Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1263/21.3T8PTM.E1
Relator: ANA PESSOA
Descritores: CONTRATO DE EMPREITADA
COVID
IMPOSSIBILIDADE DE CUMPRIMENTO
INCAPACIDADE TEMPORÁRIA
AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Data do Acordão: 10/26/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I. A pandemia de COVID19 constituiu “indubitavelmente uma perturbação de largo espectro, que afetou e afeta de modo particularmente violento todo o equilíbrio da vida social, pondo em causa o modo de vida das comunidades, com reflexos numa multiplicidade de sujeitos, sectores económicos e relações negociais”.
II. Não é apenas o instituto previsto no artigo 437º do Código Civil que os efeitos da pandemia no contrato dos autos são suscetíveis de convocar, existindo “operadores jurídico-dogmáticos mais neutros (em relação às exigências objectivas da justiça ou da equidade postuladas pelo art. 437.º/1), como os da impossibilidade, temporária ou parcial, do cumprimento, da inexigibilidade de cumprimento, da regra de conduta segundo a boa fé do art. 762.º/2, do conflito de direitos ou do abuso do direito” que permitem enfrentar “perturbações no programa obrigacional sem recorrer ao art. 437.º/1 e ao poder de intervir no conteúdo dos contratos que o preceito lhes confere”[1].
III. A ampliação da matéria de facto pode ser oficiosamente determinada pelo tribunal superior, nas condições previstas no artigo 662, nº 2, al. c), do Código de Processo Civil, sendo que em casos como o dos autos, por força ainda do artigo 5º do Código de Processo Civil, deve ser conferida às partes "a possibilidade de se pronunciar" sobre o facto que o tribunal se propõe aditar.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NA 1.ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
I.Relatório
AA e mulher BB intentaram a presente ação de processo comum contra C..., LDA., pedindo que esta seja condenada a devolver-lhes o montante de € 94.783,62 (noventa e quatro mil setecentos e oitenta e três euros e sessenta e dois cêntimos e cumulativamente pagar a quantia de € 207.215,67 (duzentos e sete mil duzentos e quinze euros e sessenta e sete cêntimos) a titulo de indemnização por acréscimos de custos resultantes da necessidade de substituição de empreiteiro, tal como previsto na clausula 23.º do “Contrato de Empreitada”.
Alegaram para tanto, e em síntese, prejuízos decorrentes de incumprimento de contrato de empreitada entre as partes celebrado, por atraso na realização das obras, que motivou os Autores a resolver o contrato, e que vieram a verificar que o que haviam pago à R. constituía valor superior ao do efetivamente incorporado pela R. em obra, sentindo-se lesados por tal, ao que acresceram os prejuízos decorrentes de terem tido de pagar mais a outro empreiteiro para concluir a obra.
Citada, a Ré ofereceu contestação, alegando que o custo do incorporado em obra foi real e verificado pelo fiscal de obras a serviço dos Autores e que o atraso nos trabalhos se deveu a caso de força maior, motivado pela pandemia de covid-19, bem como a indecisões dos Autores, nomeadamente quanto à instalação de ar condicionado.
Concluindo que não existiu fundamento para a rescisão do contrato, invocou que lhe assistiria o direito a receber uma indemnização por lucros cessantes, em função dessa rescisão infundada, pelo que concluiu dever a ação ser considerada improcedente por não provada e a Ré ser absolvida de todos os pedidos e formulou pedido reconvencional, de que, em consequência sejam os AA. condenados a pagar à Ré do montante € 56.014,90 (cinquenta e seis mil e catorze euros e noventa cêntimos).
Os Autores replicaram, mantendo o alegado na petição inicial e pugnando pela improcedência do pedido reconvencional.
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Realizada a audiência final veio a ser proferida sentença, com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, o tribunal julga a presente ação parcialmente procedente e condena a R. a pagar aos AA. o montante de € 86.100 (oitenta e seis mil e cem euros), acrescido de juros à taxa legal, contados desde o trânsito da presente decisão até integral pagamento.
Absolve-se a R. do demais peticionado.
Julga-se ainda improcedente a reconvenção e absolvendo-se os AA. do aí contra si peticionado.
Custas da ação por AA. e R., na proporção do decaimento, que se fixa em 70% para os AA. e 30% para a R., e da reconvenção, na totalidade, pela R..
Registe e notifique.”
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A Ré, não se conformando com a sentença prolatada, dela interpôs recurso, apresentando alegações e formulando as seguintes conclusões:
I) O tribunal a quo considerou a ação intentada pelos Recorridos parcialmente procedente e, foi a aqui Recorrente C..., LDA, condenada a pagar aos Recorridos, AA e BB, o montante de € 86.100,00 (oitenta e seis mil e cem euros), acrescido de juros à taxa legal, contados desde o trânsito da presente decisão até à integral decisão. Mais decidiu o tribunal a quo absolver a Recorrente do demais peticionado e, julgar improcedente a reconvenção e absolver os Recorridos do aí peticionado.
II) Salvo o devido respeito, o Tribunal a quo errou e não fez a costumada justiça, o que motiva a apresentação do presente recurso.
III) A Recorrente e os Recorridos celebraram em 1 de setembro de 2019, contrato de empreitada, para a construção de uma moradia unifamiliar com garagem e piscina, no Lote A, da Urbanização ..., em Ferragudo, propriedade dos Recorridos, tendo sido estipulado que a obra tinha o seu início no prazo máximo de 8 (oito)dias a contar da data da emissão do alvará de construção e deveria estar concluída no prazo máximo de 12 (doze) meses.
IV) A recorrente iniciou a construção e os trabalhos de empreitada foram-se desenvolvendo normalmente durante o ano de 2019 mas, em Março de 2020 chegou a Portugal a pandemia do COVID -19 e, obrigou a constrangimentos e desaceleração do ritmo de trabalho e, neste sentido, a Recorrente viu a sua atividade ser limitada, quer porque a empresa teve vários trabalhadores seus infetados, ou em confinamento profilático por contactos com infetados, quer por tal ter ocorrido com fornecedores e subempreiteiros seus, atrasando entregas de bens e serviços em obra, quer ainda, na própria prestação de serviços das subempreitadas, que devido aos constrangimentos de circulação e do próprio contacto entre pessoas, foi severamente prejudicada. Situação que se prolongou por vários meses, como é do conhecimento geral.
V) O confinamento obrigatório dos seus trabalhadores ou subempreiteiros (de cujos trabalhos a Recorrente estava dependente para puder avançar com a empreitada), também, inevitavelmente atrasou os trabalhos.
