Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1377/21.0T8PTG.E1
Relator: JOSÉ LÚCIO
Descritores: AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA
USUCAPIÃO
POSSE EM NOME ALHEIO
Data do Acordão: 10/26/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1 – A usucapião é uma forma originária de aquisição do direito de propriedade baseada na posse.
2 – Essa posse terá que ser em nome próprio, traduzindo a vontade e a consciência de agir como titular de um direito real.
2 – Faltando a demonstração da posse, improcede necessariamente a pretensão aquisitiva deduzida com fundamento em usucapião.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:

I – RELATÓRIO
A) A presente acção, com processo comum, foi instaurada pela autora AA contra as rés BB, CC, e DD, todas melhor identificados nos autos.
Peticiona a autora que seja reconhecida como dona e legítima proprietária do prédio urbano sito na Avenida ..., em Ponte de Sor, descrito na Matriz com o nº ... da freguesia de Ponte de Sor, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Ponte de Sor sob o nº..., e que em consequência se ordene o cancelamento do registo a favor das RR. sobre o mesmo prédio e a inscrição no registo a favor da A.
Para fundamentar o seu pedido a A. alega em resumo que desde 1979 vive no prédio que referiu, por na altura a casa ter sido oferecida à A. e ao seu então companheiro pelo irmão deste, EE, porque este precisava de alguém da sua confiança a viver naquela casa para cuidar de uma fábrica de cortiça, sendo que tal casa era originalmente a casa destinada ao guarda da fábrica.
Desde então a A. ocupa o 1º andar, e mais tarde o cunhado da A. foi viver para o piso inferior, onde permaneceu até morrer.
Desde 1995 até à presente data, apenas a A., os filhos e o neto desta habitaram a casa, tendo ela como certo que, na ausência do irmão do seu falecido marido, o terreno e a casa lhe pertenciam.
Assim, desde 1979 que a A. possui, fruiu e administrou o imóvel com a convicção de que o mesmo lhe pertencia, sobretudo após a morte do irmão do marido sem filhos.
Sendo tal posse pública, pacífica, continua e de boa fé, há muito que a A. a adquiriu por usucapião, nos termos do disposto no art. 1316º do Cod. Civil.
B) Contestaram conjuntamente as RR. BB e DD, dizendo que o prédio chegou à posse das RR. por transmissão (dação em cumprimento) efectuada pela sociedade F..., Lda, a qual, por sua vez, o tinha adquirido à anterior proprietária FF, por compra efectuada em 1996.
Nunca o prédio foi oferecido à A. ou ao seu marido, vivendo a mesma ali sempre por tolerância ou sabendo que o prédio não lhe pertencia, como se depreende de acção judicial que o marido da A. intentou em 1996 com o objectivo de ver reconhecida a existência de arrendamento relativamente ao mesmo imóvel.
Concluem as RR. que a A. e seu falecido marido sempre foram detentores precários do imóvel, pelo que a acção é improcedente.
C) Também apresentou contestação a R. CC, impugnando os factos alegados pela A. e informando que já anteriormente correram acções judiciais relativas ao mesmo prédio em que o marido da A. ora alegou a existência de arrendamento, ora de comodato.
Numa dessas acções, a de reivindicação movida pela sociedade então proprietária, foi inclusivamente condenado o marido da A. a proceder à entrega do imóvel ao seu legítimo proprietário.
Conclui também esta R. pedindo que se julgue improcedente a acção.
D) Foi realizada audiência prévia, na qual foi fixado o objecto do litígio e definidos os temas de prova, após o que decorreu audiência de discussão e julgamento.
Proferida sentença, nesta foi julgada totalmente improcedente por não provada a acção intentada pela A. e absolvidas as RR do pedido.
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II – A APELAÇÃO
Não se conformando com o decidido na sentença, a A. reagiu através do presente recurso de apelação, apresentando as seguintes conclusões, que transcrevemos:
1. O presente recurso visa a reapreciação da prova gravada e versa sobre a matéria de facto e a matéria de direito.
2. A A. tem 83 anos, não sabe ler nem escrever, não tem instrução e sofre de várias patologias, sendo o imóvel sub judice a sua casa de habitação própria e permanente e casa de morada de família desde 1979. Não possui qualquer outro imóvel.
3. A sentença recorrida deu como provado no nº20 dos “Factos Provados” “Desde a data em que o adquiriram e até à presente data, têm sido as RR., bem como a irmã de ambas – Proprietárias - a suportar todos os impostos decorrentes da propriedade do Prédio.”
4. E deu como não provados nos nºs 7 e nº8 o seguinte:
a. 7 - A casa foi-lhe oferecida pelo cunhado, EE, que por essa altura se tornara presidente da Câmara Municipal de Ponte de Sor.
b. 8 - A A. e o seu companheiro sempre tiveram a casa como sua e desde que a habitaram agiram na convicção de que o mesmo lhes pertencia, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, sobretudo na ausência do irmão.
5. Não é verdade que as RR tenham suportado todos os impostos relacionados com o imóvel em questão: apenas duas das RR, a R. BB e a R. DD alegaram ter pago impostos relacionados com o imóvel. A terceira R. nada alegou sobre o assunto, nem tão pouco juntou qualquer documento, pelo que não se alcança como pode o tribunal ter como provado que as três RR pagaram todos os impostos decorrentes da propriedade do prédio.
6. A R. BB e a R. DD apenas pagaram IMT e IMI relativamente ao imóvel em questão.
7. Assim, por manifesto erro na sentença recorrida, o facto dado como provado no nº20 deve ser dado como não provado.
8. As RR, nunca se deslocaram ao imóvel, nem dele quiseram saber até final do ano de 2021 e nunca pagaram, por exemplo, taxas de saneamento ou recursos hídricos nem taxa de resíduos sólidos, não obstante o prédio ter saneamento, água e recolha de lixo, por conta da A.
