Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
29/19.5GDEVR.E1
Relator: MARIA PERQUILHAS
Descritores: CONDUÇÃO PERIGOSA DE VEÍCULO RODOVIÁRIO
Data do Acordão: 11/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I. Pratica o crime de condução perigosa de veículo rodoviário o arguido que, conhecedor de não estar em condições de conduzir veículo em segurança, uma vez que tinha ingerido bebidas alcoólicas em quantidade suscetível de limitar as suas capacidades e a aptidão necessária à condução rodoviária, decide conduzi-lo na via pública, sabendo que desse modo criava perigo para os outros utentes da via. De tal modo que numa curva passou a circular na hemifaixa destinada ao trânsito de veículos de sentido inverso, vindo a embater em viatura que circulava em sentido inverso, causando o embate dos veículos, de que vieram a resultar danos nas viaturas e lesões físicas no corpo do condutor do outro veículo.
II. O crime de condução perigosa de veículo rodoviário é um crime de perigo concreto, cuja consumação, para além da condução de um veículo em violação das condições de segurança ou de regras estradais, depende da efetiva criação de um perigo para a vida, integridade física ou bens patrimoniais de elevado valor.
III. Para a verificação do aludido perigo não basta a insegurança na condução ou a violação grosseira das regras de circulação rodoviária, tornando-se necessário que da análise das circunstâncias do caso concreto, se deduza a ocorrência de tal perigo.
IV. São elementos do tipo objetivo do crime de condução perigosa de veículo rodoviário:
a) o ato de condução de um veículo com ou sem motor (o que se basta com a colocação do veículo em circulação, sendo indiferente o tempo e a distância percorrida);
b) a circulação do veículo em via pública, ou seja, em «via de comunicação terrestre afeta ao trânsito público» - artigo 1.º, al. x) Código da Estrada - ou numa via equiparada a via pública, entendida como «via de comunicação terrestre do domínio privado aberto ao trânsito público» - artigo 1.º, al. v) Código da Estrada);
c) a falta de condições para conduzir em segurança; ou,
d) a violação grosseira de regras de circulação rodoviária relativas às concretas manifestações de regras estradais, ou seja, a respeito à prioridade, à obrigação de parar, à ultrapassagem, à mudança de direção, à passagem de peões, à inversão do sentido de marcha em autoestradas ou em estradas fora de povoações, à marcha atrás em autoestradas ou em estradas fora de povoações, ao limite de velocidade ou à obrigatoriedade de circular na faixa de rodagem da direita; e, ainda,
e) a criação de perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado.
V. O preenchimento do tipo de ilícito crime exige não apenas a infração das referidas normas de circulação, mas antes uma violação grosseira dessas mesmas regras, isto é, «um grau especial de violação de deveres de condução, suscetível de traduzir o carácter particularmente perigoso do comportamento para a segurança do tráfego e para os bens jurídicos pessoais envolvidos».
VI. Na vertente subjetiva este ilícito pode ser imputado a título de dolo - isto é, exercer o agente a condução sem as condições de o fazer em segurança ou com violação grosseira das mais elementares regras da circulação rodoviária, representando e querendo o agente conduzir, consciente de que conduz por forma a pôr em perigo a vida, a integridade física ou bens de valor elevado de outrem; ou a título de negligência, devendo o agente representar a possibilidade de realização do facto típico mas contudo não o faz; ou fazendo-o, atua sem se conformar com a sua realização.
Decisão Texto Integral:
AA veio recorrer da Sentença de 17 de outubro de 2022 onde se decidiu julgar a acusação parcialmente procedente, por provada, e em consequência, decide:
a) Absolver o arguido AA da prática de um crime de condução perigosa de veículo agravado, previsto e punido pelos artigos 291º, n.º 1 al. a), 294.º, n.º 3, 285.º, 144.º, al. b) do Código Penal;
b) Condenar o arguido AA da prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário agravado, previsto e punido pelos artigos 291º, n.º 1 al. a) 294.º, n.º 3, 285.º, 144.º, al. c) do Código Penal, na pena de 250 dias de multa à razão diária de €6,20, o que perfaz o montante total de €1550,00;
c) Não substituir a pena aplicada;
d) Condenar o arguido AA, nos termos dos artigos 69.º, n.º1, al. a), 291.º, n.º1, al. a), 294.º, n.º3, 285.º e 144.º, al. c)do Código Penal, na pena acessória de proibição de condução de veículos a motor pelo período de 10 meses
e) Advertir o arguido que, no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, se encontra obrigado a entregar na secretaria do tribunal ou em qualquer posto policial, o título de condução de que é titular, sob pena de, caso não o faça, ser determinada a apreensão da mesma, nos termos do artigo 500.º, n.º2 e 3 do Código de Processo Penal, e incorrer na prática de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º1 do Código Penal com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.
f) Advertir o arguido que, caso viole o cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir, incorrerá na prática de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, previsto e punido pelo artigo 353.º do Código Penal com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias;
(…)
Para o efeito apresentou as seguintes
CONCLUSÕES
1. O ora recorrente foi submetido a julgamento perante Tribunal singular, vindo acusado pela prática, em autoria material e de forma consumada, de um crime de condução perigosa, p. e p. nos termos do disposto nos artigos 291.º, n.º 1, al. a), e 69.º, n.º 1, al. a), agravado nos termos da conjugação dos artigos 294.º, n.º 3, 285.º e 144.º, alíneas b) e c), todos do Código Penal (CP).
2. O aqui recorrente contestou tal acusação alegando, em suma, que a prova obtida quanto à presença de álcool e canabinóides no seu sangue era nula, nos termos do disposto no artigo 126.º do CPP uma vez que, estando o arguido em condições de realizar exame prévio de rastreio para detecção da presença daquelas substâncias, o mesmo não houvera sido realizado em violação do disposto no artigo 157.º do Código da Estrada e no artigo 10.º da Lei n.º n.º 18/2007 de 17 de Maio.
3. Alegou ainda o arguido que, para além de não terem sido observados os procedimentos estabelecidos na lei relativamente à metodologia a seguir na realização daqueles exames, e de o valor acusado no exame de sangue a que o arguido foi submetido ser inferior àquele a partir do qual a lei considera o resultado como positivo para a presença de estupefacientes, também a acusação não demonstrava que o arguido exercia a condução sob a influência de álcool ou de substâncias psicotrópicas e que fora essa influência que provocara o acidente em que o mesmo esteve envolvido, elemento essencial à verificação da tipificação objectiva do crime de condução perigosa de veículo.
4. Realizado o julgamento, julgou o Tribunal a quo decidiu não se verificar a invocada nulidade quanto à prova obtida e condenou o arguido pela prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário agravado, p. e p. pelos artigos 291º, n.º 1 al. a) 294.º, n.º 3, 285.º, 144.º, al. c) do Código Penal, na pena de 250 dias de multa à razão diária de €6,20, o que perfaz o montante total de €1550,00 e, nos termos do disposto nos artigos 69.º, n.º1, al. a), 291.º, n.º1, al. a), 294.º, n.º3, 285.º e 144.º, al. c) do Código Penal, na pena acessória de proibição de condução de veículos a motor pelo período de 10 meses, decidindo ainda, não substituir a pena de multa aplicada.
Ora,
5. Não pode o recorrente conformar-se com tal decisão porquanto:
 A sentença padece de nulidade nos termos do disposto no artigo 379.º, n.º 1, al. b) do CPP, porquanto, ao decidir, o Tribunal a quo socorreu-se de factos diversos daqueles que constam da acusação e da pronúncia, os quais não foram previamente comunicados ao arguido e não lhe foi dada a devida oportunidade de defesa;

 A sentença padece também de nulidade nos termos do disposto no artigo 379.º, n.º 1, al. c) do CPP porquanto, tendo o arguido apresentado a sua defesa trazendo factos diversos daqueles que constavam na acusação e pronúncia, o Tribunal a quo não se pronunciou sobre todas as questões que devesse apreciar, mormente, sobre o se o arguido estava em condições físicas ou não de fazer o exame de rastreio previamente à realização de exame de sangue à presença de álcool e de susbstâncias psicotrópicas;

 A sentença padece de contradição insanável, nos termos do disposto no artigo 410.º, n.º 2, al. b) do CPP, entre os diversos factos provados e ainda entre os factos provados e não provados e entre todos e a decisão de Direito proferida nomeadamente, quanto à imputação subjectiva;
 A sentença padece de erro notório na apreciação da prova, nos termos do disposto no artigo 410.º, n.º 2, al. c) do CPP, pelo que ao aqui recorrente impugnará ainda, nos termos que infra melhor exporá, a decisão da matéria de facto, nos termos do disposto no artigo 412.º, n.º 3 do CPP, quanto aos pontos ALS. B), e E) (vd. página 3 da sentença) e pontos 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 17, 18, 19, 20, 22, 23, 24, 25, 26 e 27 da decisão de facto, em tudo o que se relacione com a existência de álcool ou produto estupefaciente no organismo do recorrente, com o conhecimento deste quanto à presença destas substâncias no seu organismo e com a alegação de que, caso não estivesse o recorrente influenciado por essas mesmas substâncias, teria capacidade para evitar o acidente ocorrido da decisão de facto;

 Na decisão proferida, o Tribunal a quo viola cabalmente o princípio in dubio pro reo previsto no disposto do artigo 32.º, n.º 2 na Constituição da República Portuguesa (CRP) porquanto, admitindo textualmente que a prova produzida foi susceptível a deixar dúvidas no espírito do julgador, decide, ainda assim, em sentido desfavorável ao arguido.
6. Não pode o aqui recorrente conformar-se ainda com a sentença porquanto entende ainda que a mesma padece de erro de julgamento quanto à aplicação do Direito:

 Na decisão quanto à previamente alegada nulidade da prova obtida pelo exame de sangue realizado ao arguido, porquanto a mesma é tomada unicamente, não com base na prescrição e interpretação dos requisitos legalmente exigidos para a validade da prova, mas sim com base em considerações pessoais do Tribunal a quo, considerações estas que são contrárias às regras da experiência comum, violando assim a sentença o disposto nos artigos 125.º, 126.º, n.º 1, do CPP, dos artigos 29.º, n.º1, 32.º, n.º 8 e 203.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), e ainda, por referência ao disposto nos artigos 152.º, n.º1, 153.º, n.º 1 e 8, 156.º, n.º 1 e 2, 157.º, n.º1, 2, 6 e 7 do Código da Estrada (CE) e ao artigos 1.º, n.º 2 e 3, artigo 2.º, n.º 1, artigo 4.º, n.º 1, artigo 10.º e artigo 12.º da Lei n.º 18/2007 de 17 de Maio, bem como o artigo 16.º da Portaria n.º 902-B/2007;

 Na decisão quanto à verificação do tipo objectivo e subjectivo do crime de condução perigosa, porquanto, in casu, a matéria de facto provada é insuficiente para o preenchimento cabal da sua tipificação – cfr. artigo 410.º, n.º 2, al. a) do CPP;
 Em caso de improcedência dos pontos supra citados e, em consequência não ser de absolver o aqui recorrente, ainda assim, a pena concretamente aplicável é excessiva, não tendo o Tribunal a quo ponderado todos os elementos necessárias à determinação da medida da pena, violando o disposto no artigo 71.º do CP, devendo por isso ser reduzida; e por fim, a decisão proferida quanto à não substituição da pena é extemporânea, violando o disposto nos artigos 48.º, n.º 1 e 58.º, n.º 1 do CP.

Apreciando, em concreto, cada um destes pontos:
DA NULIDADE DA SENTENÇA POR CONDENAÇÃO POR FACTOS DIVERSOS DOS DESCRITOS NA ACUSAÇÃO OU NA PRONÚNCIA – ARTIGO 379.º, N.º 1, AL. B) DO CPP
7. Muito embora não os elenque no acervo de factos provados, a pretexto da decisão a proferir quanto à invocada nulidade da prova, o Tribunal a quo deu como provados os factos que enumera como “alíneas a), b), c), d) e), f) e g)”, decidindo exclusivamente com base nestes quanto à nulidade da prova resultante do exame de sangue realizado ao arguido para a detecção da presença de álcool e de estupefacientes no seu organismo, desde logo e oportunamente alegada pelo aqui recorrente na sua Contestação.
Ora,
8. Tais factos não constam da acusação ou da pronúncia do arguido e sobre os mesmos não teve este prévia possibilidade de esgrimir a sua defesa.
9. Estão nestas circunstâncias os factos julgados provados e elencados sob as alíneas b) (“O arguido foi qualificado como ferido leve (…)”), c) (“Após o acidente, o arguido encontrava-se a sangrar na zona do nariz”) e e) (na parte em que se refere “Em hora não concretamente apurada, o arguido foi sujeito a exame de rastreio de urina para identificação de substâncias psicotrópicas através da utilização do imuno ensaio “biosynex multiline”, tendo-se apurado um resultado positivo a canabinóides e negativo a cocaína, opiáceos e anfetaminas”) os quais não constam da acusação ou da pronúncia, nem foram alegados pela defesa na sua contestação, alegações ou em qualquer outro momento e, tendo o Tribunal a quo decidido dá-los como provados, esses mesmos factos novos não foram comunicados ao arguido previamente a essa decisão.

Com efeito,
10. O Tribunal a quo, para decisão da questão suscitada quanto à invalidade da prova/nulidade da prova referente ao teste de detecção de álcool e estupefacientes, sem cumprir o disposto no artigo 358.º, n.º 1 do CPP, introduz factos novos na sentença, essenciais à tese plasmada na acusação, sem dos mesmos dar oportunidade de defesa ao arguido e, em consequência, decide tal questão de Direito desfavoravelmente ao arguido, o que, nesta parte, e s.m.o., inexoravelmente implica a nulidade da sentença nos termos do disposto no artigo 379.º, n.º 1, al. b) do CPP.
11. Ao proceder nestes termos, o Tribunal a quo violou também o fundamental princípio do acusatório, suprindo as deficiências da acusação, quando tal princípio impõe que compete exclusivamente ao Ministério Pública alegar e demonstrar a validade das provas que diz ter reunido contra o arguido – in casu, alegar e demonstrar que o arguido não estava em condições físicas de realizar, previamente ao exame de sangue, o teste de rastreio, quer à presença de álcool, quer à presença de estupefacientes no seu organismo, não podendo o Tribunal adicionar factos novos ao acervo de factos provados (nomeadamente, que o arguido era um “ferido leve” e que se encontrava a “sangrar do nariz” após o acidente) nos termos em que o faz na sentença de que ora se recorre, sem dos mesmos dar prévia oportunidade de defesa ao arguido, aqui recorrente.
12. Pelo exposto, ao adicionar e considerar provados os factos identificados sob as alíneas b), c), e), e, f) e g) (vd. página 3 da sentença), supra referidos, sem ao arguido dar prévio conhecimento desta alteração não substancial, o Tribunal a quo violou o disposto no artigo 358.º, n.º 1 do CPP.
13. O aqui recorrente, invoca, assim a nulidade da sentença nos termos do disposto no artigo 379.º, n.º 1, al. b) do CPP, impondo-se que a mesma seja sanada nos termos legais, com reabertura da audiência de julgamento para comunicação desses factos ao arguido (cfr. artigo 358.º, n.º 1 do CPP) e subsequente eventual produção da prova que vier a ser indicada pela defesa, o que se requer.
14. Mas diga-se ainda que, quanto à própria decisão sobre estes factos, crê o ora recorrente, que não só a mesma se mostra insuficientemente fundamentada, em violação do disposto na al. a) do n.º 1 do artigo 379.º do CPP (porquanto o Tribunal a quo limita-se a remeter para os documentos constantes dos autos ou um único depoimento de uma testemunha (a testemunha BB), não realizando uma análise crítica e suficientemente motivada, quer desses mesmos elementos probatórios, quer conjugando-os com os demais elementos probatórios constantes dos autos), como a mesma padece de notório erro de julgamento (cfr. al. c) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP) quando conjugada com estes, nos termos que mais à frente se exporá.

DA NULIDADE DA SENTENÇA POR FALTA DE PRONÚNCIA SOBRE QUESTÕES QUE O TRIBUNAL SE DEVESSE PRONUNCIAR – ARTIGO 379.º, N.º 1, AL. C) DO CPP.
15. Entende o recorrente, salvo o devido respeito, que a sentença a quo é também nula por violação do disposto no artigo 379.º, n.º 1, al. c) do CPP porquanto, tendo tal sido alegado pela defesa da Contestação, após leitura integral da sentença recorrida, não resulta da mesma qualquer juízo concreto do Tribunal a quo sobre o estado do arguido e se este se encontrava em condições físicas de fazer o exame prévio de astreio relativamente aos níveis do álcool do sangue e se lhe foi dada a oportunidade de realizar esse exame prévio pelos militares da Guarda Nacional Republicana (GNR).
16. Na verdade, o próprio Tribunal a quo admite cabalmente que desconhece se o arguido apresentava visivelmente alguma lesão física estando totalmente ausente da sentença qualquer raciocínio ou consideração sobre o efectivo estado físico em que o arguido recorrente se encontrava e, tendo tal sido alegado pela defesa, sempre se imporia ao Tribunal que se pronunciasse sobre esse facto, o que o Tribunal a quo não faz, motivo pelo qual a sentença é ainda nula também nos termos do disposto no artigo 379.º, n.º 1, al. c) do CPP.

Pelo exposto,
17. O recorrente, invoca a nulidade da sentença nos termos do disposto no artigo 379.º, n.º 1, al. c) do CPP, impondo-se que a mesma seja sanada nos termos legais, determinando-se a baixa do processo para reformulação da sentença, o que se requer.
18. Aqui chegados, e porque a questão de Direito quanto à alegada invalidade da prova que é o cerne da acusação e de toda a sentença – o exame de sangue para detecção da presença de álcool e de estupefacientes no organismo do aqui recorrente – é imprescindível para a decisão quanto à matéria de facto e quanto à subsequente condenação (ou não) do arguido, impõe-se desde já analisar tal decisão, quer quanto aos factos (ainda que os mesmos devessem sempre ser previamente comunicados ao arguido), quer quanto ao Direito. Assim:

DA IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO QUANTO À MATÉRIA DE FACTO JULGADA PROVADA COM RELEVÂNCIA PARA A DECISÃO QUANTO À NULIDADE DA PROVA OBTIDA (EXAME DE SANGUE) – ALS. B), C), E), F) E G) (vd. página 3 da Sentença)
19. No que respeita à alínea b) – “o arguido foi qualificado como ferido leve”, baseando-se o Tribunal a quo exclusivamente no auto de notícia da Guarda Nacional Republicana, de 05/04/2019, a fls. 3-4, na participação de acidente de viação da Guarda Nacional Republicana, de 02/02/2019 a fls.5-6-ss e no relatório para polícia a fls. 15 e 195, para julgar como provado que o arguido foi dado como “ferido leve”, sempre se diga que no auto de 02/02/2019 a fls. 5-6 e ss., onde se lê “Suspeitos” e consta a identificação do aqui recorrente, o auto refere: “Lesões – Não apresenta lesões” (vd. página 1 do auto), o que é repetido onde se lê “Arguido” (vd. página 2 do auto). Ademais, inexistem elementos probatórios nos autos para concluir sobre quem, ou que entidade, qualificou o arguido como “ferido leve” e sobre que acompanhamento teve o arguido no Hospital, sendo o conceito de “ferido leve” um conceito altamente indeterminado (ou mesmo conclusivo) e a necessitar de maior concretização.
20. Pelo exposto, por carecer de elementos suficientes para tanto, tal não poderia ter sido dado como provado. Ao fazê-lo, nos termos em que o faz, o Tribunal a quo viola o disposto no artigo 127.º do CPP, devendo este venerando Tribunal ad quem, podendo fazê-lo, determinar a retirada deste ponto do acervo de factos provados.
21. Por fim, no que respeita à alínea e) – “Em hora não concretamente apurada, o arguido foi sujeito a exame de rastreio de urina para identificação de substâncias psicotrópicas”, importa desde logo salientar que o Tribunal a quo fundamenta a sua decisão única e exclusivamente no “exame de confirmação de substâncias psicotrópicas n.º 0061992”, a fls. 14.
22. Ora, este documento a fls. 14 mais não é que o impresso que deve acompanhar o kit de realização de exame sanguíneo para detecção (confirmação) de substâncias psicotrópicas. A menção de que o arguido, aqui recorrente, foi submetido a exame prévio de rastreio, neste caso, através da urina, acha-se exclusivamente feita nesse documento, tratando-se de uma menção escrita à mão, não se sabe por quem.
23. Este documento não é o resultado do exame de rastreio – diga-se, aliás, que não consta em nenhum elemento dos autos (para além deste documento, preenchido posteriormente à suposta realização do exame de rastreio e para a realização de exame sanguíneo de confirmação) o resultado do exame de rastreio, onde foi feito, em que condições foi feito e quem realizou o exame, pelo que inexiste, assim, qualquer prova, documental ou testemunhal, de que o arguido tenha sido efectivamente submetido ao exame através de imunoensaio “biosynex multiline”, tendo-se apurado nesse exame de rastreio um resultado positivo a canabinóides e negativo a cocaína, opiáceos e anfetaminas.
24. Pelo exposto, tal facto não poderia ter sido dado como provado. Ao fazê-lo, nos termos em que o faz, o Tribunal a quo viola o disposto no artigo 127.º do CPP e os mais elementares princípios de apreciação da prova, devendo este venerando Tribunal ad quem, podendo fazê-lo, determinar a retirarada deste ponto do acervo de factos provados, requerendo-se assim, nos termos do disposto no artigo 410.º, n.º 2, al. c) e 412.º, n.º 3 do CPP, seja considerado como NÃO PROVADO que «Em hora não concretamente apurada, o arguido foi sujeito a exame de rastreio de urina para identificação de substâncias psicotrópicas através da utilização do imunoensaio “biosynex multiline”, tendo-se apurado um resultado positivo a canabinóides e negativo a cocaína, opiáceos e anfetaminas».
Por fim,
25. Por outro lado, subsiste um facto, alegado pela defesa, e manifestamente comprovado em sede de julgamento, sobre o qual o Tribunal a quo não se pronunciou mas que, sendo essencial à decisão de mérito a proferir, não poderia deixar de sobre o mesmo ter incidido julgamento quanto à sua verificação e ter sido adicionado ao acervo de factos provados – o facto de que o arguido não foi submetido a exame de rastreio da presença de álcool prévio à realização de exame com extracção de sangue, o qual é comprovado pelo depoimento da testemunha CC e DD, agentes da GNR que confirmaram, bem como resulta da prova documental existente nos autos, nomeadamente, o formulário para análise para quantificação da taxa de álcool no sangue n.º 171323, a fls. 13 dos autos.
26. Sendo um facto essencial à decisão de mérito a proferir quanto à alegada nulidade da prova obtida, tal não poderia nunca o mesmo deixar de constar na matéria de facto julgada provada, pelo que se impõe, nos termos do disposto no artigo 412.º, n.º 3 do CPP, seja adicionado aos factos provados que «o arguido não foi submetido a exame de rastreio da presença de álcool prévio à realização de exame com extracção de sangue», o que desde já se requer.

Chegados a este ponto, e sanadas que sejam as nulidades da decisão proferida pelo Tribunal a quo a preceito da nulidade da prova, importa desde logo apreciar, quanto ao Direito, esta última questão, a qual para todos os efeitos ora se impugna. Assim:

DO DIREITO: DA NULIDADE DA PROVA OBTIDA ATRAVÉS DE EXAME SANGUÍNEO REALIZADO AO ARGUIDO PARA DETECÇÃO DA PRESENÇA DE ÁLCOOL E DE ESTUPEFACIENTES NO SEU ORGANISMO SEM PRÉVIA REALIZAÇÃO DE EXAME DE RASTREIO
27. Em sede de Contestação, o recorrente alegou desde logo que fora imediatamente submetido a um exame com extracção de sangue para detecção da presença de álcool e de substâncias psicotrópicas no seu organismo, exame este que não era legalmente admissível naquelas circunstâncias. Com efeito, entende o recorrente que a realização deste exame nos termos em que o foi nos presentes autos constitui uma nulidade processual, sendo nula a prova que dele resulta, nulidade esta que se invocou, e se invoca, para os devidos efeitos e com as legais consequências.
28. Todavia, a sentença de que ora se recorre decidiu julgar improcedente esta invocada nulidade do meio de prova, entendendo o recorrente que tal viola as disposições legais constantes dos artigos 125.º, 126.º, n.º 1, do CPP, dos artigos 29.º, n.º 1, 32.º, n.º 8 e 203.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), e ainda, por referência ao disposto nos artigos 152.º, n.º1, 153.º, n.º 1 e 8, 156.º, n.º 1 e 2, 157.º, n.º1, 2, 6 e 7 do Código da Estrada (CE) e ao artigos 1.º, n.º 2 e 3, artigo 2.º, n.º 1, artigo 4.º, n.º 1, artigo 10.º e artigo 12.º da Lei n.º 18/2007 de 17 de Maio, bem como o artigo 16.º da Portaria n.º 902-B/2007.