VI) A verdade é que os efeitos e consequências da pandemia começaram rapidamente a refletir-se e a prejudicar o andamento dos trabalhos, tendo a Recorrente comunicado tal facto aos Recorridos, por mensagem de correio eletrónico em 11 de Novembro de 2020, conforme factos dados como provado nos pontos 9 e 10 da Douta sentença recorrida.
VII) A legislação excecional aprovada para o combate à pandemia, com o intuito de impedir a sua propagação, restringiu direitos e liberdade constitucionais, não podendo esta realidade que se viveu e, da qual ainda se sente os efeitos, deixar de ser qualificada como uma grande alteração das circunstâncias, pois é evidente que a mesma atingiu profundamente o equilíbrio de toda a sociedade, estando fora do controlo das Partes contratantes.
VIII) A pandemia Covid-19 causou constrangimentos em todos os setores, nomeadamente e, para o que aqui importa, no fornecimento de bens e serviços e, no normal desenvolvimento das obras, prejudicando severamente o normal decorrer dos trabalhos, provocando atrasos na obra em causa, que não eram expectáveis nem previsíveis aquando da realização do contrato de empreitada.
IX) É verdade que, em todas as obras há um risco previsível de atrasos, mas, convenhamos, este risco previsto, é um risco previsível, do que é normal acontecer e do normal desenvolvimento de uma obra. O covid-19 e as medidas excecionais que foram tomadas no combate ao mesmo, nomeadamente, o decretamento do estado de emergência e respetiva legislação que daí adveio, provocou atrasos que não se podem de forma alguma enquadrar neste risco previsível.
X) As perturbações causadas pela pandemia covid-19, representaram riscos que excedem claramente os riscos típicos associados ao contrato de empreitada, porque se traduziu na ocorrência de uma perturbação do contexto em que se insere o próprio contrato de empreitada e, da base, termos e parâmetros em que foi acordado e estabelecido entre as Partes.
XI) É uma situação excecional e imprevisível, tendo necessariamente o princípio da boa-fé, que impor um alargamento, in casu, do limite do prazo do contrato, acrescendo ao seu termo, os meses em que se estabeleceram medidas de prevenção e combate a esta pandemia, ou seja, o prazo estabelecido no contrato de empreitada, não previa nem tinha como prever, esta alteração anormal das circunstâncias, sendo que esta cláusula em específico não contemplava nem a situação pandémica do covid-19, nem a legislação excecional aprovada para mitigar e fazer face a esta pandemia.
XII) Pelo que, é necessário fazer, forçosamente, uma conjugação entre o regime consagrado no artigo 437.º do código civil, que prevê o instituto da alteração superveniente das circunstâncias e a legislação excecional aprovada em resposta à pandemia. Verificando-se in casu, uma alteração das circunstâncias dos termos acordados no contrato, por uma situação causada por um motivo imprevisível e de força maior, denominado pandemia covid-19.
XIII) Da alteração das circunstâncias tem de resultar a manutenção do contrato de empreitada, com adiamentodo cumprimento das obrigações dele resultantes, nomeadamente, do prazo estabelecido para a conclusão dos trabalhos, ao invés da sua resolução.
XIV)) Pelo que, tais atrasos, não podem ser imputáveis à Recorrente, não podendo deste, em virtude da alteração anormal das circunstâncias, advir qualquer consequência jurídica para a Recorrente, nem podiam os Recorridos ter resolvido unilateralmente o contrato de empreitada nos termos em que o fizeram.
XV) Nestes termos e, tendo em conta o supra exposto, não deve a Recorrente ser condenada a pagar qualquer valor aos Recorridos pelo atraso verificado na obra que se deveu à pandemia covid-19. XVI) Resultou das declarações de Parte do legal representante da Recorrente e, do depoimento das testemunhas, que a pandemia do covid-19 perturbou severamente o andamento e o normal desenvolvimento dos trabalhos de empreitada, levados a cabo pela Recorrente na obra dos Recorridos, e que a legislação excecional aprovada durante a pandemia, nomeadamente, a referente aos confinamentos obrigatórios e restrição à liberdade de contactos e de circulação de pessoas e bens, colocou a Recorrente numa situação de inexigibilidade face ao cumprimento dos prazos previstos no contrato de empreitada, nomeadamente, o prazo para a conclusão da obra.
XVII) Mais resultou do depoimento do arquiteto responsável pelo projeto, CC – que o tribunal a quo considerou ter sido a testemunha fundamental para a fixação da matéria de facto - que ia frequentemente à obra verificar os trabalhos e, inclusive era o canal de ligação entre a Recorrente e os Recorridos, explicou que o ano de 2020 foi um “ano caricato” devido ao covid-19, e declarou que devido à pandemia se perdeu quatro meses de obra;
XVIII) Também a testemunha DD, que à data trabalhava para a Recorrente, explicou que a seu ver a pandemia foi a principal razão para os atrasos verificados na obra, uma vez que levou a uma redução drástica de trabalhadores, havendo inclusive uma altura em que só a testemunha se encontrava a trabalhar na obra dos Recorridos e, mais declarou que cerca de 70% da obra decorreu no pico da pandemia;
XIX) Por outro lado, os Recorridos decidiram em outubro de 2020 e, só nesta data (o que desde logo prova que os Recorridos consideravam que nesta data a obra estava ainda dentro do seu normal desenvolvimento e dentro do prazo estabelecido para a sua conclusão), instalar na cave sistema centralizado de climatização(ar condicionado) por conduta, bem como pretenderam instalar sistema de chão radiante, uma e outra situação não constando do inicialmente contratado entre as partes (que incluía a instalação de ar condicionado com máquinas individuais por divisão - murais), e tal não constava do inicialmente contratado, pelo que os trabalhos a realizar em obra e respetivos custos tinham que ser redefinida e aprovada pelos Recorridos, para que a Recorrente pudesse dar continuidade aos mesmos;
XX) Contactada a empresa instaladora do sistema de ar condicionado – “ADM - Climatização e Renováveis Lda”, comercialmente denominada ENAT, subcontratada pela Recorrente para a instalação do ar condicionado em toda a moradia – para a redefinição do orçamento e dos equipamentos a instalar, tendo esta, solicitado a aprovação de desenhos técnicos, porquanto o ar condicionado por conduta é um trabalho muito específico, as condutas são feitas à medida e, para esta empresa mandar fazer as peças, necessita e exige sempre prévia aprovação do layout e, só posteriormente a esta aprovação é que mandam fazer as peças.
