante, versar sobre matéria de direito ou por irrelevante para a decisão da causa não foi colocada na factualidade provada ou não provada.

2.3. Motivação da decisão de facto

O Tribunal fundou a sua convicção na análise crítica do conjunto da prova produzida e examinada em audiência de acordo com as regras da experiência comum e a sua livre convicção, tal como preceitua o artigo 127 º do C.P.P.

O arguido prestou declarações, admitindo perentoriamente as circunstâncias de tempo, modo e lugar em que efetuou o disparo, bem como a detenção da arma e munições e, ainda, a motivação do tiro, alicerçada no relacionamento que o ofendido DD manteve com a sua companheira.

A sua discordância quanto à factualidade que lhe é imputada, prende-se, apenas, com o escopo pretendido com o disparo, sendo que neste particular, como veremos, o seu discurso foi manifestamente revelador de um intuito de diminuição das suas responsabilidades, alegando que nunca pretendeu matar qualquer um dos atingidos, em particular CC e BB, com quem não tinha qualquer animosidade, sendo que relativamente a DD refere que apenas o procurou assustar, numa altura em que já estava embriagado, sentindo-se motivado a efetuar o disparo sobre DD pela circunstância deste ter tido um relacionamento com a sua companheira e por acordo dos anciãos da comunidade cigana onde se insere ter sido proibido de se deslocar perto da habitação do arguido, sendo que este ao vê-lo no local onde se encontrava, além de ter revivido o ciúme, encarou a presença no mesmo bairro onde vive como um desrespeito ao acordo estabelecido.

A motivação do disparo não deixou ao tribunal qualquer dúvida, pois apesar do assistente DD ter negado qualquer envolvimento com a companheira do arguido, o certo é que foi a própria companheira a confirmar que teve um relacionamento extraconjugal com o assistente DD, o que, pela forma clara, espontânea e segura como depôs não deixou ao tribunal qualquer dúvida, como não deixou dúvida que tal motivo não é menor nem fútil, antes está ancorado motivação passional.

Já quanto ao intuito do arguido de apenas pretender assustar o assistente, o mesmo não colheu qualquer credibilidade por manifesta e gritante contradição com as regras da experiência.

Com efeito, não se pode descurar que arguido passou uma primeira vez pelo ofendido DD e demais pessoas que o acompanhavam, entre os quais os assistentes BB e CC) e ao vê-lo vai a casa, mune-se da arma caçadeira e respectivos cartuchos, regressa ao local e, a uma distância de cerca de 25 metros, dispara na direção do ofendido DD, onde se encontravam mais pessoas (entre as quais os ofendidos CC e BB).

Ora, alguém que pretende apenas assustar não tem esta atitude. Muito menos dispara na direção do visado, ciente de que os chumbos da caçadeira o poderão atingir e provocar lesões letais, dependendo da zona atingida (como flui da perícia de fls 780 a 787), sendo certo que após o disparo não é controlável pelo arguido a zona a atingir Porém, como flui das marcas que os chumbos deixaram na parede (cf. fls 7 a 10) o disparo foi efectuado a uma altura ao nível do torax, o que também resulta das zonas atingidas pelos ofendidos adultos, sendo que relativamente ao menor, uma vez que é mais baixo, foi atingido na cara.

Se apenas pretendesse assustar, teira disparado para o ar ou numa direção que não houvesse ninguém. Também não teira escondido a arma e muito menos fugido para vários km de distância (note-se que o arguido foi inteceptado na …, perto de …).

Também não colhe a versão do arguido de que apenas viu no local o assistente DD, pois o contrário flui com evidência dos depoimentos sérios e circunstanciados dos assistentes BB, DD e, em particular, a testemunha CC, brotando dos mesmos que, no momento do disparo, estavam várias pessoas no local (entre os quais várias crianças) e que o arguido necessariamente teria de ter visto.

GG, irmã do ofendido DD, prestou depoimento, fluindo do mesmo que à data dos factos estava dentro de casa, não viu o disparo, apenas ouviu o estrondo por ele produzido e quando foi a janela viu o arguido com a arma apontada, abandonando de seguida o local, confirmando que o seu irmão e os ofendidos BB e CC estavam na rua, à frente de casa, juntamente com outros elementos da família, o que cotejado com a demais prova testemunhal logrou formar convicção do tribunal.

Note-se ainda que para avivamento da memória, foram lidas as declarações prestadas perante a policia judiciária de HH, que confirmou as declarações então prestadas, sendo o depoimento cristalino desde o momento em que vê o arguido chegar na viatura …, vai à mala de onde retira uma espingarda caçadeira, apontando-a à zona onde estava o depoente com o seu cunhado DD, o sobrinho BB e o seu filho CC e dois dos seus netos ( II e JJ), sendo que o arguido não se absteve de disparar mesmo perante os pedidos insistentes e em alta voz do seu filho CC que avançou na direção do arguido de braços no ar, pedindo para não disparar para não atingir os seus netos, depoimento que riqueza de pormenores logrou formar a convicção do Tribunal.