9. Atente-se especificamente ao depoimento da testemunha GG, entre o minuto 1.30 e o minuto 2.03, ao testemunho constante do ficheiro áudio com o nº20220530104335_1088471_2871413 da testemunha HH, entre o minuto 3.50 e o minuto 4.50 e ao depoimento da terceira testemunha, II, cuja gravação consta do ficheiro áudio com o nº 20220530110117_1088471_2871413, entre o minuto 3.30 e o minuto 4.00, onde todos são unânimes em referir que a A. tem água, eletricidade e recolha de lixo por sua conta.
10.A taxa de saneamento e a taxa sobre os resíduos sólidos são indicadores da posse do imóvel, que as RR nunca exerceram, ainda que aleguem ter adquirido o imóvel através de uma dação em pagamento.
11.Desde 1995 que a A. nunca mais teve notícia da cunhada ou de qualquer parente dela até ao ano de 2021.
12.A A. sempre entendeu que não havendo descendentes do irmão do marido, o imóvel pertencia, na totalidade, a si e ao marido – atente-se ao depoimento da A. (minuto 8.01 a 8.23)
13.A A. tem saneamento básico, faz as limpezas do imóvel, barracão e terreno incluído, faz a sua manutenção e investe em melhorias. É por conta da A. que há eletricidade, a água, a recolha de lixo e foi a A. quem pagou todas as obras de manutenção do imóvel como apenas um proprietário faz - se não fossem as obras no telhado, chovia dentro do barracão e da casa.
14.Para justificar como não provado o ponto 7, o Tribunal a quo desconsidera por completo o depoimento de parte da A. e os testemunhos do neto e da ex-nora que é a enfermeira que presta assistência à A., pelo que tem conhecimento direto da situação da A.
15.Recorrendo a juízos de verosimilhança o Tribunal considera “totalmente inverosímil e fora de toda a lógica comum que a A. com essa utilização pretende ver reconhecida a sua pretensão de aquisição de todo o espaço porque, como referiram as testemunhas JJ e II, neto e ex-nora da A., coloca um estendal no páteo do prédio e permite o primeiro ali ter quatro ovelhas. Não se afigura verosímil que, atentas as circunstâncias apuradas a A. agisse na convicção de o prédio ser seu.”
16. Sendo certo que as testemunhas apenas exemplificavam alguns atos materiais exercidos pela A. quanto à utilização que constatam ser dado pela A. ao espaço que compõe o imóvel, não são em si mesmos a razão da convicção da A. sobre a posse que exerce.
17.Ora, se é verdade que trata-se de matéria sujeita à livre apreciação do tribunal, não é legítimo ao tribunal fazer saltos quânticos conforme se lhe afigura conveniente.
18.Desde logo é o próprio Tribunal que entra em contradição com o que constatou de forma espontânea em audiência de julgamento, ao minuto 8.50 do ficheiro nº20220530095822_1088471_2871413 (gravação do depoimento de parte da A. requerido pelas RR) que afirma: sim sim já respondeu, está a responder a verdade, sim, muito bem…(8.56). Mas depois, surpreendentemente desvaloriza por completo na sentença recorrida.
19.A A. explica por diversas vezes que os sogros morreram, que o cunhado e a cunhada, com quem se dava bem, morreram sem herdeiros e que desde essa altura toma o imóvel como só dela e do marido. Posteriormente, também no entendimento da A., por morte do marido o imóvel é só dela.
20.Para o Tribunal não foi verosímil que, atentas as circunstâncias apuradas a A. agisse na convicção de o prédio ser seu – no entanto, contraditoriamente, é o próprio tribunal que dá como provado no ponto 9 e 10 dos factos provados, que “Em 1979 a A. e o companheiro passaram a ocupar o 2º andar do prédio referido em 5 como sua habitação, ali permanecendo a A. até à presente data, ali criando os seus filhos, tendo o seu registo de eleitor, domicílio fiscal e de pensionista, e tem contrato de água, luz, gás e telefone. E que ali recebe os seus amigos e familiares”
21.A A. não tem instrução, não tem qualquer profissão desde 1974. Ao invocar que a casa lhe foi oferecida, como a própria afirmou, significa apenas que lhe foi dada pelo cunhado, uma vez que o terreno foi adquirido com o dinheiro que pertenceria a ambos os irmãos, embora esse mesmo dinheiro tenha sido entregue apenas a um deles, como a mesma reconhece, e que o mesmo, após a construção lhe deu a casa - a partir do momento em que lhe é dado passa a pertencer à A. e a A. toma como seu.
22.Ainda que pareça estranho o dinheiro que mais tarde seria a herança dos sogros ter sido dado apenas a um dos irmãos, mais estranho seria não haver qualquer razão para o cunhado lhe oferecer a casa em questão. Ao tentar explicar o porquê de lhe ser dada a casa e o porquê da A. se intitular proprietária do imóvel, foi a própria A. que explicou a história da origem do imóvel.
23.Tal origem do imóvel e da história de como o imóvel vem à propriedade da A. e da família, em momento nenhum é inverosímil, nem a mesma pode ser penalizada por dizer a verdade.
24.Fosse qual fosse o acordo que havia entre os irmãos (respectivamente marido e cunhado da A.), o qual já não é possível apurar nem é possível apurar por que razão o dinheiro dos pais foi entregue apenas a um dos irmãos – sabendo-se que sempre o mesmo poderia ser chamado à colação em sede de herança, com a consequente redução por inoficiosidade – certo é que o cunhado da A. entrega a casa à A. em 1979, e ambas as famílias dividem o imóvel desde então e até à sua morte.