XXI) A Recorrente solicitou aos Recorridos, através do arquiteto do projeto, CC, a aprovação dos desenhos técnicos enviados pela empresa instaladora. Porém, a Recorrente nunca recebeu respostados Recorridos aosupra referidoemail, e ficou a aguardar que estes a informassem em conformidade e se aceitavam a revisão do orçamento, uma vez que os ares condicionados de conduta, têm valor muito superior aos ditos “normais” que estavam inicialmente previstos no contrato e, ficaram a aguardar a aprovação dos desenhos técnicos.
XXII) O que obrigou a Recorrente a aguardar por essas instruções, não podendo avançar com os trabalhos sem tais diretivas, nem podia a Recorrente prosseguir com os trabalhos, que estavam dependentes da prévia instalação das condutas, nomeadamente, pavimentos, trabalhos de colocação de alumínios, azulejos e pinturas interiores;
XXIII) Tais alterações, implicaram atraso na obra, mas não por culpa da Recorrente, pois esta insistia por informação e aprovação, mas tão só por falta de decisões por parte dos Recorridos, que não respondiam ou transmitiam a informação necessária à Recorrente.
XXIV) Quanto a esta matéria, resultou das declarações de parte do legal representante e do depoimento das testemunhas que os donos da obra em outubro de 2020, pediram alterações ao inicialmente contratado, nomeadamente, solicitaram a alteração do sistema de ar condicionado murais, para a instalação de ar condicionado por conduta na cave e instalação de chão aquecido, resultou também do depoimento da testemunha, Arquiteto, CC, que os Recorridos solicitaram alterações aos trabalhos em Outubro de 2020, nomeadamente relativas ao ar condicionado por conduta e chão radiante na cave, que não estavam inicialmente previstas, tendo sido necessário reajustar o orçamento e trabalhos a executar, mais declarou que o Dono da Obra considerava que nesta altura ainda considerava normal a obra estar a decorrer;
XXV) A testemunha EE, explicou que era ela quem enviava os e-mails aos Recorridos, com conhecimento da Recorrente, nomeadamente e-mails a solicitar informações de trabalhos a executar ou sobre os materiais a empregar e, os Recorridos ou demoravam muito tempo a responder ou nem sequer respondiam e, que tais demoras ou ausência de respostas, levaram a atrasos na obra, porquanto sem tais respostas a Recorrente não podia avançar com os trabalhos;
XXVI) Também a testemunha DD, disse ter conhecimento sobre o pedido de alteração dos Recorridos para o sistema de ar condicionado por conduta, que não estava inicialmente previsto e, que houve uma situação com o pé direito, em que não havia resposta para que a Recorrente pudesse avançar com os trabalhos;
XXVII) Os Recorridos nunca invocaram o atraso de nenhuma destas fases. Se houve incumprimento do prazo final, teria que ter havido incumprimento do prazo de qualquer das fases, ou de várias e, os Recorridos deveriam ter invocado logo esse atraso e não apenas o atraso a final.
XXVIII) Resulta provado que os atrasos, para além dos motivos de força maior, decorreram do contributo dos próprios Recorridos, pelo que, nunca tal motivo poderá ser atendível ou valorado para efeitos de legitimidade de resolução unilateral, com direito à indemnização ou penalidade pretendidas, ou a qualquer outra;
XXIX) A Recorrente tinha em curso outra obra, cuja Dona da Obra, era a sociedade, HQL, Lda, da qual o aqui Recorrido marido é sócio e, nodecorrerdesta outa obra surgiramproblemas, nomeadamente, quando a pagamentos, tendo a aqui Recorrente intentado ação cível contra esta empresa. A proposição da referida ação, coincidiu exatamente com o momento que em os Recorridos enviaram missiva a resolver o contrato de empreita com a Recorrente, com o fundamento em atrasos na obra. XXX) Pelo que, o facto de a Recorrente ter intentado ação contra a sociedade de que o Recorrido é sócio, levou a que os Recorridos, por retaliação, tomassem esta atitude de resolução do contrato de empreitada celebrado com a Recorrente.
XXXI) Tais factos, quer um, quer outro, não são imputáveis à Recorrente, por isso, não pode haver incumprimento definitivo do contrato, por tais atrasos verificados na obra, não resultarem de culpa ou má-fé da Recorrente, que sempre pretendeu terminar os trabalhos contratados.
XXXII) Mais resultou provado, que se perdeu, pelo menos, quatro meses de obra, conforme depoimento da testemunha, Arquiteto CC, autor do projeto e que estava na obra ao serviço dos Recorridos.
XXXIII) Pelo que, este período de tempo, em que a Recorrente se viu impossibilitada de avançar com os trabalhos devido à pandemia, tem que ser acrescido ao final do prazo estabelecido no contrato, ou seja, se os trabalhos se tinham que iniciar até 09.09.2019, os dozes meses inicialmente previstos para a conclusão da obra, terminavam, em 09.09.2020. Mas, acrescendo ao seu termo os quatro meses que resultou provado que se perdeu de obra, os trabalhos deviam estar concluídos até 09.01.2021.
XXXIV) Mais se diga, que em outubro de 2020, foram solicitadas alterações de trabalhos e materiais a utilizar e trabalhos extra, que não estavam inicialmente previstos, o que tem que forçosamente implicar uma alteração da calendarização em conformidade com os mesmos.
XXXV) Mas, não obstante, ainda assim, resulta do disposto na cláusula 22º do contrato de empreitada que “Os Donos da Obra poderão resolver o presente contrato (…) 1)Se a Empreiteira não concluir, os trabalhos no prazo de 75 dias contados da data acordada na clausula 4º do presente contrato.”, ou seja, só havia motivo para resolução contratual dos Dono da Obra, por atrasos na conclusão dos trabalhos de empreitada, se a Empreiteira ultrapasse o prazo de 75 dias do seu termo previsto. Assim, acresceu ao termo do prazo o período de quatro meses, sendo que o prazo previsto para a conclusão, passou para dia 09.01.2021. Se adirmos os 75 dias previsto no n.º1 da cláusula 22ª do contrato, os Donos da Obra, só poderiam resolver o contrato com fundamento no atraso da conclusão dos trabalhos, a partir de 25.03.2021.
