Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
420/21.7PBELV-A.E1
Relator: BEATRIZ MARQUES BORGES
Descritores: ENTREGA DE DOCUMENTOS
COMUNICAÇÕES POR CORREIO ELETRÓNICO
COMUNICAÇÕES POR TELECÓPIA
INQUÉRITO
INSTRUÇÃO
Data do Acordão: 01/24/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. A expedição de peças processuais por correio eletrónico coloca-se durante a fase de inquérito e da instrução, pois a partir da remessa (pelo Ministério Público) do processo para julgamento a apresentação das peças processuais ou de requerimentos apresentados por advogados ou solicitadores têm de ser enviadas através da plataforma informática citius (cf. n.º 2 do artigo 2.º da Portaria nº 280/13, 26 de agosto).
II. A remessa de peças processuais por correio eletrónico equivale ao envio da comunicação por remessa por via postal registada, conquanto a respetiva mensagem seja cronologicamente validada, mediante a aposição de selo temporal por entidade idónea.
III. Esse selo temporal passou a ser aposto pelos CTT a partir de 15.9.2003, na sequência de protocolo assinado com a Ordem dos Advogados e a Multicert, mas cessou depois da privatização dos Correios que deixaram de validar as mensagens eletrónicas e de disponibilizar o serviço de MDDE (Marca do Dia Eletrónica).
IV. Atualmente a apresentação de peças processuais por correio eletrónico só pode ser realizada através da via simples ou sem validação cronológica, devendo nesse caso o requerente apresentar os originais do articulado/documento autêntico ou autenticado remetendo-o para a secretaria judicial, no prazo de 10 dias contado do envio por endereço eletrónico (cf. neste sentido o artigo 4.º, n.º 3 do DL 28/92 de 27fev.).
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I. Relatório

1. Do processado prévio ao despacho recorrido

No Processo Comum Singular n.º 420/21.7PBSTB da Comarca de Setúbal Juízo Local Criminal de Setúbal - Juiz 5 foi deduzida acusação particular pelo assistente AA contra o arguido BB, com o seguinte teor:

1.1. Da acusação particular
“1.º O aqui assistente apresentou queixa crime contra o aqui arguido, pela prática, por este último do crime de injúria, que correu os seus termos, no Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, Juízo Local Criminal de Setúbal - J1, com o n° de processo 850/19...., pelo qual foi condenado.
2.º no dia 15.01.2021, pelas 14h16, a Meritíssima Juiz de Direito declarou aberta Audiência de Discussão e Julgamento (Conforme prova ata de audiência de discussão e julgamento, aqui junta como Doc. n° 1 e que se dá por integralmente reproduzida para os devidos efeitos legais).
3.º O arguido quis prestar declarações, as quais foram gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso nesse Tribunal, tendo as mesmas a duração de 24 minutos e 59 segundos.
4.º Tais declarações (transcritas (…) consubstanciaram-se em toda a sua totalidade, em factos totalmente falsos, lesivos da honra e consideração do assistente, como sejam:
"Eu que o que eu quero significar é que esse homem deixasse logo da mão, porque eu bloqueei-o nas redes sociais e ele anda, andava sempre atrás de mim (…)”
“… essas mensagens foram enviadas, não estão é aí. Essas mensagens foram enviadas, o Senhor só meteu aí as que lhe interessou. Portanto, isso vem tudo de um, isso vem tudo frf um conjunto de conversas, não foi só essa mensagem, vem tudo de um conjunto de mensagens.”
“Eu que, o que quero significar é que esse homem deixasse logo da mão, porque eu bloqueei-o nas redes sociais e ele anda, andava sempre atrás de mim …”
Não, essas, expressões é tipo de um aviso para ele me deixar, porque ele, uns dias antes recebi uma mensagem dele que ia tocar à minha terra e que …”.
"Ah se tivemos relações sexuais, e sei aquilo que ele vale e aquilo que ele é, posso lhe chamar os nomes que eu entender.”
"Sim, porque ele dois dias antes mandou-me uma mensagem a dizer que ia tocar à minha terra e que queria dormir comigo. E eu eroticamente na brincadeira, mandei-lhe essa resposta. O que é certo é que eu não guardei nada para me defender. E ele agarrou-se só às questões principais para me, pra me, para me perseguir, que está a ser uma perseguição, todos os dias me telefona, é quatro, cinco da manhã, números privados, e(...) isto vai acabar mal de certeza."
"Ah a muitas, a muitas ah perguntas, vá, ou a ou, ou ah ou resposta a outras mensagens que eu também recebi dele, que não as tenho."
"Sim. Que eu apaguei, eu eliminei-o, todo, eu bloqueei-o nas redes sociais, eliminei-o no Facebook, eliminei-o em todo o lado. E ele consegue saber, eu não sei se ele tem algum perfil falso, ele conseque saber onde é que eu estou, aparece-me em todo o lado, aparecia, e isto tem sido o meu tormento.
Inclusive há pouco tempo me convidou para ir prá ... ter com ele."
"Aí há dois, três meses, se calhar. Que pagava-me tudo e mais alguma coisa."
"Sim ah há uns meses já, ou mais, há um ano se calhar, ou mais. E derivado a isso é que tenho sido perseguido a toda a hora, tenho ah tenho processos nos Tribunais quase todos no país. Ainda ontem tive no norte, hoje tenho aqui, amanhã tenho noutro lado, não sei. Isto está a ser uma perseguição.
E eu queria dizer a este Tribunal também, que se eu quisesse também tinha arranjado testemunhas falsas, vinte ou trinta pessoas, e números de telefone também…”.
"Tive um deslize na minha vida, e ele fez-me hum, fez-me um ah não é bem proposta, ah...
"Houve uma altura em que eu precisei de dinheiro e ele fez-me uma proposta, que se fosse com ele pagava."
"Uma proposta que ele me fez, se eu fosse com ele, pagava-me."
"E eu fui, não gostei, e disse a ele "chega, ficamos por aqui".
"Juiz de Direito: Relacionaram-se sexualmente …
Arguido: Exatamente”
"E a partir dai o homem não me larga. Quis arranjar confusão nos anos da minha namorada, que mandou pra lá um colega bêbado, onde arranjou confusão com ela, pra eu me chatear com ela, e eu não queria levar isto à frente porque tenho filhos maiores e ele, aliás, e também pus a minha relação em risco, tive que dizer a ela a verdade, que ela também não sabia, e quis arranjar confusão para eu acabar com ela. Se calhar para eu estar mais libertado, se calhar, talvez. E tem sido uma novela autêntica, isto.”
“e então mandei-lhe essa mensagem porque ele tinha mandado uns dias antes, que eu não tinha percebido, e pus aqui uns placards, os cartazes lá no café e vi que de facto ele ia tocar l6 nesse dia, e depois mandei-lhe isso na brincadeira ah, na brincadeira quer dizer, não é pa, para prejudicar ninguém, foi tipo, do, mesmo uma resposta àquilo que ele me disse. Porque ele disse que, que ia tocar à minha terra e que nessa noite dormia na minha casa. Onde sabe que eu dormia oh onde sabe que eu vivia sozinho, não é. E estamos a falar a quinhentos metros da minha casa, a sociedade onde ele foi tocar."
"deixa-me da mão, a mim e à minha namorada", embora ele tenha arranjado confusão comigo e com ela, ate, até já disse que ela andou, ah que andou a ajudá-la em tudo, mentira, ela é ah ela é que o ajudou a ele, simplesmente a (...) das vozes, que nem isso ele lhe pagou a ela ainda.
"..eu levei ah ao ponto de ele estar se calhar ah o convidar-me, além de querer que eu estivesse lá, também levasse alguém pró ver, porque nesse dia nem sequer lá foi ninguém a vê-lo a tocar. E eu levei isso mais porá a brincadeira, de ele se calhar estar a ah estar-me ah a convidar paro ir lá ou, e eu para descartá-lo enviei essa mensagem. Eu por acaso também estava a almoçar e depois tinha visto as mensagens num outro telefone que eu tenho e depois ah de facto ah respondi, olhe, não sei, se fiz bem se fiz mal, mas não foi por essas intenções que se calhar estão a ser levadas."
"Agora, eu posso lhe chamar esse nome, porque ele esteve comigo, portanto, só se houver agora outro nome novo, pronto."
"Sim, sim. Ele enviou mais mensagens. E essa mensagem, já não me lembro ah que resposta é que foi, mas isso vem de um conjunto de mensagens, ele só se agarrou àquelas que lhe interessou. Pena tenho eu de não as ter também, porque eu não estava com esta, com esta ah não estava com esta maldade, não é, (...) porque não, não guardei nada, portanto, não tenho testemunhas, não tenho nada, estou aqui e estou a dizer a verdade, eu podia ter arranjado tantas coisas e, e testemunhas falsas como ele as tem."
"Porque ah para ele pensar mesmo que eu não estava cá. Senão batia-me à porta. Como eu disse, a sociedade aonde ele tocou era aí a quinhentos metros da minha casa. E sabe que pelo GPS, ele sabe a minha morada, e ia lá ver, nunca lá esteve, mas ia lá dar de certeza."
“ ...se foi ele que pôs aqui, se calhar apagou as outras. Se calhar teremos que pedir à, à, à NOS ou à Vodafone, se calhar, não sei, há de haver algum ah alguma maneira de se calhar ir ... as mensagens que ele escreveu."
"Porque assim, duvido, telefona-me de dois ou três telefones, que não sei aonde é que ele vai buscar tanto telefone, mas pronto, era o que eu lhe devia ter feito e não fiz, dei, e assim estou aqui a pagar as favas todas. O que é certo é que eu já bloqueei o meu telefone para mensagens privadas, e aparece-me números de telefone nove seis e inclusive o número desativa logo no outro dia. Ah qualquer cartão é cinco euros, pode-se comprar em qualquer lado.
Agora eu, pra mandar mensagens só tenho um telefone, só tenho aquele Facebook, e tinha, tinha que mandar por ali."
“Mandatário: Ele pagou-lhe para ter relações consigo?
Arguido: Sim.
Mandatário: O Senhor pediu-lhe dinheiro para ter relações consigo?
Arguido: Não, não, ele é que me ofereceu.
Mandatário: Ele é que lhe ofereceu.
Arguido: Exatamente.
Arguido: Não. Mas talvez seja o preço que ele está a pedir de indemnização.
Mandatário: Dois mil euros?
Arguido: Sim, das três vezes que esteve comigo."
Mandatário: ... mas é ah olhe, já agora, onde é que foi?
Arguido: Então, foi duas no ah no ... oh do, do IC ... e uma foi dentro do ... da irmã, um ... ...."
(…)
Arguido: Esse Senhor é que quis fama e andou atrás e andou a persegui-la para tirar fotografias, onde o Facebook dela…”
5.º Das declarações acima transcritas, prestadas pelo arguido, em sede de audiência de discussão e julgamento, dúvidas não subsistem que, o mesmo imputou ao assistente factos falsos, tendo formulado, igualmente, juízos ofensivos da sua honra e consideração, tais como:
- perseguição do arguido nas redes sociais;
- envio de mensagens do assistente ao arguido
- terem tido relações sexuais por três vezes
- o assistente ter-lhe enviado uma mensagem, onde lhe comunicava que queria dormir consigo;
- o assistente perseguir o arguido, todos os dias lhe telefonando, às 4h/5h da manhã, de números privados
- o facto do assistente aparecer-lhe em todo o lado, causando-lhe tormento
-o facto do assistente o ter convidado para ir para a ..., ter com ele, e que lhe pagava todas as suas despesas
- o assistente ter arranjado testemunhas falsas
- o assistente ter-lhe feito uma proposta, no sentido de lhe pagar em dinheiro, para se relacionar sexualmente com ele
- o assistente ter arranjado confusão nos anos da namorada do arguido, por ter enviado um individuo bêbado, com o objetivo de o arguido se chatear com a namorada
- o facto do assistente não ter pago, o trabalho de vozes efetuado pela namorada do arguido
- o envio de mensagens por parte do assistente a convidar o arguido, para estar presente no dia da sua atuação, na zona de residência deste último
- a troca de várias mensagens entre assistente e arguido
- o facto do assistente telefonar ao arguido, de dois ou três telefones diferentes
-o facto do assistente ter pago dois mil euros por cada relação sexual que teve consigo e essas relações sexuais terem ocorrido em dois motéis e no carro da irmã do assistente
- por querer fama, o assistente andou a perseguir a namorada do arguido, com o intuito de tirar fotografias com a mesma para publicar no seu Facebook.
Posto isto,
6° dúvidas não subsistem que, ao prestar tais declarações, perante a autoridade judiciária, repita-se, de conteúdo totalmente falso, o arguido imputou ao assistente factos falsos, bem como formulou juízos, igualmente falsos, totalmente ofensivos da sua honra e consideração, praticando desta feita, nítida e inequivocamente, um crime de difamação p.e p. no artigo 1802, n° 1, do C.P...
Salienta-se que,
7.º o assistente apenas viu o arguido duas vezes, tendo numa delas, mais precisamente, no dia de aniversário da Senhora Dona CC, cumprimentado o mesmo, já que, a sua colega de profissão - Senhora D. CC apresentou o arguido como sendo seu primo, situação que, mais tarde, o assistente soube, por outras pessoas, não corresponder à verdade, pois tratava-se, sim, do atual namorado de CC
8° A Senhora D. CC era colega de profissão do assistente, tendo a primeira, por diversas vezes, pedido ao segundo que lhe arranjasse trabalho no ramo da música, pois, necessitava muito de dinheiro para custear as despesas com o seu processo de divórcio a correr termos contra o seu ex-marido, bem como as decorrentes da aquisição da casa de morada de família.
9.º O assistente acedeu a tais pedidos, tendo conseguido que a Senhora D. CC, a seu pedido, fosse contratada por várias entidades, tendo, inclusivamente, permitido que esta última, algumas vezes, participasse, em dupla, nos seus concertos, sendo dividido entre ambos o cachet daí obtido.
10.º O assistente e a Senhora D. CC, mantinham uma relação de amizade, alicerçada num sentimento de respeito mútuo.
11.º A Senhora D. CC enviou várias mensagens ao assistente, onde esta o informava que, por ter tido vários problemas com o aqui arguido e como forma de evitar tal situação, foi obrigada a bloquear o assistente na sua página do Facebook, tendo, inclusivamente no decurso de tais mensagens, pedido ao assistente que retirasse da sua página do Facebook, as várias fotos que, durante os espectáculos em que participaram em conjunto, tinham sido tiradas a ambos, já que, tal situação, causava, no seu namorado, aqui arguido, muitos ciúmes.
12.º O assistente acedeu imediatamente a tal pedido.
13.º Por último, cumpre salientar que, no concernente às expressões acima transcritas, de conteúdo totalmente difamatório e insultuoso, atentatórias do seu bom nome, honra, reputação e consideração, a única explicação que o assistente encontra para as mesmas, funda-se num sentimento de ciúmes por parte do arguido, decorrente da excelente relação de amizade existente entre o assistente e a Senhora D. CC, totalmente desmedido desajustado e sem qualquer fundamento ou justificação, já que, a mesma consubstanciava, única e exclusivamente, uma pura e forte amizade, alicerçada num sentimento de respeito e consideração mútuos.
Perante o acima exposto,
14.º dúvidas não subsistem que, o arguido adotou uma conduta totalmente livre, voluntária e consciente da sua gravidade e ilicitude, agindo, desta feita, com dolo direto, pois, ao imputar os factos totalmente falsos acima transcritos, bem como, formular, igualmente, os juízos, ai consubstanciados, de conteúdo, de igual forma, falsos e maliciosos, tinha um objetivo muito claro e definido que era, sem qualquer margem para dúvida, lesar a honra e consideração do assistente. Pretensão e objetivo conseguidos!!!
Pois
15.º com tais expressões, difamou, intencionalmente, o assistente, imputando-lhe factos falsos e formulou juízos de valor consubstanciados na mais pura má fé, malicia e mentira, totalmente lesivos e ofensivos da sua honra, bom nome, consideração e reputação.
16.º Tal situação configura um crime de difamação, previsto e punido pelo artigo 180.º, n° 1, do C.P., onde reza o seguinte:
Artigo 180.° - Difamação
"1 - Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 240 dias.
17.º O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei e mesmo assim não se inibiu de a realizar.
Assim sendo,
18.º O arguido incorreu na prática, como autor material, de um crime de difamação, previsto e punido pelo artigo 1809, n° 1, do C.P. (…).