25.O cunhado morre em 1993, e a cunhada é institucionalizada num lar em 1995, por demência, falecendo pouco depois. Para a A. apenas ela e o marido restaram como proprietários, e assim agiu desde então.
26.A convicção da A. é a de que, não havendo filhos dos cunhados, cabia apenas a ela e ao marido o direito ao imóvel. E por morte do marido, cabia apenas a ela e posteriormente aos seus filhos. Ora, ainda que se possa discutir se a A. está correcta e se é assim que se procede a um inventário e partilha por herança, sendo a A. sem instrução e sem saber ler nem escrever, para a A. isso foi o que aconteceu e o imóvel é “seu por direito”.
27.A sentença recorrida fez errada apreciação da prova carreada para os autos, quanto aos factos que deu como não provados, nomeadamente sob o número 7 dos factos não provados, que deveria ter sido dado como provado resultando no seguinte facto provado: A casa foi-lhe oferecida pelo cunhado, EE, que por essa altura se tornara presidente da Câmara Municipal de Ponte de Sor.
28.No seguimento da discordância sobre dar como não provado o ponto 7 dos factos não provados, também a A. discorda da sentença recorrida por manifesto erro e contradição ao dar como não provado o ponto 8 dos factos não provados.
29.A testemunha KK, considerada extremamente credível pelo tribunal e descomprometida, referiu que em 1990/1992 a empresa de cortiça que operava naquele local foi vendida a terceiro – foi a empresa que foi vendida, não o terreno nem a casa sub judice, já que o imóvel só é vendido em 1996, como é dado como provado no pronto 18 dos factos provados, pela Sra. FF, e consequentemente deixou de haver qualquer atividade relacionada com cortiça a partir dessa data (1990/1992) neste imóvel.
30.Comete um erro o Tribunal a quo quando retira do depoimento da Testemunha KK que “Nesta data EE vendeu a fábrica a terceiro, o que é do seu conhecimento porque passou a trabalhar para o comprador.”
31.Como alegado em sede de Contestação e não impugnado, os irmãos EE (respectivamente o companheiro da A. e o seu irmão) nunca foram proprietários de um negócio de cortiça – o terreno que faz parte do imóvel sub judice, estava apenas arrendado ao uma empresa denominada S..., Lda., essa sim, empresa dedicada à indústria da cortiça. v. Docs 1 e 2 juntos com a Contestação da R. CC. Esse contrato terminou em 1993 e não foi renovado.
32.Terminado o contrato, a A. e o companheiro passaram a ocupar o terreno como bem entenderam, pois o próprio companheiro entendia que o terreno era dele e sempre foi o que transmitiu à família – assim o refere também a R. CC, no artº 17 da sua Contestação.
33.O tribunal fundamenta a inexistência de animus possidendi por parte da A. no seguinte parágrafo: “Com efeito, da matéria de facto provada, designadamente tendo em consideração o teor das acções judiciais ali identificadas, o marido da A. sempre se arrogou de títulos, nomeadamente de arrendamento, que apenas são susceptíveis de caracterizar uma posse em nome de outrem ou uma detenção precária. Tal, como já se escreveu, não poderia ser desconhecido da A.”
34.Aqui reside novamente um erro do Tribunal: a ação julgada improcedente e dada como provada no ponto 23 dos factos provados foi uma ação intentada pelo então companheiro da A. em Novembro de 1996 como ação de preferência para aquisição do Prédio, que foi considerada improcedente por não ter sido reconhecido como arrendatário do referido prédio – por falta desse título, o companheiro da A. não pode exercer o direito de preferência.
35.Na segunda ação proposta em 1997 contra o companheiro da A. pela sociedade F..., o mesmo invoca a usucapião na sua defesa, em sede de pedido alternativo, como a própria R. CC constata na sua Contestação, no artº32 e conforme documento nº12 junto com a mesma.
36.Dos vários depoimentos, nomeadamente atente-se ao referido pela testemunha HH, entre o minuto 4.00 e 5.06, do depoimento da A. ao minuto 17.00 a 18.30 do ficheiro áudio com referência nº20220530095822_1088471_2871413, no testemunho da Enfermeira II, no ficheiro áudio com o nº 20220530110117_1088471_2871413 entre o minuto 4.10 e o minuto 4.27, testemunho do neto JJ, do ficheiro áudio 20220530103123_1088471_2871413 entre o minuto 4.15 e o minuto 4.40, resulta uma versão coerente e consistente sobre o tipo de uso que a A. faz da casa, do barracão e do terreno que compõem o imóvel, ainda mais quando o barracão é um espaço contíguo à casa, que não pode ser separado e que serve inclusive para a família fazer as suas refeições.
37.A A. é quem autoriza o neto a levar os seus animais para o terreno, os filhos a ensaiarem com a sua banda e a guardarem os seus instrumentos no seu imóvel, além dos demais atos possessórios típicos da vivência diária de quem habita casa própria de modo permanente.
38.O que não é verosímil nem razoável é entender que alguém que tem aquele imóvel, não toma posse, nada faz, nem toma qualquer providência por mais de 10 anos, no caso das RR e no caso dos seus antecessores, por mais de 30 anos.
39.Do depoimento da A. (minuto 25 em diante) secundado pelo depoimento da Enfª II ficheiro áudio n.º 0220530110117_1088471_2871413 entre o minuto 2.49 e o minuto 3.40, retiram-se reparação e remodelação de canos, pinturas, obras no telhado, e substituição de estores, próprios de quem é proprietário do imóvel.
40.Também dos testemunhos e do depoimento da A, dos documentos e fotografias juntas decorre que a A. ali plantou uma horta, parreiras (vinha), sobreiro, figueiras.