XXXVI) Ou seja, quando os Recorridos enviaram à Recorrente, carta registada com A/R, em 29.01.2021, para resolução unilateral do contrato, invocando o n.º1 da cláusula 22º do contrato de empreitada, não tinham a esta data, fundamento para resolver o contrato de empreitada sub judice, pelo que, a resolução contratual levada a cabo pelos Recorridos carece de fundamento, não podendo ser a Recorrente condenada como foi na Douta sentença, a pagar aos Recorridos a quantia de € 82.000,00 a título de indemnização pelo prejuízo resultante de atrasos na obra e a necessidade de contratação de um novo empreiteiro pelos Recorridos, acrescida da penalização de 5% prevista na cláusula 23ª do contrato de empreitada, no montante global de € 86.100,00;
XXXVII) Assim, resulta claro e evidente, que nenhuma responsabilidade pode ser assacada à Recorrente pela não continuidade dos trabalhos e pela contratação de novo Empreiteiro, porque a Recorrente foi impedida de continuar com a obra, por decisão unilateral dos Recorridos. Portanto, não tem a Recorrente qualquer responsabilidade pelo eventual acréscimo de custo que para os Recorridos, porque tal decisão foi unilateral e só a eles responsabiliza.
XXXVIII) Para além de que, não foi feita prova pelos Recorridos, que o orçamento apresentado pelo novo Empreiteiro, correspondia ao da Recorrente, ou seja, com os mesmos trabalhos a executar, os mesmos materiais a empregar e os mesmos parâmetros que estavam previstos no contrato de empreitada celebrado entre as aqui Partes, mas a verdade é que não foi feita qualquer prova, tendo necessariamente este pedido de improceder por não provado e por falta de fundamento para resolução do contrato pelos Recorridos, como atrás se deixou demonstrado e provado, devendo a Recorrente ser absolvida de todos os pedidos.
XXXIX) Sendo ilícita a resolução do contrato de empreitada pelos Recorridos, por falta de fundamento legal ou contratual, tal resolução implica a obrigação dos Recorridos, de indemnizar a Recorrente pelo que a lei prevê para os trabalhos a menos que é a frustração do ganho, ou seja, a compensação devida pela redução de trabalhos, por resolução ilegítima, ilícita e infundada do contrato de empreitada.
XL) Pelo que, deve o valor peticionado em reconvenção, correspondente à indemnização à Recorrente por lucros cessantes, na proporção de 25% do valor de € 224.059,62 (duzentos e vinte e quatro mil e cinquenta e nove euros e sessenta e dois cêntimos) que deveria ter sido faturado e não o foi, ser considerado procedente. Deste modo, deve a douta sentença ser alterada e, a título reconvencional, serem os Recorridos condenados a pagar à Recorrente o valor de € 56.014,90 (cinquenta e seis mil e catorze euros e noventa cêntimos), pelos lucros cessantes e decorrentes da resolução ilegítima unilateral do contrato de empreitada pelos Recorridos.
NESTES TERMOS, NOS MELHORES DE DIREITO, E SEMPRE COM O MUI DOUTO SUPRIMENTO DE V.EXAS, DEVE SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, POR VIA DELE:
A) SER A RECORRENTE TOTALMENTE ABSOLVIDA DOS PEDIDOS, ALTERANDO-SE A DOUTA SENTENÇA RECORRIDA PARA TOTALMENTE ABSOLUTÓRIA PARA A RECORRENTE, NOS TERMOS PUGNADOS NAS PRESENTES ALEGAÇÕES, TUDO COM AS LEGAIS CONSEQUÊNCIAS;
E, EM CONSEQUÊNCIA:
B) SER DADO PROVIMENTO À RECONVENÇÃO DEDUZIDA PELA RECORRENTE NOS SEUS EXATOS TERMOS, SENDO OS RECORRIDOS CONDENADOS A PAGAR À RECORRENTE A QUANTIA DE € 56.014,90 (CINQUENTA E SEIS MIL E CATORZE EUROS E NOVENTA CÊNTIMOS), PELOS LUCROS CESSANTES E DECORRENTES DA RESOLUÇÃO ILEGÍTIMA UNILATERAL DO CONTRATO DE EMPREITADA PELOS RECORRIDOS. ALTERANDO-SE A DOUTA SENTENÇA RECORRIDA NOS TERMOS PUGNADOS NAS PRESENTES ALEGAÇÕES, TUDO COM AS LEGAIS CONSEQUÊNCIAS; e SÓ, ASSIM, SE FAZENDO, A TÃO HABITUAL E COSTUMADA JUSTIÇA.
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Os Apelados responderam às alegações, concluindo da seguinte forma:
a) O Tribunal a quo fez uma correta apreciação da prova.
b) A Apelante deve ser condenada a pagar aos Apelados. o montante de € 86.100 (oitenta e seis mil e cem euros), acrescido de juros à taxa legal, contados desde o trânsito da sentença recorrida até integral pagamento.
c) Ser confirmada a improcedência da reconvenção mantendo a absolvição dos Apelados do contra si peticionado. Nestes termos,
E nos demais de Direito, deve a apelação interposta pela Apelante ser declarada improcedente, sendo-lhe negado provimento, mantendo-se e confirmando-se na integra a douta sentença recorrida. pugnando pela confirmação da decisão recorrida.
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Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II. Objecto do Recurso
Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela Recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (art.º 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º e 663.º, n.º 2 do CPC) que, no caso, por ordem lógica, são as seguintes:
- Da impugnação da matéria de facto;
- Se aos Réus assistia o direito a resolver o contrato de empreitada celebrado entre as partes;
- Na afirmativa, se lhes assiste o direito a serem indemnizados nos enunciados na decisão recorrida;
- Na negativa, se assiste à Ré o direito a ser indemnizada em conformidade com o pedido reconvencional que formulou.
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III. Fundamentação
1. De facto
Na sentença recorrida consideraram-se provados os seguintes factos:
1- Em 1 de setembro de 2019 foi outorgado “Contrato de Empreitada” entre os AA, e a R., o qual constitui o documento que se encontra junto com a p.i. com o nº 1 e com a contestação com o nº 2, aqui se dando o mesmo por integralmente reproduzido (resposta ao artº 1º da p.i.).
2- A empreitada tinha como objeto a construção de uma moradia unifamiliar com garagem e piscina a edificar no prédio urbano sito na Urbanização ..., Ferragudo, designado por lote A, propriedade dos AA. (resposta aos artºs 2º da p.i. e 10º da contestação).
3- A empreitada foi adjudicada à R. pelo preço global de € 602.700,00 (seiscentos e dois mil e setecentos euros) com IVA incluído (resposta ao artº 3º da p.i.).
4- Na Cláusula Quarta do “Contrato de Empreitada” foi estipulado o prazo de 12 meses para a conclusão da obra (resposta ao artº 4º da p.i.).
5- Foi acordado que a Ré desenvolveria os trabalhos, faturaria de acordo com as fases estabelecidas e executadas, e os pagamentos seriam efetuados após a sua faturação (resposta ao artº 12º da contestação).
6- Os AA. pagaram à R. no decurso dos trabalhos realizados o montante de € 421.890,00 (quatrocentos e vinte e um mil oitocentos e noventa euros) com IVA incluído (resposta ao artº 5º da p.i.).