Este quadro afasta por completo a versão do arguido de que, no momento do disparo, apenas viu no local o assistente DD e que apenas o procurou assustar, pois a sua conduta é reveladora que quis disparar contra o assistente DD, representado, como naturalmente teria de representar qualquer cidadão não inimputável, que o disparo poderia atingir uma zona vital e causar danos letais, circunstância com que se conformou.

Note-se, ademais, que o disparo é direcionado à zona do torax onde se encontram alojados vários órgãos vitais, sendo certo que a circunstância de não se ter dado como provado que o arguido agiu com dolo directo (conhecimento e vontade de realização da acão típica) apenas emana da circunstância do disparo ter sido efectuado a uma distância de 25 metros o que permitiu a dispersão dos chumbos e, consequentemente, diminuindo o potencial letal (cf perícia de fls 780 a 787 cotejada com o depoimento do inspector da polícia judiciária KK)

No que concerne às lesões infligidas a BB e ao menor CC, temos como certo da prova produzida que as mesmas resultaram igualmente do disparo efectuado pelo arguido com a arma de fogo (caçadeira), sendo conhecido (cf perícia de fls 780 a 787) e minunciosamente explicado pelo inspector da polícia judiciária KK que com a distância do disparo há uma maior dispersão dos chumbos a que equivale um menor poder de letalidade, precisamente por força da dispersão.

Cumpre referir que quanto a estes dois assistentes, não resultou provada qualquer animosidade com o arguido, antes pelo contrário, tinham boas relações com os mesmos.

Assim, a convicção do tribunal fundou-se no sentido de que o arguido, embora os tenha visto junto ao assistente DD no momento em que dirige o disparo a este representou como possível, precisamente pela proximidade, que lhes poderia também acertar, como acertou, como aliás sobre as demais pessoas ali presentes (relativamente às quais não foi apresentada qualquer queixa, nem deduzida acusação que seguiu o entendimento de imputar o crime apenas aos atingidos, quando é certo que caso estivéssemos perante uma tentativa de homicídio sempre o mesmo se verificaria quanto a todos os presentes, independentemente de terem sido atingidos ou não).

O ponto é saber se o arguido, representado como possível que os viesse a atingir e, dessa forma, provocar-lhes a morte, se conformou com esse resultado. Ora, quanto a este ponto a convicção do tribunal foi em sentido negativo.

Efectivamente, ante a ausência de qualquer antagonismo entre o arguido e os assistentes BB e CC, como todos admitiram, incluindo as testemunhas inquiridas, resultou para o Tribunal que o arguido apesar de representar a morte destes dois assistentes como possível (face ao meio usado e distância do disparo) nunca se conformou com tal possibilidade, o que afasta o dolo eventual da sua conduta relativamente a estes dois ofendidos (bem como relativamente às demais pessoas presentes).

Porém, resulta evidente que ao ter actuado da forma descrita agiu com alto grau de temeridade, não respeitando os mais elementares deveres objetcivos de cuidado que podia e era capaz, pois a possibilidade de acertar com o disparo em BB e CC, atenta a proximidade destes com DD – verdadeiro visado pelo tiro – era elevadíssima, como também era objctivamente elevada a possibilidade de acertar com chumbos nas demais pessoas ali presentes e causar as lesões que provocou, circunstâncias que o arguido descurou e revela um grau de negligência gritante.

Efectivamente, a distinção entre o dolo eventual e a negligência (consciente), prende-se, exclusivamente, com a conformação ou não do resultado que o arguido representa como possível, elemento de nível psicológico que apenas se poderá apurar por referência à conduta exteriorizada do arguido, seja na prática dos factos, seja a conduta anterior e/ou posterior.

Ora, da factualidade provada, ainda que todos os ofendidos tivessem junto uns aos outros, o certo é que o arguido apenas pretendeu atingir o ofendido DD, sendo que para o tribunal resultou seguro que o mesmo, ainda que tenha representado como possível que pudesse acertar em mais algum dos presentes, designadamente em BB e CC, nunca se conformou com essa possibilidade.

O Tribunal ficou convicto que a pontaria foi feita em direcção de DD, sendo que o efeito de abrir em leque do chumbo não resultou como provado que fosse conhecido do arguido (sendo que este facto foi trazido pelo Senhor Inspector da Polícia Judiciária, não sendo facto de conhecimento geral para que não manuseia armas), facto que também contribuiu para se formar convicção de que o arguido não se conformou com a morte dos ofendidos BB e CC ( e já agora dos demais presentes).