41.A sentença recorrida fez errada apreciação da prova trazida aos autos, quanto aos factos que deu como não provados, nomeadamente sob o número 8 dos factos não provados, que deveria ter sido dado como provado resultando no seguinte facto provado: A A. sempre teve a casa como sua e desde que a habitou agiu na convicção de que a mesmo lhe pertencia, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, sobretudo na ausência dos cunhados.
42.A reapreciação da matéria de facto e a sua alteração assume relevância na decisão de Direito, porquanto existindo erro de apreciação da factualidade impõe-se a alteração da mesma e consequente subsunção da factualidade alterada às normas jurídicas que se aplicam ao caso - a Sentença recorrida revela uma errada interpretação e aplicação dos arts. 1251º, 1260º, 1263º, 1264º, 1287º e 1290º do C.Civil e ainda do 413º, 421º, 607º, 622º do CPC.
43.A sentença recorrida viola o artº607, na medida em que a apreciação livre das provas está subordinada à experiência e prudência do julgador com base numa análise serena de todos os elementos de facto que foram levados a julgamento, compatibilizando-os a todos, designadamente era seu dever compatibilizar a prova produzida pela A. e pelas RR., pelas testemunhas e pela prova documental, o que não aconteceu.
44.Inexiste uma compatibilização das provas carreadas aos autos, o próprio Tribunal que entra em consideração por diversas vezes, como se retira da prova gravada: espontaneamente admite que a A. está a dizer a verdade, mas posteriormente e surpreendentemente na Sentença recorrida acaba por declarar como não sendo credível o seu depoimento.
45.Acresce a desvalorização recorrente do depoimento da A. conhecendo antecipadamente as limitações próprias da idade e das patologias da A., rotulando-o de inverosímil, quando esta deu conta, ainda que com alguns lapsos devidos às suas limitações, má comunicação, sobreposição e interrupções constantes do próprio Tribunal, da sua convicção, das razões da sua convicção como proprietária da casa, e da posse que exerce como proprietária desde 1979.
46.Por outro lado, tendo sido atendido e até considerado relevante pelo Tribunal as ações judiciais propostas contra o marido da A. o Tribunal comete um erro quando invoca que apenas foram invocados títulos que não são suscetíveis de caracterizar a posse em nome próprio quando a usucapião foi um dos títulos invocados, ainda que sem sucesso.
47.São violados pela sentença recorrida os artºs 413.° e 421º do CPC,que não permitem ao Tribunal dar como provados os factos que assim foram considerados numa ação anterior.
48.Qualquer ação proposta para reivindicar a propriedade do imóvel sub judice, que é desde 1979 casa morada de família da A. e que o Tribunal a quo dá como provado que é a habitação da A, até ao presente, sempre teria de ser proposta contra todos os possuidores. E não foi.
49.Assim, não era permitido ao Tribunal atribuir a relevância que atribuiu às referidas ações e aos meios de prova nelas produzidos em violação do artº622 do CPC.
50. A A. exerce a prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito relacionado com o seu imóvel que é a sua habitação, pelo que, e na falta de título, se trata de uma aquisição originária e unilateral da posse (Art.º 1263 a)).
51.A A. recebeu a casa do cunhado, que lhe deu a mesma para ali residir com a família e para a A. o imóvel por inteiro sempre foi seu por direito, por ter sido adquirido com o dinheiro da família, ainda que arrendado até 1993 a uma empresa de cortiça. Com o fim do negócio da cortiça e a morte do cunhado em 1993, a utilização do terreno e barracão foram determinados pela A. conforme lhe foi conveniente, por se entender dona legítima do mesmo.
52.A A., que não sabe ler nem escrever e que vive no imóvel citado desde 1979, o qual é a sua casa morada de família, que ali casou e ali ficou viúva, a qual é a sua residência fiscal e junto de todas as demais entidades públicas e privadas, na qual tem água, gás, telefone e electricidade, usando, fruindo e administrando publicamente e de forma pacífica desde essa data como se sua fosse, é a proprietária do imóvel que adquiriu por via da usucapião.
53.E é assim que há mais de 40 anos que, de uma forma pública, porque é vista por toda a gente; pacífica, porque sem oposição de quem quer que fosse ou seja; contínua, porque de forma continuada no tempo e sem qualquer interrupção, e de boa fé, porque na firme convicção de não lesar direitos ou interesses alheios, a A. se mantém na posse do imóvel situado na Av. ... em Ponte de Sor.
54.Verifica-se assim a existência de uma sucessão de erros na apreciação da matéria de facto e na interpretação e aplicação do Direito na sentença recorrida que uma vez retificados em conformidade com o demonstrado e exposto, levarão ao reconhecimento da propriedade da A. conforme previsto nos artºs1251º, 1260º, 1263º, 1264º, 1287º e 1290º do C.C., porquanto decisão contrária seria de uma injustiça atroz e colocaria a A. numa situação de indigência, privando-ada habitação que tem como sua desde 1979.
Termos em que, e no que mais Vossas Excelências doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente Recurso e, em consequência, alterando-se a decisão sobre a matéria de facto nos termos expostos, e, a final, revogar-se a decisão recorrida e substituir-se por outra que reconheça a A. como dona e legítima proprietária do prédio urbano sito na Avenida ..., em Ponte de Sor, descrito na Matriz com o nº... da freguesia de Ponte de Sor, e descrito na da Conservatória do Registo Predial de Ponte de Sor sob o nº ...; ordene o cancelamento do registo a favor das R.R. sobre o prédio urbano sito na Avenida ..., em Ponte de Sor, descrito na Matriz com o nº... da freguesia de Ponte de Sor, e descrito na da Conservatória do Registo Predial de Ponte de Sor sob o nº... e ordene a inscrição no registo a favor da A. do prédio urbano sito na Avenida ..., em Ponte de Sor, descrito na Matriz com o nº... da freguesia de Ponte de Sor, e descrito na da Conservatória do Registo Predial de Ponte de Sor sob o nº..., com o que se fará inteira justiça.