7- Estes pagamentos foram efetuados até 23/09/2020 (resposta ao artº 6º da p.i.).
8- Os AA. escolheram e indicaram para responsável pela fiscalização da obra, pessoa da sua confiança, apresentado à Ré como Sr. FF, e nenhum trabalho foi feito pela Ré, sem que o fiscal estivesse a par e, sem que tivesse possibilidade de controlar todo o desenvolvimento da obra, tendo este ficado responsável por esclarecer os AA. das dúvidas que estes tivessem no decurso dos trabalhos (resposta ao artº 13º da contestação).
9- Os trabalhos foram-se desenvolvendo até ao momento em que a pandemia de COVID-19 obrigou a constrangimentos e desaceleração do ritmo de trabalho, porque a empresa teve trabalhadores seus infetados, ou em confinamento profilático, por e por tal ter ocorrido com fornecedores e subempreiteiros seus, atrasando entregas e serviços em obra (resposta aos artºs 14º a 16º e 37º a 39º da contestação).
10- Por esta situação se estar a verificar e a limitar a atividade da Ré, esta transmitiu-a aos AA, por mensagem de correio eletrónico enviada a 11 de novembro de 2020, cuja cópia se encontra junta como documento nº 3 da contestação (resposta ao artº 17º da contestação).
11- Durante o ano de 2020 os AA. decidiram instalar na cave sistema centralizado de climatização (ar condicionado) por conduta na moradia, bem como pretenderam ali colocar sistema de chão radiante, uma e outra situação não constando do inicialmente contratado, pelo que teve a Ré que aguardar que, na sequência do solicitado pelo fornecedor, os AA. tomassem decisões quanto a essa instalação e adequação dos trabalhos em obra e respetivos custos para se redefinirem os trabalhos em conformidade (resposta aos artºs 18º a 21º da contestação).
12- A Ré informou por escrito os AA., em email datado de 27 de outubro de 2020, de que o Sr. Fiscal de Obra tinha referido que estes trabalhos eram necessários, mas que estes não integravam o orçamento inicial, pelo que aguardava confirmação tão breve quanto possível, para evitar o atraso nos trabalhos, sendo que os AA. não deram resposta por escrito ao supra referido email, e a R. enviou ainda aos AA. em 1 de fevereiro de 2021, o email que se encontra junto como documento nº 5 da contestação, sendo que o arquiteto CC, que se encontrava ao serviço dos AA., disse à R. para avançar com o projeto de ar condicionado, que entretanto foi aprovado (resposta aos artºs 22º a 27º da contestação).
13- A obra nunca se encontrou parada por a R. aguardar a aprovação do projeto de climatização (resposta aos artºs 12º e 13º da réplica).
14- Em 22 de janeiro de 2021, a R. enviou ao Arquiteto CC, responsável pelo projeto e que também ligava a atividade da Ré aos donos da obra, o email que constitui o documento nº 6 da contestação, ao que aquele arquiteto reiterou a informação que já antes tinha transmitido à R., de que a pedra já anteriormente se encontrava escolhida (resposta aos artºs 28º, 40º e 41º da contestação).
15- A R. não concluiu a obra no prazo estipulado no “Contrato de Empreitada” (resposta ao artº 7º da p.i.).
16- Os AA. enviaram à R. carta registada com A/R., datada de 29 de janeiro de 2021, não estando ainda nessa data a obra concluída, onde manifestaram a sua intenção de resolver o Contrato de Empreitada, invocando os termos conjugados das cláusulas Vigésima Segunda, n.º 1 (que previa a possibilidade de resolução pelos AA. se a obra não estivesse concluída no prazo de 75 dias desde o final do 12º mês posterior à celebração do contrato), Vigésima Terceira (que previa que se o contrato fosse resolvido pelos AA. com base num dos fundamentos previstos na cláusula Vigésima Segunda estes teriam direito a uma indemnização equivalente ao acréscimo de custo resultante da necessidade de substituição do empreiteiro, acrescido de 5% a título de penalidade) e Vigésima Quarta (que previa que os AA. poderiam, nos casos anteriores, tomar posse de obra, sem direito de retenção pelo empreiteiro), sendo que tal documento constitui o documento nº 9 junto com a p.i. (resposta aos artºs 8º da p.i., 30º da contestação e 6º e 7º da réplica).
17- No dia 24 de fevereiro de 2021, pelas 9h30, realizou-se uma vistoria à obra onde participaram os representantes dos AA. e da R., para que ficasse assente o estado e condições em que a obra era entregue aos AA. por vontade destes, tendo as partes elaborado o relatório que se encontra junto como documento nº 9 da contestação, tendo aí fotográfica e descritivamente ficado registado o executado e o estado de execução (resposta aos artºs 9º da p.i. e 4º e 43º da contestação).
18- Após cumprida a vistoria operou-se a resolução do Contrato de Empreitada tendo os AA. tomado posse da obra (resposta ao artº 10º da p.i.).
19- Em 30 de março de 2021, foi contratado pelos AA. um perito avaliador certificado, que realizou uma inspeção à obra, tendo elaborado o “Relatório de Avaliação” que se encontra junto como documento 10 da p.i. (resposta ao artº 11º da p.i.).
20- O “Relatório de Avaliação” avaliou o valor da obra. em € 327.106,67 (trezentos e vinte e sete mil cento e seis euros e sessenta e sete cêntimos) com IVA incluído (resposta ao artº 12º da p.i.).
21- Os AA. contrataram um novo empreiteiro para terminar a obra (resposta ao artº 16º da p.i.).
22- O empreiteiro contratado pelos AA. para finalização da obra apresentou um orçamento para realização dos trabalhos no valor de € 348.951,00 (trezentos e quarenta e oito mil novecentos e cinquenta e um euros) com IVA incluído (resposta ao artº 17º da p.i.).
23- A somar aos custos orçamentados para os trabalhos a realizar pelo novo empreiteiro, os AA. tiveram de pagar os custos com os pavimentos interiores e exteriores, bem como os materiais para finalização das casas de banho, alumínios e janelas, que estavam incluídos nos trabalhos a realizar pelo R. e não foram executados (resposta ao artº 18º da p.i.).
24- O custo dos pavimentos está orçamentado em € 50.633,65 (cinquenta mil seiscentos e trinta e três euros e sessenta e cinco cêntimos), com IVA incluído (resposta ao artº 19º da p.i.).
25- O custo do equipamento para as casas de banho está orçamentado em € 17.283,58 (dezassete mil duzentos e oitenta e três euros e cinquenta e oito cêntimos) com IVA incluído (resposta ao artº 20º da p.i.).