O arguido tinha um objectivo claro. Tirar a vida a DD. Perante o conhecimento e vontade de realização desse desiderato, ao ver este junto de outros familiares, focou-se no seu objetivo, tendo apenas em mente ceifar a vida do ofendido DD, tendo para o efeito empunhado a arma e disparado em direcção deste, apenas não o atingindo por motivos alheios à sua vontade.

As condições sócios económicas do arguido resultaram do teor do relatório social junto aos autos que pelas fontes seguidas, métodos acolhidos e ausência de provas que infirmem o seu teor, lograr formar convicção do tribunal, sendo certo que a inserção laboral do arguido e a estima que goza nesse meio fluíram dos depoimentos sérios, isentos e esclarecedores de LL e MM com quem o arguido trabalha na venda ambulante de bolas de Berlim na praia e que por esta circunstância revelaram conhecimento da conduta laboral do arguido.

Para prova dos antecedentes criminais do arguido, o Tribunal teve em consideração o teor do certificado de registo criminal, junto aos autos.

O Tribunal atendeu ainda à seguinte prova documental, Relatório de inspecção judiciária (fls. 3/5); Reportagem fotográfica (fls. 6/13); Autos de diligência (fls. 14/15, 49 e 455/456); Relatório de urgência e informação clínica referente aos ofendidos (fls. 16/25); Documentação clínica referente a DD (fls. 231/233, 392/396, 609/611, 617/621, 666/672 e 880/894); Documentação clínica referente a BB (fls. 362/364 397/403, 409/411, 623/628, 759/771 e 872/875); Documentação clínica referente a CC (fls. 404/406, 754/758, 813/819); Email contendo informação clínica referente ao menor CC (fls. 827), documentos que aliados aos Relatórios preliminar e intercalar da perícia de avaliação do dano corporal em direito penal referente a DD (fls. 181/183, 536/537, 729/732); Relatórios preliminar intercalar da perícia de avaliação do dano corporal em direito penal referente a BB (fls. 553/554 e 723/727); Relatório final da perícia de avaliação do dano corporal em direito penal referente a DD (fls. 868/871 dos autos); Relatório final da perícia de avaliação do dano corporal em direito penal referente a NN (fls. 863/866 dos autos); Relatórios preliminar e respectivo aditamento da perícia de avaliação do dano corporal em direito penal referente ao menor CC (fls. 877/879 e 828/831);provam as lesões sofridas pelos ofendidos.

Ao nível da prova documental, atendeu-se ainda à Cota de fls. 32 e ficha de registo automóvel (fls. 33); Aditamento n.º 5 (fls. 145); Relatório de perícia criminalística (fls. 318/325); Termo de recebimento de fls. 359; Reportagem fotográfica de fls. 36/361; Termo de recebimento referente à arma e munições acima indicadas e respectivo auto de apreensão (fls. 368 e 369);Relatório referente à arma de fogo e munições apreendidas (fls. 375/386); termo de recebimento e respectiva reportagem de fls. 387/390; Auto de apreensão de fls. 412; Aditamento ao auto de notícia do apenso n.º 387/20.9PAPTM e respectivo suporte fotográfico (fls. 428/429, 430/432 e 434); Relatório de perícia criminalística n.º 070/20 (fls. 436/449); Reportagem fotográfica (fls. 457/462); Auto de apreensão (fls. 58); Pesquisa efectuada nas bases de dados da Segurança Social referente ao arguido (fls. 83); Informação prestada P.S.P. de … dando conta que o arguido não é titular de licença de uso e porte de arma ou proprietário de qualquer arma devidamente licenciada ou manifestada (fls. 93); Assento de nascimento do menor CC; Informação extraída da base de dados do Registo Civil referente a FF e EE; Assento de nascimento de EE.

Igualmente se atendeu à seguinte prova pericial: relatório de exame pericial n.º 202009661-CBA (referente à arma de fogo e munições apreendidas) – fls. 780 a 788 dos autos; Relatório de exame pericial n.º 202014904-CBM (fls. 902);

A factualidade não provada, resultou quer da ausência de prova quanto à sua verificação, seja testemunhal, seja documental, quer da contradição com a factualidade provada.»

C.1 Erro de julgamento da decisão da matéria de facto

O recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto, impõe ao recorrente, nos termos previstos no § 3.º do artigo 412.º CPP, o ónus de proceder à especificação dos «concretos pontos de facto», isto é, à indicação individualizada dos factos constantes da decisão recorrida, que considera incorretamente julgados. Mais tendo de indicar as «concretas provas» (a indicação do conteúdo especifico dos meios de prova ou de obtenção de prova) que impõem decisão diversa da que foi tomada, explicitando a razão pela qual tais provas impõem decisão diversa da recorrida.

Efetivamente decorre da conjugação dos normativos contidos nos artigos 431.º, al. b), e 412.º, § 3.º, al. b) CPP, que para o Tribunal da Relação poder modificar a decisão de facto do tribunal de 1.ª instância, o recorrente tem de cumprir aquele tríplice pressuposto.