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III – DAS CONTRA-ALEGAÇÕES
As RR/recorridas apresentaram contra-alegações, sendo as RR. BB e DD no mesmo articulado e a R. CC em articulado próprio.
Em qualquer dos articulados vem defendida a improcedência da apelação, tanto no que respeita à impugnação da matéria de facto como no respeitante à decisão de mérito.
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IV - DOS FACTOS
Na sentença recorrida foram considerados indiciariamente provados os seguintes factos, considerados de interesse para a decisão:
1- A A. nasceu em .../.../1938, não sabe ler, nem escrever, e é natural de ..., Vila Pouca de Aguiar.
2 – A A. viveu com LL desde data não concretamente apurada mas anterior a 1978/1979 como se fossem marido e mulher.
3 – Contraíram casamento em 20 de Julho de 2011.
4 – EE era irmão do companheiro da A.
5 –Em 1979 a propriedade do imóvel do sito na Avenida ..., em Ponte de Sor, descrito na Matriz com o nº... da freguesia de Ponte de Sor, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Ponte de Sor sob o nº..., encontrava-se inscrita a favor de EE.
6 – O prédio encontra-se descrito da seguinte forma: “Prédio urbano – Zona Industrial – fábrica de preparação de cortiça, constituída por barracão, armazém, e casa de rés-do-chão, e 1º e escritório, e 2º anda a habitação, s-c 1058 m2 e páteo com 3912 m2.
7 – Pela Ap. ...96 foi averbado: “o prédio destina-se a armazém”.
8 – E na matriz, o Prédio está descrito como: Prédio em Prop. Total sem Andares nem Div. Susc. de Utiliz. Independente
Descrição: Armazém, constituída por pátio com 3912 m2, tendo a área coberta de 1058 m2; esta área coberta é constituída p/ barracão para a caldeira com a área de 80 m2, barracão de armazém e trabalho com 906 m2 e prédio de r/chão e 1º com 72 m2, sendo o r/chão destinado a garagem e o 1º andar e escritório e o 2º a residência com 4 divisões, construído de ferro, cimento, cal e tijolo, coberto com placas de fibrocimento.
Afectação: Armazéns e actividade industrial Nº de pisos: 3 Tipologia/Divisões: 5”.
9 – Em 1979 a A. e o companheiro passaram a ocupar o 2º andar do prédio referido em 5 como sua habitação, ali permanecendo a A. até à presente data, ali criando os seus filhos, tendo o seu registo de eleitor, domicilio fiscal e de pensionista, e tem contrato de água, luz, gás e telefone.
10 – Ali recebeu os seus amigos e familiares.
11 – Tal habitação destinava-se ao guarda da fábrica instalada no prédio identificado em 5 e 6.
12 – Pelo menos a partir dessa data, o companheiro, e depois marido da A., dedicou-se a trabalhar na fábrica.
13 – Em data não concretamente apurada, mas posterior à data indicada em 8 e até à sua morte, em 1993, o irmão do marido da A. passou a viver no piso por baixo daquele ocupado pela A, e até 1995 ali permaneceu a mulher deste, FF.
14 – A A. padece de doença coronária, osteopénia com artrose e hipertensão.
15 – A A. não tem outro imóvel.
16 – Aufere de pensão da segurança social no montante de € 401, acrescida de pensão de sobrevivência do marido, no valor de € 212,66.
17 - O Prédio chegou à propriedade das RR. em 21 de abril de 2010, por transmissão (dação em cumprimento) que lhes foi feita pela anterior proprietária, a sociedade F..., Lda., com o NUIPC/NIF ...71, e à altura com sede na Rua ...., em Lisboa
18 - A dita sociedade tinha adquirido o Prédio à sua anterior proprietária, a Sra. FF, por compra e venda realizada no dia 18 de abril de 1996.
19 - A vendedora tinha herdado a propriedade plena do Prédio por morte do seu marido, ocorrida em 13 de março de 1993, não tendo deixado filhos.
20 - Desde a data em que o adquiriram e até à presente data, têm sido as RR., bem como a irmã de ambas – Proprietárias - a suportar todos os impostos decorrentes da propriedade do Prédio.
21 - Pagaram o IMT e o Imposto de Selo devido pela aquisição do prédio em 2010.
22 - Bem como o IMI relativo a todos os anos compreendidos entre a data da aquisição, em 2010, e a presente data.
23 – O marido da A. em Novembro de 1996 intentou acção contra FF e a sociedade F..., Lda., - pretéritas proprietárias - ação de preferência tendente à aquisição do Prédio, que correu termos no actual Juízo de Competência Genérica de Ponte de Sor – Juiz 1, sob o nº 8/22.5T8PSR, pedindo “ser reconhecido ao A. o direito de haver para si o prédio vendido, substituindo-se na posição à F..., Lda. pelo mesmo preço e igualmente substituindo-se em qualquer inscrição e descrição ou registo que tenham feito sobre o mesmo prédio”.
24 – Para tanto, alegou a existência de um contrato de arrendamento.25 – Tal acção foi julgada improcedente, por decisão transitada em julgado em 06/04/2000.
26 – Em processo que correu termos no actual Juízo de Competência Genérica de Ponte de Sor – Juiz 2, sob o nº 7/22./T8PSR, F..., Lda., interpôs acção de reivindicação contra LL, no âmbito da qual a sociedade foi declarada dona e legitima proprietária do prédio descrito em 8, e o R. condenado na sua restituição, por decisão transitada em julgado em 07-03-2011.