26- O custo dos alumínios e janelas está orçamentado em € 56.073,65 (cinquenta e seis mil e setenta e três euros e sessenta e cinco euros) com IVA incluído (resposta ao artº 21º da p.i.).
27- A sociedade aqui Ré, embora se possa dedicar, estatutariamente à atividade de compra de imóveis para revenda e revenda dos adquiridos para esse fim, tem-se dedicado principalmente à construção civil, mediante empreitadas (resposta ao artº 9º da contestação).
28- A Ré respondeu à missiva dos AA. por email do dia 4 de fevereiro de 2021, com carta anexa, expressamente não aceitando os fundamentos invocados pelos AA. para a resolução do contrato, por considerar que o atraso na obra não lhe era imputável, resposta essa que constitui o documento junto com a contestação com o nº 8, referindo considerar estar perante um caso de força maior e que, por isso, não havia incumprimento definitivo do contrato, uma vez que pretendia terminar os trabalhos contratados (resposta aos artºs 33º, 34º, 96º e 111º da contestação).
29- Ainda assim, os AA. insistiram na resolução do contrato, não pretendendo continuar (resposta ao artº 35º da contestação).
30- Apesar de não querer deixar a obra, o sócio-gerente da Ré, como os AA. continuaram irredutíveis na decisão tomada, aceitou comparecer no encontro em obra no dia 24 de fevereiro de 2021, pelas 9h30, para que se procedesse à vistoria da obra (resposta aos artºs 42º e 44º da contestação).
31- Nunca os AA. colocaram em causa os trabalhos realizados e materiais utilizados pela Ré, que tinham sido objeto de aprovação do seu Fiscal, nem antes lhe expressaram pessoalmente descontentamento com o andamento dos trabalhos, sendo que o contrato se desenvolvia por fases e em nenhuma fase os AA. invocaram qualquer atraso, sem embargo de o Arquiteto CC, ao serviço dos AA., ter insistido com a R. para a necessidade de se avançar com a conclusão da obra (resposta aos artºs 45º e 48º da contestação).
32- A Ré cessou a empreitada, porque tal prossecução não seria possível contra a vontade expressa dos AA., não aceitando a Ré responsabilidade pela não continuidade dos trabalhos (resposta aos artºs 46º e 47º da contestação).
33- Os pagamentos efetuados pelos AA. foram-no em execução das faturas emitidas e estas foram-no em função dos trabalhos realizados, porque os AA. tinham, desde o início, um fiscal de obra, que a acompanhava e validava o que era feito antes de ser pago e que tomava as decisões perante a Empreiteira em nome dos AA., os quais, ao pagarem as faturas emitidas o fizeram porque o seu Fiscal validou a realização dos trabalhos, como efetivamente feitos (resposta aos artºs 50º a 52 e 91º da contestação).
34- A estrutura de betão estava totalmente concluída (resposta ao artº 61º da contestação).
35- A instalação elétrica e de telecomunicações, foi feita por subempreiteiro (resposta ao artº 69º da contestação).
36- Os AA. receberam e aceitaram a obra como lhes foi entregue, na sequência do relatório decorrente da visita conjunta à obra realizada, no estado em que estava e sem vícios, no momento em que a mesma lhes foi entregue pela Ré (resposta aos artºs 99º e 100º da contestação).
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Foi considerada não provada a matéria dos artºs 29º, 62º, 64º, 66º a 68º, 73º a 75º, 81º a 85º, 90º, 101º e 104º da contestação e 9º da réplica.

Não se respondeu à matéria dos artsº 13º a 15º e 22º a 27º da p.i., 1º a 3º, 5º a 8º, 11º, 31º, 32º, 36º, 49º, 53º a 60º, 63º, 65º, 70º, 72º, 76º a 80º, 86º a 89º, 92º a 95º, 97º, 98º, 102º, 103º, 105º a 110º e 112º a 126º da contestação e 1ºa 4º, 6º, 8º, 10º, 11º e 14º a 23º, por se considerar o respetivo teor conclusivo.
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De Direito
Não vem controvertida a qualificação do contrato celebrado entre as partes como de empreitada, nos termos corretamente enquadrados pelo Tribunal Recorrido no artigo 1207º do Código Civil.
A controvérsia no caso cinge-se, quer em termos de facto, quer em termos jurídicos, no enquadramento da situação de atraso que se verificou no desenvolvimento da obra, com fundamento na qual os Autores/Recorridos entenderam resolver o contrato, invocando as previsões contratuais, nomeadamente da cláusula que lhes permitia fazê-lo se a obra não estivesse concluída no prazo de 75 dias após o termo do prazo de um ano para a sua realização.
É quanto a este ponto que a Ré se insurge contra a sentença recorrida, por entender, além do mais, ter demonstrado – por resultar das declarações de Parte do legal representante da Recorrente e do depoimento das testemunhas - que a pandemia do covid-19 perturbou severamente o andamento e o normal desenvolvimento dos trabalhos de empreitada, levados a cabo pela Recorrente na obra dos Recorridos, e que a legislação excecional aprovada durante a pandemia, nomeadamente, a referente aos confinamentos obrigatórios e restrição à liberdade de contactos e de circulação de pessoas e bens, colocou a Recorrente numa situação de inexigibilidade face ao cumprimento dos prazos previstos no contrato de empreitada, nomeadamente, o prazo para a conclusão da obra.
Acrescenta a Apelante ter resultado do depoimento do arquiteto responsável pelo projeto, CC – que o Tribunal a quo considerou ter sido a testemunha fundamental para a fixação da matéria de facto - que ia frequentemente à obra verificar os trabalhos e, inclusive era o canal de ligação entre a Recorrente e os Recorridos, explicou que o ano de 2020 “foi um “ano caricato” devido ao covid-19, e declarou que devido à pandemia se perdeu quatro meses de obra.” (o destacado é nosso).
Procedeu-se à audição da totalidade da prova gravada e à respetiva conjugação com a prova documental junta aos autos e da concatenação da mesma resulta desde logo que efetivamente se demonstrou o que a Ré tinha alegado a esse respeito, e que o Tribunal Recorrido deu por demonstrado nos artigos 9º e 10º dos factos provados, assim:
“9- Os trabalhos foram-se desenvolvendo até ao momento em que a pandemia de COVID-19 obrigou a constrangimentos e desaceleração do ritmo de trabalho, porque a empresa teve trabalhadores seus infetados, ou em confinamento profilático, por e por tal ter ocorrido com fornecedores e subempreiteiros seus, atrasando entregas e serviços em obra”; (cf. artigos 14º a 16º e 37º a 39º da contestação)
“10- Por esta situação se estar a verificar e a limitar a atividade da Ré, esta transmitiu-a aos AA., por mensagem de correio eletrónico enviada a 11 de novembro de 2020, cuja cópia se encontra junta como documento nº 3 da contestação” (cf. o artigo 17º da contestação).