Não basta, pois, apresentar argumentos que inculquem a possibilidade de se poder concluir de outro modo, id est, que uma outra convicção era possível com base na prova produzida. É impreterível demonstrar que a convicção obtida pelo tribunal recorrido está errada do ponto de vista jurídico (porque violou proibições de prova; ou não atendeu ao valor reforçado da prova pericial ou documento autêntico), ou que é impossível de acordo com as regras da lógica ou violadora das máximas da experiência comum.

O recorrente refere ser «contraditório, e contra as regras de experiência, concluir-se que, quem pretende matar, dispondo de arma com 8 munições, só realiza um único disparo, de chumbo fino, a cerca de 25 metros de distância» (conclusão 7.ª)! E com isso terá em vista os factos dos pontos 13. e 13.1 do acórdão recorrido (o que concretamente nunca indica!). Sucede que para além desta manifestação de discordância quanto ao juízo feito pelo tribunal nesse conspecto, não assinala as provas nem as razões pelas quais a conclusão do Tribunal se mostra errada. Limita-se, conclusivamente, a dar a sua opinião!

Ao contrário disso, se bem se vir, o Tribunal recorrido justificou cabalmente por que razão de tal se convenceu:

«(…) quanto ao intuito do arguido de apenas pretender assustar o assistente, o mesmo não colheu qualquer credibilidade por manifesta e gritante contradição com as regras da experiência.

Com efeito, não se pode descurar que arguido passou uma primeira vez pelo ofendido DD (e demais pessoas que o acompanhavam, entre os quais os assistentes BB e CC) e ao vê-lo vai a casa, mune-se da arma caçadeira e respectivos cartuchos, regressa ao local e, a uma distância de cerca de 25 metros, dispara na direção do ofendido DD, onde se encontravam mais pessoas (entre as quais os ofendidos CC e BB).

Ora, alguém que pretende apenas assustar não tem esta atitude. Muito menos dispara na direção do visado, ciente de que os chumbos da caçadeira o poderão atingir e provocar lesões letais, dependendo da zona atingida (como flui da perícia de fls 780 a 787), sendo certo que após o disparo não é controlável pelo arguido a zona a atingir Porém, como flui das marcas que os chumbos deixaram na parede (cf. fls 7 a 10) o disparo foi efectuado a uma altura ao nível do torax, o que também resulta das zonas atingidas pelos ofendidos adultos, sendo que relativamente ao menor, uma vez que é mais baixo, foi atingido na cara.

Se apenas pretendesse assustar, teira disparado para o ar ou numa direção que não houvesse ninguém. Também não teira escondido a arma e muito menos fugido para vários km de distância (note-se que o arguido foi inteceptado na …, perto de …).

(…)

Note-se ainda que para avivamento da memória, foram lidas as declarações prestadas perante a policia judiciária de HH, que confirmou as declarações então prestadas, sendo o depoimento cristalino desde o momento em que vê o arguido chegar na viatura …, vai à mala de onde retira uma espingarda caçadeira, apontando-a à zona onde estava o depoente com o seu cunhado DD, o sobrinho BB e o seu filho CC e dois dos seus netos (II e JJ) sendo que o arguido não se absteve de disparar mesmo perante os pedidos insistentes e em alta voz do seu filho CC que avançou na direção do arguido de braços no ar, pedindo para não disparar para não atingir os seus netos, depoimento que riqueza de pormenores logrou formar a convicção do Tribunal.

Este quadro afasta por completo a versão do arguido de que, no momento do disparo, apenas viu no local o assistente DD e que apenas o procurou assustar, pois a sua conduta é reveladora que quis disparar contra o assistente DD, representando, como naturalmente teria de representar qualquer cidadão não inimputável, que o disparo poderia atingir uma zona vital e causar danos letais, circunstância com que se conformou.

Note-se, ademais, que o disparo é direcionado à zona do torax onde se encontram alojados vários órgãos vitais, sendo certo que a circunstância de não se ter dado como provado que o arguido agiu com dolo directo (conhecimento e vontade de realização da acão típica) apenas emana da circunstância do disparo ter sido efectuado a uma distância de 25 metros o que permitiu a dispersão dos chumbos e, consequentemente, diminuindo o potencial letal (cf perícia de fls 780 a 787 cotejada com o depoimento do inspector da polícia judiciária KK)

No que concerne às lesões infligidas a BB e ao menor CC, temos como certo da prova produzida que as mesmas resultaram igualmente do disparo efectuado pelo arguido com a arma de fogo (caçadeira), sendo conhecido (cf perícia de fls 780 a 787) e minunciosamente explicado pelo inspector da polícia judiciária KK que com a distância do disparo há uma maior dispersão dos chumbos a que equivale um menor poder de letalidade, precisamente por força da dispersão.»