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Na mesma sentença foram ainda elencados como não provados os seguintes factos:
1 – A A. e LL viveram um com o outro como se fossem marido e mulher desde que a primeira tinha 16 anos.
2 – E tiveram três filhos.
3 - A mais velha, a quem foi dado o nome de FF, tinha como padrinhos o irmão do companheiro da A. e a sua mulher.
4 - Em 1967, a filha mais velha da A., FF, foi viver com o casal EE e FF, para Ponte de Sor, porque estes não tinham filhos, onde iniciou a escolaridade e o seu encarregado de educação passou a ser o tio EE e quem tomava conta da menina a sua tia FF.
5 - Em 1968, quando a menina passava uns dias com os pais (a aqui A. e o seu companheiro) a menina cai de um quarto andar e morre, deixando os pais e os tios perdidos de desgosto.
6 - Por convite e por insistência do irmão EE, o companheiro da A., que não se conformava com a perda da menina, mudou-se com a família para Ponte de Sor, em 1974.
7 - A casa foi-lhe oferecida pelo cunhado, EE, que por essa altura se tornara presidente da Câmara Municipal de Ponte de Sor.
8 –A A. e o seu companheiro sempre tiveram a casa como sua e desde que a habitaram agiram na convicção de que o mesmo lhes pertencia, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, sobretudo na ausência do irmão.
9 – A decisão referida em 25 não foi executada em consequência do falecimento do pai das R.
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V – DO OBJECTO DO RECURSO
1 - Como se sabe, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (cfr. arts. 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC).
Sublinha-se ainda a este propósito que na sua tarefa não está o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pela recorrente, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (cfr. art. 5.º, n.º 3, do CPC).
No caso presente, as questões colocadas ao tribunal de recurso, tendo em conta o conteúdo das conclusões que acima se transcreveram, resumem-se em:
- apreciar a impugnação do julgamento da matéria de facto nos pontos referidos pela recorrente
- apreciar do mérito da decisão final.
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VI - DA MATÉRIA DE FACTO
Como se verifica da leitura das conclusões acima transcritas, bem como da motivação que as antecede, a recorrente visa com o seu recurso, antes do mais, a alteração do julgamento da matéria de facto feito na primeira instância, em relação a três pontos concretos que indica.
Recordamos que a reapreciação da matéria de facto só pode ser exercida pelo Tribunal da Relação nos termos referidos no art. 662º do Código de Processo Civil, sendo que, nos termos do n.º 1 da referida disposição legal, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Recordamos a este propósito que o art. 640º, n.º 1, do CPC, dispõe que:
Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”
E o nº 2 refere:
No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
No caso concreto, a recorrente entende que a prova produzida, nomeadamente em audiência, conjugada com os demais elementos dos autos, impunha resposta diversa naqueles pontos que pretende ver alterados.
Especificando:
A autora considera que os factos dados como provados sob os n.ºs 7 e 8 devem ser julgados provados.
E inversamente defende que seja dado como não provado o que se refere no ponto 20 dos factos provados.
Uma vez que a apelante cumpriu satisfatoriamente os ónus a seu cargo, tal como resultam do citado art. 640º do CPC, indicando quais os pontos que considera incorrectamente julgados e qual a resposta pretendida e também os concretos meios probatórios que a seu ver impunham decisão diversa da recorrida, resta-nos apreciar a impugnação deduzida.
Em primeiro lugar, considerando a sua relevância para o pedido formulado, importa apreciar aqueles pontos da matéria não provada, com os n.ºs 7 e 8, que a recorrente pretende que sejam dados como provados.
São eles os seguintes:
“7 - A casa foi-lhe oferecida pelo cunhado, EE, que por essa altura se tornara presidente da Câmara Municipal de Ponte de Sor.
8 - A A. e o seu companheiro sempre tiveram a casa como sua e desde que a habitaram agiram na convicção de que o mesmo lhes pertencia, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, sobretudo na ausência do irmão.”
Examinada a sentença recorrida, pode ler-se que o julgador do primeiro grau motivou a sua resposta de não provado na ausência de prova positiva a este respeito, mas também na prova em contrário que tinha sido produzida.
Nomeadamente, destacou o depoimento da testemunha KK, por este ser pessoa descomprometida em relação às partes e ter tido “um contacto muito próximo com o prédio em causa e com a ligação que as pessoas que ali viviam tinham com o prédio.
E acrescenta-se na motivação que “a instâncias do Tribunal esclareceu o mesmo, num depoimento circunstanciado, descomprometido e, por isso, digno de credibilidade, que trabalhou na fábrica ali existente desde 1974 até esta fechar em 1990/92. Nesta data EE vendeu a fábrica a terceiro, o que é do seu conhecimento porque passou a trabalhar para o comprador. Quanto ao Sr. LL, marido da A., referiu que chegou a andar de camioneta a transportar cortiças e que era quem abria o portão para entrarem. E espontaneamente disse, “tinha autorização para lá estar”. E afigura-se que era esta a percepção das pessoas em geral e a realidade dos factos.
Acresce o facto indubitável do teor das acções judiciais identificadas nos factos provados, que o marido da A. foi sucessivamente arrogando-se de diversos títulos relativamente aos prédios e que, em última instância a propriedade do prédio foi reconhecida como pertencendo a outra pessoa e que o mesmo foi solenemente advertido para entregar o imóvel. Estes são factos de natureza tão importante que não se afigura que a A., casada com ele, os pudesse desconhecer.
Assim, afigura-se que nem pela forma mais benevolente poderia a A. ter a convicção de que agia perante um prédio que era seu, bem pelo contrário.
Quanto ao depoimento de parte da autora, explica o julgador na motivação que o mesmo não teve a virtualidade de o convencer quanto à realidade da matéria em causa.