Assim,
29. Em primeiro lugar, e sem embargo de não dever o Tribunal a quo dar como provado que o recorrente efectuou exame de rastreio prévio à presença de estupefacientes através da urina, certo é que, na análise ao sangue do arguido efectuada apurou-se a presença de canabinóides, tendo sido detetada a existência de apenas 16 ng/mL de 11-Nor-9-carboxi-D9-tetrahidrocanabinol, de apenas 1,5 ng/mL de D9-tetrahidrocanabinol e de apenas de 0,8 ng/mL de 11-Hidroxi-D9-tetrahidrocanabinol, tudo somando o valor de 18,3 ng/mL, valor este bem inferior ao limite a partir do qual se deve considerar tal exame positivo, i.e., o valor de 50 ng/mL.
30. Não existindo efectiva prova da realização prévia do exame de rastreio, verifica-se que, no caso dos presentes autos, o arguido não foi submetido a qualquer exame de rastreio, quer à presença de álcool, quer à presença de susbstâncias psicotrópicas no seu organismo. A evidência da não realização de exame de rastreio é tal que os valores para substâncias psicotrópicas apresentados no exame sanguíneo de confirmação é largamente inferior ao que é legalmente considerado como exame de rastreio “positivo” àquelas substâncias e inexiste nos autos qualquer indicação do valor detectado no suposto exame de rastreio.
31. E se, quanto à presença de estupefacientes, ainda admite o recorrente a discussão quanto à efectiva realização ou não do exame de rastreio, quanto à realização de exame de rastreio não invasivo para detecção da presença de álcool no organismo do aqui recorrente é manifesto nos autos, e não há qualquer dúvida (nem para o Tribunal a quo, apesar de não ter incluído este facto na matéria julgada provada) que tal teste não foi realizado.
32. Ora, como já bem tem entendido a jurisprudência: «I – Em caso de acidente de trânsito, o legislador impõe que seja fiscalizada a presença de álcool nos respetivos intervenientes, devendo tal efetuar-se através de exame de pesquisa de álcool no ar expirado e, caso este não seja possível, através de pesquisa de álcool no sangue ou, na impossibilidade deste, mediante exame médico. II –Esta ordem de precedência impõe-se por estarem em causa uma invasão da integridade física do arguido e uma limitação do seu direito à não autoincriminação.» – vd. Ac. TR Guimarães, de 17/12/2013 (relator Paulo Fernandes Silva) e, em igual sentido, o Ac. do TR Coimbra de 13/07/2016, Processo n.º 73/14.9GAPNL.C1, relator Inácio Monteiro: «III - A entidade fiscalizadora não tem o poder discricionário para agir como lhe aprouver na pesquisa de álcool no sangue, pois o condutor que interveio em acidente de viação, deve em princípio ser submetido no mais curto espaço de tempo ao teste de pesquisa de álcool no sangue no ar expirado, através de analisador qualitativo e sendo este positivo deve ser submetido novamente ateste a realizar em analisador quantitativo. IV – A medição da TAS através de análise ao sangue, só deve ser feita quando o condutor requerer a contraprova, ou quando for impossível a realização do teste no ar expirado segundo o procedimento regulamentar do art. 4.º do Regulamento de Fiscalização, aprovado pela Lei 18/2007, de 17/5 ou quando as condições físicas do fiscalizado não o permitam.»
33. E veja-se ainda, o Ac. TR Porto de 09/04/2014, Processo n.º 1328/10.7TASTS.P1, relator Castela Rio: «IV – (…) a Lei 18/2007 hierarquiza a diligência de produção processual dos meios de prova, só permitindo a realização de «exame médico» como modo «especial» de demonstração da infracção (relativamente ao modo «normal» do «exame de confirmação» seguinte a «exame de rastreio» positivo)« quando, após repetidas tentativas de colheita, não se lograr retirar ao examinando uma amostra de sangue em quantidade suficiente para a realização do teste». V - Assim, não há possibilidade de demonstração do crime de «condução sob a influência de estupefacientes ou de substâncias psicotrópicas» no processo em que se realizou o «exame de confirmação» seguinte a «exame de rastreio», que é possível efectuar, nem de demonstração da contra-ordenação muito grave «condução sob a influência de substâncias psicotrópicas», no processo em que se realizou «exame de confirmação» seguinte a «exame de rastreio», com resultados inferiores a um dos discriminados no quadro 2 do anexo V da Portaria 902-B/2007.» – ou seja, nem poderá aproveitar-se um resultado do exame de confirmação como “positivo” quando os valores desse resultado forem inferiores aos discriminados no quadro 2 do anexo V da Portaria 902-B/2007, i.e. 50ng/mL para canabinóides.
34. Ora, o recorrente foi imediatamente submetido a um exame com extracção de sangue, exame este que não era legalmente admissível naquelas circunstâncias. A realização deste exame em primeira linha constitui, assim, uma nulidade processual, sendo nula a prova que dele resulta, nulidade esta que se invoca, nos termos do disposto nos preceitos supra ciados e para os devidos efeitos e com as legais consequências.
35. Aqui chegados, resulta inexoravelmente que a sentença condenatória padece de um vício de raciocínio, uma vez que o Tribunal a quo, na tentativa de suprir as ilegalidades cometidas para aquisição da prova, dá relevância ao comportamento dos senhores agentes da autoridade, procurando justificá-lo, para legitimar um procedimento técnico que obedece a regras muito específicas e que não admite outra justificação para a sua não realização que não a incapacidade física do examinando para a realização do exame de rastreio.
36. E isto diga-se, quer quanto ao rastreio de substâncias psicotrópicas, quer quanto ao rastreio da presença de álcool no organismo.
37. Quanto ao exame de confirmação da presença de estupefacientes no sangue, em sede de contestação foi invocado – e o Tribunal a quo não responde expressamente ao invocado pelo arguido – que se tivesse sido realizado o exame de rastreio legalmente previsto, o mesmo não teria sido positivo nem originado a necessidade de realização de exame laboratorial de sangue ao arguido porquanto, in casu, mesmo que se considere provado que foi realizado prévio exame de rastreio à urina que correspondeu a um resultado positivo descobre-se, da prova entretanto produzida pela análise sanguínea, que de acordo com este exame, o valor era inferior aos valores legalmente estabelecidos. Portanto, terão necessariamente que existir sérias dúvidas sobre a validade do exame à urina realizado, na medida em que apura que os marcadores têm, ao contrário do que reza a sentença, sensibilidade superior àquela que deveriam ter, de acordo com o estabelecido pela Lei n.º 10/2007 e Portaria n.º 902-B/2007.
38. Conclui-se necessariamente assim que, a ter sido efectivamente realizado exame de rastreio à urina (o que não se admite), ainda assim este, pelos valores detectados, não legitimava a intervenção no corpo do cidadão arguido, ora recorrente.
39. Pelo exposto, contrariamente ao decidido na sentença de que ora se recorre, o recurso ao exame de sangue não foi legítimo nem legal, sendo manifesto o vício de procedimento não reconhecido pelo Tribunal a quo em violação da lei expressa.
40. Tal vale tanto para o exame para detecção de produto estupefaciente, como para o exame para detecção de álcool no organismo do arguido, pois que, se dúvidas há quanto à efectiva realização do rastreio às substâncias psicotrópicas, dúvidas não há – nem o ibunal a quo as tem – de que não foi feito qualquer exame prévio de rastreio à presença de álcool.
41. Assim, para a boa decisão da questão suscitada quanto à nulidade da prova, sempre se imporia que o Tribunal a quo desse como provado que o arguido não foi submetido a exame de rastreio, através de ar expirado, para detecção de álcool no seu organismo, como o recorrente já acima defendeu. Não o tendo feito, podendo este venerando Tribunal da Relação suprir este ponto da matéria de facto, por dos autos resultar essa evidência à exaustão, deverá, em primeira mão, este facto ser adicionado aos factos provados, conforme já requerido.
42. Aqui chegados, importa perceber se existe, processual e circunstancialmente, qualquer facto que permitisse a realização do exame de sangue para detecção da presença de álcool no organismo do arguido, aqui recorrente, sem que se realizasse previamente o exame de rastreio através de ar expirado.
43. Não foi produzida qualquer prova de que o arguido estava inconsciente ou incapaz de expelir ar através dos pulmões. Não foi igualmente produzida qualquer prova de que o arguido apresentasse lesões físicas impeditivas de expirar normalmente. Pelo contrário, foi produzida prova suficiente de que o arguido, após o acidente, recuperou quase de imediato a consciência, falou com testemunhas (nomeadamente, a testemunha BB) e com os guardas da GNR que acorreram ao local do acidente, procurou assistir a outra acidentada, apercebeu-se de que a mesma era sua vizinha – tudo conforme, quer as declarações do próprio arguido, quer os depoimentos das testemunhas arroladas.
44. A única circunstância que, legalmente, justifica que não se siga a cadeia legalmente prescrita para os meios de obtenção de prova quanto à presença de álcool e estupefaciente no organismo de interveniente em acidente de viação (primeiro rastreio através de exames não invasivos e só depois, em caso de exame de rastreio positivo, exame invasivo com extracção de sangue) é o impedimento físico objectivo do examinando, ou seja, a sua incapacidade para realizar fisicamente o exame de rastreio mas tal impedimento não se verifica nos presentes autos, inexistindo prova de tal.
45. Aliás, o próprio Tribunal reconhece que “desconhece se o arguido apresentava visivelmente alguma lesão física” (sic). Não pode, por isso, o Tribunal a quo concluir, como concluiu, que o simples facto de expirar ar (ou seja, de respirar!) causaria lesão ou dano no arguido.
46. Por último, não se diga que o exame de sangue para detecção de álcool no organismo do arguido era inócuo pois que este sangue sempre teria que ser retirado para o exame de confirmação de substâncias psicotrópicas. Pretender defender assim uma prova que não obedeceu aos critérios mínimos de legalidade é “fazer entrar pela janela, o que não coube pela porta” para aproveitar uma prova que, de outro modo, sempre seria ilícita. Ainda para mais quando a retirada de sangue ao ora recorrente para a realização do exame de confirmação da presença de estupefacientes foi, como já se disse, também ela ilegal nos termos do disposto nos artigos 125.º e 126.º, n.º 1 e 2 do CPP.

Assim,
47. Entende o recorrente que, tal como se decidiu no Acórdão deste venerando TR de Évora de 20/12/2012, proferido no âmbito do Processo n.º 45/09.5GECUB.E2 (relator Martinho Cardoso): «1- Em caso de acidente de viação os condutores nele intervenientes só deverão ser submetidos a colheita de sangue quando o seu estado de saúde não lhes permitir ser submetidos a exame de pesquisa de álcool no ar expirado. 2 – Se, não obstante ter sido conduzido ao hospital, se apurar que o estado de saúde do arguido era compatível com a realização do exame através de ar expirado, o exame de sangue a que se procedeu para determinação da taxa de álcool foi realizado fora do circunstancialismo previsto no art.º 156.º, n.º 2, do Código da Estrada, portanto, ilegalmente realizado e não poderá ser valorado.»
48. Pelo exposto, porquanto foi o recorrente submetido a um exame com extracção de sangue que não era legalmente admissível nas circunstâncias em que o foi, impugna o recorrente, para os devidos efeitos e com as necessárias consequências, a decisão quanto à alegada nulidade da prova obtida, prova este que foi obtida de forma ilícita e contrária à lei, constituindo tal uma nulidade processual, sendo nula a prova que dele resulta, nulidade esta cuja declaração se requer a este Venerando Tribunal ad quem, nomeadamente, a declaração de nulidade da prova constante do relatório n.º 19.000465.1 do INMLCF, I.P., de fls. 11, e bem ainda do impresso para análise para quantificação da taxa de álcool no sangue n.º 171232, de fls. 13, impresso para exame de confirmação de substâncias psicotrópicas n.º 0061992, de fls. 14, e guia de entrega de kit de detecção de substâncias, a fls. 16 dos autos.

Ademais,
DA NULIDADE DA SENTENÇA POR EXISTÊNCIA DE CONTRADIÇÃO INSANÁVEL ENTRE OS FACTOS PROVADOS E NÃO PROVADOS E ENTRE ESTES E A FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO DE DIREITO PROFERIDA
49. Entende o recorrente que a Sentença a quo é ainda nula por padecer de contradição insanável entre os factos provados e não provados e entre estes e a fundamentação dada, a final, quanto à decisão de Direito proferida.
50. Estão nestas circunstâncias os factos provados sob os n.ºs 4, 5, 43, 44 e 22; os factos provados sob os n.ºs 7, 8, 9, 10, 11, 12, 19, 20, 22, 23, 24, 25, 26 e 27 e os factos não provados sob as letras C e D; os factos provados sob os n.ºs 17 e 18 e o facto não provado sobre a letra B, contradições estas que são manifestas e resultam, quer da simples leitura dos factos, quer do próprio raciocínio levado a cabo pelo Tribunal a quo em contraposição com as regras da experiência comum.
51. Estas contradições inquinam a sentença de forma insanável nos termos do disposto no artigo 410.º, n.º 2, al. b) do CPP, justificando por si só, e s.m.o., a nulidade de toda a sentença.

Ademais,
52. O Tribunal a quo cai em contradição também quanto aos conceitos de dolo directo, dolo eventual e negligência, elementos subjectivos do tipo de crime de condução perigosa, quer quanto à vertente da condução, quer quanto à vertente da criação do perigo, acabando, com base neste erro de raciocínio, por condenar o recorrente pela prática do crime a título doloso sem nunca qualificar esse dolo como directo ou eventual (antes fugindo totalmente a essa análise) e misturando-o, quer nos factos, quer na fundamentação de Direito, com elementos que correspondem à simples negligência.
53. Porquanto o Tribunal a quo dá como provado que o recorrente não representou sequer a possibilidade de EE se encontrar naquele local e ser atingida no acidente (cfr. ponto 27 dos factos provados) e, ao mesmo tempo que, ao criar o referido perigo, agiu livre, deliberada e conscientemente (cfr. ponto 27 dos factos provados); que o Tribunal a quo não dá como provado que o arguido soubesse que estava influenciado pelo consumo de canabinóides (cfr. ponto D dos factos não provados) e também como não provado que soubesse que o consumo de álcool conjuntamente com estupefacientes agravasse os efeitos (cfr. ponto C dos factos não provados) e, ao mesmo tempo, fundamente a sua decisão também quanto ao Direito no facto de o arguido estar influenciado por ambas as substâncias, embora reconheça, como o faz, que «ainda que, a respeito destes últimos, dado que o arguido o desconhecia, não lhe pode ser subjectivamente imputada a prática da factualidade a respeito a existência de produtos estupefacientes em sistema, ainda que objectivamente lá estivessem».
54. As contradições aqui explícitas são, assim, insanáveis, decorrentes da mesma a nulidade de toda a decisão, nos termos do disposto no artigo 410.º, n.º 2, al. b) do CPP, pelo que se requer a V. Exas. a declaração de nulidade da mesma, por contradição insanável.

DO ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA – ARTIGO 410.º, N.º 2, AL. C) DO CPP
55. Para além do já referido erro notório na apreciação da prova e da impugnação da prova julgada provada já supra levada a cabo a preceito das nulidades prévias de que a sentença a quo padece (quanto às alíneas b), c) e e) da página 3 da sentença), também os pontos 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 17, 18, 19, 20, 22, 23, 24, 25, 26 e 27 da decisão de facto estão inquinados por erro notório em tudo o que se relacione com a existência de álcool ou produto estupefaciente no organismo do recorrente, com o conhecimento deste quanto à presença destas substâncias no seu organismo e com a alegação de que, caso não estivesse o recorrente influenciado por essas mesmas substâncias, teria capacidade para evitar o acidente ocorrido.
56. Com efeito, não poderia o Tribunal a quo dar como provado tais factos por total ausência de elementos probatórios (não sendo a informação constante de fls. 30-31 uma perícia mas tão só uma informação genérica e não vinculativa aos presentes autos) pelo que há erro notório na apreciação da prova, nos termos do disposto no artigo 410.º, n.º 2, al. c) do CPP, impugnando-se o ora recorrente estes pontos da matéria de facto, os quais têm necessariamente que ser dados como NÃO PROVADOS.

DA VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO
57. Chegados a este momento, e salvo o devido respeito, é patente, em várias passagens da sentença recorrida, que o Tribunal a quo decidiu em clara violação ao princípio in dubio pro reo porquanto, no próprio texto da sentença, admite que fica com tem “mais dúvidas que certezas” acerca da prova produzida, o que obrigaria a que outra solução não fosse dada que não uma decisão favorável ao arguido, o que, in casu, não aconteceu.
58. Com efeito, se subsistem dúvidas no espírito do Julgador quanto às declarações prestada pelo arguido, sempre terão estas, por força do princípio in dubio pro reo, que ser reputadas credíveis e, em consequência, os factos delas decorrentes serem julgados provados.
59. Se determinada pessoa apresenta um depoimento credível, todo o depoimento o é, não podendo o Julgador considerar credíveis partes dele e não credíveis outras partes. Assim o é o arguido, ou é credível, ou não é. Todavia, o Tribunal a quo sustenta-se em parte das declarações prestadas pelo arguido (mormente, quanto a factos que não têm mais qualquer prova que não as declarações do arguido, para os considerar provados) mas não se sustenta em outras partes das declarações prestadas pelo arguido (quando as mesmas lhe são favoráveis) porque não as reputa credíveis.
60. Em concreto, o próprio Tribunal a quo aventa várias possibilidades para o arguido ter querido descansar no carro antes de iniciar a condução e formula, na própria sentença, várias questões que gostaria de ter visto respondidas pelo arguido. Todavia, em sede de julgamento, tais questões não foram sequer colocadas. Ora, impunha-se ao próprio Tribunal que tivesse colocado tais questões por forma a excluir toda e qualquer dúvida quanto à ocorrência dos factos conforme relatados pelo arguido, mormente quando assume, como o faz, que quanto a estes factos só as declarações do arguido poderiam valer. Se o Tribunal não coloca as questões e depois diz que ficou com “mais dúvidas do que certezas” relativamente aos acontecimentos e, apesar da subsistência dessas dúvidas, decide desfavoravelmente ao arguido, crê o ora recorrente que é manifesta a violação do princípio in dubio pro reo.
61. A violação do princípio in dubio pro reo constitui um verdadeiro erro de julgamento, erro este que para os devidos efeitos se invoca.
62. Admitindo que as declarações do arguido o deixam com dúvidas quanto aos factos, nomeadamente, quanto aos elementos subjectivos, o Tribunal a quo violou, assim, o princípio in dubio pro reo ao não dar como provados factos favoráveis ao arguido e resultantes das suas declarações (como o facto de o arguido não ter sido submetido a prévio exame de rastreio à presença de álcool e de estupefacientes no organismo, o que enquinou toda a prova produzida com recurso ao exame de sangue ilicitamente realizado, como o facto de o arguido, consciente de que tinha ingerido bebidas alcoólicas, ter optado por ficar a descansar no carro algumas horas, só tendo iniciado a condução de manhã) e ao dar como provados factos desfavoráveis ao arguido que não resultam de mais prova alguma do processo, para além das próprias declarações do arguido, a saber: os pontos 7, 8, 9, 10, 11, 12, 19, 20, 22, 23, 24, 25, 26 e 27 dos factos provados.
63. O Tribunal viola ainda o princípio in dubio pro reo quando, havendo elementos suficientes nos autos, não apenas das declarações do arguido mas também dos depoimentos das restantes testemunhas, de outros factos que podem ter concorrido para a ocorrência do acidente, nomeadamente, o sol encontrar-se de frente para o arguido ou este ter adormecido), existindo dúvida razoável sobre se o acidente aconteceu por o arguido se encontrar influenciado por álcool (e substâncias psicotrópicas, como o Tribunal entende) não os pondera para a ocorrência do sinistro, admitindo desde logo – e sem mais prova –que o acidente só aconteceu em virtude da influência de substâncias no organismo do arguido condutor.
64. Pelo exposto, admitindo ter dúvidas quanto à ocorrência dos factos, restava apenas ao Tribunal a quo dar como não provado, o que se requer, os pontos 7, 8, 9, 10, 11, 12, 19, 20, 22, 23, 24, 25, 26 3 27 da matéria de facto.