Mas mais.
Da prova produzida, designadamente das declarações de parte e dos depoimentos das testemunhas CC e DD, resulta ainda que os constrangimentos e limitação da atividade da Ré em consequência da citada pandemia de COVID19 - que, como é sabido, constituiu “indubitavelmente uma perturbação de largo espectro, que afetou e afeta de modo particularmente violento todo o equilíbrio da vida social, pondo em causa o modo de vida das comunidades, com reflexos numa multiplicidade de sujeitos, sectores económicos e relações negociais”[2]- terão determinado um atraso equivalente a quatro meses de trabalho na concreta obra dos autos.
Trata-se de facto concretizador dos alegados pela Ré para fundar a sua oposição, pois como é sabido, são estes os que têm por função pormenorizar ou explicitar o quadro fáctico exposto, sendo exatamente essa concretização dos factos anteriormente alegados que se torna fundamento para procedência da ação ou da exceção (cf. o artigo 5º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Civil). São, efetivamente os que pormenorizam, minuciam, explicitam ou particularizam factos (nucleares ou complementares) já alegados, daí resultando a plena assunção do facto nuclear ou complementar, e que têm o seu campo de aplicação no âmbito das alegações vagas, genéricas, imprecisas ou dúbias.
Ora, no que concerne a tais factos, estabelece a al. b) do n.º 2 do citado artigo 5º que os mesmos, ainda que não articulados pelas partes, são considerados pelo juiz se resultarem da instrução da causa, e desde que sobre eles as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciar.
E das alegações da Ré resulta a relevância de tal facto, no ponto em que refere:
“(…)117º Mais resultou provado, conforme supra alegado, mas que se reitera, que se perdeu, pelo menos, quatro meses de obra, conforme depoimento da testemunha, Arquiteto CC, autor do projeto e que estava na obra ao serviço dos Recorridos.
118º Pelo que, este período de tempo, em que a Recorrente se viu impossibilitada de avançar com os trabalhos devido à pandemia, tem que ser acrescido ao final do prazo estabelecido no contrato, ou seja, se os trabalhos se tinham que iniciar até 09.09.2019, os dozes meses inicialmente previstos para a conclusão da obra, terminavam, em 09.09.2020.
119º Mas, acrescendo ao seu termo os quatro meses que resultou provado que se perdeu de obra, os trabalhos deviam estar concluídos até 09.01.2021. (…)
125º Assim, como se disse, acresceu ao termo do prazo o período de quatro meses, sendo que o prazo previsto para a conclusão, passou para dia 09.01.2021.
126º Se adirmos os 75 dias previsto no n.º1 da cláusula 22ª do contrato, os Donos da Obra, só poderiam resolver o contrato com fundamento no atraso da conclusão dos trabalhos, a partir de 25.03.2021.
127º Ou seja, quando os Recorridos enviaram à Recorrente, carta registada com A/R, em 29.01.2021, para resolução unilateral do contrato, invocando o n.º1 da cláusula 22º do contrato de empreitada, não tinham a esta data, fundamento para resolver o contrato de empreitada sub judice. (…)” (o destacado é nosso).
Cabe aqui salientar que na decisão recorrida a questão foi enfrentada no seguinte trecho:
“(…)Não podendo dizer-se que as partes aceitaram pôr fim ao contrato de empreitada por acordo, embora a R. (assumindo a sua contrariedade relativamente a esse desfecho) tenha acabado por comparticipar na vistoria que foi feita a obra subsequentemente à resolução contratual, constata-se que a R. alega que a situação de atraso na obra deve ser valorada à luz do instituto da alteração das circunstâncias, por ter ocorrido caso de força maior devido à pandemia de covid-19, que provocou o atraso na realização dos trabalhos que estava a desenvolver. Tal invocação remete-nos para o disposto no artº 437º do Código Civil, segundo o qual:
(…)
E, a respeito da boa-fé no cumprimento, importará não olvidar que, segundo o artº 762º do Código Civil:
(…)
Revertendo ao caso dos autos, temos que da matéria provada retira-se, efetivamente, que ocorreu algum atraso na obra imputável à pandemia de covid-19 ou, pelo menos, que a existência de pandemia, que, como é sabido provocou situações de confinamento e isolamento, em virtude das situações de contágio ou das situações de risco de contágio, contribuiu para a existência de dificuldades no desenrolar da obra. No entanto, não basta demonstrar que existiu um atraso e não basta demostrar que existiu alguma dificuldade ou contrariedade devida à referida pandemia para imediatamente se poder concluir que ocorreu motivo para justificar a aplicação do instituto da alteração de circunstâncias ou, pelo menos, a existência de um caso de força maior que pudesse excluir alguma espécie de responsabilidade do empreiteiro no caso. Na verdade, aquilo que se demonstra é que, estando previsto um prazo de tolerância de 75 dias (dois meses e meio) após o prazo de um ano, durante o qual devia ser feita a obra, essa mesma obra não foi concluída nesse prazo de um ano, nem nos 75 dias posteriores nem mesmo quase três meses depois desses 75 dias, desconhecendo-se quando seria concluída, posto que a obra devia estar concluída em 1 de setembro de 2020 e em 29 de janeiro de 2021 não estava ainda concluída. Também não se nos afigura que tenha havido qualquer conduta por parte dos donos da obra que tivesse causado sério embaraço ao desenvolvimento dos trabalhos. Por isso, entendemos que, no caso dos autos, não se demonstrou matéria suficiente que permitisse concluir de forma justificada que os problemas causados pela pandemia de covid-19 tivessem sido de tal forma que implicassem uma modificação do equilíbrio contratual, justificativa da aplicação do instituto da alteração das circunstâncias.(…)”
E foi tal raciocínio que esteve subjacente ao entendimento de que aos Autores assistia o direito contratualmente previsto a resolver o contrato e a responsabilizar a Ré pelo pagamento na quantia em que a mesma foi condenada.
O Tribunal Recorrido enquadrou apenas a questão no âmbito do instituto da alteração das circunstâncias previsto no artigo 437º do Código Civil, para afastar a verificação dos respetivos pressupostos, e não se desconhece o entendimento segundo o qual “o necessário o requerimento das partes a fim de actuar o direito relativo à resolução ou modificação do contrato por alteração de circunstâncias (artigo 437º, n.º 1 do Código Civil) não pode ser suprido oficiosamente pelo juiz”[3], sendo que no caso, a Ré parece pretender que o mesmo deveria ter sido objeto de modificação, requerimento que não formulou, ao menos de forma expressa anteriormente à sentença.