1.2. Na sequência da acusação particular apresentada pelo assistente o MP proferiu o seguinte despacho:
“Da Acusação particular deduzida
A fls. 125 e seguintes dos autos veio AA, na qualidade de assistente, deduzir, nos termos do artigo 285.º do Código de Processo Penal, acusação particular contra BB imputando-lhe a prática de um crime de difamação, previsto e punido pelo artigo 180.º do Código Penal.
Dispõe o n.º4 do art. 285º do Código de Processo Penal que “O Ministério Público pode, nos cinco dias posteriores à apresentação da acusação particular, acusar pelos mesmos factos, por parte deles ou por outros que não importem uma alteração substancial daqueles.”
Para a decisão de acompanhamento ou não da acusação particular deduzida pela assistente importa fazer uma apreciação sobre a existência de indícios suficientes da prática do crime de difamação pelo arguido.
O inquérito tem por finalidade, nos termos do disposto no artigo 262.º do Código de Processo Penal, investigar a existência da prática de crime, determinando os seus agentes e a responsabilidade destes, bem como descobrir e recolher provas em ordem à decisão fundamentada sobre a acusação, a qual só poderá ser deduzida se dos elementos constantes dos autos resultar suficientemente indiciada a prática de factos ilícitos e quais os seus agentes.
Núcleo central da acusação é, então, a existência de indícios suficientes da prática de crime, do seu agente e da sua punibilidade.
O artigo 283.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, considera ‘suficientes os indícios sempre que deles resulte uma possibilidade séria de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança’. É de salientar, porém, que não é de uma mera possibilidade ou probabilidade que aqui se trata, pois: ‘os indícios só serão suficientes e a prova bastante, quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando seja mais provável do que a absolvição “ [sublinhado nosso] (Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, Tomo I, pág. 133).
Por outro lado há que ter presente que o crime de difamação encontra-se previsto no art.º 180º do Cód. Penal, e estabelece no seu n.º 1 que “Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias “.
A difamação define-se como a atribuição a alguém de facto ou conduta, ainda que não criminosos, que encerrem em si uma reprovação ético-social, isto é, compreende comportamentos lesivos da honra e consideração de alguém.
Ora, in casu, os factos descritos na queixa apresentada e na acusação particular não traduzem só por si um comportamento lesivo da honra ou consideração da assistente.
Como refere ainda José de Faria Costa in Comentário Conimbricense do Código Penal “Nesta óptica, fácil é de entender que o ponto nevrálgico da difamação se centra, como de imediato ressalta mesmo com a mais desatenta das leituras do tipo, na imputação a outrem de factos ou juízos desonrosos efectuada, não perante o próprio, mas dirigida, veiculada através de terceiros”.
Ora, as alegadas expressões difamatórias, objeto da acusação particular, foram proferidas por BB quando prestou declarações na qualidade de arguido, em sede de audiência de discussão e julgamento, no processo nº 850/19..... Nesses autos BB estava acusado do crime de injuria no qual era ofendido /assistente AA. Assim, o arguido em sua defesa, além do mais, disse que manteve uma relação amorosa com o queixoso e que este lhe enviada mensagens de forma reiterada. Mais disse que após de relacionar sexualmente com AA este persegue-o. O então arguido prestou tais declarações como forma de justificar a prática dos factos que lhe foram imputados naqueles autos.
Em face do exposto, entendo não existirem indícios suficientes da prática pelos arguidos do crime de difamação que lhes é imputado, pelo que o Ministério Público não acompanha a acusação particular deduzida contra o arguido. (…)”.

2. Da decisão
Distribuído o processo o Tribunal a quo decidiu pela seguinte forma (transcrição):
“Questão Prévia
Dispõe o artigo 311.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que “recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer”, sendo que o n.º 2, alínea a), preceitua que “se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada”.
Ora, no caso vertente afere-se da verificação de duas circunstâncias que obstam ao recebimento da acusação particular deduzida nos autos por banda do assistente, sendo que a primeira tem que ver com a validade/tempestividade da prática do referido acto (ou seja, a apresentação da acusação particular) e a segunda, de carácter subsidiário, concerne à circunstância de se aferir por manifestamente infundada a aludida acusação na medida em que os factos nela contidos não configuram a prática de crime por banda do arguido.
*
Começando pela apreciação da primeira questão, cumpre ter em atenção que o assistente foi notificado para deduzir acusação particular através de ofícios remetidos em 11.4.2022 (v., fls. 116 e 117), sendo que praticou o referido acto processual em 28.4.2022 (v. fls. 124-157) através de telecópia, sendo que talqualmente o praticou através da expedição, também em 28.4.2022, de mensagem de correio electrónico (fls. 158-190), sendo que a referida mensagem foi remetida por uma segunda ocasião, também em 28.4.2022 (v. fls. 191-223).
Se é certo que a acusação particular foi apresentada no prazo legalmente previsto para o efeito, ou seja, no prazo de dez dias após a notificação a que se reporta o artigo 285.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, não se descurando a suspensão de prazos ocorrida de 9.4.2022 a 18.4.2022, afere-se, todavia, que a aludida peça processual não foi validamente introduzida em juízo.
Com efeito, no que tange ao envio da peça processual através de telecópia (fax), aferindo-se a mesma abstractamente viável na medida em que corresponde à prática de acto processual ainda na fase de inquérito e, assim, não sendo obrigatória a apresentação por transmissão electrónica de dados nos termos a que se reporta a Portaria n.º 280/2013, de 26.3. (v. artigo 1.º, n.º 2), é de ter em conta o preceituado no Decreto-Lei n.º 28/92, de 27.2..
Assim, é de considerar que o artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 28/92, de 27.2., dispõe que “pode efectuar-se por telecópia a transmissão de documentos, cartas precatórias e quaisquer solicitações, informações ou mensagens entre os serviços judiciais ou entre estes e outros serviços ou organismos dotados de equipamento de telecópia (…)”, sendo que o artigo 3.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, estende a referida possibilidade aos actos a praticar em processo penal.
Todavia é de ter em atenção que o artigo 4.º, n.º 3, do aludido Decreto-Lei, preceitua que “os originais dos articulados, bem como quaisquer documentos autênticos ou autenticados apresentados pela parte, devem ser remetidos ou entregues na secretaria judicial no prazo de sete dias contado do envio por telecópia, incorporando-se nos próprios autos” (devendo-se considerar este prazo como sendo de dez dias ante o disposto no artigo 6.º, n.º 1, al. b), do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12.12).
Sucede, porém, que os originais da acusação particular que foi remetida através, como se disse, de telecópia não foram juntos autos, tendo decorrido desde a sua apresentação prazo inequivocamente superior a dez dias, o que leva à preclusão do direito que se fazia pretender valer, ou seja, mais concretamente, o de dedução de acusação particular.
Não se olvida, é certo, que na mesma data, inclusivamente através de duas mensagens, o assistente remeteu através de correio electrónico a supramencionada peça processual, cumprindo, pois, ter em atenção o preceituado na Portaria n.º 642/2004, de 16.6., e, bem assim, considerar que “em processo penal, é admissível a remessa a juízo de peças processuais através de correio electrónico, nos termos do disposto no artigo 150.º, n.º 1, alínea d), e n.º 2, do Código de Processo Civil de 1961, na redacção do Decreto-Lei n.º324/2003, de 27.12, e na Portaria n.º 642/2004, de 16.06, aplicáveis conforme o disposto no artigo 4.º do Código de Processo Penal” (Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 3/2014, publicado no DR n.º 74, I Série, de 17.4.2014).
É, pois, de ter em atenção o preceituado no artigo 10.º da Portaria n.º 642/2004, de 16.06, que refere que “à apresentação de peças processuais por correio electrónico simples ou sem validação cronológica é aplicável, para todos os efeitos legais, o regime estabelecido para o envio através de telecópia”.
Ora, as mensagens de correio electrónico supra referidas foram remetidas aos autos por correio electrónico simples, mais concretamente sem aposição de assinatura digital certificada e sem validação cronológica (marca do dia electrónica) efectuada por entidade terceira, o que impõe, por conseguinte e ante o que se acaba de referir, a aplicação do regime da telecópia, ou seja, o já mencionado artigo 4.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 28/92, de 27.2., cabendo renovar a esta parte o já consignado a respeito da falta de apresentação dos originais da acusação particular.
Assim, não tendo sido apresentados os originais da acusação particular no prazo de dez dias após o envio das sobreditas mensagens de correio electrónico e por telecópia, tal implica considerar como não validamente praticado o acto processual agora em referência, sem que o mesmo possa ser renovado, pois que o prazo para o efeito mostra inteiramente decorrido e, assim, ficando precludida a possibilidade de dedução da acusação particular.
Note-se que inexiste qualquer convite no sentido do sujeito processual praticante do acto, ou seja, o assistente, juntar os originais da acusação particular. Com efeito, conforme se refere no muito recente Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 8.2.2022, referindo-se ao artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 28/92, de 27.2., “quando o nº 5 prevê a notificação para exibição dos originais está a referir-se apenas aos casos do nº 4 (“originais de quaisquer outras peças ou documentos”) e não também aos casos do nº 3 (“originais dos articulados, bem como quaisquer documentos autênticos ou autenticados”)”, acrescentando-se que “não faz sentido que seja de outra forma: quanto aos articulados (em sentido amplo, abrangendo, portanto, o r.a.i.), documentos autênticos ou autenticados, a “parte” tem que juntar os originais no prazo de 10 dias; quanto a outras peças processuais (que não sejam articulados) ou outros documentos (que não autênticos ou autenticados) a “parte” deve conservar os originais, devendo apresentá-los se para isso for notificada” e que “não há aqui qualquer convite ou alerta para a prática de um acto que deveria ter sido praticado anteriormente. O que há é uma notificação para exibição dos originais relativamente a peças processuais e/ou documentos que a “parte” não tinha a obrigação de juntar antes, mas apenas de os conservar”, concluindo-se que “para os casos, como o dos autos, em que não se trata de conservar os originais mas sim de os juntar no prazo de 10 dias, não há lugar a qualquer notificação para a prática do acto que deveria ter sido praticado anteriormente (junção dos originais), precisamente porque há a obrigação de os juntar no prazo de 10 dias” e que “se a “parte” não juntar os originais nos termos do referido nº 3, fica precludido o direito que se pretendia fazer valer (…)” (relatado pelo Exmo. Sr. Juiz Desembargador Nuno Garcia, processo n.º 157/19.7T9RMZ-A.E1, disponível para consulta em www.dgsi.pt).
Em sentido idêntico, é ainda ter em mente o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 30.11.2021, em que se sumariou que “ao requerimento de abertura de instrução enviado através de correio eletrónico com o recurso ao servidor de correio eletrónico da Ordem dos Advogados, não constando assinatura eletrónica certificada nem a aposição de selo temporal por entidade terceira idónea, aplica-se o artigo 10º da Portaria n.º 642/2004, de 16 de Junho, do qual resulta que à apresentação de peças processuais por correio electrónico é aplicável o regime estabelecido para o envio através de telecópia” e que “este último regime encontra-se regulado no DL n.º 28/92, de 27 de Fevereiro, o qual estabelece no seu artigo 4º, a obrigatoriedade de serem remetidas, no prazo de 10 dias, (artigo 6.º, n.º 1, al. b), do DL n.º 329-A/95, de 12-12), ou entregues na secretaria, os originais das peças processuais”, sendo que em sede fundamentação se refere que se perfilha o entendimento segundo o qual “a realização de um convite por parte do Tribunal, para junção dos originais, redundaria na obnubilação de dever legalmente imposto (o previsto n.º 3 do artigo 4.º do DL 28/92) e na “implosão” do prazo peremptório de 20 dias para requerer a abertura da instrução previsto no artigo 287.º, n.º 1, do Código de Processo Penal” (relatado pela Exma. Sra. Juíza Desembargadora Maria Margarida Bacelar, processo n.º 261/20.9T9EVR-A.E1, também disponível para consulta em www.dgsi.pt), entendimento que se nos afigura extensível ao caso da apresentação em juízo de acusação particular, não se descurando que também a prática deste acto deve cumprir um prazo de natureza peremptória.
Tal qualmente no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 9.3.2021, se considerou que “é hoje pacífico que não poderá haver convite ao aperfeiçoamento estando em causa uma peça processual equiparável à acusação. O despacho de aperfeiçoamento exorbitaria a "comprovação judicial" referida no art. 286.° do CPP e, logo, os correspondentes poderes do Juiz de Instrução. Juiz de instrução a quem não compete formular convite à correcção de peças processuais, formal ou substancialmente deficientes” – entendimento este que se crê aplicável, por maioria de razão, ao juiz de julgamento -, também se referindo que “é hoje pacífico que o juiz de instrução não pode ajudar o assistente, sob pena de violação do modelo acusatório do processo penal, e sob pena de uma deslocalização do juiz do seu lugar de terceiro imparcial e supra-partes. Lugar que ocupa na tríade juiz-acusador-arguido e em que deve sempre permanecer. É a esta imparcialidade que também se refere o art. 6.º da CEDH” (relatado pela Exma. Sra. Juíza Conselheira Ana Brito, processo n.º 1670/18.9T9FAR.E1, igualmente disponível para consulta em www.dgsi.pt).
Por conseguinte, tendo o assistente apresentado a acusação particular através de telecópia e, bem assim, através de correio electrónico sem assinatura electrónica e sem validação cronológica por terceira entidade, não cumprindo o sujeito processual em referência o ónus de apresentação do original da peça processual em referência e não havendo lugar a convite no sentido de suprir a aludida omissão, é de concluir pela inadmissibilidade da referida acusação particular.
*