DA INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA
65. Chegados a este ponto, o aqui recorrente invoca ainda a existência do vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, al. a) do CPP na vertente da insuficiência da matéria de facto provada, porquanto nesta a descrição dos factos do elemento subjetivo é insuficiente para integrar o disposto no artigo 14.º, n.º 3, do Código Penal (CP) («quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente actuar conformando-se com aquela realização») por referência ao disposto no artigo 291.º, do CP, ao ser dar como provado o seguinte: “De facto, o arguido consciente do perigo inerente ao facto de ir conduzir veículo automóvel etilizado, admitiu que podia causar um acidente e provocar lesões no corpo de terceiros e fazer perigar a vida de terceiros, que circulavam nas vias públicas por onde o arguido viesse a circular, querendo actuar nos moldes descritos apesar de consciente do perigo criado e conformando-se com esse perigo, ainda que não se tenha conformado com a materialização de tal resultado, agindo na convicção que concluiria a viagem sem se envolver em qualquer acidente.”.
66. É unânime na nossa doutrina e jurisprudência a qualificação do crime de condução perigosa de veículo como crime de perigo concreto, caracterizado pela exigência da verificação de que o agente põe efectivamente em perigo o bem jurídico que esta norma visa proteger, i.e., a segurança rodoviária – a criação do perigo é elemento do tipo, quer objectivo, quer subjectivo.
67. Trata-se, assim, de um crime doloso, impondo-se que o agente tenha conhecimento e vontade de que está consciente que não tem condições para conduzir em segurança e dessa forma está a criar especificamente perigo para a vida ou para a integridade física de alguém, ou seja, outra pessoa em concreto. Donde, para efeitos de imputação subjectiva do tipo criminal deve o conhecimento e a vontade da condução em concreto reflectir um elemento qualitativo adicional relativamente aos estados fisiológico do conduto: o perigo concretamente criado em relação a alguém.
68. Da descrição factual resulta que o arguido produziu um resultado danoso, ao ofender fisicamente um outro utente da via mas não resulta qualquer elemento de facto no ponto 25 que permita considerar qual foi a sua vontade e conhecimento relativamente ao concreto perigo criado. Com efeito, não se acha descrito, nomeadamente, que o arguido estava consciente de que com a sua conduta era perigosa e podia causar um acidente e provocar lesões de alguém, mais concretamente em relação a EE, e que se conformou com a sua situação de etilizado e com o perigo provocado em relação ao utente da via contrária, EE.
69. Isto porque o artigo 291.º, n.º 1, do CP exige a criação de um “perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado”. Impõe a efectiva criação de um perigo, de um perigo em concreto, e não apenas a possibilidade abstracta dessa criação, face a um determinado modo de condução de veículo descrito no tipo. Não basta, por conseguinte, ao preenchimento do tipo legal, a insegurança na condução, ou a violação grosseira das regras de circulação rodoviária, tornando-se necessária a imputação subjectiva desse perigo concreto ao agente. Neste tipo de dolo, o elemento volitivo não é o mais marcante, como no dolo directo, mas isso não significa que o mesmo, no que diz respeito ao perigo concreto, não tenha de estar presente, devendo até ser diferente a sua configuração.
70. Quanto ao tipo subjectivo de ilícito, prevê o referido inciso legal que o condutor actue com dolo ou com negligência: com dolo, em qualquer das suas formas – na acção e na criação de perigo; com dolo na acção, mas sendo o perigo criado por negligência inconsciente ou consciente; quer a acção quer a criação de perigo decorrendo de mera negligência. Por seu turno, o perigo concreto da conduta do agente terá de resultar um perigo real e efetivo para a vida, integridade física ou bens patrimoniais de outra pessoa, sendo que a situação de perigo, em si, é elemento do tipo legal de crime, apresentando-se como o resultado típico da violação da norma.
71. Ora, in casu, a factualidade é totalmente omissa no que se refere ao elemento subjectivo do perigo criado para a condutora do veículo de matrícula XX-XX-XX. Com efeito, em face da matéria de facto que resultou provada, desconhece-se qual era a posição do arguido, aqui recorrente, em relação ao perigo concreto que causou para a vida e integridade física da ocupante do outro veículo, não tendo, por isso, o acervo provatório todos os elementos necessários e imprescindíveis para condenar com a segurança que o Direito Penal exige.
72. A falta destes elementos, designadamente, dos elementos constitutivos do tipo subjectivo do ilícito, nomeadamente do dolo de perigo concreto, é nesta fase processual insuprível, impondo-se, em conformidade, revogar decisão ora recorrida absolver o ora recorrente.
Por último, caso assim não se entenda,
73. No que respeita à medida da pena, fixada na metade superior do segundo terço da moldura penal aplicável em 250 dias de multa, entende o aqui recorrente que o Tribunal a quo, na sua determinação, não ponderou todos os elementos recolhidos nos autos que concorrem à determinação dessa medida, nomeadamente, aqueles elementos que são favoráveis ao arguido, como o arrependimento e elevado sentido crítico para o acontecido, a sua conduta posterior ao acidente, como a preocupação com o estado da outra pessoa acidentada, demonstrada através de inúmeros contactos e visitas no Hospital e o estado psicológico em que o próprio ficou, com o trauma sofrido a obrigar ao acompanhamento psiquiátrico, com medicação. Estes factos, demonstrativos dos sentimentos vivenciados pelo aqui recorrente em virtude do acidente ocorrido e do seu estado de espírito em relação ao mesmo, justificam que a pena a aplicar ao arguido (caso haja efectivamente uma pena a aplicar) se situe dentro do primeiro terço da moldura ou junto ao limite inferior do segundo terço, fixando-se no máximo em 160 dias de multa.
Nestes termos e nos demais de Direito aplicáveis, deve ser dado provimento ao presente Recurso, quer quanto às nulidades invocadas, com as devidas consequências, quer quanto ao demais e, a final, ser a decisão do Tribunal a quo revogada, e o arguido absolvido, com as legais consequências, só assim se fazendo a habitual e necessária JUSTIÇA!
*
Respondeu o MP em 1ª Instância, pugnando no sentido da manutenção do decidido pela primeira instância, apresentando as seguintes conclusões:
1. O arguido AA interpôs recurso da Douta Sentença proferida no dia 17 de outubro de 2022, referência 32241375, que o condenou nos presentes autos.
2. Foram aplicadas ao arguido as seguintes penas:
“a) Absolver o arguido AA da prática de um crime de condução perigosa de veículo agravado, previsto e punido pelos artigos 291º, n.º 1 al. a), 294.º, n.º 3, 285.º, 144.º, al. b) do Código Penal;
b) Condenar o arguido AA da prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário agravado, previsto e punido pelos artigos 291º, n.º 1 al. a) 294.º, n.º 3, 285.º, 144.º, al. c) do Código Penal, na pena de 250 dias de multa à razão diária de €6,20, o que perfaz o montante total de €1550,00
c) Não substituir a pena aplicada;
d) Condenar o arguido AA, nos termos dos artigos 69.º, n.º1, al. a), 291.º, n.º1, al. a), 294.º, n.º3, 285.º e 144.º, al. c)do Código Penal, na pena acessória de proibição de condução de veículos a motor pelo período de 10 meses (…)”.
3. Para sustentar o seu recurso concluiu o arguido/recorrente, em síntese, que:
• O Tribunal a quo socorreu-se de factos diversos daqueles que constam da acusação e da pronúncia, os quais não lhe foram previamente comunicados, não lhe tendo sido dada oportunidade de defesa;
• Invoca que o Tribunal a quo não se pronunciou sobre todas as questões que devesse apreciar, designadamente, sobre os factos diversos que constavam na acusação e na instrução, que apresentou na sua defesa;
• Existe contradição entre diversos factos provados, entre factos provados e não provados, e entre todos e a decisão de Direito proferida;
• A Sentença padece de erro notório na apreciação da prova em tudo o que se relacione com a existência de álcool ou produto estupefaciente no organismo do recorrente, com o conhecimento deste quanto à presença destas substâncias no seu organismo e com a alegação de que, caso não estivesse o recorrente influenciado por essas mesmas substâncias, teria capacidade para evitar o acidente ocorrido;
• A decisão de que a prova obtida mediante a realização ao arguido de exame de sangue não é nula foi tomada com base em considerações pessoais do Tribunal a quo e não com base na prescrição e interpretação dos requisitos legalmente exigidos para a validade de prova;
• Que a matéria de facto provada não é suficiente para o preenchimento da tipificação do crime de condução perigosa, designadamente no que respeita à verificação do tipo objetivo e subjetivo;
• Entende que não devem ser dados como provados factos cuja prova resultou unicamente das declarações do arguido, declarações essas que criaram dúvidas no espírito do julgador, e, não obstante, decidiu em sentido desfavorável ao arguido, violando, assim, o princípio in dubio pro reo.
• A decisão proferida quanto à medida da pena, bem como à não substituição da pena é excessiva.
4. Contrariamente ao pugnado pelo recorrente, a Douta Sentença recorrida não enferma de nulidade por condenação por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, porquanto os factos diversos a que o mesmo se refere, mais não são factos que o próprio levantou na contestação que apresentou, motivo pelo qual o Tribunal a quo os deu como assentes.
5. Acresce que são factos meramente instrumentais, pelo que não havia obrigação de serem comunicados.
6. Analisada a douta Sentença recorrida verifica-se que essa factualidade foi considerada demostrada em questão prévia, para decisão da nulidade invocada pela defesa. Não se trata de factos respeitantes a elementos de um tipo de crime, nos termos balizados pela acusação pública, sendo que só quanto a esses factos se aplica o regime das comunicações de alterações de factos.
7. O Tribunal a quo pronunciou-se quanto a todas as questões que necessitavam de pronuncia, resultando da Douta Sentença recorrida menção sobre o estado em que se encontrava o arguido após o acidente (“o mesmo foi localizado (…) com sangramento”) e o motivo pelo qual não foi realizado exame prévio de rastreio aos níveis de álcool no sangue (análise de ar expirado), porquanto naquelas circunstâncias de tempo e de lugar, e com os conhecimentos que possuíam naquele momento, o mais sensato era não sujeitar arguido a outros métodos de rastreio (que exigiam esforço físico, como é ocaso da análise de ar expirado), o que aconteceu, tendo, por isso, sido efetuado exame de sangue.
8. A factualidade apurada nos presentes autos, permitia à GNR qualificar o arguido como “ferido leve”, porquanto tal conhecimento resulta das regras da experiência comum, devendo o mesmo manter-se como facto provado.
9. O facto “Em hora não concretamente apurada, o arguido foi sujeito a exame de rastreio de urina para identificação de substâncias psicotrópicas através da utilização do imunoensaio “biosynex multiline” tendo-se apurado um resultado positivo a canabinóides e negativo a cocaína, opiáceos e anfetaminas”, resultou provado com base no teor de fls. 14, (Exame de confirmação de substâncias psicotrópicas, da Guarda Nacional Republicana), e, ao contrário do que afirma o recorrente, tal documento encontra-se carimbado pelo estabelecimento hospitalar e assinado pelo funcionário que preencheu o referido documento, o que lhe confere valor provatório, motivo pelo qual andou bem o Tribunal a quo ao dar como assente o mesmo.
10. Entendeu o Tribunal a quo que a prova obtida através de exame sanguíneo não é nula, entendimento que acompanhamos, por concluir que, naquelas circunstâncias de tempo e lugar, de modo a salvaguardar o estado de saúde do arguido após o acidente, não é de censurar a realização de exame sanguíneo sem previamente ter sido realizado exame de rastreio.
11. O recorrente vem impugnar a nulidade da sentença com base em contradições entre factos provados e não provados, afirmando para tal que o Tribunal a quo deu como assente que “existe boa visibilidade” ao mesmo tempo que “o sol apresentava-se de frente” e que a via era composta por “rectas, curvas e contracurvas, com especial intensidade”.
12. Tais factos foram mal interpretados, pois, o julgador a quo, ao afirmar que havia boa visibilidade, quis com isso exprimir que, por ser de dia/haver claridade do sol, tudo o que se apresentava no campo de visão do arguido era, passamos a redundância, visível.
13. Arguiu, ainda, o recorrente, que existe contradição entre as afirmações: “estava bom tempo” e “o piso encontrava-se húmido”, o que entendemos não ocorrer, porquanto seria perfeitamente possível que na noite anterior tivesse chovido ou caído geada (motivo possível para que o piso se encontrasse húmido) e pela manhão sol raiar (fazendo, assim, bom tempo).
14. Quanto à alegada contradição dos conceitos de dolo direto, dolo eventual e negligência, elementos subjetivos do tipo de crime de condução perigosa, por banda do Tribunal a quo, consideramos que tal vício não é detetável na Douta Sentença recorrida.
15. O n.º 1, do artigo 291º, do Código Penal (crime de condução perigosa de veículo rodoviário), prevê dois tipos de dolo ou dois segmentos: o dolo de ação e o dolo de perigo, os quais se poderão traduzir em qualquer uma das modalidades de dolo.
16. Ao contrário do que afirma o recorrente, o Tribunal a quo caracterizou de forma clara o dolo de ação como dolo direto e o dolo de perigo como dolo eventual.
17. Corresponde ao dolo de ação, na modalidade de dolo direto, a seguinte fundamentação constante na Douta Sentença recorrida: “Resultou demonstrado que o arguido agiu de modo intencional, isto é, conduzindo o veículo quando não se encontrava em condições de o fazer em segurança (por influência de álcool e canabinóides, os quais reduziram significativamente a sua capacidade de tripular o veículo, ainda que, a respeito destes últimos, dado que o arguido o desconhecia, não lhe pode ser subjectivamente imputada a prática da factualidade a respeito a existência de produtos estupefacientes em sistema, ainda que objectivamente lá estivessem”.
18. Por sua vez, no que respeita ao dolo de perigo, o Tribunal a quo caracterizou-o como dolo eventual, como se pode verificar na Douta Sentença recorrida: “conformando- se (ainda que julgasse que o mesmo não se viesse a concretizar) com a geração do perigo originado pela presença de álcool no sangue, que veio a ocorrer, conhecedor do carácter ilícito da conduta que praticava, sendo que tinha capacidade para actuar de modo diverso e não o fez”.
19. Contrariamente ao pugnado pelo recorrente, a Douta Sentença recorrida não enferma do vício de erro notório na apreciação da prova.
20. O recorrente limitou-se a demonstrar a sua discordância quanto à factualidade provada e que impôs a sua condenação, afirmando que inexistem elementos de que o acidente aconteceu por motivos de o arguido se encontrar influenciado pelo álcool e de substâncias psicotrópicas, e que existem, contudo, as declarações do mesmo que, por sua vez, permitem concluir em sentido diverso.
21. Porém, não basta ao recorrente discordar da factualidade provada, designadamente, do Parecer do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses I.P. a fls. 30-31, devendo especificar os elementos concretos e relevantes de prova ou as regras da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica que impunham decisão diferente.
22. O Tribunal a quo não considerou verossímeis as declarações prestadas pelo arguido.
23. Ao contrário do alegado pelo recorrente, as dúvidas do julgador reputam-se somente às declarações prestadas pelo arguido, por ter apresentado um discurso pouco assertivo e titubeante, quanto à versão apresentada pelo mesmo no que respeita aos termos em que ocorreram o acidente.
24. Resulta do facto 25.º da Douta Sentença recorrida que “De facto, o arguido consciente do perigo inerente ao facto de ir conduzir veículo automóvel etilizado, admitiu que podia causar um acidente e provocar lesões no corpo de terceiros e fazer perigar a vida de terceiros, que circulavam nas vias públicas por onde o arguido viesse a circular, querendo actuar nos moldes descritos apesar de consciente do perigo criado e conformando-se com esse perigo, ainda que não se tenha conformado com a materialização de tal resultado, agindo na convicção que concluiria a viagem sem se envolver em qualquer acidente”.
25. Conforme referido anteriormente, entendeu o Tribunal a quo que o arguido agiu com dolo eventual quanto ao dolo de perigo, e é o que se encontra plasmado no referido facto 25.º da Douta Sentença recorrida, ao referir que o mesmo agiu “consciente do perigo criado e conformando-se com esse perigo”.
26. Ora, o Tribunal considerou que o arguido previu a criação do perigo, conformou-se com a sua verificação do perigo, embora não se tenha conformado com a sua materialização (provocar lesões em terceiro e estragos noutra viatura).
27. A factualidade imputada ao arguido, e dada como provada, pressupõe dolo direto de conduta, dolo eventual na criação do perigo (como referido na resposta) e ainda que o resultado é negligente (isto é, o acidente e as lesões provocadas). Com efeito, caso se concluísse por dolo no resultado verificado estaríamos perante um concurso real com um crime de ofensa à integridade física grave.
28. Assim, na douta decisão recorrida, foram ponderados e articulados, de forma irrepreensível, todos os meios de prova produzidos, tendo os factos que resultaram provados e não provados sido devidamente fundamentados e de forma convincente.
29. Mais foi realizada uma correta interpretação das normas legais aplicáveis.
30. Pelo exposto, entendemos que deve ser mantida, nos seus precisos termos, a Douta Sentença recorrida, quanto à matéria factual dada como provada e não provada.
31. Para além disso, as penas aplicadas mostram-se justas e adequadas às razões de prevenção geral e especial que se fazem sentir, bem como ao grau de culpa do arguido.
32. Pelo exposto, o recurso interposto pelo arguido não merece provimento, devendo manter-se a Douta Sentença recorrida.
Contudo, Vªs. Exªs. Decidirão Conforme for de
LEI e JUSTIÇA.
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O M.P. junto desta Relação emitiu o seguinte parecer:
Vista (artigo 416º, n.º 1, do CPP).
Presentes os autos com vista nos termos e para os efeitos do disposto no art. 416.º, n.º 1 do CPP, vem o Ministério Público encaminhar aos autos parecer nos termos que se seguem.
Vem o arguido AA interpor recurso da sentença proferida em 17.10.2022 que, entre o mais, o condenou pela prática, em autoria material, de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário agravado, previsto e punido pelos artigos 291º, n.º 1, al. a) 294.º, n.º 3, 285.º, 144.º, al. c) do CP, na pena de 250 dias de multa à razão diária de 6,20 €, o que perfaz o montante total de 1550,00 €; bem como, nos termos dos artigos 69.º, n.º1, al. a), 291.º, n.º1, al. a), 294.º, n.º3, 285.º e 144.º, al. c) do CP, na pena acessória de proibição de condução de veículos a motor pelo período de 10 meses.
O recurso foi admitido e o Ministério Público na primeira instância respondeu ao recurso em 05.01.2023, referência 3486500.
Ponderando os termos da decisão recorrida, a motivação do recurso interposto pelo arguido e a resposta do Ministério Público na primeira instância, manifestamos a nossa concordância com os termos desta e o parecer de que não deve o recurso obter provimento, por não merecer reparo a decisão recorrida que, por isso, deve ser mantida.
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O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente. Só estas o tribunal ad quem deve apreciar art.ºs 403º e 412º nº 1 CPP[1] sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso - art.º 410º nº 2 CPP.
Questões a conhecer:
A - Se a prova pericial, consistente nos exames de sangue realizados ao arguido, para pesquisa de álcool no sangue é nula por não ter sido precedida da realização do exame de pesquisa por ar expirado;
- Se A decisão enferma da nulidade da alteração substancial dos factos descritos na acusação do M.P.;
B - Se a decisão enferma de erro de julgamento;
C - Se a decisão enferma dos vícios previstos no art.º 410.º, n.º 2 do CPP:
- Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
- Contradição insanável entre a fundamentação e a decisão.
- Erro notório na apreciação da prova;
D - Se foi violado o princípio in dubio pro reo;
E - Se os elementos constitutivos do crime de condução perigosa de veículo rodoviário não se encontram preenchidos;
F - Se a pena de multa concretamente aplicada é desproporcional e desadequada;
G – Se a decisão relativa à não substituição por trabalho a favor da comunidade é prematura e por isso ilegal.
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Da Nulidade da Prova pericial:
O tribunal a quo conheceu e decidiu a primeira questão suscitada neste recurso como questão prévia nos seguintes termos:
3. QUESTÃO PRÉVIA: DA ALEGADA NULIDADE DO EXAME DE PESQUISA DE ÁLCOOL NO SANGUE E SUBSTÂNCIAS PSICOTRÓPICAS, ATRAVÉS DE COLHEITA REALIZADA EM 01/02/2019.
Em sede de contestação, alega o arguido a nulidade do relatório pericial n.º 19.000465.1 do INML, I.P. – Delegação do Sul, de 12/03/2019, arguindo, para o efeito, que o arguido apenas foi submetido a exame de sangue, no hospital, para pesquisa da presença de etanol e de estupefacientes quando, estando em condições de o fazer, não lhe foi dada a possibilidade de realizar exame prévio de rasteio, quer quanto aos níveis de álcool no sangue, quer tanto à detecção de produto estupefaciente, arguindo que caso tivesse sido efectuado o exame de rastreio, o arguido não houvera sido submetido ao exame sanguíneo dadas as concentrações identificadas, concluindo que a submissão a exame, com extracção de sangue, não era legalmente admissível naquelas circunstâncias, inadmissibilidade procedimental que determina a nulidade processual na obtenção do referido meio de prova.
Para apreciação do requerido e no que ora releva, resultaram sucintamente demonstrados os seguintes factos, a partir dos meios de prova que se elencam, considerando-se que o seu teor não foi directamente infirmado por qualquer meio de prova:
a) No dia 01/02/2019, na Estrada Municipal n.º 526, ao quilómetro 5,120, ocorreu um embate entre os veículos de matrícula ZZ-ZZ-ZZ e XX-XX-XX, conduzidos, respectivamente, pelo arguido AA e por EE – Auto de notícia da Guarda Nacional Republicana, de 05/04/2019, a fls. 3-4, e participação de acidente de viação da Guarda Nacional Republicana, de 02/02/2019 a fls.5-6-ss;
b) O arguido foi qualificado como ferido leve e EE como ferido grave, tendo ambos sido transportados pelos Bombeiros Voluntários de Évora para o Hospital do Espírito Santo, E.P.E. - auto de notícia da Guarda Nacional Republicana, de 05/04/2019, a fls. 3-4, participação de acidente de viação da Guarda Nacional Republicana, de 02/02/2019 a fls.5-6-ss e relatório para polícia a fls. 15 e 195.
c) Após o acidente, o arguido encontrava-se a sangrar na zona do nariz – conforme declarações prestadas por BB em julgamento, consideradas credíveis nesse particular atento o modo espontâneo e genuíno como relatou tal detalhe.
d) O arguido foi admitido no Hospital do Espírito Santo, E.P.E. pelas 9h57m do dia 1/02/2019 - relatório para polícia a fls. 15.
e) Em hora não concretamente apurada, o arguido foi sujeito a exame de rastreio de urina para identificação de substâncias psicotrópicas através da utilização do imunoensaio “biosynex multiline”, tendo-se apurado um resultado positivo a canabinóides e negativo a cocaína, opiáceos e anfetaminas – exame de confirmação de substâncias psicotrópicas n.º 0061992, a fls. 14;
f) Pelas 12h50m do dia 01/02/2019, procedeu-se, no Hospital do Espírito Santo, E.P.E., à recolha de sangue do arguido, tendo sido utilizado o kit entregue pela GNR com o selo n.º 59519 – guia de entrega, a fls. 16 e relatório n.º 19.000465.1 do INMLCF, I.P., a fls. 11.
g) Com base nos elementos referidos em f), procedeu-se à análise do sangue do arguido, o qual determinou como positiva a presença de canabinóides no sangue, tendo sido detetada a existência de 16 ng/mL de 11-Nor-9-carboxi-D9-tetrahidrocanabinol, 1,5 ng/mL de D9-tetrahidrocanabinol, de 0,8 ng/mL de 11-Hidroxi-D9-tetrahidrocanabinol e, ainda de 1,20 g/l (+- 0,15 g/l) de etanol no sangue – relatório n.º 19.000465.1 do INMLCF, I.P., a fls. 11.
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Com relevância para a decisão da questão prévia, não ficou por demonstrar qualquer outro facto.
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Apreciando e decidindo, prevê o artigo 125.º do Código de Processo Penal que são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei, norma que consagra o princípio da atipicidade dos meios de prova legalmente admissíveis a juízo.
Sem prejuízo do comando genérico, prevê o artigo 126.º, .º1 do Código de Processo Penal a nulidade das provas obtidas “mediante tortura, coacção ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas”, considerando-se ofensivas da integridade física ou moral das pessoas as provas obtidas, ainda que com o seu consentimento, mediante “perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de maus tratos, ofensas corporais, administração de meios de qualquer natureza, hipnose ou utilização de meios cruéis ou enganosos, perturbação, por qualquer meio, da capacidade de memória ou de avaliação, utilização da força, fora dos casos e dos limites permitidos pela lei, ameaça com medida legalmente inadmissível e, bem assim, com denegação ou condicionamento da obtenção de benefício legalmente previsto” ou mediante “promessa de vantagem legalmente inadmissível”.
Tais limitações radicam, por um lado, de concretas manifestações da dignidade da pessoa humana enquanto parâmetro normativo do ordenamento jurídico, concedendo-se assim protecção à integridade pessoal dos cidadãos, da intimidade da vida privada e, ainda, da inviolabilidade do domicílio, correspondência e telecomunicações, previstas nos artigos 25.º, n.º1 e 2, 26.º e 34.º da Constituição.
Ora, os aludidos normativos correspondem à concretização do disposto no artigo 32.º, n.º8 da Constituição, o qual afirma a nulidade de “todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações”.
Aproximando do caso e tendo em consideração a perigosidade emergente da circulação de veículos, o legislador consagrou um sistema probatório (de verdadeira prova tarifada) a respeito da constatação da existência, por parte dos condutores de demais utentes da via, de especiais estados de perigosidade, mormente causados pelo consumo de álcool e substâncias psicotrópicas.
Para o efeito, estabelece o artigo 152.º, n.º 1 do Código da Estrada que devem submeter às provas estabelecidas para a detecção dos estados de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas os condutores, os peões, sempre que sejam intervenientes em acidentes de trânsito 4/41 e as pessoas que se propuserem iniciar a condução.
Seguindo a metodologia legal, o exame de pesquisa de álcool no ar expirado é realizado por autoridade ou agente de autoridade mediante a utilização de aparelho aprovado para o efeito (artigo 153.º, n.º1 do Código da Estrada), tendo o legislador, no plano regulamentar, consagrado a necessária realização do teste indiciário de detecção, através de indicador qualitativo (artigo 1.º, n.º1 da Lei n.º 18/2007), o qual se destina exclusivamente a aferir a (in)existência de álcool no organismo.
Sendo o resultado positivo (ou seja, tendo o analisador qualitativo identificado a presença de álcool no organismo), deve o cidadão ser sujeito a teste de pesquisa de álcool no ar expirado de natureza quantitativa (artigo 1.º, n.º 2 e 2.º, n.º 1 da Lei n.º 18/2007) ou ser sujeito a análise de sangue, a qual deve ser efectuada quando não por possível realizar o teste em analisador quantitativo (artigo 1.º, n.º2 e 3 da Lei n.º 18/2007).
Prevêem ainda os artigos 153.º, n.º 8 do Código da Estrada e 4.º, n.º1 da Lei n.º 18/2007 que “se não for possível a realização de prova por pesquisa de álcool no ar expirado, o examinando deve ser submetido a colheita de sangue para análise ou, se esta não for possível por razões médicas, deve ser realizado exame médico, em estabelecimento oficial de saúde, para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool”, considerando-se impossível a realização do teste quando o examinando não “não conseguir expelir ar em quantidade suficiente para a realização do teste em analisador quantitativo, ou quando as condições físicas em que se encontra não lhe permitam a realização daquele teste”.
Havendo lugar à colheita de sangue, esta deve tomar lugar no mais curto prazo possível após a ocorrência do acidente, devendo a amostra ser remetida para a delegação do INML pelo estabelecimento que procedeu à colheita (artigo 5.º, n.º1 e 2 da Lei n.º 18/2007).
O aludido procedimento é legalmente excepcionado caso ocorra acidente de trânsito. Nesse caso e tendo em vista a pesquisa de álcool no sangue (e estupefacientes, face à amplitude da norma e da remissão operada pelo artigo 157.º, n.º6 do diploma), prevê o artigo 156.º, n.º1 e 2 do Código da Estrada que “os condutores e os peões que intervenham em acidente de trânsito devem, sempre que o seu estado de saúde o permitir, ser submetidos a exame de pesquisa de álcool no ar expirado”, sendo que “quando não tiver sido possível (…) o médico do estabelecimento oficial de saúde a que os intervenientes no acidente sejam conduzidos deve proceder à colheita de amostra de sangue para posterior exame de diagnóstico do estado de influência pelo álcool e ou por substâncias psicotrópicas”.
No que respeita à identificação da eventual presença de psicotrópicos no organismo, prevê o artigo 157.º, n.º1, 2 e 7 do Código da Estrada que “os condutores e as pessoas que se propuserem iniciar a condução devem ser submetidos aos exames legalmente estabelecidos para detecção de substâncias psicotrópicas, quando haja indícios de que se encontram sob influência destas substâncias”, sendo que “os condutores e os peões que intervenham em acidente de trânsito de que resultem mortos ou feridos graves devem ser submetidos aos exames referidos no número anterior”, considerando-se como ferido grave aquele que “em consequência de acidente de viação e após atendimento em serviço de urgência hospitalar por situação emergente, careça de cuidados clínicos que obriguem à permanência em observação no serviço de urgência ou em internamento hospitalar”.
Ora, a regulação do exame para detecção de substâncias psicotrópicas encontra-se, à semelhança do álcool, previsto na Lei n.º 18/2007, estabelecendo o artigo 10.º que “a detecção de substâncias psicotrópicas inclui um exame prévio de rastreio e, caso o seu resultado seja positivo, um exame de confirmação, definidos em regulamentação”.
Novamente, prevê o legislador a dúplice ligação entre exame de rastreio e de quantificação, prevendo inclusivamente o dever de submissão a exames complementares necessários sob pena de crime de desobediência - artigo 157.º, n.º4 do Código da Estrada.
Para o efeito, o exame de rastreio é efectuado “através de testes rápidos a realizar em amostras biológicas de urina, saliva, suor ou sangue e serve apenas para indiciar a presença de substâncias psicotrópicas”, ao qual se segue, sendo positivo, o exame de confirmação mediante análise de amostra de sangue (artigo 12.º, n.º 1 da Lei n.º 18/2007).
Neste particular, saliente-se que prevê o artigo 16.º da Portaria n.º 902-B/2007, de 13 de Abril, bem como o quadro 2 do anexo V, que se considera positivo o exame de rastreio na urina quando os canabinóides nesta presentes tenham uma concentração superior 50 ng/ml.
Efectuado o enquadramento normativo, voltamos ao caso.
Resultou demonstrado, neste particular, que o arguido foi interveniente num acidente de viação (no qual foi qualificado como ferido ligeiro, tendo o embate gerado igualmente um ferido grave), tendo o arguido sido transportado pelos Bombeiros Voluntários de Évora para o Hospital do Espírito Santo, E.P.E. onde permaneceu, pelo menos, entre as 9h47m e as 12h50m do mesmo dia, tendo resultado ainda demonstrado que o arguido, sujeito a teste de rasteio à urina para identificação da presença de eventuais estupefacientes no organismo, produziu um teste de diagnóstico positivo, tendo sido posteriormente determinada a realização do exame ao sangue tendo em vista a identificação da eventual presença de álcool e/ou estupefacientes no sangue, tendo a análise produzido um resultado positivo para ambos.
Iniciando a análise pelo exame de detecção de estupefacientes, resultou demonstrado que o arguido, nos termos procedimentais, foi sujeito à realização do teste de detecção através de análise da urina, o qual gerou um resultado positivo e que, nos termos legalmente expostos, determinou a produção da análise ao sangue, sangue este alvo de análise pericial que culminou no relatório pericial constante dos autos.
Dito isto, falece integralmente a narrativa plasmada pelo arguido na contestação a respeito da alegada violação do procedimento o qual determinou a realização do teste ao sangue quando inexistam parâmetros para o efeito.
Ora, pese embora a Portaria n.º 902-B/2007 estabeleça, efectivamente, a concentração a partir da qual se considera que o teste de diagnóstico apresenta um resultado positivo, a verdade é que não foi produzida qualquer prova a respeito das desconformidades do aludido teste com a realidade, não sendo legítimo inferir a existência de uma sensibilidade superior com base na circunstância da análise ao sangue ter determinado a existência de uma concentração inferior à prevista na Portaria, na medida em que consubstanciam duas análises distintas, produzidas em momentos temporalmente distintos.