Ora, conforme decorre da matriz do direito processual penal, em matéria de julgamento da questão de facto rege o princípio da livre apreciação da prova, previsto no artigo 127.º CPP, onde se dispõe que: «salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.» Isto é, o tribunal é livre na apreciação que faz da prova e na forma como atinge a sua convicção.

Tal liberdade de apreciação não significa, porém, arbitrariedade ou discricionariedade, pois está pressuposto que a valoração se faça mediante critérios legais (por exemplo os relativos às proibições de prova) e se atenda às regras da lógica e à experiência comum. Sendo uma «liberdade de acordo com um dever». (2) Sendo que «o ato de julgar é do tribunal, o qual tem a sua essência na operação intelectual da formação da convicção.

Ora esta não se constitui numa mera operação lógico-dedutiva, antes parte de dados objetivos para uma formação lógico-intuitiva (3), através de um processo racional e lógico, só limitado pelos critérios legais (v. g. em matéria de proibições de prova) e passível de motivação e de controlo, na medida em que a convicção formada só é válida se for motivada e desse modo for capaz de se impor aos outros, através da demonstração do processo intelectual e lógico seguido para a afirmação da verdade dos factos, para além de dúvida razoável. Nas circunstâncias do caso presente, estando em causa os factos internos, reveladores do elemento intencional do arguido/recorrente, na medida em que estes pertencem à vida interior do próprio, a qual é insuscetível de apreensão direta – exceto se tivesse havido confissão nessa parte -, foram os mesmos inferidos a partir dos factos objetivos provados (4). Ora, o tribunal a quo justificou que factos objetivos foram esses e em que provas concretas firmou essa sua conclusão, bem assim como as razões que justificam esse seu convencimento. E com isso se contata não se ter tratado de apreciação arbitrária, discricionária ou assente em meras impressões, sendo antes o resultado dos pressupostos valorativos que se deixaram indicados e dos critérios da experiência comum e da lógica do homem médio supostos pela ordem jurídica5.

Como já referido, o exigível contraponto em matéria impugnatória não vem apresentado pelo recorrente, limitando-se a um juízo conclusivo – ao juízo conclusivo que mais lhe convém.

Em suma: constatamos que o recorrente não cumpriu (nas conclusões ou sequer no corpo da motivação) o ónus de impugnação especificada a que estava vinculado. E este Tribunal da Relação não pode convidá-lo a aperfeiçoar o recurso (artigo 417.º, § 3.º CPP), pois se trata de deficiência estrutural da motivação, uma vez que nela se não contém o mínimo dos parâmetros assinalados. Tal equivaleria, na prática, à concessão de novo prazo para recorrer, o que a lei seguramente não permite. (6)

C.2 In dubio pro reo

Ainda que sem nunca o mencionar expressamente o recorrente bastas vezes refere que «mais provável é…» (p. ex. cls. 14.ª)! Deixando a ideia de que restou uma margem para a dúvida relativamente à intenção do arguido. Também aqui lhe falha a razão.

O princípio in dubio pro reo não significa dar relevância às dúvidas que as partes encontram na decisão ou na sua interpretação da factualidade descrita e revelada nos autos. É, antes, uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. É uma forma de ultrapassar um impasse probatório em sede factual (um non liquet), na fase de apreciação probatória, por banda do juiz ou do Tribunal.

Só o juiz ou o Tribunal é tercero en discordia (7), isto é, só ele possui as características da independência e de imparcialidade, mas também a necessária preparação técnica que o habilita e legitima a julgar. Daí que o in dubio pro reo «não seja vulnerado quando, de acordo com a opinião do condenado, o juiz devia ter duvidado, mas somente quando o juiz condenou apesar da existência real de uma dúvida.» (8)

Do texto da decisão recorrida, por um lado, não resulta que o Tribunal tenha dado como provados factos relativamente aos quais se lhe tenham oferecido dúvidas sobre a respetiva verificação; e, por outro, do mesmo texto, conjugado com os critérios da experiência comum, não ressalta que outra deveria ter sido a decisão sobre a matéria de facto. E, como assim, consideramos assente a matéria de facto prova talqualmente consta do acórdão recorrido.

C.3 Qualificação jurídica dos factos

O recorrente afirma que o crime de homicídio tentado não pode ser agravado por motivo de na sua prática haver intervenção de uma arma (nos termos previstos nos artigos 22.º, 23.º e 131.º, do Código Penal e 86.º, § 3. da Lei n.º 5/2006 de 23 de fevereiro) e ser também condenado, autonomamente, pelo crime de detenção de arma proibida, previsto no artigo 86.º, § 1.º, al. e), com referência aos artigos 2.º, § 3.º, als. e) e p) da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, uma vez que aquela agravação «impede punição pelo mesmo tipo. Não deverá haver lugar a punição pela detenção das munições da arma.» Bem assim que «dispondo, o arguido de prazo para, voluntariamente, proceder à entrega da arma, ou das munições, tendo-o feito, conforme resulta provado, nunca poderia ser condenado por detenção de arma proibida, voluntariamente apresentada» (cls. 2.ª e 3.ª).