Porém, não é apenas tal instituto jurídico que os efeitos da pandemia no contrato dos autos (como em tantos outros contratos, designadamente de execução continuada) são suscetíveis de convocar, existindo “operadores jurídico-dogmáticos mais neutros (em relação às exigências objectivas da justiça ou da equidade postuladas pelo art. 437.º/1), como os da impossibilidade, temporária ou parcial, do cumprimento, da inexigibilidade de cumprimento, da regra de conduta segundo a boa fé do art. 762.º/2, do conflito de direitos ou do abuso do direito” que permitem enfrentar “perturbações no programa obrigacional sem recorrer ao art. 437.º/1 e ao poder de intervir no conteúdo dos contratos que o preceito lhes confere”[4].
O facto referido, não expressamente alegado, mas concretizador dos alegados e que resulta da prova produzida não pode, pois, validamente, deixar de considerar-se relevante para a decisão justa da causa.
Dispõe o artigo 662º, nº 2, als. c) e d) do Código de Processo Civil, que não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, deve a Relação, mesmo oficiosamente;
- anular a decisão proferida na 1ª instância quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, ou obscura a decisão sobre pontos determinados sobre a matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta;
- determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial, o tribunal de 1ª instância a fundamente.
Como referido supra, a ampliação da matéria de facto pode ser oficiosamente determinada pelo tribunal superior, nas condições previstas no artigo 662, nº 2, al. c), do Código de Processo Civil, sendo que em casos como o dos autos, por força ainda do já citado artigo 5º, do Código de Processo Civil, deve ser conferida às partes "a possibilidade de se pronunciar" sobre o facto que o tribunal se propõe aditar, pois “só assim se assegurará um processo equitativo (art. 547º do CPC), facultando-se às partes o exercício pleno do contraditório, requerendo – como é admitido por qualquer das teses –, se for caso disso, novos meios de prova em relação aos factos novos, quer para reafirmar a realidade desses factos, no sentido da sua prova, quer para opor contraprova a respeito dos mesmos, infirmando a realidade que aparentam.”
Impõe-se, pois, atenta a relevância do facto para a decisão do pleito, a anulação da decisão recorrida, a fim de na primeira instância ser dada às partes a possibilidade de se pronunciar sobre o indicado facto a aditar[5].
A anulação não prejudica a prova já produzida, nem abrange a parte da decisão que não esteja viciada, sem prejuízo da apreciação de outros pontos da matéria de facto, com o fim de evitar contradições, tudo nos termos do disposto no artigo 662º, n.º 3, al. c) do Código de Processo Civil.
Em face do decidido fica prejudicado o conhecimento das demais questões colocadas no recurso.
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IV. DECISÃO
Pelo exposto, acordam em anular a decisão proferida em 1ª instância, a fim de no Tribunal Recorrido ser conferida às partes "a possibilidade de se pronunciar" sobre o aditamento do facto – “os constrangimentos e limitação da atividade da Ré em consequência da citada pandemia de COVID19 determinaram um atraso equivalente a quatro meses de trabalho na concreta obra dos autos” elaborando, depois, nova decisão em face do que desse exercício resultar.
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Custas pelos Recorridos – artigos 527º, ns. 1 e 2 do Código de Processo Civil.
Registe e notifique.
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Évora, 26 de outubro de 2023
Ana Pessoa
Francisco Xavier
José António Penetra Lúcio

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[1] Cf. Manuel Carneiro da Frada, “A Alteração das Circunstâncias à Luz do Covid-19 – Teses e Reflexões Para Um Diálogo”, pg. 161, acessível em https://portal.oa.pt/media/131420/manuel-carneiro-da-frada.pdf, e as anotações aos preceitos do Código Civil correspondentes incluídas em “Novo Corona Vírus e Crise Contratual” (coord. Catarina Monteiro Pires), da autoria de Ana Perestrelo De Oliveira, A. B. Menezes Cordeiro, Catarina Monteiro Pires, Diogo Costa Gonçalves, Madalena Perestrelo de Oliveira e Maria de Lurdes Pereira, AAFDL, 2021; Cf. ainda Alberto de Sá e Mello, “Modificação ou Resolução do Contrato por Alteração das Circunstâncias no Contexto da Pandemia Covid-19”, Janeiro 2021, acessível em https://observatorio.almedina.net/index.php/2021/01/28/modificacao-ou-resolucao-do-contrato-por-alteracao-das-circunstancias-no-contexto-da-pandemia-covid-19/
[2] Cf. Mariana Fontes da Costa, “Covid 19 e Alteração Superveniente das Circunstâncias”, pg. 358, acessível em https://portal.oa.pt/media/133314/mariana-fontes-da-costa.pdf; cf. ainda sobre os efeitos da pandemia na economia dos contratos os Acórdãos da Relação de Lisboa de 13.09.2022, proferido no processo n.º 3478/20.2T8CSC.L1-7, de 23.03.2023, proferido no processo n.º 2916/20.9T8PDL.L1-6, acessíveis em www.dgsi.pt
[3] C. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15.12.2022, proferido no âmbito do processo n.º 56149/21.1YIPRT.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt e toda a jurisprudência e doutrina ali mencionadas.
[4] Cf. Manuel Carneiro da Frada, “A Alteração das Circunstâncias à Luz do Covid-19 – Teses e Reflexões Para Um Diálogo”, pg. 161, acessível em https://portal.oa.pt/media/131420/manuel-carneiro-da-frada.pdf, e as anotações aos preceitos do Código Civil correspondentes incluídas em “Novo Corona Vírus e Crise Contratual” (coord. Catarina Monteiro Pires), da autoria de Ana Perestrelo De Oliveira, A. B. Menezes Cordeiro, Catarina Monteiro Pires, Diogo Costa Gonçalves, Madalena Perestrelo de Oliveira e Maria de Lurdes Pereira, AAFDL, 2021; Cf. ainda Alberto de Sá e Mello, “Modificação ou Resolução do Contrato por Alteração das Circunstâncias no Contexto da Pandemia Covid-19”, Janeiro 2021, acessível em https://observatorio.almedina.net/index.php/2021/01/28/modificacao-ou-resolucao-do-contrato-por-alteracao-das-circunstancias-no-contexto-da-pandemia-covid-19/
[5] Cf. neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07.02.2017, proferido no processo n.º 1758/10.4TBPRD.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt