Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2882/21.3T8STB-B.E1
Relator: MARIA JOÃO SOUSA E FARO
Descritores: EXECUÇÃO
ENTREGA DO BEM
COVID
CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
Data do Acordão: 04/28/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I. Para se suspender a entrega de um imóvel, determinada pela sentença exequenda, à luz da alínea b) do nº 7 do art.º 6º-E da Lei n.º1-A/2020, de 19/3, aditado pela Lei n.º 13-B/2021, de 5/4. e do qual os executados não eram arrendatários, é mister que esteja demonstrado tratar-se da sua casa de morada de família.
II. Não se pode ordenar a restituição de um imóvel que não se provou ter sido indevidamente entregue num determinado momento temporal.
(Sumário pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
1. RELATÓRIO

1. A.P. e mulher M.F., Executados nos autos de execução de sentença para entrega de coisa certa que lhes foi movida por H.N., vieram interpor recurso do despacho que indeferiu o requerimento de restituição da sua casa de morada de família, formulando, na sua apelação, as seguintes conclusões:

A) No dia 02-11-2021, nos autos de execução sob o Proc. nº 2882/21.3T8STB, que corre trâmites no Juiz l, do Juízo de Execução do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, teve lugar a execução de sentença, nos termos dos art.ºs 626º n.º3 e 860º e seguintes do CPC;
B) A execução correu ao arrepio do disposto no regime excepcional e transitório previsto na alínea b), do nº 7, do art.º6º-E da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, aditado pela Lei nº 13-B/2021, de 05 de Abril, uma vez que, o imóvel dos autos é a Casa de Morada de Família dos Executados e nos termos daquele normativo, os actos a realizar em sede de processo executivo relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família, ficam suspensos;
C) A referida suspensão, não é algo que se encontre na disponibilidade dos sujeitos processuais, como quem pode praticar um acto no decurso de um prazo que se encontre suspenso, e que beneficiando dessa suspensão, ainda assim, o pratica;
D) A suspensão em causa, constitui uma autêntica proibição da prática do acto, que, quando não verificada, constitui nulidade.
Tal nulidade foi invocada pelos Executados;
E) O Tribunal a quo, despachou no sentido de decretar a suspensão da entrega, mas quando tal despacho foi proferido, já a entrega tinha sido efectivada, motivo pelo qual, considera que, a suspensão destes actos é mera faculdade que se impõem ao executor Agente de Execução que, aparentemente, na óptica do Tribunal a quo, pode fazer tábua rasa do supra citado normativo legal excepcional e transitório;
F) O referido regime deve prevalecer sobre o direito que se pretende fazer valer com a execução para entrega de coisa certa, ou seja, existe uma colisão de direitos, propriedade vs habitação, que o legislador resolveu dando prevalência ao direito à habitação, de forma excepcional e transitória, justificada pela situação pandémica.
G) Incumbia, pois, ao Tribunal a quo, a reposição da legalidade, impondo ao "executor" Agente de Execução que restituísse aos ora Apelantes a sua Casa de Morada de Família, repondo a legalidade dolosa, injustificada e grosseiramente violada;
H) O acto praticado constitui uma nulidade atípica, por via da qual, a entrega deveria ter sido declarada nula e de nenhum efeito;
I) Verificando-se o direito à restituição da Casa de Morada de Família que foi requerida pelos Executados ora Apelantes, em devido tempo e com os pertinentes fundamentos, que foram acolhidos pelo Tribunal;
J) O despacho ora recorrido, tem carácter de sentença por decidir definitivamente o incidente, sendo recorrível, por violar o disposto no art. 6º-E, nº 7, al. b) da Lei n.º1-A/2020, de 19/3, aditado pela Lei n.º 13-B/2021, de 5/4, bem como o nº5 do artº861º do CPC;
K) Motivo pelo qual deve ser revogado e substituído por decisão que imponha à A.E. que diligencie pela restituição aos apelantes do seu direito à habitação na sua Casa de Morada de Família, uma vez que todos os demais requisitos e pressupostos se encontram reunidos, sendo que a decisão ora recorrida, assim não decidiu apenas com base no argumento da irreversibilidade do facto consumado, com total desprezo pela letra e pelo espírito do regime legal citado em K).,
Termos em que nos mais de Direito aplicáveis, que Vossas Excelências doutamente suprirão, deve o presente Recurso de Apelação ser recebido, conhecido e declarado procedente e, consequentemente, ser a decisão recorrida revogada e substituída por Douto Acórdão ordenando a restituição da Casa de Morada de Família aos Executados, ora Apelantes, nos termos do disposto na al. b), do nº7, do art.º6º-E, da Lei nº 1-A/2020, de 19 de Março, na redacção que lhe foi introduzida pela Lei nº 13-B/2021, de 05 de Abril, e n.º 5, do art.º 861º do CPC, com as legais consequências.”

2. Não houve contra-alegações.

3. O objecto do recurso, delimitado pelas enunciadas conclusões (cfr.artºs 608º/2, 609º, 635º/4, 639º e 663º/2 todos do CPC) reconduz-se apenas à questão de saber se o imóvel objecto da execução para entrega de coisa certa deve ser restituído aos executados.

II. FUNDAMENTAÇÃO

4. Os factos a considerar na decisão deste recurso são os que constam do antecedente relatório e, bem assim, os seguintes, de acordo com a documentação junta aos autos:

4.1. A presente execução para entrega de coisa certa foi proposta em 25.5.2021 ao abrigo do disposto no art.º 626º do CPC e baseia-se em sentença judicial cujo dispositivo é, além do mais, o seguinte:
“Em face do exposto, vistas as já indicadas normas jurídicas e os princípios expostos o tribunal julga:
Parcialmente procedente por parcialmente provado o pedido formulado pelo autor, e, em consequência:
a) Declara-se que o A. é proprietário do prédio composto por moradia de 3 pisos e logradouro, destinado a habitação, descrito na Conservatória do Registo Predial de Sesimbra, a favor do Autor, sob o nº (…);
b) Reconhece-se que está definitivamente incumprido, por desrespeito pelo prazo essencial acordado, o contrato promessa de compra e venda celebrado entre as partes;
c) Determina-se a restituição imediata ao A., do prédio anteriormente identificado, livre e devoluto de pessoas e de bens;”.

4.2. No dia 13.10.2021 foi proferido o seguinte despacho: “Autorizo a requisição do auxílio da força pública, na medida do estritamente necessário à efetivação da diligência (arts. 626º, n.º 3, 757º, n.º 4, e 861º, n.º 1 do CPC).

4.3. No dia 2.11.2021 os ora apelantes, através do seu ilustre mandatário, invocando o disposto no art. 6ºda Lei n.º1-A/2020, de 19/3, aditado pela Lei n. º 13-B/2021, de 5/4 pediram que “a decisão fique adiada por algum tempo até que o doente recupere”.