Sendo claros: os valores estatuídos na Portaria correspondem ao limite julgado adequado, pelo legislador, para legitimar uma intervenção no corpo do cidadão, sendo que, na presença de teste positivo em sede de rasteio e sendo possível a colheita de sangue, tal meio deverá ser empregue, conforme foi.
Assim, pelo exposto, o recurso à prova pericial mostrou-se adequado, proporcional, legítimo e legal para a realização do exame de confirmação da presença de estupefacientes, não padecendo de qualquer vício procedimental ou substantivo que o enferme.
O mesmo se refira a respeito da análise ao sangue para quantificação da existência de álcool no sangue.
É certo e sabido que o legislador, de modo adequado, privilegia o recurso a um meio não evasivo tendo em vista o apuramento da existência e quantificação da eventual taxa de alcoolemia, razão pela qual dá preferência à análise do ar expirado, seja no plano qualitativo, seja no plano quantitativo.
Não obstante, situações existem em que, atenta a impossibilidade de recurso à análise do ar expirado, se mostra legalmente admissível e legítima a recolha de sangue e a respectiva análise.
Revertendo ao caso, dúvidas não existem que o arguido foi transportado pelos Bombeiros Voluntários até ao hospital, onde permaneceu desde as 9h57m até, pelo menos, as 12h50m, tendo sido qualificado como ferido leve e interveniente em acidente de viação gerador de um ferido grave. Donde, existem dúvidas que o arguido se encontrava obrigado a submeter-se a teste de pesquisa de álcool no sangue.
A questão prende-se exclusivamente a respeito do meio empregue.
Ora, visto os autos, impõe-se concluir que se verificou uma efectiva impossibilidade, por razões de saúde, de realizar o exame de pesquisa de álcool no sangue mediante análise do ar expirado.
Em primeiro lugar, em homenagem ao princípio da dignidade da pessoa humana, as entidades envolvidas na resolução do sinistro dedicaram-se em zelar pela prestação de cuidados de socorro a ambos os envolvidos, priorizando a assistência clínica perante a obtenção de provas, sendo certo que, recorde-se, o exame deverá ter lugar no momento temporalmente mais próximo do exercício da actividade de condução.
Ora, nesse concreto contexto, o arguido encontrava-se a receber assistência hospitalar, encontrando-se sob custódia da entidade hospitalar, presumindo-se à luz das regras de experiência comum, que se encontrasse ainda em vigilância uma vez que o mesmo foi localizado no local do acidente com sangramento.
Deste circunstancialismo decorre que seria objectivamente impossível atentos os valores em causa (dir-se-ia impensável) proceder ao transporte do arguido até ao posto da Guarda Nacional Republicana com o escopo de proceder uma análise de ar expirado. Poder-se-ia igualmente argumentar que sempre poderia o arguido ter realizado a análise de ar expirado no próprio hospital, cabendo à GNR o transporte dos meios para o efeito.
Contudo tal cenário não se mostra verosímil ou, sequer, adequado às circunstâncias do caso na medida em que o arguido se encontrava sob vigilância médica da sequência do advento de um acidente de viação com dissipação de elevada energia cinética (tendo em consideração o estado em que ficaram os veículos envolvidos, conforme resulta das fotografias constantes dos autos). É certo que se desconhece se o arguido apresentava visivelmente alguma lesão física, mas a verdade é que a prudência e a preservação da vida humana e, até, da integridade física dos envolvidos exige que se respeite o período de observação clínica na medida em que a entidade hospitalar é que se encontra vocacionada para a avaliação do estado de saúde do arguido.
Algum cidadão compreendia que, naquele contexto (recorde-se, após ter sido interveniente em embate com elevada dissipação de energia cinética), o arguido fosse retirado da guarda dos cuidados de saúde para, independentemente do seu estado mórbido, fosse sujeito ao exame ao ar expirado?
A fazer vencimento a interpretação dos factos e do Direito trazida pelo arguido, na constância de um acidente, a apreciação dos militares da Guarda Nacional Republicana acerca do estado de um dos intervenientes prevaleceria sempre sobre a apreciação médica? É evidente que não porquanto se o arguido se mantinha há mais de duas horas em unidade hospitalar é porque necessitava de cuidados de saúde.
Ademais, refira-se que se mostra absolutamente diverso o procedimento exigível para a análise de ar expirado do necessário para o rastreio de estupefacientes.
Dito isto, bem andaram os militares da Guarda Nacional Republicana ao preservarem o arguido a uma actividade que implica esforço físico acrescido (à luz da normalidade) no aparelho respiratório (em face da resistência provocada pelo aparelho à passagem do ar) num momento em que, como se disse, aquele se encontrava sob observação clínica.
Ademais, refira-se que a realização do exame através do aludido meio não consubstanciou uma qualquer decisão discricionária ou infundada dos órgãos de polícia criminal, na medida em que, conforme se referiu, o arguido se encontrava no citado serviço de urgência.
Neste sentido, veja-se o recente acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 27/09/2022, proc. 142/17.3GTSTB, rel. Fátima Bernardes, o qual conclui no exacto sentido exposto.
Ora, pelas razões expostas e tendo em consideração o contexto, impõe-se concluir que o arguido se encontrava, por motivos de saúde (tanto física como psicológica, emergente do embate), objectivamente impossibilitado de proceder à realização do teste de diagnóstico mediante análise do ar expirado, razão pela qual o recurso à análise do sangue para detecção de álcool no sangue se apresenta como um meio necessário, legítimo, proporcional e legal para o efeito, inexistindo qualquer afectação ilegítima do corpo do arguido, mostrando-se respeitados os pressupostos e procedimentos legalmente estabelecidos para esse fim.
Por fim e ainda que assim não fosse, consigna-se que sempre se diria que a análise ao sangue para detecção do álcool, neste concreto contexto, sempre seria legítima porquanto neutra no que respeita à protecção da integridade física do arguido.
Hoje em dia é pacífico que as normas protegem determinados valores, destinando-se a concretas finalidades que, em última linha, determinam num ser humano.
Como anteriormente se lavrou, as normas que regulam a detecção da actividade de condução sob estados prejudiciais procura proceder à sua identificação sem que se lese (a não ser que tal seja necessário) a integridade física dos examinandos. É essa a (evidente) razão que compele o legislador a ordenar que se analise, preferencialmente, o ar expirado e apenas em última linha, o sangue, na medida em que a colheita de sangue implica uma afectação da integridade física do sujeito.
Ora, no caso, sempre se impunha concluir que o escopo da norma (a protecção da integridade física) não seria possível de alcançar na medida em que o arguido sempre teria de ser sujeito a análise ao sangue para apuramento do quantitativo de estupefacientes presentes no sistema, dado o exame de rastreio positivo, sendo por isso inevitável a intervenção corporal.
Assim, mostra-se objectivamente neutra a realização da análise ao sangue para detecção da taxa de alcoolemia porquanto o arguido foi e sempre seria sujeito à recolha de sangue com esse escopo, não resultando demonstrado (ou sequer alegado) se e em que medida tal determinou a recolha de uma quantidade de sangue significativamente superior aquela que estava legitimada em função do rastreio positivo a estupefacientes e que, por essa medida, consubstancia uma ingerência ilegítima na sua integridade corporal.
Por conseguinte, nos termos expostos, uma vez que inexistem razões de facto e de Direito que a fundamentem, julga-se improcedente por não provada a nulidade do meio de prova invocada pelo arguido.
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***
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Conhecendo e decidindo:
Defende o arguido que a sentença padece de nulidade nos termos do disposto no artigo 379.º, n.º 1, al. b) do CPP, porquanto, ao decidir, o Tribunal a quo socorreu-se de factos diversos daqueles que constam da acusação e da pronúncia, os quais não foram previamente comunicados ao arguido e não lhe foi dada a devida oportunidade de defesa;
Salvo o devido respeito não se verificam as nulidades invocadas.
O art. 379º do CPP consagra prevê taxativamente as causas de nulidade da sentença, entre as quais se inclui, na al. b) do nº 1, a condenação por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstas nos artigos 358º e 359º, que regem a alteração não substancial e a alteração substancial de factos, respetivamente.
O CPP define, no seu art. 1º al. f), «alteração substancial dos factos» como a que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis. Pressupõe, pois, uma diferença radical de identidade, de grau, de tempo ou espaço, que transforme a descrição factual vertida na acusação em outra manifestamente diferente, no que se refere aos seus elementos essenciais, e que determine a imputação de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
A «alteração não substancial dos factos» define-se por exclusão de partes, comungando desta qualidade toda a modificação de factos que, não operando os efeitos previstos naquele art. 1º al. f), no entanto, tem relevo para a decisão da causa (cfr. art. 358º nº 1 do C. Processo Penal). Constitui, diversamente da alteração substancial, uma divergência meramente parcelar e mais ou menos pontual que, embora sem descaracterizar o quadro factual da acusação, logo, sem relevância para alterar a qualificação jurídico-penal ou para a elevação da moldura penal abstracta, assume relevo para a decisão da causa (Oliveira Mendes, in Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2016 – 2ª edição, pág. 1081).
Como consequência da natureza acusatória do processo penal, consagrada no art. 32º nºs 1 e 5 da CRP, é a acusação que fixa o objeto do processo, delimitando os poderes de cognição do Tribunal, fixando os limites do julgamento e da decisão final e o âmbito do caso julgado.
Por efeito da natureza contraditória do processo penal, também expressamente anunciada no art. 32º nºs 1 e 5 da CRP, nenhuma decisão judicial que pessoalmente afete o arguido poderá ser tomada, sem que este possa influenciar o seu conteúdo e sentido, através da concessão de amplas oportunidades de defesa e oposição, para aduzir argumentos de facto e de direito, requerer e produzir provas que sustentem a sua estratégia e os seus interesses.
E, num sistema processual penal de estrutura essencialmente acusatória, o exercício de todas as garantias de defesa exige a necessária correspondência entre a acusação (ou pronúncia, quando exista) e a sentença, em consequência da necessidade de preservar a imutabilidade do objecto do processo fixado pela acusação, ou pela pronúncia e salvaguardar o arguido de alargamentos arbitrários dos poderes cognitivos e decisórios do Tribunal.
É neste efeito de «vinculação temática» imposto pela acusação ao tribunal «(…) que se consubstanciam os princípios da identidade (segundo o qual o objecto do processo, os factos devem manter-se os mesmos, da acusação ao trânsito em julgado da sentença), da unidade ou indivisibilidade (os factos devem ser conhecidos e julgados na sua totalidade, unitária e indivisivelmente) e da consunção do objecto do processo penal (mesmo quando o objecto não tenha sido conhecido na sua totalidade deve considerar-se irrepetivelmente decidido, e, portanto, não pode renascer noutro processo)» (Cruz Bucho, Alteração Substancial dos Factos em Processo Penal, JULGAR n.º 9, Setembro-Dezembro de 2009, p. 43-44; Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal, Coimbra, 1968, pág. 202, Jorge Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra, 1974, p. 45, Eduardo Correia, A Teoria do Concurso em Direito Criminal, págs. 314-315 e 317-318 e 359; Silva Tenreiro, Livros & Temas, Considerações Sobre o Objecto do Processo Penal, p. 1002, Acs. do Tribunal Constitucional nºs 173/92, 130/98, 674/99, 463/2004, 237/2007, in www.tribunalconstitucional.pt).
Como a acusação e a pronúncia devem conter uma narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança (art. 283º nº 3 al. b) e art. 308º nº 2 do CPP) e dadas as manifestações da indivisibilidade e consunção associados à estrutura acusatória do processo penal, bem como a integração pelo princípio do inquisitório, sempre que, no decurso da discussão da causa, surjam factos diferentes daqueles que já estão descritos na acusação ou na pronúncia, consoante a intensidade e a extensão dessa transformação temática, assim haverá alteração não substancial ou substancial de factos, a convocar a aplicação das regras contidas no art. 358º, ou no art. 359º do CPP.
Por tudo quanto se disse, exige a lei, nos art.ºs 358.º e 358.º do CPP a observância de formalidades tendentes a assegurar as garantias de defesa supra referidas.
Mas no caso, como se conclui da análise das motivações do recurso do arguido e da decisão em causa, os factos que o arguido indica como não constando da acusação pública e que foram introduzidos pelo tribunal a quo não respeitam aos factos e respetiva qualificação jurídica que o MP imputou ao arguido na acusação.
Explicitando:
O arguido na sua contestação invocou a nulidade da prova pericial, no caso exame de sangue, através do qual se apurou que o mesmo conduzia, no momento do acidente, sob o efeito de álcool e substancias estupefacientes, porquanto o exame de sangue não foi precedido da pesquisa de álcool no sangue através do ar expirado, nos termos que se transcrevem:
5.º Como desde logo resulta dos autos, o arguido foi apenas submetido a exame de sangue, já no hospital, para pesquisa da presença de etanol e de estupefacientes quando, estando em condições físicas de o fazer, não lhe foi dada a possibilidade de realizar exame prévio de rastreio, quer quanto aos níveis de álcool no sangue, quer quanto à detecção de produto estupefaciente.
Mas,
6.º O artigo 157.º do Código da Estrada, dispõe desde logo que os condutores que intervenham em acidente de trânsito de que resultem mortos ou feridos graves (como é o caso dos presentes autos), devem ser submetidos aos exames legalmente estabelecidos para detecção de substâncias psicotrópicas, em concreto a um exame de rastreio que, no caso de apresentar resultado positivo, implica a obrigação de submissão “aos exames complementares necessários”.
7.º Por seu lado, o artigo 10.º da Lei n.º 18/2007 de 17 de Maio (que regulamenta a fiscalização da condução sob influência de álcool ou de substâncias psicotrópicas) estabelece que “A detecção de substâncias psicotrópicas inclui um exame prévio de rastreio e, caso o seu resultado seja positivo, um exame de confirmação, definidos em regulamentação”. Quanto ao primeiro, que se destina apenas a indicar a presença de substâncias daquela natureza, é efectuado “através de testes rápidos a realizar em amostras biológicas de urina, saliva, suor ou sangue” (cfr. o n.º 1 do artigo 11.º desse diploma), “sendo os resultados considerados positivos quando os valores obtidos forem iguais ou superiores às concentrações indicadas no quadro n.º 2 do anexo V” (art. 16º da Portaria nº 902- B/2007 de 13/8, que veio regulamentar, nomeadamente, “os tipos de exames médicos a efectuar para detecção dos estados de influenciado por álcool ou substâncias psicotrópicas”), ou seja, de 50 ng/mL para o grupo dos canabinóides.
Assim,
8.º Só no caso de o exame de rastreio acusar um resultado superior a 50ng/mL é que haverá lugar ao exame de confirmação, que se destina “a identificar a substância ou substâncias e ou seus metabolitos que, em exame de rastreio, apresentarem resultados positivos” (artigo 22.º da aludida Portaria), só podendo ser declarado influenciado por tais substâncias “o examinado que apresente resultado positivo no exame de confirmação” (cfr. nº 5 do art. 12º da referida Lei), considerando-se que este exame “é positivo sempre que revele a presença de qualquer das substâncias psicotrópicas previstas no quadro n.º 1 do anexo V ou outra substância ou produto, com efeito análogo, capaz de perturbar a capacidade física, mental ou psicológica do examinado para o exercício da condução de veículo a motor com segurança” (cfr. artigo 23.º da Portaria acima aludida).
Ora,
9.º No caso dos presentes autos, o arguido não foi submetido a exame de rastreio, tendo sido conduzido directamente ao hospital onde lhe foi feita a colheita de sangue, cujo exame deu como resultado, a presença de canabinóides em concentrações de 16ng/mL de THC-COOH, 1,5ng/mL de THC e 0,8ng/mL de OH-THC.
10.º E a verdade é que, se tivesse sido realizado o exame de rastreio legalmente previsto, o mesmo não teria sido positivo nem originado a necessidade de realização de exame laboratorial de sangue ao arguido.
11.º Entendeu já a jurisprudência, e bem, que: «I – Em caso de acidente de trânsito, o legislador impõe que seja fiscalizada a presença de álcool nos respetivos intervenientes, devendo tal efetuar-se através de exame de pesquisa de álcool no ar expirado e, caso este não seja possível, através de pesquisa de álcool no sangue ou, na impossibilidade deste, mediante exame médico. II – Esta ordem de precedência impõe-se por estarem em causa uma invasão da integridade física do arguido e uma limitação do seu direito à não autoincriminação.» - vd. Ac. TR Guimarães, de 17/12/2013 (relator Paulo Fernandes Silva).
12.º Em igual sentido o Ac. do TR Coimbra de 13/07/2016, Processo n.º 73/14.9GAPNL.C1, relator Inácio Monteiro: «III - A entidade fiscalizadora não tem o poder discricionário para agir como lhe aprouver na pesquisa de álcool no sangue, pois o condutor que interveio em acidente de viação, deve em princípio ser submetido no mais curto espaço de tempo ao teste de pesquisa de álcool no sangue no ar expirado, através de analisador qualitativo e sendo este positivo deve ser submetido novamente ateste a realizar em analisador quantitativo. IV – A medição da TAS através de análise ao sangue, só deve ser feita quando o condutor requerer a contraprova, ou quando for impossível a realização do teste no ar expirado segundo o procedimento regulamentar do art. 4.º do Regulamento de Fiscalização, aprovado pela Lei 18/2007, de 17/5 ou quando as condições físicas do fiscalizado não o permitam.»
13.º E veja-se ainda, o Ac. TR Porto de 09/04/2014, Processo n.º 1328/10.7TASTS.P1, relator Castela Rio: «IV – (…) a Lei 18/2007 hierarquiza a diligência de produção processual dos meios de prova, só permitindo a realização de «exame médico» como modo «especial» de demonstração da infracção (relativamente ao modo «normal» do «exame de confirmação» seguinte a «exame de rastreio» positivo) «quando, após repetidas tentativas de colheita, não se lograr retirar ao examinando uma amostra de sangue em quantidade suficiente para a realização do teste». V - Assim, não há possibilidade de demonstração do crime de «condução sob a influência de estupefacientes ou de substâncias psicotrópicas» no processo em que se realizou o «exame de confirmação» seguinte a «exame de rastreio», que é possível efectuar, nem de demonstração da contra-ordenação muito grave «condução sob a influência de substâncias psicotrópicas», no processo em que se realizou «exame de confirmação» seguinte a «exame de rastreio», com resultados inferiores a um dos discriminados no quadro 2 do anexo V da Portaria 902-B/2007.» (i.e., 50ng/ML para cabaninóides).
Ora,
14.º Com já se disse, nos presentes autos, o arguido foi imediatamente submetido a um exame com extracção de sangue, exame este que não era legalmente admissível naquelas circunstâncias.
15.º A realização deste exame em primeira linha constitui, assim, uma nulidade processual, sendo nula a prova que dele resulta, nulidade esta que se invoca para os devidos efeitos e com as legais consequências.
Ademais,
16.º Para além de não terem sido observados os procedimentos estabelecidos na lei relativamente à metodologia a seguir na realização dos exames para a detecção do estado de influenciado por substâncias psicotrópicas, e de o valor acusado no exame de sangue a que o arguido foi submetido ser inferior àquele a partir do qual a lei considera o resultado como positivo, é forçoso concluir que não está minimamente demonstrado na acusação que o arguido exercia a condução sob a influência de substâncias psicotrópicas.
Com efeito,
(…)
Para conhecimento desta questão o tribunal a quo produziu prova e apurou os factos que descreveu a fls. 3 da sentença, acima transcritos para conhecimento da nulidade invocada, a qual foi conhecida e decidida como questão prévia, por a sua eventual procedência inviabilizar a valoração do meio de prova em causa.
Os factos apurados e que o tribunal a quo oficiosamente apurou, considerou provados e verteu na decisão incidente sobre a nulidade invocada não têm que ser alegados pelo MP. Isto é, o MP não tem que alegar factos justificativos da realização deste ou daquele meio de prova. A sindicância sobre a validade ou não da prova tem que resultar dos autos, não tem que ser alegada e sujeita a prova nos autos, a menos que, como no caso presente, seja colocada em crise.
Por isso, sim, efetivamente os factos em causa não se mostram alegados na acusação pública, mas o seu conhecimento para efeitos da decisão em causa não constitui qualquer alteração substancial dos factos como, aliás, resulta de forma cristalina do disposto no art.º 386.º do CPP que regula alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia,e que no seu n.º 1 prescreve uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso, nem implica a extinção da instância.
Ora, os factos em causa não serviram nem para prova dos factos objetivos ou subjetivos consubstanciadores da infração que o MP lhe imputou na acusação pública, pelo que de nada serviram para a condenação do arguido.
Eles mostraram-se necessários ao conhecimento e decisão da nulidade invocada pelo arguido, pelo que daqui resulta desde logo que não existe qualquer violação do direito da defesa na vertente do contraditório, já que foi o arguido quem suscitou a questão em causa.
Já assim não seria se o tribunal a quo de modo próprio julgasse provados factos essenciais constitutivos dos elementos objetivos ou subjetivos do crime imputado ao arguido, suprindo deficiências da acusação pública, ou qualificasse os factos imputados de forma diversa da realizada pelo MP na acusação pública, qualificação mais gravosa para o arguido (art.ºs 385.º e 386.º do CPP).
Não foi violado o princípio do acusatório pelo simples facto que os factos em causa não respeitam, como se disse, nem à descrição dos factos que o MP qualificou como crime nem a qualquer circunstância qualificativa do mesmo.
Termos em que improcede a questão suscitada.
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Invoca também o arguido a falta de fundamentação da decisão
Por força do disposto no Código Proc. Penal (CPP), concretamente no art.º 374.º, n.º 2 sobre os requisitos da decisão ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
Como se verifica da simples leitura da norma transcrita, esta fundamentação não se satisfaz com a mera indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, exigindo ao invés um exame crítico dessas mesmas provas, o que se encontra em correspondência lógica com o processo mental desenvolvido pelo julgador na análise da prova que determinou a formação da sua convicção. Este é um processo complexo porquanto implica o convencimento ou não da ocorrência de factos, convencimento que não pode ter por fundamento ou justificação senão a prova produzida avaliada de harmonia com regras da experiência e da lógica. Daqui resulta desde logo a complexidade do processo de analise e avaliação da prova, complexidade que se adensa quando se verte em texto de decisão esse mesmo processo racional, lógico, crítico e conjugado.
O processo de elaboração de uma decisão, sendo, em regra um procedimento complexo, assenta num modelo racionalizado que obedece sempre a uma estrutura intersubjectiva, contraditória e necessariamente pública.
A formação desta estrutura exige um conjunto de procedimentos intra e expraprocessuais que tanto funciona como elemento legitimador do procedimento, como pode funcionar como instrumento de suporte ao modo de construção da própria decisão (José Mouraz Lopes, Gestão Processual: tópicos para um incremento da qualidade da decisão judicial, JULGAR - N.º 10 – 2010, disponível in julgar.pt; no mesmo sentido v. Sara M. Rodrigues, in O dever de fundamentação das decisões proferidas pela Autoridade da Concorrência em Processo Sancionatório, in Revista Julgar, julgar.pt)
Fundamentar é justificar, apresentar as razões, de forma coerente e objetiva, que determinaram a decisão naquele sentido e não noutro. E esta fundamentação abarca quer a decisão incidente sobre os factos quer a solução jurídica encontrada e aplicada.
Quando incidente sobre os factos a decisão tem que conter as razões do convencimento do julgador. Porque razão o juiz considerou provados aqueles factos e não provados outros, com indicação do meio de prova que em seu entender o demonstra, com explicitação dos motivos que o levaram a conferir credibilidade ao depoimento A em detrimento do B, ao conteúdo do documento x e ao não do y, exceto se documentos com força probatória plena ou prova pericial (relativamente a este deve explicitar e justificar porque não segue a perícia). O que levou o tribunal a decidir-se por esta ou aquela opção de prova através de um exame crítico das provas produzidas (Mouraz Lopes, ob. Cit.)
Analisada a decisão impõe-se que se conclua pela sua devida e aprofundada fundamentação, estando indicada a prova que determinou a formação da convicção do tribunal e bem explicitado as razões que o levaram a concluir do modo como decidiu.
Não se verifica, pois, qualquer nulidade por falta de fundamentação.
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Invoca ainda o arguido relativamente a esta mesma decisão que conheceu da invocada nulidade da prova pericial que - A sentença padece também de nulidade nos termos do disposto no artigo 379.º, n.º 1, al. c) do CPP porquanto, tendo o arguido apresentado a sua defesa trazendo factos diversos daqueles que constavam na acusação e pronúncia, o Tribunal a quo não se pronunciou sobre todas as questões que devesse apreciar, mormente, sobre o se o arguido estava em condições físicas ou não de fazer o exame de rastreio previamente à realização de exame de sangue à presença de álcool e de susbstâncias psicotrópicas;
Ensina Germano Marques da Silva (in “Curso de Processo Penal III, 2ª edição Verbo 2000”) “a omissão de pronúncia é um vício que resulta da violação da lei quanto ao exercício do poder jurisdicional. Trata-se de um vício quanto aos limites desse exercício”; Sendo pacífico o entendimento na jurisprudência de que a omissão de pronúncia se verifica quanto o juiz deixa de proferir decisão sobre questões que lhe foram submetidas pelos sujeitos processuais ou de que deva conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os problemas concretos a decidir.
E no mesmo sentido deste entendimento a doutrina esclarece que “o julgador não tem de analisar todas as questões jurídicas que cada uma das partes invoque em abono das suas posições, embora lhe incumba resolver todas as questões suscitadas pelas partes (…)” (in Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição Coimbra Editora, 1985).
Assim, só constituirá omissão de pronúncia a falta de conhecimento e decisão de questões suscitadas pelos arguidos ou demais sujeitos processuais ou de questões de que o tribunal tenha que conhecer oficiosamente como sejam as respeitantes ao preenchimento dos elementos constitutivos dos ilícitos imputados aos arguidos ou dos pressupostos da responsabilidade civil, ou ainda para a determinação da pena concreta.
Questões e não argumentos ou razões alegados pelos sujeitos processuais para estruturar, fundamentar e defender o que invocam. Como nos continua a ensinar o Prof. Alberto dos Reis, através da sua obra, a propósito da nulidade de sentença por omissão de pronúncia, que “São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzido pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão.”
A atividade de julgar compreende a decisão das questões nos termos sobreditos e não a pronúncia detalhada e circunstanciada sobre os argumentos invocados para suporte da decisão que reclamam ou sobre todos os documentos que estão nos autos. Este dever de análise e valoração dos documentos, e restante prova, insere-se na valoração crítica da prova e respetiva fundamentação. Os documentos são meios de prova, e como tal devem ser apreciados, não são questões colocadas pelos intervenientes.
Tal como os argumentos de que o recorrente lança mão para convencer o tribunal a decidir determinada questão no sentido que entende dever ser decidida, não constituem nem consubstanciam a questão em si, como se disse.
Ora, da leitura da decisão em causa resulta desde logo e sem qualquer sombra de dúvida que o tribunal a quo conheceu a questão que lhe foi colocada, tendo concluído em sentido contrário ao invocado pelo arguido, isto é que não se verifica qualquer nulidade uma vez que o arguido, por se mostrar ferido nos termos ali explicitados não se mostrava em condições de realizar o exame por ar expirado, exame que sempre seria inútil, conclui-se, já que o arguido sempre teria que ser sujeito a exame de sangue para pesquisa de substancias estupefacientes, as quais foram detetadas no exame de rastreio.
Não existe, assim, qualquer omissão de pronúncia.
Termos em que igualmente naufraga esta questão.
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O arguido imputa ainda à decisão, que conheceu da nulidade que invocou, erro na aplicação da lei, concretamente que na decisão quanto à previamente alegada nulidade da prova obtida pelo exame de sangue realizado ao arguido, porquanto a mesma é tomada unicamente, não com base na prescrição e interpretação dos requisitos legalmente exigidos para a validade da prova, mas sim com base em considerações pessoais do Tribunal a quo, considerações estas que são contrárias às regras da experiência comum, violando assim a sentença o disposto nos artigos 125.º, 126.º, n.º 1, do CPP, dos artigos 29.º, n.º1, 32.º, n.º 8 e 203.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), e ainda, por referência ao disposto nos artigos 152.º, n.º1, 153.º, n.º 1 e 8, 156.º, n.º 1 e 2, 157.º, n.º1, 2, 6 e 7 do Código da Estrada (CE) e ao artigos 1.º, n.º 2 e 3, artigo 2.º, n.º 1, artigo 4.º, n.º 1, artigo 10.º e artigo 12.º da Lei n.º 18/2007 de 17 de Maio, bem como o artigo 16.º da Portaria n.º 902-B/2007;
O arguido não tem mais uma vez razão, sendo totalmente infundado o alegado.
Na verdade, como de resto se vê da mera leitura da decisão, o tribunal analisa os documentos incidentes sobre o acidente para perceber porque razão o arguido foi levado para o hospital e ser sujeito ao exame de sangue, concluindo como se lhe impõe, dos factos que apurou que o arguido, porque apresentava estar ferido não se encontrar em condições de ser sujeito aos exames de ar expirado.
E com acerto.
Os Senhores agentes de autoridade não são médicos, e mesmo estes em situações de acidentes de viação são muito cautelosos em fazer diagnósticos no local sem observação cuidada do doente no Hospital, como facilmente se percebe, pelo que estando alguém que acabou de sofrer um acidente de viação, com embate frontal, e a sangrar do nariz o que lhes é exigível é que não sujeitem o doente a um exame que sempre requer algum esforço a nível respiratório.
Isto não são convicções pessoais, são conhecimentos das regras da vida e da experiência comum que nos ajudam a interpretar os factos. Os factos são: acidente de viação, pessoa interveniente supostamente responsável ferida e a não realização de exame para pesquisa de álcool e substancias estupefacientes no sangue. As regras da experiência comum servem para avaliar e ajuizar da adequação da decisão de não realização do exame por ar expirado e da legalidade da realização dos exames de sangue.
Em momento algum da decisão é descortinável qualquer consideração pessoal ou convicção pessoal do Tribunal a quo. O que se verifica é uma análise dos factos de harmonia com as regras da experiência e da lógica e por isso em conformidade com a livre apreciação da prova consagrada no nosso sistema processual penal (art.º 127.º CPP).
Dito isto, em momento algum se verifica qualquer interpretação ou aplicação da lei violadora dos princípios ou comandos constitucionais.
A decisão tomada mostra-se corretamente tomada quer de facto quer de direito, nada mais nos restando que a ela aderir in totu considerando-se totalmente válida a realização dos exames sanguíneos nos termos e pelos fundamentos que ali se mostram exarados.
Termos em que igualmente naufraga esta questão.
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Finalmente apresenta impugnação da decisão quanto à matéria de facto julgada provada com relevância para a decisão quanto à nulidade da prova obtida (exame de sangue) – als. b), c), e), f) e g) (vd. página 3 da sentença)
Também nesta sede não tem razão o arguido.
De fls. 14 consta que o arguido foi sujeito a exame imunoensaio “biosynex multiline”, tendo-se apurado um resultado positivo a canabinóides e negativo a cocaína, opiáceos e anfetaminas. O arguido não coloca em causa que o fez, nem tão pouco o resultado. Sendo um teste de mero rastreio referência que é feita à sua realização no auto faz prova em juízo, não tendo o arguido invocado a sua falsidade nem demonstrado que não fez o teste de rastreio. Não é necessário apurar qualquer quantitativo, uma vez que de acordo com o art.º 10.º da na Lei n.º 18/2007, sob pena de cometer crime de desobediência – art.º 157.º, n.º 4 do Cód. Estrada e 22 da Portaria n.º 902-B/2007 de 13 de Abril, para a determinação da quantidade dos produtos estupefacientes é necessário, sempre, realizar os exames de sangue. O teste de rastreio não é suficiente para uma condenação, mas apenas legitimador para a realização dos exames de sangue.