Todavia, ainda que assim não fosse, sempre se teria de concluir, em todo o caso, pela inviabilidade de receber a acusação particular na medida em que a mesma se afere por manifestamente infundada mercê dos factos nela descritos não constituírem rime, mormente o de difamação (cfr. artigo 311.º, n.ºs 2, alínea a), e 3, alínea d), do Código de Processo Penal).
Ora, a propósito do crime de difamação lê-se no artigo 180.º, n.º 1, do Código Penal, que «quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 240 dias», sendo que o artigo 183.º, n.º 1, alínea, do mesmo diploma legal, dispõe que «se no caso dos crimes previstos no artigo 180.º, 181.º e 182.º, tratando-se da imputação de factos, se averiguar que o agente conhecia a falsidade da imputação, as penas da difamação ou da injúria são elevadas de um terço nos seus limites mínimo e máximos».
Conforme resulta claramente do tipo incriminador agora em análise e, bem assim, da respectiva inserção sistemática, visa-se tutelar a honra enquanto bem jurídico, considerando-se como «um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior» (José de Faria Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pp. 607 e 629), daí que o tipo objectivo seja susceptível de preenchimento quando o agente imputa a determinada pessoa, ou reproduz, factos ou juízos que se mostrem lesivos da respectiva reputação ou consideração.
Importa concretizar que o principal ponto de distinção entre o crime de injúria e o crime de difamação afere-se pela circunstância do juízo ou facto ser directa ou indirectamente imputado, isto é, se a imputação é efectuada perante o próprio ofendido ou, pelo contrário, se é efectuada perante um terceiro, sendo que no primeiro caso tratar-se-á do tipo incriminador do artigo 181.º do Código Penal, enquanto que no segundo caso estará em causa a prática de um crime de difamação do artigo 180.º do mesmo diploma legal.
Cumpre, ainda, esclarecer que um «facto» corresponde a um «juízo de existência ou de realidade», sendo que a formulação de um juízo, realidade também abarcada pelo tipo incriminador, corresponde, por sua vez, a uma valoração de uma ideia ou de uma coisa (v., neste sentido, José de Faria Costa, ob. cit., pp. 609 e 610).
Também é de enfatizar que a imputação de um facto ou a formação de um juízo têm de ser contextualmente analisados com vista a aferir se assumem relevância penal, isto é, deve o julgador ter em consideração a respectiva adequação social no meio em que são reproduzidos, o mesmo sendo aplicável a «palavras ofensivas da sua honra e consideração».
Com efeito, a esta parte, «consideramos que o significado das palavras, para mais quando nos movemos no mundo da razão prática, tem um valor de usos. Valor que se aprecia, justamente, no contexto situacional, e que ao deixar intocado o significante ganha ou adquire intencionalidades bem diversas, no momento em que apreciamos o seu significado», sem, porém, negar que há «palavras cujo sentido primeiro e último seja tido, por toda a comunidade falante, como ofensivo da honra e consideração» (ob. cit., p. 630).
No tocante à alínea b) do artigo 183.º, n.º 1, do Código Penal, escreve José de Faria Costa que a calúnia «trata-se da forma mais perversa dos crimes contra a honra, porquanto está nela vazada a actuação torpe daquele que, sabendo da falsidade, mesmo assim avança com a imputação dos factos. (…) Indesmentivelmente, mais gravidade há quando se opera essa mesma imputação com a consciência de que se está a assacar a um terceiro um conjunto de factos falsos (…)» (ob. cit., p. 642).
Por fim, cumpre salientar que, ao invés, «a conduta não é punível quando a imputação for feita para realizar interesses legítimos e o agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira» (cfr. artigo 180.º, n.º 2, do Código Penal).
No que concerne ao tipo subjectivo de ilícito, o mesmo é susceptível de preenchimento mercê de uma actuação dolosa por parte do agente em qualquer uma das modalidades a que se refere o artigo 14.º, n.º 1, do Código Penal, e somente é susceptível de integração a este título porque uma actuação negligente já será considerada atípica (sem prejuízo de ocorrência de eventual responsabilidade civil).
Volvendo ao caso dos autos, cumpre ter em atenção, ante o que se refere no artigo 4.º da acusação particular, que o arguido terá afirmado o seguinte:
i. “Eu que, o que eu quero significar é que esse homem me deixasse logo da mão,
porque eu bloqueei-o nas redes sociais e ele anda, andava sempre atrás de mim”;
ii. “... essas mensagens foram enviadas, não estão é aí. Essas mensagens foram enviadas, o Senhor só meteu aí as que lhe interessou. Portanto, isso vem tudo de um, isso vem tudo de um conjunto de conversas, não foi só essa mensagem, vem tudo de um conjunto de mensagens ...”;
iii. “Não, essas, essas expressões é tipo de um aviso para ele me deixar, porque ele, uns dias antes recebi uma mensagem dele que ia tocar à minha terra”;
iv. “Não é?! Agora, com esta tenho confiança para lhe chamar isso. Que ele já esteve comigo três vezes”;
v. “Ah se tivemos relações sexuais, e sei aquilo que ele vale e aquilo que ele é, posso lhe chamar os nomes que eu entender”;
vi. “Sim, porque ele dois dias antes mandou-me uma mensagem a dizer que ia tocar à minha terra e que queria dormir comigo. E eu eroticamente, na brincadeira, mandei-lhe essa resposta. O que é certo é que eu não guardei nada para me defender. E ele agarrou-se só às questões principais para me, pra me, para me perseguir, que está a ser uma perseguição, todos os dias me telefona, é quatro, cinco da manhã, números privados, e (…), e isto vai acabar mal de certeza”;
vii. “Ah a muitas, a muitas ah perguntas, vá, ou a ou, ou ah ou resposta a outras mensagens que eu também recebi dele, que não as tenho”;
viii. “Sim. Que eu apaguei, eu eliminei-o, todo, eu bloqueei-o nas redes sociais, eliminei-o no Facebook, eliminei-o em todo o lado. E ele consegue saber, eu não sei se ele tem algum perfil falso, ele consegue saber onde é que eu estou, aparece-me em todo o lado, aparecia, e isto tem sido o meu tormento”;
ix. “Inclusive há pouco tempo me convidou para ir prá ... ter com ele”;
x. “Aí há dois, três meses, se calhar. Que pagava-me tudo e mais alguma coisa”;
xi. “Sim ah há uns meses já, ou mais, há um ano se calhar, ou mais. E derivado a isso é que tenho sido perseguido a toda a hora, tenho ah tenho processos nos Tribunais quase todos no país. Ainda ontem tive no norte, hoje tenho aqui, amanhã tenho noutro lado, não sei. Isto está a ser uma perseguição”;
xii. “E eu queria dizer a este Tribunal também, que se eu quisesse também tinha arranjado testemunhas falsas, vinte ou trinta pessoas, e números de telefone também”;
xiii. “Tive um deslize na minha vida, e ele fez-me hum, fez-me um ah não é bem proposta, ah ...”;
xiv. “Houve uma altura em que eu precisei de dinheiro e ele fez-me uma proposta, que se fosse com ele pagava”;
xv. “Uma proposta que ele me fez, se eu fosse com ele, pagava-me”; xvi. “E eu fui, não gostei, e disse a ele “chega, ficamos por aqui”; xvii.“Exatamente” (em resposta a “relacionaram-se sexualmente”);
xviii. “E a partir daí o homem não me larga. Quis arranjar confusão nos anos da minha namorada, que mandou pra lá um colega bêbado, onde arranjou confusão com ela, pra eu me chatear com ela, e eu não queria levar isto à frente porque tenho filhos maiores e ele, aliás, e também pus a minha relação em risco, tive que dizer a ela a verdade, que ela também não sabia, e quis arranjar confusão para eu acabar com ela. Se calhar para eu estar mais libertado, se calhar, talvez. E tem sido uma novela autêntica, isto”;
xix. “... e então mandei-lhe essa mensagem porque ele tinha mandado uns dias antes, que eu não tinha percebido, e pus aqui uns placards, os cartazes lá no café, e vi que de facto ele ia tocar lá nesse dia, e depois mandei-lhe isso na brincadeira ah, na brincadeira, quer dizer, não é pa, para prejudicar ninguém, foi tipo, do, mesmo uma resposta àquilo que ele me disse. Porque ele disse que, que ia tocar à minha terra e que nessa noite dormia na minha casa. Onde sabe que eu dormia ah onde sabe que eu vivia sozinho, não é. E estamos a falar a quinhentos metros da minha casa, a sociedade onde ele foi tocar”;
xx. “... “deixa-me da mão, a mim e à minha namorada”, embora ele tenha arranjado confusão comigo e com ela, até, até já disse que ela andou, ah que andou a ajudá-la e tudo, mentira, ela é ah ela é que o ajudou a ele, simplesmente a (…) das vozes, que nem isso ele lhe pagou a ela ainda, ...”;
xxi. “... eu levei ah ao ponto de ele estar se calhar ah a convidar-me, além de querer que eu estivesse lá, também levasse alguém pró ver, porque nesse dia nem sequer lá foi ninguém a vê-lo a tocar. E eu levei isso mais por na brincadeira, de ele se calhar estar a ah estar-me ah a convidar para ir lá ou, e eu para descartá-lo enviei essa mensagem. Eu por acaso também estava a almoçar e depois tinha vido as mensagens num outro telefone que eu tenho e depois ah de facto ah respondi, olhe, não sei, se fiz bem se fiz mal, mas não foi por essas intenções que se calhar estão a ser levadas”;
xxii.“Agora, eu posso lhe chamar esse nome, porque ele esteve comigo, portanto, só se houver agora outro nome novo, pronto”;
xxiii. “Sim, sim. Ele enviou mais mensagens. E essa mensagem, já não me lembro ah que resposta é que foi, mas isso vem de um conjunto de mensagens, ele só se agarrou àquelas que lhe interessou. Pena tenho eu de não as ter também, porque eu não estava com esta, com esta ah não estava com esta maldade, não é, (…) porque não, não guardei nada, portanto, não tenho testemunhas, não tenho nada, estou aqui e estou a dizer a verdade, eu podia ter arranjado tantas coisa e, e testemunhas falsas como ele as tem”;
xxiv. “Porque ah para ele pensar mesmo que eu não estava cá. Senão batia-me à porta. Como eu disse, a sociedade aonde ele tocou era aí a quinhentos metros da minha casa. E sabe que pelo GPS, ele sabe a minha morada, e ia lá ver, nunca lá esteve, mas ia lá dar de certeza”;
xxv.“Se foi ele que pôs aqui, se calhar apagou as outras. Se calhar teremos que pedir à, à, à NOS ou à Vodafone, se calhar, não sei, há de haver algum ah alguma maneira de se calhar ir (…l) as mensagens que ele escreveu”;
xxvii. “Sim” (em resposta à pergunta “Ele pagou-lhe para ter relações consigo?”);
xxviii. “Não, não, ele é que me ofereceu” (em resposta à questão “O Senhor pediu-lhe dinheiro para ter relações consigo?”);
xxix. “Não. Mas talvez seja o preço que ele está a pedir de indemnização” (em resposta à questão “E ele ofereceu-lhe quanto?”);
xxx.“Sim, das três vezes que esteve comigo” (em resposta à questão “Dois mil euros?”);
xxxi. “Então, foi duas no ah no ... ah do, do IC ... e uma foi dentro do ... da irmã, um ... ...” (em resposta à questão “mas e oh olhe, já agora, onde é que foi?”;
xxxii. “Esse Senhor é que quis fama e andou atrás e andou a persegui-la para tirar fotografias, onde o Facebook dela ...”.