4.4. Sobre tal requerimento veio a recair em 5.11.2021 despacho com o seguinte teor: “O despacho de 13 de outubro p.p. foi proferido tendo em consideração a informação prestada pelo AE, segundo a qual o imóvel em causa nos presentes autos se encontraria devoluto de pessoas.
Verificando-se que não é esse o caso, e que os executados têm no imóvel a sua casa de morada de família, nunca o Tribunal teria autorizado a entrega judicial do bem, dado que a tal obsta a alínea b) do n.º 7 do art. 6º-E da Lei n.º 1-A/2020, de 19/3, aditado pela Lei n.º 13- B/2021, de 5/4.
Com efeito, nos termos do referido normativo legal, estão suspensos, no decurso do período de vigência do regime excecional e transitório previsto no mesmo art. 6º-E, os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família.
Citando o acórdão da RP de 21.03.2021, disponível em www.dgsi.pt, com referência à Lei n.º 16/2020, de 29/05, nomeadamente à alínea b) do n.º 6-A (com a redação que lhe foi dada pela referida Lei n.º 16/2020), mas em considerações transponíveis para o caso dos autos, dado que as normas do art. 6.º-A, nºs. 6 e 7 da Lei n.º 1-A/2020, de 19/3 (com a redação da Lei n.º 16/2020), foram transpostas para o atualmente vigente art. 6.º-E, nºs. 7 e 8 da Lei n.º 1-A (com a redação da Lei n.º 13-B/2021), diremos que “[a] situação prevista no nº 6 al. b) do artigo 6º A da Lei 1-A/2020 de 19/03, na redação introduzida pela Lei 16/2020 de 29/05 é aplicável às situações em que em causa está a entrega judicial de casa de morada de família ordenada no âmbito de processo executivo ou de insolvência, independentemente de o afetado por tal diligência ser parte processual ou terceiro” (sumário do acórdão).
Significa isto que o princípio a ter conta neste momento é o de que, estando em causa a entrega judicial de casa de morada de família do visado com a diligência, a entrega está automaticamente suspensa por força do disposto no art. 6º-E, n.º 7, b) da Lei n.º 1-A/2019, de 19/3, aditado pela Lei n.º 13-B/2021, de 5/4, tendo o legislador optado por determinar a suspensão desse ato, sem qualquer restrição ou condição, ou seja, independentemente da necessidade do executado ou do prejuízo para o exequente, que só relevam quando não esteja em causa a casa de morada de família (cf. n.º 8 do art. 6º-E, que dispõe que “[n]os casos em que os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência referentes a vendas e entregas judiciais de imóveis sejam suscetíveis de causar prejuízo à subsistência do executado ou do declarado insolvente, este pode requerer a suspensão da sua prática, desde que essa suspensão não cause prejuízo grave à subsistência do exequente ou dos credores do insolvente, ou um prejuízo irreparável, devendo o tribunal decidir o incidente no prazo de 10 dias, ouvida a parte contrária.”).
Como se refere no acórdão da RP de 27.04.2021, proc. n.º 1212/20.6T8LOU-B.P1, www.dgsi.pt, proferido no domínio da vigência da Lei n.º 16/2020, de 29/05, mas também em considerações transponíveis para o caso dos autos (como já se referiu, as normas do art. 6.º-A, nºs. 6 e 7 da Lei n.º 1-A/2020, de 19/3, com a redação da Lei n.º 16/2020, foram transpostas para o art. 6.º-E, nºs. 7 e 8 da Lei n.º 1-A, com a redação da Lei n.º 13-B/2021), a lei «prevê três níveis diferentes de protecção das pessoas visadas com diligências de entrega de imóveis:
a) se o imóvel em causa constituir casa de morada de família ficam automaticamente suspensas todas as diligências de entrega judicial da mesma; b) se o imóvel a entregar, não sendo casa de morada de família, for um imóvel arrendado apenas se suspendem estas mesmas diligências caso “o arrendatário, por força da decisão final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa.” c) se o imóvel em causa não constituir casa de morada de família nem for arrendado somente se suspende a prática de tais diligências caso estas “sejam susceptíveis de causar prejuízo à subsistência do executado ou do declarado insolvente (…) desde que essa suspensão não cause prejuízo grave à subsistência do exequente ou um prejuízo irreparável.».
No mesmo sentido, pode ler-se o seguinte no sumário do acórdão da RP de 20.00.2021, proc. n.º 104/14.2TBVLC-H.P2, www.dgsi.pt: “I - Na alínea b) do nº 7, do artigo 6-E da Lei nº 1-A/2020, introduzido pela Lei nº 13- B/2021 de 05 de abril, visa-se a proteção do direito à habitação da pessoa visada pela diligência de entrega da casa de morada de família, enquanto no nº 8 do mesmo preceito se almeja a tutela do executado ou do insolvente sempre que a diligência de entrega de imóvel seja suscetível de causar prejuízo à subsistência destes, o que deixa pressupor que terão de tratar-se de imóveis que tenham capacidade reditícia, ou seja, terão de ser imóveis com aptidão para gerar rendimentos que sejam necessários à subsistência do executado e do insolvente, suspensão de entrega que em todo o caso só operará desde que não cause prejuízo grave à subsistência do exequente ou dos credores do insolvente, ou um prejuízo irreparável.
II - Enquanto a tutela da alínea b), do nº 7 do artigo 6-E da Lei nº 1-A/2020 se basta com a comprovação de que o imóvel a entregar constitui a casa de morada de família da pessoa visada com a diligência de entrega, devendo o executor da medida de entrega suspender imediatamente essa diligência logo que se aperceba que se trata de uma casa de morada de família, no caso do nº 8 o beneficiário da tutela deve requerer a suspensão da entrega, averiguando-se, em sede incidental, a reunião dos pressupostos legais da previsão legal em causa, constituindo este um incidente especial em face do incidente geral previsto no nº 5 do artigo 150º do CIRE, sempre que esteja em causa a desocupação de casa de habitação onde resida habitualmente o insolvente.”.
A casa de morada de família é aquela onde de forma permanente, estável e duradoura, se encontra sediado o centro da vida familiar (ac. da RC de 26.06.2017, proc. n.º 1747/14.0T8LRA.C1, www.dgsi.pt).
No caso vertente, não se podendo ter por demonstrada outra factualidade que não a de que estamos perante a casa de morada de família das pessoas visadas com a diligência de entrega, determino que o AE não proceda à diligência de entrega do imóvel dos autos, uma vez que continua vigente o regime excecional e transitório previsto no referido art. 6º-E.”.