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Defende ainda o arguido que deve ser dado como provado o facto negativo consistente na não realização por parte do arguido do exame de pesquisa de álcool no sangue através do ar expirado, defendendo ser essencial à decisão sobre a legalidade do exame de sangue realizado.
Salvo o devido respeito o facto em causa nada adianta já que ele é pressuposto da invocada nulidade e da decisão em crise, porquanto se analisa se no caso concreto é ou não legitima a realização dos exames de sangue sem a prévia realização daquele. São descritos os factos necessários para que se formule juízo sobre a legalidade ou não da realização do exame de sangue sem a sua prévia realização não se vendo qualquer necessidade ou utilidade de aditamento do facto em questão, não obstante estar demonstrado.
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DO RECURSO INCIDENTE SOBRE A SENTENÇA:
A matéria de facto considerada provada pela primeira instância é do seguinte teor:
4.FUNDAMENTAÇÃO 4.1. DE FACTO
4.1.1. FACTOS PROVADOS
Com interesse para a decisão da causa, resultaram provados do julgamento da causa os seguintes factos:
1. No dia 01/02/2019, cerca das 9h03, o arguido AA conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros de marca Volkswagen, modelo Polo, de matrícula ZZ-ZZ-ZZ, na Estrada Municipal 526, próximo do Km 5,120, no sentido Évora-Nossa Senhora de Machede, município de Évora, circulando pela hemi-faixa de rodagem da direita, atento o seu sentido de marcha.
2. No sentido contrário, Nossa Senhora de Machede-Évora, circulava EE ao volante do veículo ligeiro de passageiros de marca Opel, modelo Corsa, de matrícula XX-XX-XX, pertença de FF.
3. Naquele local, a Estrada Municipal 526 desenvolvia-se em recta, com uma ligeira curva à direita atento o sentido de marcha do arguido, era constituída por uma única faixa de rodagem com a largura de 6,20 metros, possuindo duas hemi-faixas de rodagem, uma afecta ao trânsito de veículos no sentido Évora-Nossa Senhora de Machede, e a outra afecta ao trânsito de veículos no sentido contrário, divididas por linha longitudinal contínua aposta no eixo da faixa de rodagem.
4. Existia boa visibilidade, estava bom tempo e existia pouco trânsito nos dois sentidos.
5. O piso encontrava-se húmido e em adequadas condições de conservação em ambas as hemi-faixas de rodagem, tratando-se de um piso em alcatrão, com as linhas demarcadoras visíveis no solo.
6. O arguido conduzia o veículo referido em 1) naquelas circunstâncias de tempo e lugar com uma taxa de álcool no sangue de, pelo menos, 1,05 g/l, correspondente à taxa registada de 1,20 gramas.
7. O arguido sabia que, por ter ingerido bebidas alcoólicas previamente ao início da condução, tinha uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1 g/l no momento da condução e, não obstante, decidiu conduzir aquela viatura nessas circunstâncias, aceitando essa influência.
8. Para além disso, o arguido conduzia aquele automóvel naquelas circunstâncias de tempo e lugar influenciado pelo consumo prévio de canabinóides, tendo sido detectada a presença no sangue de 16 ng/ml de 11-Nor-9-carboxi-D9-tetrahidrocanabinol (THCCOOH), 1,5 ng/ml quanto a 09-tetrahidrocanabinol e 0,8 ng/ml quanto a 11-hidroxi-D9-tetrahidrocanabinol (11-OH-THC).
9. Por força desses consumos e por se encontrar influenciado ao mesmo tempo pelas bebidas alcoólicas e pelo consumo de canabinóides, o arguido não encontrava em condições de executar, com segurança, tal condução uma vez que lhe reduziam consideravelmente as elementares faculdades psico-motoras necessárias ao exercício da condução automóvel, designadamente no que respeita à coordenação das funções de sensação, de percepção, de manter a atenção e à coordenação motora.
10. E, nem por isso, se absteve de conduzir aquele veículo nas circunstâncias acima referidas.
11. Por força daquela taxa de álcool no sangue e dos efeitos do consumo de canabinóides, o arguido encontrava-se prejudicado na sua capacidade de visão, atenção e de reflexos, não estando em condições de conduzir um veículo automóvel em segurança.
12. O arguido, ao chegar próximo do quilometro 5,120 daquela Estrada Municipal 526, porque conduzia aquele automóvel etilizado e diminuído nas suas capacidades, uma vez que conduzia afectado nestas, o arguido não fez qualquer manobra para realizar a curva que se apresentava para a sua direita e continuou a circular em frente, pelo que pisou e ultrapassou a linha longitudinal contínua aposta no eixo da faixa de rodagem e passou a circular na hemi-faixa contraria, destinada ao sentido Nossa Senhora Machede-Évora.
13. Em consequência do referido em 12), ao chegar junto da viatura de EE, por não se ter apercebido desta, o arguido não accionou os mecanismos de travagem de veículo e não desviou a trajetória deste de forma a conseguir desviar-se e passar a circular mais próximo do lado direito da faixa de rodagem atento o sentido de marcha seguido, e embateu com a frente da viatura que conduzia na frente da viatura conduzida por EE, no circunstancialismo referido em 1).
14. O embate ocorreu no interior da hemi-faixa onde circulava EE, sensivelmente a meio da mesma.
15. Em consequência directa e necessária daquela pancada, EE sofreu politraumatismo com fractura exposta supra - intercondiliana do fémur direito e ferida complexa da face lateral do joelho esquerdo com totura do retináculo externo do joelho e fibras do tendão quadricípite, fractura com esquirola óssea adjacente à asa direita do sacro, fractura dos ramos isquio e ilio-púbicos bilaterais fractura do colo do fémur esquerdo, com angulação dos topos osseos, diástase da sínfise púbica, fractura – luxação do pilão tibial esquerdo G.A., derrame perihepático e periesplénico com pequena laceração esplénica polo inferior, fractura bilateral do 1.º AC e 6° e 7° direito, lesões que determinaram 94 dias de doença, com afectação da capacidade de trabalho geral e da capacidade de trabalho profissional por igual período.
16. Como consequência directa e necessária do embate e daquelas lesões, EE ficou com as seguintes sequelas permanentes: status pós-fractura exposta supra– intercondiliana do fémur direito e ferida complexa da face lateral do joelho esquerdo com rotura do retináculo externo do joelho e fibras do tendão quadricípite, fractura com esquirola óssea adjacente à asa direita do sacro, fractura dos ramos ísquio e ilio-púbicos bilaterais, fractura do colo do fémur esquerdo, com angulação dos topos ósseos, diástase da sínfise púbica, fractura–luxação do pilão tibial esquerdo G.A. e fractura bilateral do 1.º AC e 6° e 7° direito.
17. Em consequência do derrame pericárdico e periesplénico com pequena laceração esplénica polo inferior, EE passou a sofrer de forma permanente de doença particularmente dolorosa.
18. Para além disso, em face das consequências sofridas, EE viu diminuída a sua capacidade de locomoção.
19. Caso o arguido seguisse sem estar influenciado por bebidas alcoólicas e por substâncias psicotrópicas, ter-se-ia dado conta da curva que se apresentou, de EE a circular na estrada na hemi-faixa contrária e das marcações existentes no solo, já que tinha espaço de visão livre e visível à sua frente, tendo, assim, capacidades pessoais para evitar o embate no mesmo, travando, abrando a velocidade do veículo e desviando o automóvel para a sua direita, de forma a contornar a curva e não embater no corpo de EE.
20. O arguido conduzia o referido veículo em violação do respectivo limite de taxa de álcool no sangue admitida e da proibição de não conduzir influenciado por estupefacientes, não observando os mais elementares cuidados no exercício da condução automóvel e, em consequência, provocou o acidente de que vieram a resultar ferimentos e consequências graves para EE.
21. O arguido conhecia a via pública que se desenvolvia no local do embate. 22. O arguido tinha a obrigação e a capacidade individual de evitar o embate.
23. O arguido sabia que a quantidade de álcool que havia ingerido momentos antes do acidente descrito lhe reduzia consideravelmente as elementares faculdades psico-motoras necessárias ao exercício da condução automóvel, designadamente no que respeita à coordenação das funções de sensação, de percepção e à coordenação motora e nem por isso se absteve de conduzir aquele veículo nas circunstâncias acima referidas.
24. Bem como sabia que o consumo prévio de estupefacientes tinha o mesmo efeito, referido em 23).
25. De facto, o arguido consciente do perigo inerente ao facto de ir conduzir veículo automóvel etilizado, admitiu que podia causar um acidente e provocar lesões no corpo de terceiros e fazer perigar a vida de terceiros, que circulavam nas vias públicas por onde o arguido viesse a circular, querendo actuar nos moldes descritos apesar de consciente do perigo criado e conformando-se com esse perigo, ainda que não se tenha conformado com a materialização de tal resultado, agindo na convicção que concluiria a viagem sem se envolver em qualquer acidente.
26. O arguido ao agir da forma supra descrita, em especial ao conduzir com uma taxa de álcool superior ao legalmente proibido, bem como ao criar o referido perigo, agiu livre, deliberada e conscientemente, sabendo que as suas condutas eram proibidas, punidas por lei e criminalmente punidas.
27. Ao não se aperceber da curva e da presença do veículo de EE, o arguido não manteve o veículo por si conduzido na hemi-faixa de rodagem que lhe estava destinada, tendo actuado de forma livre, imprevidente e sem o cuidado a que, segundo as circunstâncias, estava obrigado e de que era capaz, não tendo sequer representado a possibilidade de EE se encontrar naquele local e ser atingida, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
Ficaram ainda provados os seguintes factos relativamente à situação pessoal e económica do arguido:
28. O arguido não tem antecedentes criminais averbados no certificado de registo criminal.
29. Trabalha como operário fabril, auferindo mensalmente e em média a quantia de €825,00. 30. Reside com os pais e com o padrasto, contribuindo mensalmente e em média com a quantia de €200,00 para despesas do agregado familiar, o qual beneficia de um rendimento global (excluindo o do arguido) de cerca de €1500,00.
31. Completou o 12.º ano de escolaridade, tendo completado formação profissional em montagem de estruturas aeronáuticas e frequentado a licenciatura em gestão.
32. Não proprietário do veículo de matrícula YY-YY-YY e comproprietário de um imóvel.
33. É titular de carta de condução desde os 18 anos de idade.
34. O arguido nasceu num agregado composto por ambos os progenitores e pela irmã mais velha, tendo o casal parental separado-se aos 8 anos de idade do arguido, o qual passou a residir com exclusivamente com a progenitora e com a irmã, mantendo uma relação regular e de proximidade com o progenitor.
35. Quanto o arguido tinha 14 anos, a progenitora iniciou uma nova relação afectiva, constituindo o padrasto uma figura de referência no percurso e desenvolvimento do arguido, relação essa mantida igualmente com a sua irmã mais velha, com a qual mantém laços afectivos e contactos frequentes.
36. O arguido desenvolveu a sua personalidade, enquadrado em meio sócio habitacional de média condição económica, onde beneficiou de suporte afectivo e de estimulo à aquisição de competências académicas e profissionais, num ambiente transmissor de normas de conduta adequadas, favoráveis ao desenvolvimento pessoal.
37. Frequentou o espaço escolar até ao termo do 12º ano, sem quaisquer problemáticas de aprendizagem ou comportamentais.
38. Praticante de desporto desde os cinco anos de idade (futebol) tendo jogado como federado, perspectivava frequentar o curso superior de desporto, no qual não ingressou imediatamente, tendo frequentado, para não ficar inactivo, o curso de formação profissional de aeronáutica que completou com aproveitamento, sendo que, após período de estagio na Embraer, em Novembro de 2016, estabeleceu contrato a termo certo com esta mesma entidade, desempenhando funções como mecânico montador de estruturas até Junho de 2021 onde, na sequência de restruturação na empresa, rescindiu amigavelmente o vínculo passando a beneficiar de subsidio de desemprego.
39. Trabalhou entre Janeiro de 2022 e Maio de 2022 como operador ajudante no retalho alimentar, data em que iniciou funções como operador de montagem na empresa Macachrome Aeronautica, Unipessoal Lda.
40. O arguido sente a actividade profissional, inserida na sua área de formação como compensadora, contribuindo para a sua autonomia e valorização pessoal.
41. O arguido evidencia elevado sentido crítico, com assunção de responsabilidade perante os seus actos e repercussões dos mesmos, com clara noção dos valores pro-sociais.
42. Na sequência dos factos, recorreu a acompanhamento psiquiátrico a partir de 28/07/2021, o qual mantém, com recurso a terapêutica medicamentosa.
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Resultaram ainda demonstrados os seguintes factos emergentes da defesa do arguido:
43. No local onde ocorreu o embate e no referido circunstancialismo de tempo, o sol apresentava-se de frente no sentido de marcha por este adoptado.
44. A via referida em 1) apresenta um traçado algo sinuoso, composto por um conjunto de rectas, curvas e contracurvas, com especial intensidade junto à localidade de Nossa Senhora de Machede.
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4.1.2. FACTOS NÃO PROVADOS
Resultaram não provados os seguintes factos:
A. Que no circunstancialismo referido em 18), EE tenha deixado de conseguir estar em pé mais de uma dezena de minutos.
B. Que como consequência das sequelas permanentes referidas, EE tenha visto afectada, de forma grave e permanente, a sua capacidade de trabalho como exploradora de um estabelecimento comercial de bebidas e alimentos, por ter visto a sua capacidade de locomoção gravemente afectada com as limitações de locomoção, a permanência de fenómenos dolorosos e incapacidade de se manter em pé por período de tempo longos.
C. Que o arguido soubesse que o consumo de álcool conjuntamente com estupefacientes agravasse os efeitos provocados por ambas as substâncias.
D. Que o arguido tenha actuado nos termos referidos em 25) consciente que se encontrava diminuído nas suas capacidades pelo consumo de canabinóides
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Com interesse para a decisão da causa, não ficou por provar qualquer facto que, considerado o teor da acusação deduzida contra o arguido que se considerasse pertinente para aferir da responsabilidade criminal relativamente à prática dos crimes de que vem acusado.
O Tribunal promoveu, ainda, ao expurgo dos elementos meramente conclusivos, repetidos ou sem substrato fático relevante para a boa instrução da causa, bem como aqueles que por imperativo legal, não se pode prevalecer.
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4.2. MOTIVAÇÃO
A convicção do Tribunal em relação à factualidade acima descrita e considerada como provada e não provada resulta da análise conjugada e crítica do conjunto da prova emergente da instrução e discussão da causa, ponderada à luz das regras da experiência comum e valorada de acordo com a livre convicção do julgador, nos termos previstos do art. 127.º do Código de Processo Penal, salvo quando a lei atribui força probatória diversa a outro meio de prova.
Deste modo, considerando que os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de factos e de direito da decisão para que, deste modo, seja possível verificar as razões que conduziram à formulação do juízo – art. 97.º, n.º5 do Código de Processo Penal e art. 205.º, n.º1 da Constituição, bem como decidido pelo Acórdão da Relação do Porto de 09/12/2015, proc. 9/14.7T3ILH, rel. Eduarda Lobo -, consigna-se que o Tribunal fundou a convicção expressada na presente sentença na apreciação crítica da prova produzida na audiência de discussão e julgamento e constante dos autos, designadamente nas declarações prestadas pelo arguido AA, nos depoimentos prestados por EE, BB, FF, CC, DD, GG, as quais foram criticamente conjugados, entre o mais, com os seguintes meios de prova:
h) Auto de notícia da Guarda Nacional Republicana, de 05/04/2019, a fls. 3-4;
i) Participação de acidente de viação da Guarda Nacional Republicana, de 02/02/2019 a fls.5-6-s;
j) Croquis da Guarda Nacional Republicana, a fls. 7;
k) Aditamento à participação de acidente de viação da Guarda Nacional Republicana, de 05/04/2019, a fls. 8-9v;
l) Análise para quantificação da taxa de álcool no sangue n.º 171323, a fls. 13; m) Exame de confirmação de substâncias psicotrópicas n.º 0061992, a fls. 14;
n) Guia de entrega de kit de detenção de substâncias, a fls. 16;
o) Queixa de 31/07/2019, a fls. 55-80;
p) Elementos clínicos, a fls. 142-195;
q) Elementos de posicionamento solar, a fls. 199-200;
r) Informação da Guarda Nacional Republicana e auto de contra-ordenação anexo, a fls. 238-240; s) Informação prestada pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (registo individual de condutor) em 25/11/2016, a fls. 241;
t) Relatório táctico fotográfico, de 29/11/2019, a fls. 246-251; u) Croquis da Guarda Nacional Republicana, a fls. 252-253;
v) Impressões de Google Maps, a fls. 451-452;
w) Certificado de registo criminal, a fls. 529 x) Relatório social, a fls. 531 ss.
Foi igualmente considerada a seguinte prova pericial:
a) Relatório pericial n.º 19.000465.1 do INML, I.P. – Delegação do Sul, de 12/03/2019, a fls. 11-12 e 18-19;
b) Parecer do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, I.P., de 28/05/2019, a fls. 30-31;
c) Relatório de perícia médico-legal de avaliação de dano corporal n.º 2019/000770/EV-C, de 15/10/2019, a fls. 90-92 e complemento de fls. 349
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A convicção do Tribunal resultou, em especial, das declarações prestadas pelo arguido AA a respeito da sua situação pessoal, tendo merecido plena credibilidade nesse particular, em conjunto com o teor do relatório social, na falta de elementos probatórios que infirmem a adequação à realidade do relato considerado credível nesse particular.
No demais, prestou o arguido declarações em juízo, tendo, após ter assumido a ocorrência do acidente com o seu veículo, narrado que no dia anterior ao evento (dia este que refere ter sido uma sexta-feira) houvera trabalhado entre as 6h30m e as 15h30m na Embraer (equacionando, mas não concretizando, ter estado de folga), tendo decidido jantar com uns amigos na casa de um deles (em Évora) e, após, frequentado estabelecimentos de diversão nocturna, o que fez até 4h da madrugada, hora a que se dirigiu ao veículo que conduzia (e que se encontrava parqueado na Praça 1.º de Maio, em Évora) onde descansou até às 8h30m, hora que, após ter acordado com o sol, iniciou a condução em direcção a casa, sita em Nossa Senhora de Machede, tendo o embate ocorrido na Estrada Municipal que conduz a tal localidade. Declarou que o piso estava seco e o sol estava forte.
Narrou que efectivamente consumiu álcool nesta noite (quantidade de cerveja que não logrou quantificar), detalhando que deixou de beber pelas 3h00 da madrugada.
Questionado sobre o consumo de produtos estupefacientes, admitiu tem consumido duas ou três semanas antes do acidente conjuntamente com uns amigos, o que fez fumando a substância. Nega ter consumido no dia do evento e, ainda, ter voltado a conduzir, tendo explicando que nunca consumiu simultaneamente estupefacientes e álcool.
Instado, esclareceu que não se recorda da dinâmica anterior ao impacto dos veículos (do qual se recorda), detalhando que pese embora se lembre de ir na sua faixa de rodagem, apenas recuperou a consciência no hospital, tendo explicado ainda que o veículo que conduzia era seu, não se recordando de ter estado com a polícia no local do acidente. Esclareceu que conhece a pessoa envolvida no acidente por ser sua vizinha, tendo a situação gerado preocupação, razão pela qual se deslocou ao hospital no dia seguinte para saber do estado de saúde desta uma vez que houvera ficado em estado grave.
Declarou, ainda que conhece a estrada, a qual percorre habitualmente e há cerca de 7 anos, que descreve como dotada de curvas, contracurvas e algumas rectas, explicando ainda que, no período de manhã, o sol está tendencialmente de frente para quem circula em direcção a Nossa Senhora de Machede.
Mereceu credibilidade quando corroborado por outro meio probatório, nos termos que adiante se assinalam, atentas as características intrínsecas do relato produzido pelo arguido, o qual o dotam de fraca credibilidade.
EE, condutora do veículo de matrícula XX-XX-XX (que era seu e do marido), narrou que no dia do embate (do qual não se lembra), se encontrava a dirigir-se para Évora a partir de Nossa Senhora de Machede (via que afirma conhecer bem), tendo o acidente ocorrido em local onde existe uma pequena subida com um ligeiro desvio na via. Esclareceu que esteve três meses hospitalizada, não padecendo de problemas de saúde em momento prévio ao acidente.
A respeito das consequências do embate, narra que faz o seu dia-a-dia normalmente, tendo passado a apresentar algumas dificuldades em subir e descer escadas fruto da rigidez que sente no pé e perna esquerda. Nega sentir, actualmente, dores, ainda que tenha ficado com um conjunto de cicatrizes emergentes das cirurgias a que foi sujeita, nos pés, joelho e anca, considerando ainda que ficou psicologicamente afectada uma vez que inicialmente teve medo de voltar a conduzir, o qual acabou por ultrapassar.
Questionada sobre as consequências do acidente para a sua actividade profissional, explicou que consegue fazê-la normalmente, sem perda de capacidade, ainda que no final do dia a perna inche um pouco mais, o que implica eu tenha de descansar tempo superior. Afirma que beneficiou de apoio médico proporcionado pelo seguro.
Narrou que conhece o arguido há vários anos (por ser seu vizinho), o qual sempre a procurou após o acidente para lhe pedir desculpa, ainda que assuma que não o consegue perdoar na medida em que considera que poderia ter morrido ou ter sofrido lesões superiores no corpo. Declarou que o automóvel que conduzia ficou inutilizado.
BB, testemunha ocular, narrou que seguia atrás do veículo conduzido por EE, no sentido Nossa Senhora de Machede – Évora, tendo conseguido parar a sua marcha a tempo, detalhando que o embate ocorreu em local próximo da primeira localidade.
Explicou que observou um veículo a circular em contramão (na direcção Évora – Nossa Senhora de Machede utilizando a via de trânsito destinada ao sentido Nossa Senhora de Machede-Évora), explicando que o veículo (que ficou posteriormente a saber ser tripulado pelo arguido) não se apresentava descontrolado, circulava com uma marcha normal, apenas o fazendo em sentido contrário. Narra que se assustou com a situação, com a qual não contava, descrevendo o embate como muito violento.
Explicou que saiu do veículo para prestar socorro aos envolvidos, encontrando-se EE inconsciente no interior do veículo, debruçada para fora, narrando que tentou (mas não conseguiu) chamar o INEM, só tendo esta recuperado a consciência quando a emergência médica compareceu. Detalhou, ainda, que o arguido saiu pelo seu próprio pé do veículo e tentou ajudar EE, tendo sido impedido pelos demais presentes, explicando que o mesmo ficou transtornado quando reconheceu a identidade da vítima.
Esclareceu espontaneamente que o arguido exalava um odor a álcool e, ainda, que se apresentava atordoado pelo efeito do impacto (ainda apresentava um comportamento normal), ostentando sangue na zona do nariz, tendo o arguido verbalizado que se houvera deixado dormir, utilizando a expressão “passei pelas brasas” (sic).
Instada, explicou que aquando do embate estava sol, o qual se posicionava de frente no sentido de marcha que o arguido levava, o qual descreve como uma recta, detalhando que não seguia a velocidade superior a 90 km/h, tanto a própria como EE.
Mereceu plena credibilidade atento o modo objectivo, genuíno e detalhado como prestou declarações.
FF, proprietário do veículo marca Opel, modelo Corsa, e cônjuge de EE, explica ter percorrido a estrada para Évora antes da sua mulher, só tendo tido conhecimento do acidente por contacto telefónico, para onde se deslocou de imediato. Questionado sobre as alterações na vida desta, explicou que passou a ter algumas dificuldades no andar (visíveis a um observador) e a subir escadas, verbalizando que é uma sorte o acidente só ter gerado aquelas consequências, narrando ainda que esta se dedica à exploração de um café que funciona normalmente entre as 9h e as 20h/22h, sendo que quando regressa a casa, o faz com a perna inchada e com dores. Instado, esclareceu que não considera que tenha ficado psicologicamente afectada com o acidente, tendo prosseguido com a sua vida.
Refere que nas ocasiões em que o arguido falou sobre o acidente, pedindo desculpa, salientou a existência de cansaço, salientando ainda que a via apresenta algum trânsito no período da manhã, uma vez que os habitantes se deslocam para Évora, detalhando ainda que quem o faz, o sol se apresenta pela retaguarda.
Mereceu credibilidade a respeito dos factos directamente percepcionados atento o detalhe e carácter genuíno do relato.
CC, militar da GNR, narra que quando chegou ao local do embate os veículos ainda não tinham sido movimentados, encontrando-se os bombeiros no local a desencarcerar a vítima do sexo feminino. Narrou ter efectuado as medições que constam do expediente, detalhando ainda que as descrições que foram feitas do sinistro se adequam à realidade que observou no local, narrando ainda que os destroços que aí existiam permitiram estimar o ponto de impacto.
Esclareceu que, no local do acidente, logrou conversar com o arguido, o qual lhe comunicou que houvera saído ligeiramente da faixa de rodagem.
Instado, esclareceu que o controlo de substâncias foi pedido a outros militares, que acompanharam os intervenientes ao hospital, o que foi determinado uma vez que havia um ferido grave, explicando que, no caso do arguido, foi produzida a despistagem de psicotrópicos através da urina e que tendo esta sido positiva, foi efectuada a colheita de sangue, tendo ambos os exames sido realizados no hospital, explicando que a despistagem ao álcool não foi feita uma vez que o arguido já se encontrava nas instalações do hospital.
Mereceu credibilidade aos factos directamente percepcionados.
DD, militar da GNR, explicou que acorreu ao local do embate, tendo colaborado na regularização do trânsito e, ainda, na recolha de medidas do local. Detalhou que não se recorda de ter ocorrido grande interacção com os intervenientes, sendo que não se recorda de observar alterações comportamentais. Descreveu a via onde ocorreu o embate como uma estrada um pouco sinuosa, detalhando que no local do embate existe uma curva, sendo local de alguns acidentes.
Mereceu credibilidade aos factos directamente percepcionados.
Por fim, GG, residente em Nossa Senhora de Machede, narrou não ser observado o acidente, ocorrido quase à saída da localidade, explicando que, nesse dia e quando se encontrava a caminho de Évora, viu a sua cunhada BB quando esta se encontrava a fechar o portão de casa. Descreveu que no percurso efectuado na estrada se cruzou com um veículo que circulava quase fora-de-mão (um Volkswagen Polo cinzento, que seguia em direcção a Nossa Senhora de Machede, a cerca de 3 ou 4 km da localidade e a cerca de 2 km do local do embate), tendo tido a necessidade de se desviar para evitar um acidente, sendo que, por preocupação com a sua cunhada, decidiu ligar-lhe para a avisar para a necessidade de ter especial cuidado, não tendo conseguido que esta atendesse o telefone. Detalhou que quando chegou a Évora se cruzou (na rotunda da BP) com o veículo de desencarceramento dos Bombeiros.
Descreveu a via como uma estrada movimentada dada a quantidade de pessoas que trabalha em Évora.
Explicou que sabe onde foi o local do embate uma vez que viu os destroços posteriormente, descrevendo o lugar como um sítio onde existe uma ligeira subida, detalhando que desconhece a identidade do condutor.
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Aqui chegados e tendo em consideração a prova produzida, verifica o Tribunal que, tendo em consideração os diversos meios probatórios, a prova produzida descreve, com necessárias diferenças de perspectiva, uma única e a mesma realidade a respeito do embate ocorrido entre o veículo conduzido pelo arguido e aquele que era tripulado por EE, restando, no entanto, a discussão acerca das circunstâncias da ocorrência do embate.
Ora, neste particular e tendo em consideração na natureza dos factos imputados, mostram-se particularmente relevantes as declarações trazidas a juízo pelo arguido na medida em que, em síntese, a imputação realizada depende, por um lado, das condutas praticadas em momento anterior ao embate (não havendo prova, para além das declarações do arguido, de tal vivência) e, por outro lado, a dinâmica da sua ocorrência e às consequências os elementos probatórios se mostram mais ricos.
Todavia, as declarações prestadas pelo arguido (que decidiu pronunciar-se acerca da factualidade imputada), pelo modo como decorreram, não se mostraram genuínas e detalhadas, oferecendo mais dúvidas que certezas a respeito do seu teor. Pese embora o arguido tenha narrado toda a dinâmica que antecedeu o embate (o qual assumiu) e ainda que tenha revelado que efectivamente houvera consumido bebidas alcoólicas na noite que antecedeu (cerveja, no caso) e canábis numa ocasião que coloca no tempo há duas ou três semanas, a verdade é que o discurso do arguido se apresentou sempre algo titubeante e pouco assertivo, tendo provocado no espírito do julgador mais dúvidas que certezas a respeito da sua ocorrência.
É certo que resulta das regras de experiência comum que o facto de ser participante num embate com elevada carga cinética corresponde a um evento traumático, apto a perturbar a memória do arguido tanto no que respeita ao momento inicial como posterior (veja-se a ocorrência de circunstância idêntica em EE). Tal contexto permitiria compreender a existência de declarações menos assertivas ou, até, lacunas de memória a respeito da dinâmica do evento.
No entanto, tal já não justificaria que o discurso reunisse essas características quanto a outros aspectos particulares, mormente no que respeita ao enquadramento prévio ao sinistro, faltando ao arguido, no seu relato, a assertividade e o detalhe de quem se encontra a responder com verdade.
Dois exemplos: narrou o arguido que houvera trabalhado entre as 6h30m e as 15h30m do dia anterior ao embate que, diz, foi um sábado.
Contudo, quando confrontado com o dia da semana em que o embate houvera ocorrido (sendo que é objectivo que o acidente tenha ocorrido em 1/02/2019, uma sexta-feira, dados os elementos documentais constantes dos autos, mormente o auto de notícia, participação de acidente e, ainda, os registos de entrada do arguido e de EE no serviço de urgência hospitalar), referiu o arguido, na mesma narrativa, que trabalhou e que se encontrou de folga no dia 30/01/2019 e, ainda, que saiu de sexta-feira para sábado (quando, na verdade, o embate ocorreu na manhã de sexta-feira, o que determina que o dia anterior tenha sido quinta-feira).
Ora, sendo as aludidas realidades mutuamente excludentes, impõe-se concluir que o discurso trazido pelo arguido não se mostra intrinsecamente coerente, o que determina a existência de especiais cautelas na sua valoração.
Segundo exemplo: pretendendo o arguido prestar declarações, iniciou o Tribunal por formular, ao arguido, uma pergunta aberta, destinada à contextualização do objecto dos autos, perguntando-lhe, no fundo, o que aconteceu, o que corresponde ou não à verdade nos factos imputados.
A esta pergunta, respondeu o arguido que teve um acidente, que nesse dia trabalhou, que tinha ido jantar e sair com uns amigos, que descansou umas horas no caso antes de voltar a conduzir, “com cuidado” (sic).
Mais tarde, instado pelo Senhor Procurador da República a esclarecer os motivos pelos quais decidiu descansar no carro, respondeu o arguido “saímos da noite, àquela hora, depois eu disse que queria descansar para o carro, queria ir para a minha casa e fui descansar para o carro. Acordei de manhã já com o sol, vi que estava consciente e bem e fiz o caminho” (sic).
Ora, o estilo de discurso apresentado pelo arguido (até pelas palavras utilizadas) corresponde, na verdade, a uma racionalização da dinâmica, numa resposta patentemente ensaiada. Repare-se, por um lado, a despersonalização do arguido no seu próprio relato (disse que queria ir descansar, mas foi? Decidiu mesmo ir, esteve a descansar?), sendo que notar que o arguido, para responder a uma pergunta directa (as motivações para a decisão de descansar), teve a necessidade de retomar a narrativa no momento inicial para, então, responder à pergunta, o que acabou por não fazer!
Para a resposta à pergunta “porque decidiu descansar?” aventam-se várias hipóteses: estava cansado, tinha sono, tinha consumido álcool em quantidade relevante e imaginava como possível que pudesse apresentar uma taxa de alcoolemia relevante, estava embriagado, não se sentiu em condições físicas ou emocionais para tripular. É evidente que tem de haver uma resposta à referida pergunta, na medida em que nenhum cidadão medianamente integrado (o vulgo homem médio) decide pernoitar, durante 4 horas, num carro, no mês de Janeiro, início de Fevereiro, época do ano onde as temperaturas no período nocturno em Évora se apresentam tendencialmente próximas de zero graus centígrados, temperaturas estas impeditivas do sono.
Como se aqueceu o arguido? Manteve o veículo ligado e o seu aquecimento?
Nada detalha o arguido nesse particular, sendo um discurso verídico rico em detalhe, o que não é o caso.