Sobre esta matéria respondeu o Ministério Público, dizendo:

- [o arguido] «foi condenado pela prática do crime de detenção de arma proibida em virtude, não da detenção da arma, mas sim das munições, razão pela qual, inexistiu qualquer dupla valoração.»

E ainda que:

- «no que tange à entrega da arma e munições pelo arguido AA verifica-se que, não existiu qualquer entrega voluntária (a entrega foi realizada pelo ilustre defensor daquele bastante tempo depois de o arguido se encontrar sujeito à medida de coação de prisão preventiva) e, bem ainda, a data em que ocorreu a entrega não era abrangida quer pelo regime excecional previsto no artigo 8.º, n.º 1, da Lei n.º 50/2019, de 24 de julho, posto que a entrega ocorreu após o prazo concedido por esta, assim como, se mostra afastado regime previsto na [Lei n.º] 5/2021, de 19 de fevereiro de 2021, porquanto, a sua aplicação reporta-se a período temporal posterior àquele em que ocorreu a entrega das armas e munições em causa.

O recorrente não tem razão.

Não há dupla valoração da mesma conduta, por haver duas condutas ilícitas indubitavelmente autónomas.

Sem prejuízo de se considerar que separar a munição utilizada das que não foram utilizadas (como faz o acórdão recorrido e como sustenta o Ministério Público) não será acertado.

Vejamos o que esta Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro - Regime Jurídico das Armas e suas Munições - dispõe no seu artigo 86.º:

«3 - As penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, exceto se o porte ou uso de arma for elemento do respetivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma.

4 - Para os efeitos previstos no número anterior, considera-se que o crime é cometido com arma quando qualquer comparticipante traga, no momento do crime, arma aparente ou oculta prevista nas alíneas a) a d) do n.º 1, mesmo que se encontre autorizado ou dentro das condições legais ou prescrições da autoridade competente.»

Da conjugação destes dois parágrafos emerge que os crimes praticados com arma são agravados - ainda que o seu portador esteja autorizado a detê-la. O que significa que se o crime for praticado com arma e o seu portador não está autorizado a portá-la (como é aqui o caso), a violação desta proibição de porte ou detenção pode (e deve) ser punida autonomamente, havendo concurso efetivo de dois crimes distintos.

Ora, conforme se evidencia do facto provado n.º 8 o arguido disparou arma de fogo em direção à primeira das suas vítimas; apurando-se, depois, no facto 16.º, que o «arguido não [era] titular de licença de uso e porte de arma ou qualquer outra que a habilitasse a ter em seu poder quer a arma de fogo, quer as munições acima indicadas, bem sabendo que não as podia deter nas circunstâncias descritas.»

Praticou, pois, o crime de homicídio tentado agravado, por ter disparado com arma de fogo contra a pessoa que visava (artigos 131.º, 22.º, 23.º do Código Penal e 86.º, § 3. da Lei n.º 5/2006 de 23 de fevereiro); e um crime de detenção de arma proibida, previsto no artigo 86.º, § 1.º, al. e), com referência aos artigos 2.º, n.º 3, als. e) e p) da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, por não estar autorizado a deter, portar e disparar com a arma de fogo que utilizou.

E, como assim, estando os dois referidos ilícitos típicos em concurso efetivo (homicídio na forma tentada e detenção de arma proibida), terá o arguido de ser condenado por ambos - como foi.

Acresce que, contrariamente ao que doutamente sustenta o recorrente, a entrega da arma e das munições (através do seu advogado) nada interfere com o que ficou dito, neste caso - aqui sim - pelas acertadas razões indicadas pelo Ministério Público na sua resposta.

Relembremos que conforme decorre da factologia assente, a entrega da arma de fogo e respetivas munições ocorreu no dia 18/5/2020.

Ora nos termos da Lei n.º 50/2019, de 24 de julho, o prazo para entrega voluntária de armas e ausência de procedimento sancionatório terminara no dia 24 de setembro de 2019. E o prazo que lei posterior veio conceder para efeitos similares (Lei n.º 5/2021, de 19 de fevereiro) iniciou-se em data posterior à entrega já realizada. Pelo que a 12 de abril de 2020, data dos factos em referência, a detenção de tais objetos pelo arguido era proibida, não sendo a referida entrega fundamento que arrede a ilicitude da detenção até à data da efetiva entrega.