Ao contrário, a recorrente argumenta que esse depoimento deve conduzir à confirmação dos factos controvertidos incluídos nesses dois pontos.
Diremos, desde logo, que não é possível acompanhar e subscrever a posição da recorrente.
O depoimento de parte em questão incidiu sobre os artigos 13.º, 21.º, 22.º, 32.º, 38.º e 44.º da contestação apresentada pelas RR. BB e DD, foi requerido por estas, e visava a confissão dessa factualidade, naturalmente desfavorável à depoente – nos termos previstos nos arts. 452º e seguintes do CPC.
Ora a matéria aqui em causa, que a recorrente pretende ver provada, é matéria do seu interesse, alegada na sua petição inicial, e que a ela incumbe provar, como decorre da repartição do ónus da prova estabelecido no art. 342º, n.º 1, do CPC – não sendo concebível que o faça por “confissão”.
Portanto, essa matéria não poderia ser considerada provada com base no depoimento de parte produzido precisamente pela parte interessada.
E, acrescentamos, na realidade não existe prova alguma que confirme tal factualidade, conforme declarou a primeira instância.
Sublinhamos que as alegações da recorrente, nomeadamente as conclusões, esclarecem qual o sentido da expressão usada no ponto 7 (a casa teria sido “oferecida” pelo irmão ao falecido marido da autora), pretendendo significar efectivamente uma doação, isto é, que a casa foi dada pelo irmão do marido da A.
Não temos qualquer prova que sustente esse facto, e o contexto apurado, nomeadamente a circunstância de se tratar da casa da guarda e de o falecido marido da A. passar trabalhar para a unidade fabril ali instalada, inculcam uma situação diferente.
A recorrente invoca os depoimentos a esse respeito das testemunhas JJ (seu neto), HH, seu vizinho, e II, que foi nora da autora, e é a enfermeira que a trata. Porém, vistos os aludidos depoimentos, nenhum deles tem, nem de longe, a virtualidade de suportar uma resposta positiva sobre a falada doação. Nenhum deles teve a possibilidade de conhecer factualidade tão remota (1979), pelo que sobre isso só poderia ter a convicção que lhes tenha sido transmitida.
E, aliás, os seus depoimentos centraram-se mais no uso que a A. faz da casa que ocupa e do terreno em que se insere, bem como na convicção com que o faz (matéria contida no ponto 8).
Portanto, assentamos firmemente que a factualidade incluída no ponto 7 não está provada, como bem julgou a primeira instância.
E de igual modo não está provado aquilo que consta do ponto 8, referente à convicção de dona por parte da autora. Com efeito, a ocupação e a utilização que a A. faz do local ficou expressa nos factos provados, e não está em dúvida. Mas que o faça no convencimento de que é a dona, e que essa convicção se tenha prolongado no tempo da forma que alega, é circunstância que não tem a menor credibilidade, dada a prova existente.
A sentença recorrida invoca a este propósito o depoimento da já citada testemunha KK, e alude também aos documentos juntos referentes a acções anteriores que versaram o litígio sobre o local (estão juntos com a contestação apresentada pela R. CC).
Ora constata-se que o falecido marido da A. chegou a intentar acção de preferência quando da realização de venda do imóvel, invocando como causa de pedir a sua condição de arrendatário (dizia ter feito acordo verbal de arrendamento com o irmão, pagando de renda 60.000$00 por ano).
E na acção de reivindicação que lhe foi movida pela sociedade adquirente do imóvel o falecido marido da autora defendeu-se invocando novamente a condição de arrendatário, acrescentando subsidiariamente que mesmo na tese da ali autora ele sempre seria comodatário.
Essas posições do marido da A. foram sempre desatendidas nos tribunais, designadamente na primeira instância, neste Tribunal de recurso e mesmo no Supremo Tribunal de Justiça.
Porém, o que aqui mais interessa sublinhar é que não é verosímil, minimamente, que a A. esteja ao longo desse espaço temporal convencida que é dona, por o prédio ter sido doado ao seu marido e por morte deste passar para ela, quando o falecido marido tão porfiadamente lutava para ser reconhecido como arrendatário, e quando este litígio se arrastou tanto tempo nos tribunais.
Concluímos, assim, que a matéria em questão não pode efectivamente ser considerada como provada, pelo que acompanhamos o julgamento da primeira instância, confirmando a resposta de não provado dada a esses pontos 7 e 8.
Falta apenas analisar a impugnação feita ao n.º 20 dos factos provados, em que a sentença declarou que “Desde a data em que o adquiriram e até à presente data, têm sido as RR., bem como a irmã de ambas – Proprietárias - a suportar todos os impostos decorrentes da propriedade do Prédio”, pedindo a recorrente que isso seja dado como não provado.
Observamos em primeiro lugar que tal matéria torna-se irrelevante para a decisão da causa, considerando o conjunto da matéria de facto disponível. Sejam quais forem as infracções fiscais das RR, a realidade é que estamos perante uma acção em que a A. sustenta que adquiriu por usucapião, e faltam os pressupostos indispensáveis para a procedência desse pedido.
Todavia, sempre diremos que os impostos mencionados são aqueles que decorrem da propriedade do prédio (v. g. IMI), e não as taxas que a A. refere como sendo suportadas por ela própria. Alega a A. que suporta as taxas de saneamento ou recursos hídricos e a taxa de resíduos sólidos, já que o prédio tem saneamento, água e recolha de lixo, mas isso não se coloca em dúvida, parecendo, no entanto, uma decorrência lógica da utilização que faz e tem feito do local, tal como descrito na matéria provada, já que essas obrigações recaem sobre os utilizadores desses serviços.