Se conjugarmos as referidas lacunas de solidez do discurso com a necessidade de exprimir cinematograficamente a sua narrativa (ou seja, do princípio para o fim), sem que tenha a capacidade de se movimentar na dinâmica dos factos sem retomar o seu início, bem como a necessidade de frisar que actuou com cuidado, havendo claras diferenças de fluência de discurso (variando o arguido a velocidade das respostas que deu consoante os temas abordados), impõe-se concluir que, ao arguido, falta o detalhe e a consistência de quem responde com verdade, razões que determinam que o Tribunal valore o relato apenas na medida em que se mostre corroborado por outros meios probatórios, bem como pelas regras de experiência comum.
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Concretizando a apreciação crítica da prova, a factualidade provada resultou dos seguintes elementos:
Os factos 1) e 2) resultaram demonstrados a partir da conjugação crítica do teor do auto de notícia, participação de acidente de viação e, ainda, da conjugação das declarações uniformes do arguido, EE, BB, CC e GG. A respeito da propriedade do veículo de matrícula XX-XX-XX, foi dado prevalência ao elemento documental face às declarações de EE, as quais se entendem à luz de um sentido sociológico (mas não jurídico) da propriedade enquanto bem do casal, mas que, na verdade, se mostrava atribuído a FF.
O facto 3) resultou demonstrado da conjugação do teor do auto de notícia, participação de acidente de viação. croquis de fls 7 e 252-253, elementos de posicionamento solar e relatório táctico fotográfico, bem como o relato de DD sendo que os aludidos elementos permitem, para além de qualquer dúvida, descrever o local como uma curva, ainda que pouco acentuada, circunstância que justifica, devido à visibilidade do local, a sua descrição (pouco adequada à realidade) por BB como uma recta. A conformação da faixa de rodagem e das marcas rodoviárias resulta demonstrado dos aludidos elementos documentais.
Os factos 4) e 5) resultam demonstrado da conjugação dos elementos documentais (auto de notícia e participação, bem como croquis), o que se coaduna com o relato do arguido a respeito da existência de sol (o qual é, ainda, corroborado pela demais prova produzida), bem como pelas declarações de BB (testemunha ocular do embate) e de GG, as quais narraram os eventos que presenciaram sem que tenham aludido a qualquer limitação visual. Da prova produzida não resultou demonstrado que existisse uma especial afluência de tráfego, narrando BB que o seu veículo tinha, apenas, o veículo de EE.
O facto 6) resulta demonstrado da conjugação das declarações do arguido e de BB (a respeito da condução do veículo pelo primeiro), sendo que a taxa de alcoolemia resulta do teor do exame pericial realizado ao sangue do arguido, cuja validade probatória foi anteriormente apreciada.
O facto 7) resultou demonstrado a partir das declarações prestadas pelo arguido (julgadas credíveis nesse particular, uma vez que se coadunam com o teor do relatório pericial, que atesta o consumo de bebidas alcoólicas dada a taxa detectada), inferindo-se, ainda, a partir das regras de experiência, tendo em consideração a factualidade objectiva apurada. Da prova produzida resulta demonstrado que o arguido, pelas 12h50m (hora da recolha de sangue) apresentava uma taxa de alcoolemia juridicamente valorável de 1,05 g/l. Resulta do conhecimento funcional do Tribunal, fruto do contacto com diversos relatórios periciais produzidos pelo INMLCF, I.P. a esse respeito, bem como pela informação publicamente divulgada pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária a esse propósito, que, em média, o corpo humano logra eliminar, em média, 0,15 g/l, sendo prudente inferir, do conjunto dos dois elementos (taxa de alcoolemia detectada e, ainda, taxa de eliminação de álcool do sangue) e tendo ainda em consideração as declarações do arguido [que, recorde-se, afirmou que deixou de beber pelas 3h e se deslocou para o seu veículo pelas 4h] aquando da alegada deslocação do arguido para o seu veículo, pelas 4h00, a taxa de alcoolemia apresentada pelo arguido seria cerca de 1,2 g/l superior àquela de foi detectada (tendo em consideração que entre as 4h e as 12h decorreram 8h, um corpo humano médio teria a capacidade de eliminar o equivalente a 1,2 g/l - 0,15 g/l * 8 horas. Sendo superior em, aproximadamente, 1,2 g/l e tendo em consideração a taxa de alcoolemia de detectada [ de 1,05 g/l], é prudente concluir, à luz das regras de normalidade que o arguido apresentava pelas 4h uma taxa de alcoolemia que se aproximaria de 2 g/l. Ora, o volume de bebidas alcoólicas consumidas pelo arguido – que assume ter sido cerveja, bebida com um volume médio de 5% e que, por conseguinte, implica uma ingestão de volume superior a bebidas com teor alcoólico acrescido, como é o caso do vinho e de bebidas espirituosas, o que determina, também, a aceitação daquele resultado atenta a quantidade – necessário para produzir uma taxa próxima dos 2 g/l pelas 4h00 implica como consequência necessária que o arguido, pelas 8h30m e após ter descansado 4h30m, tenha concebido como possível – e aceitado – que ainda se encontrasse influenciado por uma taxa de alcoolemia significativamente elevada, o que concebeu, aceitou e aconteceu.
O facto 8) resultou demonstrado a partir do relatório pericial, o qual permitiu a detecção da concentração de canabinóides, nas referidas tipologias e quantitativos. No que respeita à influência de canabinóides na condução automóvel e tendo presente o teor do relatório pericial do INMLIC, I.P. – inexistindo qualquer elemento objectivo que permita o seu afastamento enquanto elemento probatório com a respectiva valia -, informa a aludida entidade que a presença de THC e do metabolito activo 11-OH-THC é susceptível de afectar as capacidades cognitivas e psicomotoras necessárias à condução, mormente o controlo motor, a velocidade psicomotora, impulsividade motora, processamento visual, tempo de reacção, precisão, percepção e atenção dividida, inexistindo consenso científico a respeito do período de tempo em que perduram esses efeitos. Sem prejuízo do referido, a existência de concentrações entre 2 e 5 ng/ml estejam associadas a uma deterioração substancial do desempenho, casos existem em que as alterações podem ocorrer com concentrações inferiores a 1 ng/ml, sendo certo que, conforme resulta da aludida informação pericial, os efeitos incapacitantes permanecem ainda que a substância activa não seja detectável, ainda que, como margem de segurança, as concentrações limites estabelecidas nos países europeus, no que respeita à concentração de THC, se encontre fixada entre 1 ng/ml e 3 ng/ml, razão pela qual a existência, no sangue, de uma concentração de 1,5 ng/ml e de etanol no sangue de 1,05 g/l permite concluir, sem dúvida, que tais consumos potenciam os efeitos negativos de cada uma das substâncias, constituindo, por isso, factor de risco de acidente e de impairment incompatível com a condução em segurança. Dito isto, impõe-se concluir que, naquele concreto contexto, fruto (também) da potenciação gerada pelo etanol, o arguido actuava influenciado pelo consumo prévio de canabinóides. Saliente-se que pese embora os estudos apresentados pelo arguido em sede de contestação (que sugerem, em tese, a verificação dos primeiros efeitos na capacidade de condução na presença de concentrações superiores a 2 ng/ml de THC, a verdade é que, em concreto, o INMLCF, I.P. logrou pronunciar-se, em concreto, a cerca da situação do arguido, tendo presente os demais compostos existentes no seu corpo, um dos quais apto a potenciar a perda das capacidades de condução, quer por si, quer através da associação com o THC, havendo, por conseguinte, de concluir no sentido exposto, acerca da condução sob influência do consumo prévio de canabinóides (que o arguido assume, apenas colocando no tempo em momento anterior).
O facto 9) resulta demonstrado da conjugação dos relatórios periciais, seja no que respeita à presença de álcool ou estupefacientes, sendo que se reproduz o acima ficou dito nos factos e7) e 8) quanto às consequências da presença das aludidas substâncias para a diminuição das capacidades psicomotoras necessárias à prática da actividade de condução, as quais resultam, ademais, das regras de experiência comum – os efeitos do álcool e estupefacientes no corpo humano, enquanto agentes diminuidores das capacidades necessárias à prática da condução encontram-se sobejamente divulgadas na comunidade, seja no que respeita à diminuição da capacidade visual e reflexos, bem como coordenação motora, aumentando significativamente o tempo de reacção do condutor.
Os factos 10) e 11) resultam demonstrados da conjugação dos factos apurados, a saber, a realização da actividade condução pelo arguido (que este assumiu e foi afirmada, entre outros, por BB), tendo resultado demonstrado que o arguido actuou sabendo as condições físicas em que se encontrava, na sequência de ter procedido ao consumo de álcool em momento temporalmente próximo e de canabinóides em momento temporalmente não apurado. No demais, encontram respaldo nos aludidos relatórios periciais cujo teor não foi infirmado por qualquer meio probatório a respeito dos efeitos produzidos pelo álcool conjuntamente com estupefacientes no corpo.
Os factos 12) e 13) resultaram demonstrados da conjugação do auto de notícia, participação, croquis e, ainda, do teor das declarações de BB, a qual asseverou que o arguido circulava no sentido Évora – Nossa Senhora de Machede na via destinada ao trânsito no sentido Nossa Senhora de Machede – Évora. Remete-se para o que anteriormente se assentou a respeito da verificação da existência de álcool no sangue e para a consequente diminuição das capacidades emergentes da posse de substâncias no sangue naquele concreto contexto. A dinâmica de circulação resultou demonstrada a partir da conjugação do auto de notícia, participação e croquis, sendo ainda confirmada por BB. Salienta-se ainda o relato trazido por GG a respeito da circunstância de se ter cruzado com veículo de características idênticas às do arguido (VW Polo cinzento) o qual circulava, também, em desrespeito pelas marcas rodoviárias e que a obrigou a desviar-se do mesmo. A citada dinâmica coaduna-se, ainda, à luz das regras de normalidade (e com o relato de BB) com os elementos objectivos colhidos na sequência do embate. Neste particular, os elementos probatórios recolhidos pelos militares da GNR que prestaram declarações permitiram concluir que efectivamente não foi realizada, pelo arguido, qualquer manobra destinada a frear a sua marcha ou evitar o embate, tendo tal inacção determinado a ocorrência do embate no local onde acabou por se verificar.
O facto 14) resulta das declarações prestadas por CC, DD, BB, auto de notícia, participação, croquis e, ainda, reportagem fotográfica dos veículos, o que permite concluir que o embate ocorreu na via de trânsito onde circulava EE.
Os factos 15) a 17) resultam demonstrados a partir da conjugação crítica do teor do relatório pericial de avaliação de dano corporal, bem assim como os elementos clínicos constantes dos autos.
O facto 18) foi directamente percepcionado pelo Tribunal (o qual logrou observar as dificuldades de locomoção de EE, que coxeia), as quais foram ainda corroboradas pelas declarações desta e de FF.
O facto 19) resulta demonstrado, por um lado, a partir da factualidade objectivamente demonstrada e, por outro, a partir das regras de experiência comum. Ora, dada a conformação da via, a curva onde ocorreu o acidente corresponde a uma suave modificação, à direita, do traçado da vida, inexistindo qualquer modificação brusca deste. Ora, tendo o impacto ocorrido na via de trânsito de sentido contrário e tendo em consideração que o arguido circulava influenciado por duas substâncias aptas a limitar a sua capacidade para tripular máquinas, dados os efeitos produzidos no corpo humano, impõe-se concluir, à luz das regras de normalidade, que caso o arguido se encontrasse na integral posse das suas capacidades físicas, motoras e intelectuais (uma vez que se tratava, também, de uma estrada que este bem conhecida), teria sido capaz de descrever a aludida curva e/ou imobilizar ou corrigir a marcha do veículo.
O facto 20) resulta demonstrado a partir dos factos objectivos dados como provados porquanto resultou demonstrado que o arguido circulou com o referido veículo na posse de uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida e, ainda, influenciado por estupefacientes no sangue, não tendo actuado com o cuidado que era capaz e lhe era exigido, mormente mantendo o veículo em circulação na faixa destinada ao seu destino, consubstanciando uma violação grosseira dos deveres de cuidado estradais a circulação não autorizada por via destinada à circulação de sentido diverso, tendo tal comportamento culminado no embate da viatura por si tripulada na viatura conduzida por EE, o qual determinou as lesões por esta sofridas.
O facto 21) resultou demonstrado a partir das declarações do arguido, as quais se coadunam de acordo com as regras de experiência comum uma vez que o arguido, residindo em Nossa Senhora de Machede e consubstanciando Évora o principal agregado populacional atractivo da população, se impõe concluir que o arguido, condutor desde os 18 anos de idade, já percorreu a referida estrada várias dezenas de vezes, o que o dota de um particular conhecimento da sua conformação.
O facto 22) resulta das regras de experiência comum, tendo em consideração a concreta conformação da via, o conhecimento pelo arguido da mesma e, ainda, a sua experiência como condutor (desde os 18 anos de idade), impondo-se concluir que o arguido, conhecedor das normas legais (uma vez que se encontra legalmente habilitado para conduzir e tal conhecimento corresponde a um conteúdo essencial para a sua obtenção), circulou por faixa destinada ao trânsito de veículos em sentido contrário ao por si prosseguido e, ainda, que tinha a capacidade individual para evitar o embate, seja mantendo o seu veículo na via de trânsito destinado ao seu percurso, direccionando o veículo noutra direcção ou freando a marcha, o que não fez atento o modo como se desenvolveu o embate, inexistindo indícios que permitam concluir que o arguido realizou qualquer manobra destinada a evitar o embate.
O facto 23) resultou demonstrado a partir da factualidade objectiva demonstrada (dando por reproduzido o que acima de lavrou a respeito dos factos 7) e 8), sendo certo que resulta das regras de experiência comum que a ingestão de bebidas alcoólicas que permita a obtenção do resultado quantitativo demonstrado, bastantes horas após o termo da ingestão, conforme narrado pelo arguido, implica a cognoscibilidade das consequências emergentes desse facto, sendo conhecimento comum da comunidade (e do arguido, na medida em que tal conhecimento consubstancia conteúdo elementar na formação ministrada para a titularidade de carta de condução) os efeitos que o álcool prova no corpo enquanto agente entorpecedor das capacidades psíquicas e motoras, as quais impactam negativamente na capacidade de conduzir, o que se extrai, igualmente, do conhecimento da proibição legal para conduzir sob influência de álcool.
O facto 24) resulta demonstrado à luz das regras de experiência comum, na medida em que o arguido, tendo procedido ao consumo de produtos estupefacientes, é conhecedor dos efeitos que este produz no corpo humano, os quais impactam negativamente na capacidade de conduzir.
Os factos 25) a 27) resultaram demonstrados a partir da factualidade objectiva julgada provada, resultando demonstrado que o arguido se encontrava consciente do perigo que resulta, em abstracto, da condução com uma taxa de alcoolemia significativa e, uma vez conhecedor dos consumos que anteriormente realizou (os quais se inferem, à luz das regras de normalidade, da taxa de alcoolemia detectada e tendo em consideração o momento temporal entre a colheita ao sangue foi feita), decidiu ainda assim empreender na actividade, ainda que não se tenha conformado com a materialização desse perigo (tendo confiado – mal – que não se iria envolver em qualquer sinistro rodoviário), decidiu empreender a conduta em causa, gerando um perigo acrescido para si e demais utentes da via, aceitando tal resultado como produto da sua conduta, o que fez por sua própria iniciativa, com o escopo de chegar a casa, conhecendo o carácter ilícito da sua conduta porquanto, condutor encartado, lhe foi ministrada a formação teórica acerca das normas reguladoras da circulação terrestre, aí se incluindo a proibição de circular num especial estado de perigosidade provocado pelo álcool, o seu carácter ilícito e o sancionamento penal. Resultou ainda demonstrado, a partir dos elementos probatórios (documentais e testemunhais – recordando-se, novamente, os depoimentos de BB e GG a respeito da condução efectuada pelo arguido) que o mesmo adoptou uma tripulação imprevidente do veículo, ao não o ter mantido na sua via de trânsito, ao ter permitido que o veículo ingressasse na via de trânsito de sentido inverso e, ainda, ao não ter adoptado qualquer manobra destinada a evitar o embate, o arguido, que era capaz de adoptar comportamento diverso (o qual lhe permitiu chegar àquele local), não o fez por falta de cuidado, sabendo que tal determinava o preenchimento de um ilícito.
O facto 28) resulta do teor do certificado de registo criminal.
Os factos 29) a 42) resultaram da conjugação das declarações prestadas pelo arguido em juízo com o teor do relatório social produzido pela Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais para determinação de sanção, o qual não foi infirmado por qualquer meio probatório.
O facto 43) resultou demonstrado da conjugação das declarações do arguido com o relato, entre o mais, de FF (uniforme nesse particular), o que se conjuga ainda com os elementos documentais a fls. 199-200, os quais corroboram tal versão.
O facto 44) resulta da análise dos elementos documentais oferecidos pelo arguido (a fls. 451-452) e que se mostra corroborado ainda pelos depoimentos trazidos a juízo pelos utentes da via (em concreto, o arguido, EE, BB, FF e GG) que, pese embora as diferenças de perspectiva, vertem uma e a mesma versão, a existência de um percurso dinâmico no seu traçado.
Os factos A) e B) resultaram não provados porquanto foi directamente infirmado pelas declarações de EE, em sentido contrário e que não se coaduna com a demonstração do facto imputado. Recorde-se, neste propósito, o relato da citada testemunha bem como de FF, tendo ambos continuado a continuidade da actividade da primeira, tendo descrito as consequências resultantes do acidente com um acréscimo do inchaço do membro inferior no final do dia.
Não foi produzida prova a respeito do conhecimento, pelo arguido, do agravamento ou potenciação recíproca dos efeitos provocados pelo álcool e pela ingestão de produtos estupefacientes, razão pela qual, dado que o facto apresenta natureza subjectiva e não se logrando demonstrar qualquer elemento que permita indirectamente extrair tal conclusão, implica que se julgue o como não provado o facto C). O mesmo se refira a respeito do facto D) na medida em que não resultou demonstrado que o arguido tenha actuado sabendo que se encontrava sob efeito de substâncias estupefacientes. É certo que o arguido tinha conhecimento da realização de consumos. Contudo, dada a baixa concentração presente no seu organismo, no que respeita aos componentes 09-tetrahidrocanabinol (1,5 ng/ml e 11-hidroxi-D9-tetrahidrocanabinol (0,8 ng/ml), afigura-se inverosímil que os consumos tivessem sido recentes e que, por isso, o arguido tivesse conhecimento que actuava (também) sob influência de produtos estupefacientes e não do álcool, razão pela qual se impõe julgar não provada a aludida factualidade subjectiva.
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- Do erro de julgamento previsto no art.º 412.º, n.ºs 3 e 4 do CPP:
Analisemos agora a impugnação da matéria de facto realizada pelo arguido com fundamento no invocado art.º 412.º, n.ºs 3 e 4 do CPP.
Cumpre antes mais referir que o recurso da matéria de facto não está previsto na lei como um direito ilimitado tendente à reapreciação do julgamento ou repetição do julgamento na segunda instância. Este recurso foi concebido e deve ser usado como remédio jurídico quando o julgamento realizado seja manifestamente erróneo. Deste modo, o tribunal de recurso apenas intervém de forma a corrigir erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, devendo proceder à sua correção se for caso disso. Não se trata, pois, de um novo julgamento da matéria de facto, antes sendo a forma de sanar os vícios de julgamento em primeira instância, como sejam, erro manifesto no julgamento no caso em que se dê como provado facto com base em depoimento de testemunha que não o afirmou, ou com base em depoimento de testemunha que declarar algo que apenas lhe foi relatado por terceiro, ou ainda com base em valoração de prova proibida, etc. Sobre o erro de julgamento, conceito e limites, o Ac. da Relação de Lisboa de 04-02-2016, Proc. n.º 23/14.2PCOER.L1-9, Relator Antero Luís, disponível in www.dgsi.pt.
O recurso da matéria de facto não se destina, assim, a postergar o princípio da livre apreciação da prova, com consagração expressa no artigo 127º do C. Processo Penal.
A livre apreciação da prova é indissociável da oralidade e imediação com que decorre o julgamento em primeira instância. Aquela tem por limites as regras da experiência comum e a obediência à lógica, sendo que, se face à prova produzida, for possível mais do que uma conclusão, a decisão do Tribunal a quo que, devidamente fundamentada, se basear numa das possíveis, é válida.
Ora, o erro de julgamento pode suscitar dois tipos de recurso, embora com alcances diferentes e não confundíveis:
- um com fundamento no próprio texto da decisão, por ocorrência dos vícios a que alude o artº 410º/2 do C.P.P (impugnação em sentido estrito);
- e outro que visa a reapreciação da prova produzida, ao abrigo do artº 412º/3 do C.P.P (impugnação em sentido lato).
O recorrente parece lançar mão dos dois.
Dispõe o nº 3 do artigo 412º, do Código de Processo Penal, relativo à impugnação em sentido lato “Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) as provas que devem ser renovadas”.
Da análise deste preceito legal resulta que o recorrente, quando impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto nos termos do art.º 412º do C.P.P, tem que especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, bem como indicar as provas que, no seu entendimento, impunham decisão diversa da recorrida e aquelas que devem ser renovadas.
No presente caso, o arguido recorrente fez referência aos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, quer os factos considerados provados para conhecimento da nulidade da prova pericial apreciada pelo tribunal a quo como questão prévia quer os factos respeitantes ao ilícito cuja prática lhe foi imputada.
Todavia, não indicou qual a prova que impõe decisão diversa da tomada pelo Tribunal a quo. Ou seja, não indica qual o meio de prova na qual o tribunal se baseou mas que contradiz o que o tribunal lhe atribui, já que, como se disse, só nestes casos nos encontramos perante um erro de julgamento: o tribunal erradamente valora uma prova em contrário do que dela resulta, porque a testemunha o não afirmou ou afirmou o contrário do que lhe é atribuído, porque o documento não respeita ao facto que com base nele se julgou provado, ou o seu conteúdo é oposto do que se lhe atribui, ou porque se baseou em prova proibida.
Nada disto se verifica. O que se passa é que o arguido não concorda com a valoração que o tribunal a quo da prova, apresentando a sua própria leitura da prova.
Aliás, de toda a sua motivação e respetivas conclusões é claro que a razão da discordância do arguido, relativamente à matéria de facto considerada provada, assenta numa diversa valoração da prova realizada por si, pretendendo fazer vingar essa sua avaliação sobre a convicção do tribunal. Ou seja, o que está em causa é uma discordância relativamente à convicção do tribunal e não um erro de julgamento que possa ser reparado através da análise de meios de prova concretos, nos termos do disposto no art.º 412.º, n.ºs 3 e 4 do CPP, que aliás não indica, não cumprindo, por isso, os necessários pressupostos legais.
Com efeito, determina a norma indicada 4 - Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
Por sua vez, determina o 364.º, n.º 3 - Quando houver lugar a registo áudio ou audiovisual devem ser consignados na ata o início e o termo de cada um dos atos enunciados no número anterior.
Se é um facto que indica alguns documentos, a verdade é que não existe qualquer desconformidade entre o que os mesmos atestam e o que lhes é atribuído pelo tribunal a quo, como se vê da análise do doc. De fls. 14 (não obstante ter sido consultado no Citius é visível a sua numeração e encontra-se junto logo no início do processo eletrónico com a participação apresentada pela GNR de Portel.
Assim, não se mostram preenchidos os pressupostos de que depende o recurso de impugnação ao abrigo do disposto no art.º 412.º, n.º 3 e 4 do CPP. Aliás, do teor do recurso apresentado é óbvio que não se verifica qualquer erro de julgamento que pudesse ser solucionado através deste meio recursivo.
Como se adiantou já o que o arguido acaba por colocar em causa é a formação da convicção do tribunal como se verifica das suas motivações e conclusões.
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– Dos vícios previstos no n.º 2 do art.º 410.º do CPP:
Resulta da letra do artigo referido que qualquer dos vícios a que alude o seu nº 2 tem de dimanar da própria decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso, portanto, a quaisquer elementos externos à decisão, designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo durante o inquérito ou a instrução, ou até mesmo o julgamento, sendo que, por regras da experiência comum deverá entender-se as máximas da experiência que todo o homem de formação média conhece.
“A insuficiência para a decisão, da matéria de facto a que se reporta a alínea a) do nº 2 do art.º 410º do C.P.P é um vício que ocorre quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito encontrada, porque não foi investigada toda a matéria de facto com relevo para a decisão da causa. Ou seja, esta insuficiência só existe quando a matéria de facto não é suficiente a decisão de direito encontrada.
O vício só ocorre quando o Tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria de facto relevante, de tal forma que essa materialidade não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à sua apreciação, por faltarem elementos necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição (cf. Acórdão do S.T.J de 15.1.98 processo 1075/97 acessível em www.dgsi.pt).
Por outras palavras, os factos provados são insuficientes para fundamentar a solução de direito encontrada, sendo que no cumprimento do dever da descoberta da verdade material, o Tribunal poderia e deveria ter procedido a mais profunda averiguação, de modo a alcançar, justificadamente, a solução legal e justa (cf. Acs. do S.T.J de 20.4.2006 no proc. nº 06P363 e de 16.4.1999 em www.dgsi.pt e Ac. do S.T.J de 2.6.99, proc.288/99, acessível em www.dgsi.pt).
Ou seja, a “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, ocorre quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito alcançada pelo tribunal a quo e ainda o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão, podendo fazê-lo. Esta falta de investigação de factos com relevância para a decisão não se pode confundir com insuficiência da prova para a matéria de facto provada que apenas pode ser atacada por via da impugnação de facto, através dos competentes recursos. Assim, para que se verifique este vício é necessário que a matéria de facto dada como provada não permita uma decisão de direito, necessitando de ser completada (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, pag.339/340).
Como se verifica da decisão recorrida a mesma não enferma da nulidade apontada, desde logo porque o que na verdade o arguido defende é que não foi produzida prova que permitisse dar como provados os factos assim julgados. Ora, como se disse, insuficiência de factos para a decisão não se confunde com insuficiência de prova para o julgamento dos factos provados.
Não existe, pois, a nulidade apontada. Os factos apurados são mais do que suficientes para a decisão de direito encontrada.
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Contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão
Por sua vez o vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão [al. b)], consiste na incompatibilidade entre os factos provados e os não provados, ou entre eles e a fundamentação, ou entre esta e a decisão, isto é quando o mesmo facto é julgado provado e não provado, ou julgados provados factos incompatíveis entre si, e ainda quando o facto considerado provado ou não provado estiver em contradição ou incompatível com a sua fundamentação. Dito de outro modo, como se decidiu no Ac. do STJ de 18/03/2004, Proc. nº 03P3566, citado por Vinício Ribeiro, Código de Processo Penal, Notas e Comentários, Coimbra Editora, 2008, págs. 914/915, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, apenas se verificará quando, analisada a matéria de facto, se chegue a conclusões irredutíveis entre si e que não possam ser ultrapassadas ainda que com recurso ao contexto da decisão no seu todo ou às regras da experiência comum” (Ac. Relação de Lisboa, de 30-10-2018, Proc. 672/17.7IDLSB.L1-5, Relator Artur Vargues, disponível in http://www.dgsi.pt).
Analisada a decisão, não se vislumbra qualquer contradição entre os factos provados e não provados, entre qualquer destes e a fundamentação ou entre os factos provados e as conclusões ou apreciações de direito.
Defende o arguido que existe contradição entre os factos:
4. Existia boa visibilidade, estava bom tempo e existia pouco trânsito nos dois sentidos.
5. O piso encontrava-se húmido (…).
43. No local onde ocorreu o embate e no referido circunstancialismo de tempo, o sol apresentava-se de frente no sentido de marcha por este adoptado.
44. A via (…) apresenta um traçado algo sinuoso, composto por um conjunto de rectas, curvas e contracurvas, com especial intensidade junto à localidade de Nossa Senhora de Machede.
22. O arguido tinha a obrigação e a capacidade individual de evitar o embate.
Defendendo que a contradição em que o Tribunal a quo labora quanto as estes factos é manifesta e desde logo evidente pela sua leitura. Com efeito, e salvo o devido respeito, as regras da lógica e da experiência comum impõem que não se possa considerar simultaneamente que “existe boa visibilidade” e que, ao mesmo tempo e no mesmo local, “o sol apresentava-se de frente” no sentido de marcha do condutor/arguido (principalmente o sol daquela hora da manhã, naquela altura do ano).
Salvo o devido respeito os factos em si mesmos não são contraditórios, nem se afigura existir qualquer contradição. O arguido o que parece defender é que o facto considerado 4 não o deveria ter sido pelas razões que alega. Do texto da decisão conclui-se que não existia qualquer objeto ou veículo que impedisse a visibilidade do arguido. O sol de frente pode afetar a visão do arguido e não a visibilidade. Mas tendo em conta que os factos correram em fevereiro e pela manhã, não obstante o sol estar de frente para o arguido, nada nos permite concluir que o arguido não conseguia ver e que foi por causa do sol e não do álcool e da substancia que tinha no seu organismo que invadiu a faixa de rodagem por onde circulava, em sentido contrário o veículo no qual embateu.
Do mesmo modo e no que respeita ao traçado da via, ao contrário do que defende, a circunstância de uma estrada ser composta por retas, curvas e contracurvas não significa que não tenha boa visibilidade. Tudo depende do grau da curva. Ou seja, não se verifica qualquer contradição.
Nem o facto de o estado do tempo ser bom e o piso estar húmido, já que sendo inverno o sol não é muito forte, podendo àquela hora existir efetivamente humidade na estrada.
Por outro lado a contradição que defende existir entre os factos provados 7 a 12, 19 a 27 e os não provados C e D não existe qualquer contradição. Na verdade, o que apenas é considerado não provado é que o arguido tivesse consciência de que o consumo de álcool conjuntamente com estupefacientes agravasse os efeitos provocados por ambas as substâncias.
Tal como considerou não provado Que o arguido tenha actuado nos termos referidos em 25) consciente que se encontrava diminuído nas suas capacidades pelo consumo de canabinóides.
Tanto que no facto descrito sob o n.º 26 apenas se refere ao consumo do álcool 26. O arguido ao agir da forma supra descrita, em especial ao conduzir com uma taxa de álcool superior ao legalmente proibido, bem como ao criar o referido perigo, agiu livre, deliberada e conscientemente, sabendo que as suas condutas eram proibidas, punidas por lei e criminalmente punidas.
A redação não é sem dúvida a melhor, mas a contradição é apenas aparente, resultando da análise de todos os factos a consciência do seu estado que se considerou provada relativamente aos consumos que o arguido havia realizado.
Relativamente á contradição apontada entre os factos 17 e 18 e não provado B é óbvio e patente que ela não se verifica, bastando ler cuidadosamente os factos em questão.
Ataca ainda o arguido a decisão imputando-lhe mais uma contradição, que não se consegue perceber nem acompanhar, mas que termina imputando á decisão uma confusão entre as diversas modalidades do dolo e ainda que na sentença não é referido a que titulo agiu o arguido, dolo direto, necessário ou eventual.
Analisada uma vez mais a decisão e os segmentos indicados não vislumbramos qualquer contradição. Relativamente à questão do dolo a mesma será apreciada adiante quando se analisar a questão relacionada com a qualificação jurídica dos factos.