Ora, lidas as afirmações constantes da acusação particular e que se acabam de transcrever, afigura-se-nos, desde logo, que as que se menciona agora sob os pontos ii., iii., iv., vii., ix., x., xiii., xxi., xxiii., xxiv. e xxv.., não têm relevância típica para o efeito de preenchimento do elemento objectivo do crime de difamação, mais concretamente não consubstanciando a imputação de factos ou a formulação de juízos ofensivos da honra e consideração do assistente., fazendo-se notar que estar com alguém três vezes, por si só (isto é, sem enquadramento adicional), é uma afirmação de carácter neutro, ou seja, indiferente e, assim, irrelevante para o efeito de preenchimento do tipo de crime contido no artigo 180.º, n.º 1, do Código Penal, o mesmo sendo extensível à alegada formulação de um convite para ir à ... pretensamente dirigido pelo assistente ao arguido;
Por outro lado, afigura-se-nos que as menções contidas nas afirmações elencadas sob os pontos i., viii., xi., xii., xviii., xx., xxvi. e xxxii., não contêm talqualmente densidade pejorativa ao ponto de se considerar verificado o crime de difamação, ou seja, o aí referido, pese embora se possa considerável, meramente abstracto, desagradável, não assume relevância penal, desde logo cabendo ter em mente que não assume inequivocamente a imputação de um facto ou a formulação de um juízo ofensivo para a honra do assistente e, por outro, cabendo ter em atenção que a intervenção penal não se destina a proteger situações de insignificância que não contendem efectivamente com a tutela a conferir ao bem jurídico.
Conforme se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 7.12.2021, “o direito penal reveste natureza fragmentária, de tutela subsidiária (ou de ultima ratio) de bens jurídicos dotados de dignidade penal, ou, o que é dizer o mesmo, de bens jurídicos cuja lesão se revela digna de pena”. Tutela apenas os valores essenciais e fundamentais da vida em sociedade, obedecendo a um princípio de intervenção mínima, bem como de proporcionalidade imanente ao Estado de Direito”, acrescentando-se que “assim, nem tudo o que causa contrariedade, é desagradável, pouco ético ou menos lícito, mesmo até quando formalmente pareça integrar-se num tipo de crime, será relevante para esse núcleo de interesses penalmente protegidos” e considerando-se que “no caso, a lei tutela a dignidade e o bom-nome do visado, e não a sua susceptibilidade ou melindre. E tal valoração far-se-á de acordo com o que se entenda por ofensa da honra num determinado contexto temporal, local, social e cultural” (relatado pela Exma. Sra. Juíza Conselheira Ana Brito, processo n.º 488/09.4TASTB.E1, também disponível para consulta em www.dgsi.pt).
Assim, ainda que se considerasse que as afirmações contidas nos pontos i., viii., xi., xii., xviii., xx., xxvi. e xxxii., preenchessem formalmente o tipo de crime de difamação – o que se nos afigura que não ante o já exposto supra – ainda assim, face à sua escassa intensidade, não o realizam materialmente e, assim, a esta parte a conduta apontada ao arguido é atípica.
Mas ainda a respeito do aresto que se acaba de mencionar, talqualmente aí se refere com bastante pertinência que é sempre de avaliar se “avaliar se as expressões em causa, nas circunstâncias em que foram proferidas, atingiram a visada num quadro merecedor de tutela penal. Pois, à semelhança do que acontece com a realização dos tipos penais em geral, mas particularmente no caso, “os crimes contra o pudor, a honra, a honestidade, são conceitos que só se compreendem após uma prévia valoração da realidade”, aludindo-se à lição de Cavaleiro Ferreira, o que nos confere um elemento norteador para aferir se as demais afirmações que são imputadas ao arguido constituem ou não o ilícito penal cuja prática lhe é atribuída.
Ora, essas expressões, mais uma vez tendo-se em mente o elenco que se transcreveu supra, atêm-se à circunstância de o arguido ter aduzido que manteve relações sexuais com o assistente e que este lhe mandou mensagens a referir que pretendia dormir consigo e que inclusivamente lhe teria pago para manterem relações sexuais (v. afirmações elencadas sob os pontos xiv. a xvii., xix., xxii., xxvii. a xxxii.).
No entanto, conforme se disse supra, o teor das expressões e a sua aptidão para objectivamente contenderem com o bem jurídico tutelado no artigo 180.º, n.º 1, do Código Penal, devem ser analisados à luz do contexto actual, não se aferindo que a mera circunstância de alguém referir que manteve relações sexuais com outrem, sem mais (nomeadamente, sem alusão a qualquer quadro de infidelidade), possa acarretar a imputação de um facto lesivo para a consideração e honra de outrem, mesmo que essas relações sexuais, conforme decorre do afirmado por banda do arguido, possam ter ocorrido entre dois homens, não se descurando que a sociedade do século XXI aceita sem relutância esse circunstancialismo, não o distinguindo das relações mantidas entre pessoas de géneros diferentes, o que significa que aquela mera alusão, afigura-se-nos, em si mesma, não tem relevância suficiente para se considerar preenchido o elemento objectivo do crime de difamação, relembrando-se também a este propósito, em todo o caso, o princípio da insignificância penal enquanto cláusula interpretativa dos tipos de crime, mas talqualmente o princípio da intervenção mínima que somente legitima a actuação punitiva do Estado quando esteja em causa uma efectiva compressão de um bem jurídico.
O que aqui está verdadeiramente em causa enquanto eventual circunstância potenciadora da prática do crime de difamação não é propriamente a prática de relações sexuais entre arguido e assistente, mas sim a afirmação do primeiro que o segundo lhe teria pago para esse efeito, o que se pode considerar como actividade desagradável prosseguida por banda do arguido em relação ao assistente, porém sem que se afira possível atribuir-lhe significado penal, ou seja, o afirmado por parte do arguido não é neutro do ponto de vista da afectação da honra e prestígio do assistente, todavia não revela a intensidade suficiente para que se considere comprimido de forma penalmente relevante o bem jurídico.
É de notar, aliás, com toda a pertinência, conforme inclusivamente mencionado por banda do Ministério Público no despacho de fls. 224-225, no qual foi consignado não acompanhar a acusação particular deduzida pelo assistente, que as declarações do ora arguido foram prestadas no âmbito da audiência de discussão e julgamento referente ao processo n.º 850/19...., na qual interveio também na qualidade de arguido, conforme, aliás, se alude nos artigos 1.º e 2.º daquela peça processual, sendo que lhe era imputada a prática de um crime de injúria.
Em suma, as afirmações que agora constam da acusação particular como tendo sido emitidas por parte do ora arguido, foram-no em contexto de declarações prestadas na audiência de discussão e julgamento e, assim, afigura-se, no exercício legítimo do direito de defesa, enquadrando-se, mais concretamente, no âmbito dos artigos 61.º, n.º 1, alínea b), e 343.º, n.ºs 1 a 3, do Código de Processo Penal.
É, precisamente, à luz deste enquadramento que devem ser consideradas as declarações do arguido, ou seja, ainda em conexão com o exercício do direito de defesa e com relação com o crime de injúria que no âmbito do processo n.º 850/19.... lhe surgia imputado, daí que seja inclusivamente de concluir nos termos já aduzidos pelo Ministério Público de fls. 224-225, ou seja, que o arguido prestou as aludidas declarações em que se inserem as afirmações transcritas de molde a justificar a prática dos factos que lhe forma imputados naqueles autos.
Conforme se menciona no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 21.5.2019, “integra o estatuto de arguido o direito ao silêncio, bem como o direito de se expressar livremente, prestando as declarações que entender em sua própria defesa. Este(s) direito(s) está(ão) consagrado(s) nos arts. 61º, nº1, al. d), 132º, nº 2, 141º, nº 4, a), e 343º, n. 1, do CPP, e o direito ao silêncio é até considerado unanimemente de tutela constitucional implícita. As declarações de arguido, reconhecidamente consideradas como um meio de defesa, corolário do direito a ser ouvido, a falar e/ou a não falar, ainda para mais quando prestadas no mais amplo palco de contraditório que é a audiência de julgamento, são o seu meio de defesa por excelência” (relatado pela Exma. Sra. Juíza Conselheira Ana Brito, processo n.º 8001/15.8TDLSB.E2, disponível para consulta em www.dgsi.pt), fazendo-se notar que em tal contexto estava em causa a emissão do vocábulo “psicopata” por parte do arguido nas suas declarações prestadas em julgamento e a respeito de uma testemunha, ainda assim se considerando que “perseguir criminalmente a utilização da expressão em causa neste concreto contexto – com o sentido em que foi empregue e nas circunstâncias em que o foi –, expressão de duvidosa relevância típica, comprimiria intoleravelmente o exercício dos direitos de defesa do arguido”, concluindo-se que “(…) de acordo com os princípios da fragmentariedade, da intervenção mínima e da proporcionalidade do direito penal, mas também da insignificância e da adequação social, resulta claro que a conduta do arguido não contraria o sentido social de valor contido no tipo incriminador e, por isso, não preenche materialmente o crime de difamação do artigo 180º, nº 1, do CP".
Ora, volvendo ao caso é de reiterar que o arguido emitiu as sobreditas afirmações no âmbito das declarações que prestou nessa mesma qualidade – a de arguido – na audiência de discussão e julgamento respeitante ao processo n.º 850/19...., surgindo contextualizadas pelo exercício do respectivo direito de defesa e ainda em conexão com este, não se descurando que em tais autos o ora assistente lhe imputava a prática de um crime de injúria.
Em síntese, a emissão das referidas declarações, sendo prestadas por arguido em contexto de audiência de discussão e julgamento, mostrando-se ainda conexas com o seu direito de defesa, não o extrapolando inequivocamente e assim não se aferindo as afirmações ali contidas por emitidas de forma gratuita ou desenquadrada, relembrando-se que o arguido não surge vinculado ao dever de verdade, levam-nos a concluir, a par do Ministério Público, que o aludido na acusação particular não configura a prática pelo ora arguido do crime de difamação que lhe surge imputado, tudo não se descurando as cláusulas interpretativas do tipo de crime a que se alude no aresto supramencionado, ou seja, tendo-se presentes os princípios da intervenção mínima e da insignificância.
Por conseguinte, a factualidade contida na acusação particular, referindo-nos ao teor concreto das expressões emitidas pelo arguido, mas também o contexto em que foram emitidas e que legitima que tenham sido proferidas, leva-nos a concluir pela atipicidade das condutas descritas na acusação particular, o que significa que os factos nela descritos não configuram crime e, assim, a referida acusação particular é manifestamente infundada, o que configura circunstancialismo adicional que obstaculiza o correspondente recebimento.
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Por conseguinte, ao abrigo do preceituado no artigo 311.º, n.ºs 1, 2, alínea a), e 3, do Código de Processo Penal, o Tribunal não recebe a acusação particular deduzida nos presentes autos por parte do assistente AA contra o arguido BB e, Consequentemente, declara extinto o procedimento criminal.
*
Ante o exposto, fica prejudicada a admissão da lide cível enxertada.(…).”.