4.5. Mediante ofício de 6.11.2021, a Agente de Execução delegada informou ter tido conhecimento do despacho antecedente, que determinava a suspensão da diligência de entrega de imóvel, mas que a mesma já havia sido concretizada no passado dia 2 de Novembro tendo, todavia, estabelecido contacto com o Mandatário dos executados no sentido de diligenciar pela entrega das chaves o mais brevemente possível, tendo combinado a entrega na caixa de correio do escritório do mesmo, o que não havia conseguido até então por não ter logrado estabelecer contacto com o exequente.

4.6. Em 10.11.2021, os executados requereram o cumprimento coercivo do despacho antecedente;

4.7. Em 19.11.2021 o exequente opôs-se à pretensão dos executados, refutando ser o imóvel em questão casa de morada de família dos mesmos e requerendo que se reconhecesse a validade da entrega do imóvel em causa nos autos.

4.8. Em 7.1.2022 foi proferido o despacho recorrido que concluiu que se deveria manter a entrega judicial e decidiu julgar improcedente a pretensão dos executados “sem prejuízo da decisão a proferir em sede de embargos de executado”.

5. Do mérito do recurso

A questão que se coloca neste recurso é, como se viu, se efectuada a entrega judicial do imóvel ao exequente, autor na acção judicial condenatória que assim o determinou, pode, ou melhor deve, ser o mesmo restituído aos executados neste momento.

Conquanto se tenha entendido no despacho transcrito supra em 4.4. que era de aplicar à data em que tal diligência se efectivou o art. 6º-E, nº 7, al. b) da Lei n.º1-A/2020, de 19/3, aditado pela Lei n.º 13-B/2021, de 5/4 e, por consequência, que era de suspender a diligência de entrega, cremos não poder acompanhar tal asseveração.

Desde logo porque, ao contrário do que nele se afirma, ficou por demonstrar, uma vez que tal suspensão não opera, nem pode operar ope legis, que a diligência em causa se reportasse à casa de morada de família.

Aliás, percorrendo a fundamentação do acórdão desta Relação que confirmou na essencialidade a sentença exequenda proferida na acção de reivindicação movida pelo ora apelado contra os ora apelantes, em momento algum se extrai ser o imóvel dos autos a casa de morada de família destes.

E de facto, só resultando demonstrada tal realidade é que poderia ter sido decidido suspender a diligência à luz da alínea b) do nº 7 do art.º 6º-E da Lei n.º1-A/2020, de 19/3, aditado pela Lei n.º 13-B/2021, de 5/4, único fundamento, aliás, susceptível de ser aplicado ao caso, já que os apelantes não eram arrendatários do imóvel , como se afirma na sentença exequenda, confirmada pelo referido acórdão, já que o contrato de arrendamento havia cessado a sua vigência com o contrato promessa celebrado em 31 de Janeiro de 2018.

Aliás, no requerimento a que se alude supra em 4.3., os ora apelantes limitaram-se a invocar o disposto no art. 6ºda Lei n.º1-A/2020, de 19/3, aditado pela Lei n. º 13-B/2021, de 5/4 sem fazerem qualquer alusão a “ casa de morada de família “ e pediram apenas que “a decisão fique adiada por algum tempo até que o doente recupere”.

Aliás, também tal alegação só por si, i.e. sem o competente atestado médico, também não seria suficiente para suspender a diligência executória nos termos do nº3 do art.º 863º do CPC ( aplicável ex vi art.º 861º, nº6 do mesmo código) caso se soubesse tratar da casa de habitação principal do executado.

Por conseguinte, não se pode ter como pressuposto de raciocínio que a diligência de entrega não se deveria ter concretizado no dia 2.11.2021 já que ficou por demonstrar ocorrer fundamento legal para a suspender.

Aliás, dir-se-á que é absolutamente controvertido ser o imóvel em apreço a casa de morada de família dos apelantes já que o ora apelado refutou-o frontalmente, como se colhe do requerimento enviado aos autos em 19.11.2021.

Evidentemente que não se pode ordenar a restituição de algo que não se provou ter sido indevidamente entregue num determinado momento temporal.

De todo o modo, sempre seria permitido aos ora apelantes, caso tivessem fundamento para tanto, deduzir oposição à execução, como se colhe do disposto no art.º 626º, nº3 do CPC e pela via da sua eventual procedência obter a restituição do imóvel.

Neste momento, porém, não há como o determinar e, por isso, a decisão recorrida deverá ser mantida.

III. DECISÃO

Por todo o exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e em manter a decisão recorrida.
Custas pelos apelantes.
Évora, 28 de Abril de 2022

Maria João Sousa e Faro (relatora)
Florbela Moreira Lança
Elisabete Valente