- Do erro notório na apreciação da prova, art.º 410.º, n.º 2, al. c) do CPP
Improcedendo a impugnação da matéria de facto, nos termos do disposto no artº 412º nºs 3 e 4 do C. P. Penal, pode ainda este Tribunal de Relação proceder à modificação da decisão proferida em sede de matéria de facto se se verificarem os vícios a que alude o nº 2 do artº 410º do C. P. Penal, invocados, aliás pelo arguido.
Analisada a sentença de que se recorre impõe-se concluir pela inexistência na decisão recorrida de quaisquer dos vícios enunciados no aludido preceito.
Debrucemo-nos mais em pormenor sobre o vício previsto no artº 410º/2/c) do C.P.P. de erro notório na apreciação da prova.
Tal vício, configura-se quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária ou visivelmente violadora do sentido da decisão e/ou das regras de experiência comum. E tem, pois, que resultar impreterivelmente do próprio teor da sentença; existindo este erro, quando considerado o texto da decisão recorrida por si só ou conjugado com as regras de experiência comum se evidencia um erro de tal modo patente que não escapa à observação do cidadão comum ou do jurista com preparação normal.
Ocorre este vício quando se dão por provados factos que face às regras de experiência comum e à lógica normal, traduzem uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável e por isso incorreta, quando resulta do próprio texto da motivação da aquisição probatória que foram violadas as regras do “in dúbio” (cfr Ac. do S.T.J de 24.3.2004 proferido no processo nº 03P4043 em www.dgsi.pt, Ac. do S.T.J 3.3.1999 in proc 98P930 e Ac. da Rel. Guimarães de 27.4.2006 in proc. 625/06) ou quando se violam as regras sobre prova vinculada ou de “leges artis” (cfr Ac. da Rel.Porto de 2.2.2005 no proc.0413844 e da Rel.Guimarães de 27.6.2005 no proc. 895/05-1ª).
Da leitura atenta do texto da sentença recorrida em especial da matéria de facto provada e não provada que aí é descrita, bem como da parte relativa à respetiva fundamentação, o que se pode constatar com clareza e desde já, é que a análise crítica da prova e a decisão de facto constante da decisão e a sua motivação/justificação está bem assente nas regras da experiência comum e da lógica.
Não houve da parte do Tribunal a quo qualquer falha ou desrespeito das regras legais e dos princípios gerais de direito na valoração da prova, não padecendo, por isso, a decisão de qualquer erro na apreciação da prova.
Os factos resultaram provados porque o Tribunal, analisando a prova produzida de harmonia com a lei se convenceu que eles assim ocorreram.
Deste modo, a convicção do Tribunal a quo afigura-se-nos ter sido uma convicção racional, que foi formada de acordo com os critérios lógicos e objetivos, com respeito pelo princípio da livre apreciação da prova consagrado no artº 127º do C.P.P – ao abrigo do qual toda a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
Dito de outro modo, o Tribunal ao valorar como valorou a prova produzida em audiência, mais concretamente as declarações do arguido e depoimentos das testemunhas em conjugação com os documentos expressamente indicados na motivação de facto, não violou qualquer regra da experiência ou da lógica. Valorou como devia a prova pericial. Do mesmo modo que valorou livremente as declarações e depoimentos, revelando que uns lhe mereceram maior credibilidade que outros, o que fez em conjugação com os documentos juntos aos autos. E está tudo conforme com o princípio da livre convicção do julgador consagrado no art.º 127.º do CPP, uma vez que o valor da prova não depende da sua natureza, mas sobretudo da credibilidade que se confere às mesmas, credibilidade que, no caso, está conforme com a prova objetiva dos autos.
Como se disse já, resulta claramente da leitura das motivações do recurso do arguido e das suas conclusões, que este no fundo, tal como já acima se disse, discorda é da convicção do Tribunal a quo e pretende fazer vingar a sua visão sobre a prova produzida e os factos que se devem dar como provados e como não provados.
De acordo com o princípio da livre apreciação da prova que domina o nosso sistema (por oposição ao regime da prova legal) não existem normas que determinam o valor ou a eficácia probatória a atribuir a cada meio probatório.
Nessa medida a atribuição de maior força a um meio de prova depende apenas da convicção do julgador, desde que se mostre de acordo com a experiência comum.
O Tribunal a quo é sempre o que se encontra mais apto para apreciar a prova, pois é este que ouve e vê as testemunhas, as suas reações, as suas pausas, os seus gestos.
O local e o momento onde por excelência se aferem e podem ser apreciadas valorativamente e criticamente as provas, é a audiência e julgamento em que o julgador dispõe de melhores condições para apreciar de perto a prova que se vai produzindo (princípio da imediação da prova), ou a falta dessa prova.
No caso em apreço, dissemos já, porque assim consideramos, a decisão recorrida, encontra-se bem fundamentada, oferecendo um raciocínio linear, lógico e percetível, não se vislumbrando qualquer incorreta apreciação da prova, nomeadamente quanto à medida e extensão da credibilidade que lhe mereceram as declarações e depoimentos prestados em conjugação com a análise das demais provas e regras da experiência comum.
Como é do conhecimento geral e já acima ficou dito, a prova é apreciada de acordo com o princípio da livre apreciação da prova consignado no artº 127º do C.P.P onde claramente se pode ler “…a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
Estamos, pois, em sede de um certo poder discricionário do Juiz, que “só pode ser atacado em função de vícios típicos endógenos da sentença ou erros de direito, ou claros erros de julgamento”, os quais no caso presente não existem.
Nada, pois, a apontar ao processo de valoração da prova feita pelo Tribunal a quo, já que o mesmo não se baseou em provas proibidas ou a métodos proibidos de prova, violando qualquer das regras que disciplinam esta matéria nos artigos 124º a 139º do C.P.P e conduzindo por essa via a uma prova ilegal.
Não padece, pois, a decisão recorrida do vício previsto na alínea c) do nº 2 do artº 410º do C. P. Penal (erro notório na apreciação da prova).
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- Se foi violado o princípio in dubio pro reo
Da violação do princípio “In dubio pro reo”
Relacionado com a valoração da prova alegou o arguido existência da violação do princípio do “in dubio pro reo”. O MP, e bem, rebateu a tese do arguido.
O princípio in dubio pro reo tem aplicação na apreciação da prova, impondo que, em caso de dúvida insuperável ou razoável sobre a valoração da prova, se decida sempre a matéria de facto, no sentido que mais favorecer o arguido. No processo penal o ónus da prova dos elementos constitutivos do tipo ilícito penalmente previsto pertence à acusação, como bem nota o recorrente. Não provando a acusação de forma sem margem para dúvidas os factos que imputa ao arguido, a prova deve ser valorada a favor deste. Este princípio está intimamente ligado ao princípio da culpa em Direito Penal, por isso, corolário lógico do princípio da presunção de inocência do arguido.
Assim, a violação de tal princípio só existiria se o Tribunal de julgamento reconhecendo a dúvida, ainda assim condenasse o arguido. Contudo, o Tribunal a quo refere na sua motivação de facto que ficou convencido, pelas razões que aí descreve, que o arguido praticou os factos que considerou provados. Sem dúvidas. E da análise quer da decisão quer da fundamentação de facto, já acima concluímos que a prova produzida e contraditada foi apreciada conjunta e criticamente, nenhum reparo nos merecendo a decisão de facto.
Não basta que exista prova pericial, depoimentos ou documentos que ao recorrente não mereça credibilidade, para simplesmente se concluir que a sua valoração pelo Tribunal redundou na violação do princípio “in dubio pro reo”.
Uma coisa é a dúvida do recorrente, outra, a do julgador, e só a dúvida deste impõe a aplicação de tal princípio.
Termos em que improcede o recurso interposto.
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- Se os elementos constitutivos do crime de condução perigosa de veículo rodoviário não se encontram preenchidos;
O Tribunal a quo qualificou os factos considerados provados do seguinte modo:
Aqui chegados, cabe enquadrar juridicamente os factos ao Direito em face das normas vigentes, subsumindo-se os mesmos.
O arguido vem acusado da prática de um crime, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução perigosa de veículo, previsto e punido pelo artigos 291º, n.º 1, al. a), 294.º, n.º3, 285.º e 144.º, al. b) e c), ainda, nos termos do artigo 69.º, n.º 1, al. a), do Código Penal com pena acessória de proibição de condução de veículos a motor.
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Estabelece aquele artigo 291º, n.º 1 do Código Penal que “quem conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada (…) não estando em condições de o fazer com segurança por se encontrar em estado de embriaguez ou sob influência de álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo, ou por deficiência física ou psíquica ou fadiga excessiva; e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa”.
Entende-se, no seguimento do que escreve PAULA RIBEIRO DE FARIA no Comentário Conimbricense ao Código Penal, II, 1079-1080, que o bem jurídico em primeira linha tutelado por esta disposição legal é a segurança do tráfego rodoviário enquanto bem jurídico de natureza complexa, “punindo todas aquelas condutas que se mostrem susceptíveis de lesar a segurança deste tipo de circulação e, que ao mesmo tempo, coloquem em perigo a vida, a integridade física ou bens patrimoniais alheios de valor elevado”.
Noutro prisma mas coincidente, consideram MIGUEZ GARCIA e CASTELA RIO que se protege com a norma a vida, a integridade física e o património alheio, sendo, na verdade, as referidas manifestações que integram a segurança no tráfego rodoviário – Código penal – parte geral e parte especial com notas e comentários, 3.ª, 1264.
O crime de condução perigosa de veículo rodoviário é, assim, um crime de perigo concreto, cuja consumação, para além da condução de um veículo em violação das condições de segurança ou de regras estradais, depende da efectiva criação de um perigo para a vida, integridade física ou bens patrimoniais de elevado valor (cfr. neste sentido, MARQUES DA SILVA, Crimes Rodoviários, Pena Acessória e Medidas de Segurança, Lisboa, 1996, Universidade Católica Portuguesa).
Assim, não basta ao preenchimento do tipo legal, a insegurança na condução, ou a violação grosseira das regras de circulação rodoviária, tornando-se necessário, que da análise das circunstâncias do caso concreto, se deduza a ocorrência desse mesmo perigo.
Ora, ensina FARIA COSTA (O Perigo em Direito Penal, Coimbra Ed., 1992, 620 ss.) que, “os crimes de perigo concreto representam a figura de um ilícito - típico em que o perigo é, justamente, elemento desse mesmo ilícito - típico, enquanto nos crimes de perigo abstrato o perigo não é elemento do tipo, mas tão só motivação do legislador”.
São elementos do tipo objectivo do crime de condução perigosa de veículo rodoviário:
a) o acto de condução de um veículo com ou sem motor (o que se basta com a colocação do veículo em circulação, sendo indiferente o tempo e a distância percorrida);
b) a circulação do veículo em via pública, ou seja, em “via de comunicação terrestre afecta ao trânsito público” (cfr. o artigo 1.º, al. x) do Código da Estrada) ou numa via equiparada a via pública, entendida como “via de comunicação terrestre do domínio privado aberto ao trânsito público” (cfr. o artigo 1.º, al. v) do Código da Estrada);
c) a falta de condições para conduzir em segurança; ou,
d) a violação grosseira de regras de circulação rodoviária relativas às concretas manifestações de regras estradais, ou seja, a respeito à prioridade, à obrigação de parar, à ultrapassagem, à mudança de direcção, à passagem de peões, à inversão do sentido de marcha em auto-estradas ou em estradas fora de povoações, à marcha atrás em auto-estradas ou em estradas fora de povoações, ao limite de velocidade ou à obrigatoriedade de circular na faixa de rodagem da direita; e, ainda,
e) a criação de perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado.
Precise-se que o preenchimento deste tipo legal de crime exige, assim, não apenas uma infracção das referidas normas de circulação mas antes uma violação grosseira dessas mesmas regras, ou seja, “um grau especial de violação de deveres de condução, susceptível de traduzir o carácter particularmente perigoso do comportamento para a segurança do tráfego e para os bens jurídicos pessoais envolvidos” (cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, II, Coimbra, Coimbra Editora, 1066) e não a mera violação da norma: é assim uma violação qualificada.
Em termos subjectivos, tal ilícito pode ser imputado a título de dolo - isto é, o facto (a condução sem as condições de o fazer em segurança ou com violação grosseira das mais elementares regras da circulação rodoviária) e o acto de condução na via pública - é representado e querido pelo agente que tem consciência do acto que pratica e quer praticá-lo, conduzindo dessa forma e tendo consciência de que conduz por forma a pôr em perigo a vida, a integridade física ou bens de valor elevado de outrem, e ainda assim, quer conduzir, praticando o facto - ou a título de mera negligência - ou seja, o agente devia representar essa possibilidade de realização do facto típico e não o faz, ou fá-lo, mas actua sem se conformar com a sua realização.
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A punição da sobredita conduta é, ainda, agravada em um terço no que respeita aos limites mínimos e máximos das penas aplicáveis (pena principal e pena acessória, na medida em que na literalidade do preceito se inscrevem ambas as penas por referência ao tipo de ilícito), com fundamento na acumulação de infracções (vd. MIGUEZ GARCIA/CASTELA RIO,– Código penal – parte geral e parte especial com notas e comentários, 3.ª, 1274 ss.) por intermédio do disposto no artigo 294.º, n.º1 e 3 do Código Penal, quando resultar demonstrado que da prática do ilícito resultou a morte o ofensa à integridade física grave de outra pessoa (artigo 285.º do Código Penal).
Nos termos do disposto no artigo 144.º do Código Penal, consubstancia ofensa à integridade física grave, entre outros, a afectação do corpo ou saúde de um cidadão quando da mesma resulte a retirada ou afectação, de maneira grave, da capacidade de trabalho, das capacidades intelectuais, de procriação ou de fruição sexual, ou da possibilidade de utilizar o corpo, os sentidos ou a linguagem (artigo 144.º, al. b) do Código Penal) ou, ainda, a acção ilícita provoque doença particularmente dolorosa ou permanente, ou anomalia psíquica grave ou incurável (artigo 144.º, n.º c) do Código Penal).
Recorde-se que, no entanto, nos termos previstos no artigo 18.º do Código Penal, “quando a pena aplicável a um facto for agravada em função da produção de um resultado, a agravação é sempre condicionada pela possibilidade de imputação desse resultado ao agente pelo menos a título de negligência”.
O aludido crime é, ainda, punido nos termos do 69.º, n.º1, al. a) do Código Penal através da pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor por período fixado entre 3 meses e 3 anos, susceptível de agravação, verificados os pressupostos, nos termos conjugados dos arts. 69.º, n.º1, al. a), 291.º, n.º1, 294.º, n.º1 e 3 e 285.º do Código Penal, em um terço nos seus limites máximos e mínimos.
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Revertendo ao caso dos autos, resultou demonstrado que o arguido, na data e hora apurada conduzia, em via de natureza pública, um veículo automóvel (marca Volkswagen, modelo Polo, de cor cinzenta) e, conhecendo que não estava em condições de o fazer em condições de segurança uma vez que tinha ingerido bebidas alcoólicas em quantidade (volume) susceptível de limitar as suas capacidades para tripular veículos, atenta a taxa de alcoolemia detectada, e que esse consumo o limitava efectivamente nas aptidões necessárias à circulação rodoviária (mormente a sua capacidade visual, reflexos e raciocínio), decidiu conduzir o veículo na via pública, sabendo que com a sua conduta criava perigo para todos os utentes da via (o que sabia, tendo em consideração que o arguido tinha conhecimento que actuava num estado especial de perigosidade proporcionado pelo álcool, atenta a concentração corporal), sendo que, nessa sequência, passou a circular em via de trânsito destinada à circulação ao sentido inverso ao por si percorrido, não tendo logrado manter o veículo na sua via e, ainda, imobilizá-lo atempadamente, tendo desse modo atingido o veículo tripulado por EE, concretizando assim o perigo gerado pela condução sob efeito do álcool, violando as normas estradais e a integridade física da referida pessoa.
Resultou demonstrado que o arguido agiu de modo intencional, isto é, conduzindo o veículo quando não se encontrava em condições de o fazer em segurança (por influência de álcool e canabinóides, os quais reduziram significativamente a sua capacidade de tripular o veículo, ainda que, a respeito destes últimos, dado que o arguido o desconhecia, não lhe pode ser subjectivamente imputada a prática da factualidade a respeito a existência de produtos estupefacientes em sistema, ainda que objectivamente lá estivessem), conformando-se (ainda que julgasse que o mesmo não se viesse a concretizar) com a geração do perigo originado pela presença de álcool no sangue, que veio a ocorrer, conhecedor do carácter ilícito da conduta que praticava, sendo que tinha capacidade para actuar de modo diverso e não o fez.
Do julgamento da causa resultou ainda demonstrado que o arguido, em função da sua conduta, causou de modo directo e necessário em EE um conjunto de lesões físicas e danos corporais, melhores descritos nos factos 15) e 16) da factualidade provada, tendo passado a padecer de doença particularmente dolosa em função do derrame pericárdico e periesplénico com pequena laceração esplénica polo inferior, tendo-se visto diminuída na sua capacidade de locomoção em função das lesões sofridas, as quais consubstanciam causa directa e necessária da conduta do arguido, o qual não observou os deveres de cuidado que lhe estavam legalmente impostos (os que regulam a circulação rodoviária), que este conhecia e conseguia cumprir.
Contudo, não resultou demonstrado que o arguido tenha, com a sua conduta, afectado de maneira grave a capacidade de trabalho, capacidades intelectuais ou outras, dado que a ofendida continua como até então a exercer a sua actividade profissional.
Aqui chegados, não emergindo da factualidade provada o preenchimento de qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, já que o arguido não agiu no exercício de um direito ou no cumprimento de um dever nem coagido por uma situação apta a desculpar a sua conduta, julga-se demonstrado o preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos do ilícito em causa e, consequentemente, a prática pelo arguido, a título doloso, como autor material e na forma consumada, de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário agravado, previsto e punido pelos artigos 291º, n.º 1 al. a) 294.º, n.º 3, 285.º e 144.º, al. c) do Código Penal, sendo absolvido pela prática nos termos do artigo 144.º, al. b) do Código Penal.
Quid iuris?
Analisados os factos considerados provados, que estão definitivamente assentes dado o não provimento das questões suscitadas pelo arguido relacionadas com nulidades e o julgamento de facto, não temos dúvidas em concluir que a qualificação jurídica operada pela primeira instância não enferma de qualquer erro, mostrando-se totalmente preenchidos os elementos constitutivos do tipo legal de crime imputado ao arguido: o crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p.p. pelo art.º 291.º, n.º 1 , al.s a) e b) do CP.
Note-se que o arguido ao defender que os elementos constitutivos não se mostram preenchidos, quer os objetivos quer os subjetivos parte do pressuposto que a sua tese obtém colhimento. Todavia, como se viu, improcederam as questões relacionadas com o julgamento da matéria de facto pelo que, estando os factos assentes tal como julgados pela primeira instância, a subsunção jurídica apenas poderia concluir pelo preenchimento do referido crime de condução perigosa de veículo rodoviário.
Não obstante afigura-se-nos necessário esclarecer que a condução sob o efeito do álcool é dolosa, embora a mesma apenas possa ser imputada ao arguido a título eventual, já que sabendo que havia consumido bebidas alcoólicas, sabendo que as mesmas diminuem as capacidades e a atenção necessária ao exercício da condução automóvel, tinha como teve necessariamente que representar o resultado tendo-se conformado com o mesmo já que, apesar de tal consumo e conhecimento decidiu, quis e conduziu.
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Da medida da pena
Defende o arguido que a pena concretamente aplicável é excessiva, não tendo o Tribunal a quo ponderado todos os elementos necessárias à determinação da medida da pena, violando o disposto no artigo 71.º do CP, devendo por isso ser reduzida; e por fim, a decisão proferida quanto à não substituição da pena é extemporânea, violando o disposto nos artigos 48.º, n.º 1 e 58.º, n.º 1 do CP.
O tribunal a quo justificou a determinação da pena que decidiu aplicar ao arguido nos seguintes termos:

6. DA PENA
6.1. ESCOLHA DA PENA E DETERMINAÇÃO DA SUA MEDIDA

Demonstrado que ficou o preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime, importa determinar a pena aplicável ao arguido e o seu quantum – art. 71.º, n.º3 e art. 375.º, n.º1 do Código Penal.
O crime de condução perigosa de veículo rodoviário agravado, previsto pelo artigo 291.º, n.º1, al. a) do Código Penal, é punido nos termos conjugados dos artigos 294.º, n.º 3, 285.º e 144.º, al. c) do Código Penal com pena de multa de 13 a 480 dias ou com pena de prisão de 40 dias a 4 anos de prisão – arts. 41.º, n.º1 e 47.º, n.º1 do Código Penal -, bem como na pena acessória de conduzir veículos a motor pelo período de 4 meses a 4 anos, atenta a agravação resultante dos artigos 294.º, n.º3 e 285.º do Código Penal.
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Estabelece o art. 40.º, n.º 1 do Código Penal, que a finalidade primeira das penas se centra na tutela dos bens jurídicos, devendo resultar da sua aplicação a tutela das expectativas da comunidade na manutenção da validade da norma violada, sem procurar assegurar, na medida do possível, a reinserção social do arguido, ou seja, as exigências de prevenção e de repressão geral da criminalidade, por um lado, e, por outro, as exigências específicas de socialização e de prevenção da prática de novos crimes.
Acresce que, nos termos do n.º 2 do mesmo preceito, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa, encontrando-se assim a moldura concreta da pena balizada, no âmbito da moldura abstracta do ilícito, pelas necessidades de prevenção geral (no que respeita à reafirmação da norma violada) e da culpa do agente – art. 40.º e 71.º do Código Penal -, devendo, na determinação da pena concretamente aplicável, atender “a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele” – art. 71.º, n.º2 do Código Penal.
Estabelece ainda a lei, no art. 70.º do Código Penal, um princípio de preferência pela aplicação de pena não privativa de liberdade face à pena privativa de liberdade quando ao crime sejam aplicáveis penas de ambas naturezas e a pena não privativa assegure igualmente as finalidades de punição.
Revertendo ao caso, resulta da norma incriminadora que, ao ilícito típico praticado pelo arguido é aplicável, em alternativa, pena de prisão ou de multa porquanto, no que tange à escolha da pena, se impõe a ponderação na escolha da pena, considerando que deve ser dada prevalência à pena de multa, quando atentas as finalidades previstas no artigo 40.º, do Código Penal, a protecção de bens jurídicos e a ressocialização, esta medida se mostre suficiente e adequada.
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No que respeita às exigências de prevenção geral, na vertente de defesa do ordenamento jurídico e tutela da expectativa da comunidade na norma e considerando que o tipo em causa se destinam a tutelar bens jurídicos de natureza pública – a segurança no tráfego rodoviário enquanto meio de protecção da vida, integridade física e interesses patrimoniais dos membros da comunidade - identificam-se elevadas necessidades de prevenção geral, tendo em consideração a frequência com que estes tipos de crimes são praticados, o que transmite para a comunidade e inculca nesta uma ideia de desconsideração do respeito pela norma que urge combater.
A ocorrência dos mencionados crimes, ainda que apresente prevalência descendente de acordo com os dados disponibilizados em https://estatisticas.justica.gov.pt/, coloca em crise, de modo sensível, a protecção multipolar dos bens jurídicos tutelados pela norma, atenta a danosidade potencial da conduta em si mesma e das consequências que o mesmo poderá gerar. Assim, a manifestação judicial destes crime (saliente-se que no decurso do ano de 2020 foram condenadas 261 pessoas pelo aludido crime, o que compara com 342 condenações no ano anterior) é reveladora do crescimento de um sentimento de desrespeito e indiferença pela norma jurídica que se vem enraizando na comunidade e que deve ser impedido.
No que respeita às exigências de prevenção especial, estas são medianas considerando que o arguido não tem antecedentes criminais pela prática de crimes semelhantes, se encontra social e profissionalmente integrado, ainda que se tenha determinado de modo consciente e firme na prática do ilícito criminal.
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Tudo ponderado, entende o Tribunal que as exigências preventivas, tanto da comunidade como do arguido, permitem a aplicação de uma pena não privativa da liberdade porquanto considera este Tribunal que, conforme estatui o art. 70.º do Código Penal, a aplicação de uma pena não privativa de liberdade permite a realização de um juízo de prognose favorável quanto ao direccionamento do arguido ao cumprimento da norma.
Opta o Tribunal pela aplicação de uma pena de multa.
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Ao determinar a medida da pena, deve o Tribunal, dentro dos limites legalmente determinados, atender à culpa do agente e às exigências de prevenção que, no caso em concreto, se colocam – art. 71.º, n.º1 do Código Penal.
No que respeita à medida concreta da pena a aplicar ao arguido, tendo em consideração as circunstâncias que não integram o tipo mas que correspondem a factores favoráveis ou desfavoráveis para o agente, exige-se a ponderação da situação em concreto e do facto atendendo às circunstâncias que possam depor a favor e contra o agente, as quais se encontram elencadas exemplificativamente no n.º2 do artigo 71.º do Código Penal.
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Revertendo ao caso e ponderando a concreta medida da pena a aplicar ao agente, cabe apreciar os seguintes aspectos:
i. Grau de ilicitude do facto: elevado, considerado o manifesto desrespeito pela norma e os bens jurídicos afectados pela sua conduta – segurança rodoviária, em concreto, património e integridade física, tendo ainda em consideração a taxa de alcoolemia detectada, potenciada ainda por estupefacientes (cujo conhecimento da presença em sistema não se apurou);
ii. Modo de execução: o arguido actuou, conduzindo o veículo em via de natureza rural, o que incrementa o risco de lesão dos bens que a norma pretende proteger atenta a velocidade normalmente imprimida e a relevância para os bens jurídicos que a norma visa proteger, sem o cuidado adequado ao especial estado de perigosidade que ostentava
iii. Gravidade das consequências: sérias, dados os danos corporais gerados em EE;
iv. Grau de violação dos deveres impostos ao agente: elevado, considerando que o arguido violou deliberadamente os comandos emergentes da norma jurídica, gerando o perigo que concretizou, ainda que tenha confiado (não devendo) que não se iria concretizar, não tendo, ainda, respeitado os deveres de cuidado que se impunha.
v. Intensidade do dolo ou negligência: o arguido actuou do modo descrito com dolo eventual, pretendeu agir como agiu, conformando-se com a eventual violação da norma;
vi. Sentimentos manifestados no cometimento do crime: não apurados;
vii. Fins ou motivos que determinaram a conduta: deslocação para casa;
viii. Conduta anterior ou posterior ao facto: colaborou com as autoridades, tendo prestado declarações;
ix. Preparação para manter uma conduta lícita: A idade do arguido (25 anos) e a inexistência de condenações pela prática de crimes permite identificar a existência de capacidade para cumprimento do Direito.
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Conjugadas as mencionadas circunstâncias com as exigências de prevenção geral e especial, limitadas pela culpa do arguido no cometimento dos factos, a taxa de alcoolemia detectada, a presença de estupefacientes no organismo (enquanto agente potenciador do álcool), bem como o severo desrespeito pelos deveres de cuidado (priorizando o seu interesse perante os demais utentes da via),, entende o Tribunal que, relativamente ao crime em apreço, a pena tem de se situar na metade superior do segundo terço da moldura aplicável ao crime, razão pela qual, tendo as considerações acima expedidas, entende este Tribunal como necessário e adequado aplicar ao arguido pela prática do crime de que vem acusado, a pena de 250 dias de multa.
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6.2. PENA DE SUBSTITUIÇÃO
Atenta a espécie da pena aplicada ao arguido, impõe-se ao Tribunal ponderar a substituição da pena de multa aplicada por qualquer outro modo de execução, nomeadamente prestação de trabalho a favor da comunidade (art. 48.º, n.º1 do Código Penal) ou admoestação (art. 60.º do Código Penal) e, ainda, ponderar a eventual dispensa de pena (artigo 74.º do Código Penal).
No que respeita à prestação de trabalho a favor da comunidade, uma vez que a sua aplicação depende da aceitação do condenado, não se encontra o Tribunal em posição de ponderar essa substituição na falta dessa manifestação de vontade.
Não há lugar à dispensa de pena (artigo 74.º do Código Penal) uma vez que a ilicitude do facto ou da culpa não se mostra diminuta nem se mostra reparado o dano.
No que respeita à admoestação, se ao agente dever ser aplicada pena de multa em medida não superior a 240 dias, pode o tribunal limitar-se a proferir uma admoestação, contando que o dano tenha sido reparado e o Tribunal concluir que, por esse meio, se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades de punição (artigo 60.º, n.º1 e 2 do Código Penal).
Compulsados os autos, entende o Tribunal que em face da prevalência deste crime na comarca, as necessidades de prevenção geral – reafirmação da norma jurídica – não se mostrariam satisfeitas com a mera advertência verbal realizada ao arguido, especialmente tendo em consideração que a norma violada se inscreve no núcleo elementar de normas conhecidas pela comunidade, tendo ainda presentes as consequências do ilícito.
Sendo claros: residindo os envolvidos em locais próximos, na mesma localidade e havendo relações de vizinhança, mostrar-se-ia comunitariamente insustentável (e imperceptível) o sancionamento do facto através da mera admoestação dadas as consequências corporais do ilícito. Assim, não cumprindo a admoestação a função da sanção penal, afasta-se a sua aplicação.
Assim, manter-se-á a pena de multa aplicada ao arguido.
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6.3. DETERMINAÇÃO DO QUANTITATIVO DA PENA
Relativamente à fixação do quantitativo diário relativo a cada dia de multa, importa enquadrar a mesma nos termos do art. 47.º, n.º2 do Código Penal, devendo o Tribunal estabelece esse montante observando como limite mínimo cinco euros e máximo de quinhentos euros.
Aquando da realização desse juízo, deve o Tribunal considerar a condição económica e financeira do arguido (isto é, apreciar os seus rendimentos próprios e os seus encargos pessoais), não olvidando que, ainda assim, o cumprimento da pena de multa deve revestir um carácter sancionatório.
Na situação em concreto resultou demonstrado que o arguido apresenta uma situação patrimonial algo frágil atentos os seus rendimentos auferidos (€825,00), as despesas de subsistência (€200,00), sendo identificado ainda património imobiliário e mobiliário sujeito a registo, o qual permite inferir, ainda assim, a existência de alguma capacidade patrimonial, atentas as despesas demonstradas.
Concluindo e ponderando os factos e a situação económica do arguido, entende o Tribunal que é adequado fixar um quantitativo diário de seis euros e vinte cêntimos, o que perfaz uma pena de multa de €1550,00.
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6.4.
PENA ACESSÓRIA
Estabelece ainda o artigo 69.º, n.º1, do Código Penal a aplicação da pena acessória de proibição de veículos com motor, em período fixado entre 3 meses e 3 anos, quem for punido pela prática dos seguintes crimes:
a) Por crimes de homicídio ou de ofensa à integridade física cometidos no exercício da condução de veículo motorizado com violação das regras de trânsito rodoviário e por crimes de condução perigosa de veículo rodoviário ou condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas; b) Por crime cometido com utilização de veículo e cuja execução tiver sido por este facilitada de forma relevante; ou c) Por crime de desobediência cometido mediante recusa de submissão às provas legalmente estabelecidas para detecção de condução de veículo sob efeito de álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo.
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No caso, atenta a agravação da moldura da pena acessória aplicável ao crime, ex vi artigos 291.º, n.º1, 294.º, n.º3, 285.º e 144.º, al. c) do Código Penal, a moldura penal, no caso em concreto, cifra-se entre 4 meses e 4 anos de duração.
Ainda que resulte da aplicação da pena acessória o cumprimento de finalidades de prevenção geral positiva, a verdade é que a mesma produz, com particular acuidade, efeitos de prevenção especial positiva e negativa, na exacta medida que neutraliza a perigosidade do agente na execução da actividade geradora desse mesmo perigo e, por outro lado, reforça o conteúdo de prevenção especial positiva da pena principal, ressocializando o arguido para o cumprimento da norma, uma vez confrontado com as consequências.
Assumindo a aplicação da pena acessória a protecção de bens jurídicos, ao neutralizar a perigosidade do agente, a mesma deve ser determinada atendendo à culpa do agente no facto, às exigências de prevenção bem como às circunstâncias do caso que deponham a favor ou contra o agente, como ordena o artigo 71.º, n.º1 e 2 do Código Penal.
Aqui chegados, considerada a taxa de alcoolemia com que o arguido conduzia o veículo, o local da prática do ilícito (meio rural), a inexistência de antecedentes criminais, assim como as consequências emergentes da prática do crime, o Tribunal julga adequado aplicar, ao abrigo do artigo 69.º, n.º1, al. a) do Código Penal, a pena acessória de proibição de condução de veículos com motor pelo período de 10 meses.
Analisada a fundamentação que se transcreveu resulta claro que o tribunal a quo observou os critérios que, embora exemplificativamente, se encontram fixados no art.º 71.º, tendo sido devidamente valoradas as exigências de prevenção, geral e especial, bem como a postura de colaboração do arguido para o esclarecimento dos factos, os seus antecedentes criminais, tendo concluído pela sua capacidade para cumprir a lei.
No entender do arguido o tribunal a quo apenas valorou as circunstâncias contra si e não as suas condições e características pessoais, o que determinou que fosse fixada uma pena demasiado severa.
Não há dúvida que o arguido tem razão quando afirma que na determinação da pena concreta não se mostra no texto da decisão que o tribunal tenha valorado as suas condições de vida, apenas se podendo concluir que valorou a sua capacidade de cumprir a lei e a colaboração com as autoridades após o acidente.
Invoca também o arguido que alegou na sua contestação que não foram incluídos nos factos provados, os quais se mostram provados por documento que juntou, a ausência de prática de infrações estradais e a circunstância de ser um bom condutor e cumpridor.
Salvo o devido respeito, estes factos se tivessem sido considerados provados em nada abonariam a favor do arguido, do mesmo modo que não abona a ausência de antecedentes criminais pela simples razão de que a ausência de prática de ilícitos, sejam eles de que natureza forem (contraordenacionais ou criminais) é o que se espera e é de exigir de qualquer cidadão. O cumprimento da lei não constitui qualquer circunstância abonatória, ao contrário dos antecedentes que podem constituir circunstância a valorar contra o agente. Cumprir a lei e o direito é uma exigência e um dever cívico que se impõe e exige a toda e qualquer pessoa num Estado Democrático.
Analisando a pena fixada, verificamos que a mesma foi fixada próxima do meio da penalidade abstratamente aplicável o que tendo em conta as circunstâncias do facto, as suas consequências e as exigências de prevenção geral reclamadas, estando a mesma dentro do limite da pena, não se mostra excessiva nem desadequada.
Termos em que improcede igualmente esta questão.
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- Da decisão de não substituição da pena de multa aplicada
Mais se insurge o arguido contra a decisão de não substituição da pena de multa aplicada defendendo que o tribunal a quo não podia neste momento apreciar tal questão e por conseguinte decidir pela não substituição.
Alega que há aqui que distinguir a substituição da pena de multa por trabalho a favor da comunidade nos casos em que ao arguido é directamente aplicada uma pena de multa dos casos em que ao arguido é aplicada uma pena de prisão, substituída por pena de multa.
Assim, dispõe o artigo 48.º, n.º 1 do Código Penal (CP) que «A requerimento do condenado, pode o tribunal ordenar que a pena de multa fixada seja total ou parcialmente substituída por dias de trabalho em estabelecimentos, oficinas ou obras do Estado ou de outras pessoas colectivas de direito público, ou ainda de instituições particulares de solidariedade social, quando concluir que esta forma de cumprimento realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.»
Por outra banda, nos termos do disposto no artigo 58.º, n.º 1 do CP, «se ao agente dever ser aplicada pena de prisão não superior a dois anos, o tribunal substitui-a por prestação de trabalho a favor da comunidade sempre que concluir, nomeadamente em razão da idade do condenado, que se realizam, por este meio, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição» e, nos termos do disposto no n.º 5 do mesmo preceito, «a pena de prestação de trabalho a favor da comunidade só pode ser aplicada com aceitação do condenado».
Ora, são situações diferentes: o artigo 58.º reza quanto à substituição da pena de prisão por trabalho a favor da comunidade, o artigo 48.º prescreve quanto à substituição da pena de multa por trabalho a favor da comunidade, sendo que, nestes casos, a mesma poderá acontecer em virtude de requerimento do arguido.
O arguido não o requereu ainda, até porquanto a pena de multa ainda não transitou em julgado.
Ademais, o próprio Tribunal a quo não questionou o arguido se pretendia ou aceitava a substituição da multa por trabalho a favor da comunidade.
Como poderia o arguido pronunciar-se quanto a uma pena que ainda não lhe tinha sido aplicada e sobre a qual o Tribunal nada lhe perguntou?
Ao arguido assiste, assim, o Direito a requerer, em momento próprio (ou seja, no prazo de 10 dias após o trânsito em julgado) que a pena de multa aplicada seja substituída por trabalho a favor da comunidade.
Pelo exposto, deverá a decisão de não substituição da pena ser revogada, com as devidas consequências.
Quid iuris?
A não substituição da pena de multa aplicada por outra não se mostra ilegal. O tribunal a quo apreciou e decidiu de acordo com os elementos de que dispunha nos autos, decidindo que não se mostravam reunidos os necessários requisitos para que a pena de multa fosse substituída pela de admoestação, e muito menos para que fosse dispensado da pena.
Contudo, tal não significa que o arguido não possa, já que tal direito lhe é conferido expressamente pelo o disposto no art.º 490.º, n.º 1 do CPP requerer a substituição da pena de multa por trabalho a favor da comunidade no prazo fixado no art.º 489.º, n.º 2 do mesmo Código, isto é, no prazo de 15 dias a contar da notificação para pagamento da multa imposta, notificação a realizar após o trânsito em julgado da sentença que a aplicar.
Significa, assim, que não obstante a decisão que se tomou neste âmbito, de acordo com os elementos constantes dos autos, o tribunal não se mostra impedido de apreciar e decidir a o requerimento que o arguido venha a apresentar no sentido da substituição da pena de multa por trabalho a favor da comunidade apresentada prazo previsto no n.º 2 do art.º 489.º.
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Nada mais há a decidir, encontrando-se as questões suscitadas todas tratadas de forma autónoma ou como fazendo parte destas (como é o caso do dolo).
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Decisão:
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação de Évora:
a) Julgar não provido o recurso interposto pelo recorrente AA, mantendo-se integralmente o decidido em 1ª instância.
b) Custas a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 (cinco) UCs.
Évora, 07 de novembro de 2023
Processado e revisto pela relatora (art.º 94º, nº 2 do CPP).
Maria Perquilhas
Fátima Bernardes
Filipa Costa Lourenço
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[1] Acs. do STJ de 16.11.95, de 31.01.96 e de 24.03.99, respectivamente, nos BMJ 451° - 279 e 453° - 338, e na Col Acs. do STJ, Ano VII, Tomo 1, pág. 247 o Ac do STJ de 3/2/99 (in BMJ nº 484, pág. 271); o Ac do STJ de 25/6/98 (in BMJ nº 478, pág. 242); o Ac do STJ de 13/5/98 (in BMJ nº 477, pág. 263);
SIMAS SANTOS/LEAL HENRIQUES, in Recursos em Processo Penal, p. 48; SILVA, GERMANO MARQUES DA 2ª edição, 2000 Curso de Processo Penal”, vol. III, p. 335;
RODRIGUES, JOSÉ NARCISO DA CUNHA, (1988), p. 387 “Recursos”, Jornadas de Direito Processual Penal/O Novo Código de Processo Penal”, p. 387 DOS REIS, ALBERTO, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pp. 362-363.

[2] Sublinhado nosso.