3. Do recurso
3.1. Das conclusões do assistente
Inconformado com a decisão o assistente interpôs recurso extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):
“1. Por douto despacho de 20/06/2022, proferido nos autos à margem epigrafados, o Mmº Juiz “a quo” rejeitou a acusação particular apresentada pelo ora recorrente, por considerar previamente a mesma inadmissível por falta de entrega de originais, à luz do preceituado no Decreto-Lei n.º 28/92, de 27.2 e ainda por considerá-la manifestamente infundada, ao abrigo do disposto no artº 311º, nºs 1, 2 a) e 3 do Código de Processo Penal.
2. Vista a acusação particular, confirma-se que o Ilustre Mandatário do assistente remeteu a mesma via telecópia a 28.04.2022, remetendo de igual modo a identificada peça processual, na referida data, mediante correio eletrónico.
3. Ora, compulsados os autos, cabe ao Mmº Juiz pronunciar-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que possam obstar à apreciação do mérito da causa, devendo convidar a parte a suprir, em prazo razoável, alguma irregularidade verificada.
4.Não o tendo feito, violou o Mmº Juiz “a quo ”o preceituado no artigo 123º, nº 2 Código Processo Penal.
5. Refere o Tribunal “a quo” que tendo o assistente apresentado a acusação particular através de telecópia e, bem assim, através de correio eletrónico sem assinatura eletrónica e sem validação cronológica por terceira entidade, teria obrigatoriamente de apresentar os respetivos originais das peças processuais a juízo.
6. Sucede que, é admissível, em processo penal, a remessa a juízo de peças processuais através de correio eletrónico, nos termos do disposto no art.º 150.º, n.º1, al. d), e n.º 2, do CPC de 1961, na redação do DL 324/2003, de 27-12, e na Portaria 642/2004, de 16-06, aplicáveis por forçado disposto no art.º4.ºdo Código Processo Penal (veja-se a este propósito a fixação de doutrina do Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão n.º 3/2014, publicado no DR, 1.ª Série, de 15 de Abril de 2014.).
7. Refira-se, desde já, que no âmbito do processo penal, é entendimento doutrinal e jurisprudencial que obstar à prática de atos em matéria de processo penal por correio eletrónico, representaria um claro retrocesso em tal matéria, quando toda a ação legislativa vai no sentido da desmaterialização progressiva do processo e de uma tramitação cada vez mais eletrónica.
8. Propugnam neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora proferido no processo nº 559/07.1TAABT.E1, de 05 Março de 2013, bem como Acórdão da Relação de Lisboa, de 18.11.2010, no Processo n.º 496/07.0TAFUN-A.L1, da 9ª Secção, ambos em www.dgsi.pt, onde se concluiu que o correio eletrónico constitui um meio legalmente previsto para a remessa a juízo de atos processuais, no âmbito do processo penal.
9. Mais, ainda, de acordo com o estatuído no art.º150.º,n.º 3, do Código Processo Civil, na redação que lhe foi conferida pelo DL n.º 303/2007, de 24 de Agosto, a parte que pratique o ato processual nos termos do n.º 1 deve apresentar por transmissão eletrónica de dados a peça processual e os documentos que a devam acompanhar, ficando dispensada de remeter os respetivos originais, norma aplicável ao processo penal ex vi Portaria n.º 642/2004, de 16 de Junho, a qual não foi revogada nesta parte.
Ainda assim e por mera cautela de patrocínio,
10. mesmo não sendo este o entendimento do Tribunal “a quo”, salvo o devido respeito e melhor opinião, devia sempre este notificar o agora recorrente para a apresentação dos aludidos originais, de forma a suprir a alegada irregularidade com a consequente prossecução dos autos, ao abrigo do disposto no artigo 4º, nº 4 do Decreto Lei 28/92, de 27 de Fevereiro e do artigo 123º, nº 2 CPP, podendo, ainda, condenar o ora recorrente em multa pelo eventual cumprimento em prazo extemporâneo à luz do artigo 107.º-A CPP.
11. O douto despacho a rejeitar a acusação particular por não terem sido apresentados os originais da peça processual é violador das normas acima referenciadas, designadamente artigo 150.º, n.º 1, alínea d), e n.º 2, do CPC, Portaria n.º 642/2004, de 16.06, aplicáveis conforme o disposto no artigo 4.º do CPP, artigo 123º, nº 2 do mesmo diploma legal e ainda artigo 4º, nº 4 do Decreto Lei 28/92, de 27 de Fevereiro.
12. Mais, ainda, a ser sufragada a rejeição da apresentação da Acusação Particular e respetivo Pedido de Indemnização Cível nos moldes em que fora realizada, não só seria uma violação do Direito constituído, bem como uma "machadada" na tão almejada e necessária, desburocratização da Justiça.
13. Pelo exposto, deverá o despacho de que ora se recorre ser revogado e substituído por outro que admita a acusação particular, dando-se assim provimento ao presente recurso, seguimento o processo os ulteriores termos processuais.
Mais se dirá,
14. Vem o Tribunal “a quo” rejeitar, ainda, a acusação por considerá-la manifestamente infundada nos termos do disposto no artigo 311º, nº 2, alínea a) e nº 3, alínea d), do Código Processo Penal, uma vez que os factos descritos na Acusação Particular não constituem crime, mormente o crime de difamação, previsto e punido no artigo 180º, nº 1 do Código Penal.
15. A acusação apenas será manifestamente infundada se o entendimento sobre a irrelevância penal dos factos nela narrados for pacífico, indiscutível, aceite como válido sem objeções na doutrina e jurisprudência – situação em que o julgamento é previsivelmente inútil face à manifesta inviabilidade ou improcedência da acusação, o que não sucede in casu.
16. Contendo a acusação particular todos os elementos, nos termos previstos no artigo 283º, nº3 alíneas a) e b) do CPP, não pode ser recusada.
17. De acordo com o preceituado no artigo 180º, nº 1 do Código Penal: “Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa. Mesmo sob a forma de suspeita, um facto ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.”
18. O artigo 180.º do Código Penal tutela o bem jurídico honra como um bem jurídico complexo, que integra quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a sua própria reputação ou consideração exterior, sendo elementos objetivos do crime de difamação a imputação de um facto ofensivo da honra a outra pessoa, a formulação de um juízo ofensivo da honra de outra pessoa ou a reprodução daquela imputação ou deste juízo.
19. Com os factos devidamente relatados no artigo 4º da Acusação particular, o arguido atuou com intenção de molestar o assistente, ora recorrente, no seu bom nome, honra e consideração, pessoal e profissional e com consciência de que a sua atuação era adequada a fazê-lo, quando proferiu, perante terceiros, as expressões e imputações que lhe são imputadas, sabendo da ilicitude de tal conduta, não se coibiu de levá-la a cabo, agindo de forma dolosa, livre e consciente.
20. Na acusação, quer o elemento objetivo, quer o elemento subjetivo do tipo de crime estão abundantemente descritos e concretizados. Ao nível do tipo subjetivo do ilícito de difamação, é pacífico na jurisprudência e na doutrina não ser necessário que o agente tenha procedido com “animus injuriandi vel diffamandi” ou dolo específico, bastando o dolo genérico traduzido na consciência de que as expressões utilizadas são de molde a produzirem ofensa da honra e consideração da pessoa visada.
21. É, pois, suficiente para a sua realização que o autor saiba que está a atribuir um facto, ou a formular um juízo de valor, cujo significado ofensivo do bom nome ou consideração alheia ele conhece, e o queira fazer, e isto em qualquer das modalidades do dolo previstas no art.º 14.º, do Código Penal, bastando a consciência da genérica perigosidade da conduta ou do meio da ação previstos nas normas incriminadoras respetivas.
22. O arguido ao formular juízos de valor acerca do falacioso comportamento do assistente, designadamente, que o perseguia nas redes sociais e pessoalmente, que o incitava e pagava para ter relações sexuais consigo, que lhe fazia propostas indecentes, etc, terá mermado e depreciado a consideração que socialmente é devida a uma pessoa, à luz dos padrões médios de valoração social, sendo os juízos formulados, objetivamente, suscetíveis de integrar a materialidade típica contido no art. 180.º do Código Penal.
23. Conforme propugna o Acórdão da Relação de Guimarães, Proc. 1467/04-1, que cita o Acórdão da Relação de Lisboa de 6.2.96, CJ, 1, 156, e este, por sua vez, cita o Cód. Penal Anotado de Leal Henriques e Simas Santos (cfr. 2º Volume, 2ª edição, pág. 317):
”Difamar e injuriar mais não é basicamente [do] que imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, entendida aquela como o elenco de valores éticos que cada pessoa humana possui tais como o carácter, a lealdade, a probidade, a retidão, ou seja a dignidade subjetiva, o património pessoal e interno de cada um, e esta última como sendo o merecimento que o indivíduo tem no meio social, isto é, o bom-nome, o crédito, a confiança, a estima, a reputação, ou seja a dignidade objetiva, o património que cada um adquiriu ao longo da sua vida, o juízo que a sociedade faz de cada cidadão, em suma a opinião pública”.
24. Refere, ainda, o Tribunal “a quo” que as afirmações proferidas pelo arguido, foram-no em contexto de declarações prestadas na audiência de discussão e julgamento e, assim, afigura-se, no exercício legítimo do direito de defesa, enquadrando-se, mais concretamente, no âmbito dos artigos 61.º, n.º 1, alínea b), e 343.º, n.ºs 1 a 3, do Código de Processo Pena; mostrando-se estas conexas com o seu direito de defesa, não o extrapolando inequivocamente e assim não se aferindo as afirmações ali contidas por emitidas de forma gratuita ou desenquadrada, relembrando-se que o arguido não surge vinculado ao dever de verdade.
25. Andou mal o Tribunal “a quo” ao entender que pode o arguido pode faltar à verdade, difamar ou denegrir a imagem e bom nome de outro cidadão por estar no exercício do seu direito de defesa.
26. Não parece razoável impor que a tutela penal do direito constitucional previsto no artigo 26º, nº 1 CRP, através do preceituado no artigo 180º do Código Penal fique precludido por força do exercício do direito de defesa que o arguido tem.
27. Tanto mais, que pode o arguido exercer o direito ao silêncio, sem que tal comportamento o possa prejudicar, de forma que não acarrete com as suas declarações outras factos constitutivos de crime, como no caso sub judice.
28. Assim, deve o despacho recorrido ser substituído por outro que receba a acusação, sujeitando-a ao debate público e contraditório do julgamento, resolvendo-se, oportunamente e livremente, a questão de facto e de direito na sentença.
Termos em que decidindo-se em conformidade com as conclusões que antecedem deverá conceder-se provimento ao recurso, revogando-se o despacho recorrido por violação do artigo 311º, nº 2 a) e nº 3, b) do CPP e consequentemente deverá ser substituído por outro que receba a acusação, (…)”.