E, regressando à impugnação em apreço, nenhum meio de prova existe que imponha resposta diversa daquela a que chegou o tribunal recorrido, baseado na prova documental.
Nota-se que a redacção utilizada não expressa com a clareza e simplicidade desejável o facto que se pretendeu dar como provado (que os impostos inerentes à propriedade são suportados pelas RR), ao dizer-se ali que “têm sido as RR., bem como a irmã de ambas” a fazê-lo. É notório que essa formulação decorre da circunstância de ter sido retirada da contestação das RR. BB e DD, que aludem à terceira irmã, CC, que só mais tarde veio a contestar autonomamente.
Nota-se também a indesejável utilização de termos jurídicos conclusivos, aliás desnecessários.
Porém, nada disso afecta a conclusão já apresentada, sobre a improcedência da impugnação deduzida (a apelante pretende que a factualidade constante deste ponto seja dada como não provada), pelo que nenhuma alteração se determina em relação à matéria de facto dada por assente na sentença recorrida, a qual assim se mantém inalterada.
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VII – DO MÉRITO DA CAUSA
Os pedidos da A. traduzem-se em ver reconhecida a qualidade de proprietária do imóvel que identifica, por o ter adquirido por usucapião, com as legais consequências daí derivadas.
A usucapião, ou prescrição aquisitiva, é uma forma de aquisição originária e está regulada no art. 1287º e seguintes do Código Civil.
Estatui esta norma que “a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação”.
A este propósito pode ler-se na sentença recorrida:
“A posse é, nos termos do art. 1251º, “o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real”.
“Doutrinária e jurisprudencialmente é a posse considerada como constituída por dois elementos: o “corpus” e o “animus”.
“O “corpus” corresponde ao exercício de um poder de facto sobre a coisa que se possui, isto é, constitui o elemento material da posse. Corresponde exactamente ao que é descrito na noção de posse do art. 1251º do Código Civil como a actuação por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou outro direito real.”
“O “animus” como elemento da posse corresponde a uma intenção por parte do possuidor em agir como se fosse titular desse direito real.”
“Este elemento subjectivo da posse não é expressamente exigido pela lei, mas retira-se da interpretação que é necessário fazer para distinguir as situações de posse das situações de mera detenção. E assim nos diz o art. 1253º do Código Civil que classifica como detentores ou possuidores precários aqueles que exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito. Logo, por interpretação “a contrario”, só terá posse quem exercer esse poder de facto com intenção de agir como beneficiário do direito.”
E mais adiante:
“Da matéria de facto provada resulta que a A., conjuntamente com o seu companheiro e seu marido, em 1979, conforme alegam, passara a utilizar uma habitação existente no prédio em causa, que era utilizada por quem tinha a guarda do estabelecimento industrial instalado no prédio, como sua habitação, ali fazendo o centro da sua vida familiar e na qual permaneceu a A. até aos presentes dias.”
“Todavia, sem necessidade de maiores considerações, e com os fundamentos constantes na fundamentação da matéria de facto (em especial da não provada), resultou longe de demonstrado que ao habitá-la a A. e o seu marido agissem na convicção de que a propriedade lhe pertencia desde inicio, ou que a partir de algum momento passou a pertencer-lhes, consubstanciando eventual inversão do titulo da posse, nos termos do disposto no art. 1265º do Cód. Civil, nomeadamente a partir da morte do irmão da A.”
“Com efeito, da matéria de facto provada, designadamente tendo em consideração o teor das acções judiciais ali identificadas, o marido da A. sempre se arrogou de títulos, nomeadamente de arrendamento, que apenas são susceptíveis de caracterizar uma posse em nome de outrem ou uma detenção precária. Tal, como já se escreveu, não poderia ser desconhecido da A.”
Estamos inteiramente de acordo, pelo que julgamos desnecessário acrescentar mais argumentação. Os pedidos da A. são improcedentes, por não se terem provado os factos conducentes à aquisição por usucapião, maxime a existência de posse em nome próprio, requisito indispensável à procedência do pedido.
Vem a propósito recordar a este respeito, por se afigurar oportuno perante esta acção agora instaurada pela A. AA, aquilo que ficou escrito na parte final do Acórdão do Tribunal de Évora de 17 Fevereiro de 2011 (Recurso 265/89.E1), quando ali se explica que nada permite considerar a aquisição por usucapião sobre este imóvel mencionada pelo marido da A. para o caso de falharem as suas alegações sucessivas sobre a qualidade de arrendatário ou de comodatário: “é absolutamente inconcebível, raiando até o campo da afronta aos mais elementares ditames da consciência jurídica e ao falado dever de probidade, alegar um facto (o pagamento da renda) que contém implicitamente a afirmação de posse em nome alheio e, ao mesmo tempo, pretender que se adquiriu a propriedade da coisa possuída por um título (usucapião) que pressupõe a convicção de que se possuía em nome próprio, sendo certo que nunca o A. alegou qualquer facto demonstrativo da inversão do título a coberto do qual, na sua versão, passou a habitar no imóvel ora reivindicado”.
Claro que nos presentes autos a A. não veio alegar esses títulos, de arrendatária ou comodatária, mas o certo é que veio invocar a aquisição por usucapião – e não logrou fazer prova dos factos que poderiam conduzir a tal.
Assim, improcede o recurso interposto, impondo-se confirmar a sentença recorrida, a qual não merece censura.
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VIII - DECISÃO
Por todo o exposto, julgamos improcedente a apelação, confirmando integralmente a sentença recorrida.
As custas caberiam à ré/recorrente, dado o seu decaimento (cfr. art. 527.º, n.º 1, do CPC), verificando-se, porém, que a mesma goza de apoio judiciário.
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Évora, 26 de Outubro de 2023
José Lúcio
Manuel Bargado
Albertina Pedroso