Com a ressalva feita relativamente às razões em que assenta a autonomia dos dois crimes cometidos, nada há, nesta matéria de qualificação jurídica dos factos, a censurar à decisão recorrida.

C.4 Escolha e medida da pena

Considera o recorrente que as penas concretas deveriam quedar-se no mínimo legal e a pena única de prisão quedar-se em menos de 3 anos de prisão suspensa na sua execução, uma vez que estão para isso reunidos os respetivos pressupostos, até porque ele contribuiu decisivamente para o esclarecimento das circunstâncias do caso e descoberta da verdade, mostra-se bem inserido, estão pacificadas as relações entre as famílias intervenientes, mostrando-se sanadas todas as divergências, e afastados quaisquer receios. Inexistindo animosidades na comunidade e ter o recorrente cumprido sem mácula a medida de coação de permanência na habitação. Por seu turno o Ministério Público considera que na determinação da medida concreta das penas aplicadas, foram totalmente respeitados os princípios constantes das normas dos artigos 40.º e 71.º do Código Penal. Acrescentando que os fatores aportados pelo recorrente em abono da alteração in minimis da pena aplicada a cada crime e com repercussão na pena única já foram tido em consideração pelo Juízo recorrido, pelo que não há fundamento para alterar o que ficou decidido.

Relembremos o que na ponderação da medida das penas parcelares e na pena única considerou o Tribunal a quo:

«(…) o grau de ilicitude dos factos é elevado, atendendo à imagem global do facto, onde o arguido apesar de apenas ter efetuado um disparo, fê-lo na via pública, direcionando na direção do ofendido DD, apesar de saber que junto a este estavam várias pessoas, incluindo crianças, acabando por atingir não só o visado, mas mais duas pessoas, entre as quais uma criança, à data com 6 anos de idade, que ficou com a capacidade de visão de um olho afetada, como flui da factualidade provada.

A ilicitude na detenção das munições é também elevada, pois além de deter 8, foi precisamente fazendo uso de uma das munições igual às apreendias que o arguido disparou sobre o ofendido DD que atingiu, como atingiu mais duas pessoas.

O dolo é mediano quanto ao crime de homicídio agravado tentado, porque eventual, sendo intenso quanto à detenção das munições, já que quanto a estas arguido agiu com conhecimento e vontade de realização da conduta típica.

As exigências de prevenção geral são elevadas, uma vez que a vida é o bem mais precioso da vivência em sociedade, sendo qualquer comportamento que atente contra este bem jurídico portador de uma forte carga emocional, criando sentimento de insegurança junto das populações, e apesar da de prática frequente, perturba fortemente a paz social, pelo que cumpre evitar o efeito imitação, a sua banalização e que se instaure entre os membros da comunidade o sentimento de impunidade pela violação da ordem jurídica.

No que concerne às exigências de prevenção especial, há que ter em consideração que o arguido averba já um antecedente criminal em pena de prisão, substituída por trabalho, sendo que apesar de por crime de natureza diferente, o certo é que a condenação anterior não foi lenitivo suficiente para dissuadir o arguido da prática de novos crimes.

Ainda ao nível das exigências de prevenção especial, cumpre destacar a favor do arguido a admissão da factualidade objetiva, que revela que interiorizou o desvalor das condutas, bem como a sua inserção familiar e laboral, meio onde é considerado e estimado.

Cumpre ainda destacar a ausência de lesões de relevo para os ofendidos DD e BB, o que não tendo implicação no desvalor da conduta, sempre serão de atender no desvalor do resultado.

Face ao exposto, ponderadas as exigências de prevenção geral e especial que no caso se fazem sentir, limitados pela culpa manifestada no cometimento dos factos, considera-se justo e adequado aplicar ao arguido a pena de 5 anos e 8 meses de prisão pela prática do crime de homicídio qualificado na forma tentada e a pena de 4 meses de prisão pela detenção das munições.

4.1 Do Concurso de Crimes

Atento o disposto no artigo 77.º, n.º 1 do Código Penal “quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única.” Sendo que, a pena aí aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e de 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aos vários crimes (cf. art.º 77.º, n.º 2 do CP).

Como refere Figueiredo Dias, na avaliação da pena unitária “tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente revelará, entretanto, a questão de se saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).”

(…)

Face ao exposto, há que proceder ao cúmulo jurídico entre as 2 penas de prisão aplicadas ao arguido.

Assim, atendendo ao disposto no n.º 2 do artigo 77.º do Código Penal a pena única aplicada tem de situar-se entre os 5 anos e 8 meses (mais alta das penas parcelares) e 6 anos (soma da totalidade das penas aplicadas), face às considerações tecidas aquando da determinação das penas parcelares, fixar a pena única em 5 anos e 9 meses de prisão.»