3.2. Notificado o arguido silenciou.

3.3. Das contra-alegações do Ministério Público
Respondeu o Ministério Público defendendo o acerto da decisão recorrida, concluindo nos seguintes termos (transcrição):
“1 - Nos presentes autos, por despacho datado de 20/06/2022, ao abrigo do preceituado no artigo 311.º, n.ºs 1, 2, alínea a), e 3, do Código de Processo Penal, o Tribunal a quo não recebeu a acusação particular deduzida nos presentes autos por parte do assistente AA contra o arguido BB e, consequentemente, declarou extinto o procedimento criminal. Inconformado com esta decisão, dela veio o assistente interpor recurso.
2 – Em síntese, o Mmº Juiz “a quo” rejeitou a acusação particular apresentada pelo ora recorrente, por considerar que não foi validamente praticado o acto processual, por falta de entrega dos originais da acusação particular, à luz do preceituado no Decreto-Lei n.º 28/92, de 27/02 e ainda por considerá-la manifestamente infundada, ao abrigo do disposto no artº 311º, nºs 1, 2 a) e 3 do Código de Processo Penal.
3 - No caso concreto, tal como mencionado no despacho em crise, o assistente deduziu acusação particular, sendo que praticou o referido acto processual em 28/04/2022 (v. fls. 124-157) através de telecópia, sendo que também o praticou através da expedição, em 28/04/2022, de mensagem de correio electrónico (fls. 158-190), sendo que a referida mensagem foi remetida por uma segunda ocasião, também em 28/04/2022 (v. fls. 191-223).
4 - Importa ter em atenção o disposto no artigo 10.º da Portaria n.º 642/2004, de 16/06, que refere que “à apresentação de peças processuais por correio electrónico simples ou sem validação cronológica é aplicável, para todos os efeitos legais, o regime estabelecido para o envio através de telecópia”.
5 - No caso dos presentes autos, as mensagens de correio electrónico foram remetidas aos autos por correio electrónico simples, mais concretamente sem aposição de assinatura digital certificada e sem validação cronológica efectuada por entidade terceira.
6 - Sendo assim de aplicar o regime da telecópia, regime esse que se mostra regulado pelo DL 28/92, conforme fez o Tribunal a quo.
7 - Dispõe o artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 28/92, de 27/02, que “pode efectuar-se por telecópia a transmissão de documentos, cartas precatórias e quaisquer solicitações, informações ou mensagens entre os serviços judiciais ou entre estes e outros serviços ou organismos dotados de equipamento de telecópia (…)”.
8- Tal como preceitua o artigo 4.º, n.º 3, do aludido Decreto-Lei, “os originais dos articulados, bem como quaisquer documentos autênticos ou autenticados apresentados pela parte, devem ser remetidos ou entregues na secretaria judicial no prazo de sete dias contado do envio por telecópia, incorporando-se nos próprios autos” (devendo-se considerar este prazo como sendo de dez dias ante o disposto no artigo 6.º, n.º 1, al. b), do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12/12).
9 - Considerou o Mm.º Juiz a quo que a acusação particular não foi validamente introduzida em juízo, uma vez que os originais da acusação particular não foram juntos aos autos, tendo decorrido desde a sua apresentação prazo inequivocamente superior a dez dias, o que leva à preclusão do direito que se fazia pretender valer, ou seja, mais concretamente, o de dedução de acusação particular.
10 - Decisão com a qual se concorda, a qual se mostra em consonância com o regime legal aplicável, conforme explicitado no despacho em crise.
11 - Também se concorda com o Mm.º Juiz a quo, quando considerou não existir qualquer convite no sentido do sujeito processual praticante do acto, juntar os originais da acusação particular. Em sentido idêntico, tal como referido no despacho em crise, indicou-se os Acórdãos do Tribunal da Relação de Évora de 8/02/2022 e de 30/11/2021.
12 - Quanto à segunda questão que o Tribunal a quo entendeu que sempre conduziria à rejeição da acusação particular, por manifestamente infundada, ao abrigo do disposto no artº 311º, nºs 1, 2 a) e 3 do Código de Processo Penal, concorda-se com os fundamentos aduzidos pelo Tribunal a quo no despacho em crise, aos quais se aderem, onde se concluiu que o aludido na acusação particular, atento o teor das expressões emitidas pelo arguido e o contexto em que o foram, não configura a prática pelo ora arguido do crime de difamação que lhe surge imputado, o que constitui fundamento para rejeição da acusação particular.
13 - Deste modo, deverá o recurso interposto pelo assistente/recorrente ser julgado improcedente e, em consequência, manter-se a decisão recorrida nos seus precisos termos. (…)”.


3.4. Do Parecer do MP em 2.ª instância

Na Relação o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer no sentido de ser julgada a improcedência total do recurso interposto pelo assistente.

3.5. Da tramitação subsequente

Foi observado o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPP.

Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos teve lugar a conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. Objeto do recurso

De acordo com o disposto no artigo 412.º do CPP e atenta a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no DR I-A de 28/12/95 o objeto do recurso define-se pelas conclusões apresentadas pelo recorrente na respetiva motivação, sem prejuízo de serem apreciadas as questões de conhecimento oficioso.

2. Apreciação do recurso interposto pelo assistente

Neste recurso são colocadas duas questões pelo assistente recorrente, a saber:

- Se a acusação particular teria de ter sido apresentada ou não através da remessa do original por correio;

- Se a acusação particular é manifestamente improcedente.

Apreciemos, então, as questões suscitadas.

2.1. Da validade da apresentação da acusação particular por mail simples

O Tribunal a quo, entendeu, que a apresentação pelo assistente da acusação particular por correio eletrónico simples sem a aposição de assinatura digital certificada e sem validação cronológica carecia de ser completada com o envio ou a apresentação dos originais da acusação particular em juízo. Para o efeito o Tribunal recorrido baseou-se na imposição constante do artigo 4.º, n.º 3 do DL 28/92, de 27.2.[1] e daí concluiu que aquela peça processual foi apresentada extemporaneamente.

O assistente, por seu turno, entende que o Julgador em 1.ª instância deveria tê-lo convidado a apresentar o original, caso considerasse ter ocorrido alguma irregularidade formal na apresentação da acusação particular.

Neste recurso o MP tanto em 1.ª instância como junto desta Relação aderiu à solução encontrada pelo Tribunal a quo, considerando não ser de endereçar qualquer convite ao assistente para este juntar os originais da referida peça processual.

Em primeiro lugar, cumpre referenciar que em processo penal o envio de peças processuais por correio eletrónico, só se coloca durante a fase de inquérito e da instrução, pois a partir da remessa (pelo Ministério Público) do processo para julgamento a apresentação das peças processuais ou de requerimentos apresentados por advogados ou solicitadores têm de ser remetidas através da plataforma informática citius[2] (cf. n.º 2 do artigo 2.º da Portaria nº 280/13, 26 de agosto)[3].

Sobre este tema já praticamente todos os Desembargadores desta Relação de Évora se pronunciaram[4], embora não a propósito da remessa por mail de uma “acusação particular”, mas do “requerimento de abertura da instrução” (apresentado tanto por arguido como pelo assistente) e, em um dos Acórdão, da apresentação de um pedido civil.

Parte dos Desembargadores entende que a não aposição, no correio eletrónico utilizado para enviar o requerimento, da assinatura eletrónica avançada e da validação cronológica, concomitantemente com a falta de apresentação dos originais de tal requerimento no prazo de dez dias, implica o incumprimento dos trâmites adequados à validação da entrega da peça processual. Daí o Tribunal não dever admitir o articulado, não violando qualquer preceito constitucional a falta de convite para o fazer[5]. Os restantes Desembargadores[6] acolhem o entendimento que a não admissão de articulado por correio eletrónico simples, sem a aposição da assinatura eletrónica e sem validação cronológica do respetivo ato de expedição, não sendo o respetivo original remetido ou entregue na secretaria judicial, no prazo de 10 dias, sem que haja convite prévio para suprir essa omissão traduz-se numa cominação desproporcionada, passível de afetar o direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva (artigo 20.º, n.º 4 e 18.º da CRP). Assim, para estes Magistrados a não sanação, no prazo legalmente previsto, não pode ter como efeito a invalidade ou a ineficácia do ato, e nesses casos o despacho recorrido deverá ser substituído por outro determinando a notificação do interveniente processual para, em prazo a fixar, apresentar o original do articulado.

Concretamente sobre a aplicação no tempo da legislação sobre a temática das comunicações eletrónicas judiciais, por se revelar de extrema relevância, pode consultar-se o Acórdão da RE de 24.5.2022, proferido no processo 8/21.2PAOLH.E1, relatado por Maria Clara Figueiredo[7], de onde se conclui ser aplicável ao caso o artigo 4.º do DL 28/92 de 27 de fevereiro.

Para compreender com melhor precisão a questão em causa neste recurso cumpre referenciar que nas comunicações com os tribunais, nomeadamente para envio de peças processuais, os intervenientes processuais, representados por advogado ou solicitador, podem utilizar o correio eletrónico, equivalendo essa comunicação à remessa por via postal registada, desde que a respetiva mensagem seja cronologicamente validada, mediante a aposição de selo temporal por entidade idónea. Acontece que esse selo temporal que passou a ser aposto pelos CTT, a partir, julga-se, de 15.9.2003, na sequência de protocolo assinado com a Ordem dos Advogados e a Multicert deixou, a dada altura, de o ser. Os CTT, efetivamente, já depois da sua privatização deixaram de validar as mensagens eletrónicas e de disponibilizar o serviço de MDDE (Marca do Dia Eletrónica).

Assim, a apresentação de peças processuais por correio eletrónico só pode ser realizada atualmente através da via simples ou sem validação cronológica. Nesse caso o requerente deve apresentar os originais do articulado/documento autêntico ou autenticado remetendo-o para a secretaria judicial, no prazo de 10 dias contado do envio por endereço eletrónico (cf. neste sentido o artigo 4.º, n.º 3 do DL 28/92 de 27.2.). Na 1.ª instância a prática tem sido díspar. Assim, se o requerente do articulado não apresentar espontaneamente, no prazo legal, o original há quem o rejeite liminarmente, quem apenas enderece convite para a junção dos originais se o mail suscitar dúvidas quanto à sua origem e por fim quem convide sempre a juntar os originais.

A questão colocada neste recurso e apreciada em 1.ª instância tem precisamente a ver com a falta de entrega dos originais no referido prazo. Saber se essa omissão implica ou não a perda do direito de praticar o ato foi a questão conhecida em 1.ª instância.

Para quem entenda que essa omissão implica a perda desse direito, mesmo que o articulado tenha sido atempadamente remetido por mail simples, fica precludida a possibilidade de praticar o ato. Em sentido contrário os defensores da não preclusão do direito de praticar o ato entendem que o princípio da proporcionalidade impõe ao Tribunal o dever de endereçar um convite ao requerente para em prazo razoável apresentar os originais da peça.

Embora a Relatora deste Processo apoie esta última tese[8] e os Adjuntos e atual Presidente da secção criminal adiram à 1.º das teses referenciadas, verifica-se que o Tribunal recorrido, embora tivesse considerado não ser de endereçar qualquer convite para junção dos originais e concluído pela invalidade da apresentação da acusação particular introduzida em juízo, acabou por não receber a peça apresentada com um fundamento diferente: a acusação particular ser manifestamente infundada julgando, em consequência, extinto o procedimento criminal.

Assim, independentemente de a tese acolhida quanto à validade ou não da acusação particular apresentada em juízo via mail simples, o facto é que no caso, o Tribunal a quo resolveu apreciar o conteúdo da acusação particular e concluiu pela sua manifesta falta de fundamento, pelo que se passará, em seguida, a analisar essa questão.

2.2. Da acusação particular manifestamente infundada

O Tribunal em despacho lavrado de forma extensa e fundamentada considerou, designadamente, que as afirmações proferidas pelo arguido, foram-no em contexto de declarações prestadas na audiência de discussão e julgamento e, no exercício legítimo do direito de defesa, enquadrando-se, mais concretamente, no âmbito dos artigos 61.º, n.º 1, alínea b) e 343.º, n.ºs 1 a 3 do CPP. Assim, relembrando que o arguido não surge vinculado ao dever de verdade, concluiu que se tratando das afirmações daquele conexas com o seu direito de defesa, não o extrapolando, por não terem sido emitidas de forma gratuita ou desenquadrada, não se aferia das afirmações ali contidas qualquer conteúdo difamatório.

Já o assistente/recorrente considera ter andado mal o Tribunal a quo ao entender poder o arguido faltar à verdade, difamar ou denegrir a imagem e bom nome de outro cidadão por estar no exercício do seu direito de defesa. Sendo irrazoável impor que a tutela penal do direito constitucional previsto no artigo 26.º, n.º 1 CRP, através do preceituado no artigo 180.º do CP fique precludido por força do exercício do direito de defesa que o arguido tem.

Vejamos, as afirmações constantes da acusação particular como tendo sido emitidas por parte do recorrido BB, foram-no em contexto de declarações prestadas, na qualidade de arguido, em audiência de discussão e julgamento, realizada em 15.1.2021, no âmbito do processo 850/19...., e em resposta às questões colocadas pela Juíza de Direito, pela Magistrada do MP e pelo Mandatário do próprio assistente.

No referido processo era imputada ao arguido a prática de um crime de injúria, por este ter remetido uma mensagem para o ali, mas também aqui, assistente através do facebook. O arguido naquele julgamento confirmou o teor da mensagem (“Estás na minha terra hoje, aqui não há paneleiragem, não deixes cá os micróbios, pena não poder cá estar, mesmo assim vai alguém da minha parte te bater palmas”) adiantado tê-la enviado em privado através do Messenger. O arguido, então perante as questões colocadas no julgamento prestou declarações como forma de justificar a prática dos factos que lhe foram imputados naqueles autos tal como lhe é permitido por lei, sendo aliás um direito seu de o fazer (sem estar vinculado ao dever de verdade, ao contrário das testemunhas) ou remeter-se, querendo, ao silêncio.

O aludido na acusação particular, atento o teor das expressões emitidas pelo arguido e o contexto em que o foram, para além do mais sempre em resposta às questões colocadas pelas Magistradas e Advogado e no exercício do direito de se defender (enquadrando a circunstância que o levou a enviar a apontada mensagem), não configura a prática pelo arguido de qualquer crime de difamação.

Aliás, se a postura adotada pelo arguido naquela audiência de julgamento tivesse de algum modo configurado uma atitude imprópria e perturbadora da ordem dos atos processuais a própria Juíza Presidente teria tomado as necessárias providências. Na situação, todavia, o arguido respondeu às questões colocadas pelas Magistradas e pelo Advogado não tendo, em momento algum, sido advertido de qualquer excesso, nem lhe tendo sido retirada a palavra, por qualquer falta de respeito, sendo certo não ser considerado ilícito o uso das expressões e imputações indispensáveis à defesa da causa, conforme resulta até do artigo 150.º do CPC, aplicável ao processo penal, por força do disposto no seu artigo 4.º.

Assim, por manifesta improcedência da acusação particular foi a mesma e bem rejeitada.

III. DECISÃO

Nestes termos e com os fundamentos expostos:

1. Nega-se provimento ao recurso interposto pelo assistente e em consequência, mantém-se o despacho de rejeição da acusação particular por manifestamente infundada.

2. O assistente/recorrente pagará 3 UC de taxa de justiça (artigos 515.º n.º 1, alínea b) do CPP e 8.º, n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais e tabela III anexa).

Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 94.º, n.º 2 do CPP consigna-se que o presente Acórdão foi elaborado pela relatora e integralmente revisto pelos signatários.

Évora, 24 de janeiro de 2023.

Beatriz Marques Borges - Relatora
João Carrola
Maria Leonor Esteves
_______________
[1] Este artigo 4.º, sob a epígrafe “Força probatória” dispunha “1 - As telecópias dos articulados, alegações, requerimentos e respostas, assinados pelo advogado ou solicitador, os respectivos duplicados e os demais documentos que os acompanhem, quando provenientes do aparelho com o número constante da lista oficial, presumem-se verdadeiros e exactos, salvo prova em contrário. 2 - Tratando-se de actos praticados através do serviço público de telecópia, aplica-se o disposto no artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 54/90, de 13 de Fevereiro. 3 - Os originais dos articulados, bem como quaisquer documentos autênticos ou autenticados apresentados pela parte, devem ser remetidos ou entregues na secretaria judicial no prazo de sete dias contado do envio por telecópia, incorporando-se nos próprios autos.”.
[2] Se bem que, a nível pelo menos desta Relação de Évora, se tenha constatado que os Senhores Advogados referenciem não conseguirem apresentar as peças processuais via citius (surgindo no sistema uma mensagem onde se pode ler que o processo “não existe”), designadamente quando pretendem cumprir o artigo 417.º, n.º 2 do CPP ou quando apresentam reclamação ou recurso para o STJ ou TC, tendo, para suprirem essa impossibilidade de acesso, de remeter por mail simples os requerimentos ou articulados. Nestas situações, os defensores da tese da impossibilidade de endereçar convite para junção do original do articulado, eventualmente não poderiam, por maioria de razão, aceitar qualquer articulado expedido por correio eletrónico, conquanto, decorridos 10 dias, não fosse rececionado na Relação de Évora o respetivo original.
[3] Este n.º 2 determina que «No que respeita à tramitação eletrónica dos processos penais nos tribunais judiciais de 1.ª instância, o regime previsto na presente portaria é aplicável apenas a partir da receção dos autos em tribunal a que se referem o n.º 1 do artigo 311.º e os artigos 386.º, 391.º-C e 396.º do Código de Processo Penal»).
[4] Atentas as decisões acessíveis na base de dados da DGSI e a favor do convite podem ser indicados os Acórdãos RE de 5.4.2022 (P. 757/20.2GDLLE.E1); 26.4.2022 (P. 798/19.7T9OLH.E1); de 22-11-2022 (P. 115/21.1GAPRL-A.E1); 22.11.2022 (115/21.1GAPRL-A.E1; 22.11.22 (P 10/21.4GALLE-E.E1).
A desfavor do convite cf. Acórdãos de 9.3.2021 (P. 1670/18.9T9FAR.E1); de 13.4.2021 (P. 914/18.1T9ABF-B.E1); de 13.7.2021 (P. 914/18.1T9ABF-A.E1); de 30.11.2021 (P. 261/20.9T9EVR-A.E1); de 8.2.2022 (P. 157/19.7T9RMZ-A.E1); de 24.5.2022 (P. 8/21.2PAOLH.E1); de 22.11.22 (P. 1481/20.1GBABF.E1). [5] A desfavor do convite ao aperfeiçoamento os Desembargadores Ana Barata Brito, Maria Leonor Esteves, Fernanda Palma, Maria Isabel Duarte, Maria Margarida Bacelar, João Amaro, Nuno Garcia, Edgar Valente, Martinho Cardoso, Maria Clara Figueiredo e João Carrola.
[6] A favor do convite ao aperfeiçoamento os Desembargadores Francisco Moreira das Neves, Gilberto Cunha, Fátima Bernardes, José Proença da Costa, Fernando Pina, Beatriz Marques Borges, Laura Goulart Maurício, Ana Bacelar, Renato Barroso, Gomes de Sousa e Carlos Lobo.
[7] Neste Acórdão acaba por se concluir não haver lugar ao despacho de aperfeiçoamento entendendo-se que a consequência processual prevista no n.º 5 do artigo 4.º do DL n.º 28/92 de 27 de fevereiro (não aproveitamento à parte do ato praticado por falta de apresentação dos originais após a notificação para o efeito) se reporta apenas aos atos relativamente aos quais nos números anteriores se previra a possibilidade de tal notificação, ou seja, os atos processuais previstos no n.º 4, onde não estão incluídos os articulados/documentos autênticos e autenticados, mas apenas os “originais de quaisquer outras peças processuais ou documentos.
[8] Em caso conexo, apesar de não idêntico por estarmos já na fase do recurso e não do inquérito ou da instrução o TC no seu Acórdão n.º 268/2020 proferido no Processo n.º 272/18, da 3.ª Secção Relator: Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro disponível para consulta em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20200268.html a propósito do “articulado de recurso” entendeu “Julgar inconstitucional, por violação dos artigos 20.º, n.º 4, 32, n.º 1 e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, o artigo 144.º, n.º 1, do Código de Processo Civil e o artigo 5.º, n.º 1, da Portaria nº 280/2013, de 26 de agosto, na redação que lhe foi dada pela Portaria n.º 170/2017, de 25 de maio, quando interpretados no sentido de não serem admissíveis e deverem ser imediatamente rejeitados, em processo penal, os recursos interpostos por transmissão eletrónica de dados, através do sistema Citius e consequentemente, conceder provimento ao recurso, determinando-se a reformulação da decisão recorrida em conformidade.” (sublinhado nosso).