Conforme eloquentemente este Tribunal da Relação vem reafirmando e lembrando (9), «o sistema de recursos no processo penal português visa corrigir o que de errado ocorreu na primeira apreciação judicial sobre o objeto do processo, quer na vertente de facto, quer na vertente do direito aplicado. Por isso se lhe atribui a qualidade de “remédio jurídico”.» Quer-se dizer, o tribunal de recurso só deve intervir na pena, alterando-a, quando detetar incorreções ou distorções no processo da sua aplicação, na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que regem a pena.

Isto é, a sindicabilidade da pena em via de recurso situa-se, pois, no patamar da deteção de um desrespeito dos princípios que norteiam a pena e as operações de determinação impostas por lei. Não se abrangendo nesta sindicância a determinação/fiscalização do quantum exato de pena que, decorrendo duma correta aplicação das regras legais e dos princípios legais e constitucionais, ainda se revele proporcionada. Nesta margem de atuação, consigna este tribunal da Relação o acerto no processo aplicativo desenvolvido no acórdão recorrido, no qual avulta uma ponderação correta dos fatores relevantes. Consideramos, nomeadamente, que tendo em conta a moldura abstrata dos crimes cometidos (2 anos, 1 mês e 18 dias a 14 anos, 2 meses e 18 dias de prisão pelo crime de homicídio agravado tentado; e, 1mês a 2 anos de prisão ou 10 dias a 240 dias de multa pelo crime de detenção de arma proibida), as penas concretas de 5 anos e 8 meses de prisão pelo crime de homicídio agravado na forma tentada e de 4 meses de prisão pela detenção de arma proibida, evidenciam uma correta compreensão do quadro legal punitivo, sendo ajustada a graduação das penas concretas de cada um dos ilícitos praticados (incluindo a opção pela prisão e não pela multa no crime de detenção de arma proibida), valorando-se corretamente todas as circunstâncias concernentes ao acontecido e às circunstâncias do próprio arguido, de acordo com os parâmetros pertinentes aos fins das penas (artigo 40.º CP), o que igualmente sucede na fixação da pena única correspondente aos crimes em concurso, no quadro da moldura abstrata do concurso de crimes (moldura abstrata de 5 anos e 8 meses a 6 anos de prisão – artigo 77.º, § 2.º CP).

Tudo razões pelas quais o recurso não se mostra merecedor de provimento.

III – DISPOSITIVO

Destarte e por todo o exposto acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

a) Negar provimento ao recurso e, em consequência, pelas razões expendidas, manter integralmente o douto acórdão recorrido.

b) Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC’s.

Évora, 7 de novembro de 2023

J. F. Moreira das Neves (relator)

Maria Margarida Bacelar

Edgar Valente

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1 Conforme ao preconizado no Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no DR I-A de 28dez1995.

2 Neste exato sentido cf. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 2004, Coimbra Editora, pp. 202/2003.

3 Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 198/2004, de 24mar2004, Cons. Rui Moura Ramos, disponível em www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos

4 Cf. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 391/2015, de 12/08/2015, publicado D.R. n.º 224/2015, Série II, de 16/11/2015; no mesmo sentido cf. Manuel Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal, vol. I, 1992, Verbo, pp. 297/298.

5 Cf., entre outros, acórdãos do TRCoimbra, de 18/1/2017 e de 17/5/2017, respetivamente, proferidos nos procs. 112/15.6GAPNC.C1 (Desemb. Vasques Osório) e 430/15.3PAPNI.C1 (Desemb. Alice Santos) e acórdão do TRLisboa, de 18/1/2017, proc. 1050/14.5PFCSC.L1-3 (Desemb. João Lee Ferreira), todos acessíveis no endereço www.dgsi.pt

6 Neste sentido cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 7out2004, proc. n.º 3286/04, 5.ª Secção, disponível em www.dgsi.pt ; e Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 259/2002, de 18jun2002 e 140/2004, de 10mar2004, consultáveis no respetivo sítio na www.

7 Título feliz de obra de Perfecto Andrés Ibañez (magistrado del Tribunal Supremo de España), Editorial Trotta, 2015, pp. 251 ss.

8 Claus Roxin e Bernd Schünemann, Derecho Procesal Penal, Buenos Aires, 1.ª ed., 2019, p. 573 (tradução da 29.ª edição da C. H. Beck, München), Ediciones Didot. p. 573).

9 Acórdão TRÉvora, de 22/4/2014, proc. n.º 291/13.7GEPTM.E1, Desemb. Ana Barata Brito. No mesmo sentido cf. acórdãos TRÉvora, de 29/5/2012, proc. 72/11.2PTFAR.E1, Desemb. António João Latas; acórdão TRÉvora, de 16/6/2015, proc. 25/14.9GAAVS.E1, Desemb. Clemente Lima; acórdão de 26abr2022, proc. 10/19.4GAGDL.E1, Desemb. Gomes de Sousa, , todos disponíveis em www.dgsi.p