Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1632/15.8T8BJA-D.E1
Relator: ANA PESSOA
Descritores: VENDA JUDICIAL
DETERMINAÇÃO DO VALOR
Data do Acordão: 10/26/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I. O Tribunal pode autorizar a venda por preço inferior ao valor base mesmo que as partes não se tenham pronunciado nesse sentido, desde que, das diligências efetuadas para a venda resulte dificuldade em obter um valor que satisfaça o mínimo fixado, realizando juízo de ponderação dos elementos do processo que habilitem tal decisão, como a duração da execução, o período de tempo já decorrido com a realização da venda, a evolução da conjuntura económica, as potencialidades da venda do bem, o interesse manifestado pelo mercado, a desvalorização sofrida e a sofrer, valores de mercado da zona e outros elementos relevantes para ajuizar acerca da aceitação da oferta, comportando controlo da legalidade e um juízo equitativo de equilíbrio dos interesses concorrentes.
II. A assim se não entender, correr-se-ia o risco de se não se conseguir vender o bem ou de se vir a vender mais tarde por um valor inferior, face à depreciação decorrente do passar do tempo, e até com o avolumar da dívida pelo arrastar da situação, riscos a evitar, na realização da justiça que se pretende eficaz e célere.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora,


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I. RELATÓRIO.

Nos autos de execução comum para pagamento de quantia certa que CAIXA ECONÓMICA MONTEPIO GERAL move contra AA foi proferido em 01.02.2023 despacho do seguinte teor:

“Em 29.12.2017, o Sr. Agente de Execução proferiu a seguinte decisão de venda:

Verba 1 - Prédio urbano, composto por 4 compartimentos sendo 2 de habitação, cavalariça e palheiro, construído de taipa, sito na ..., em Corte Pinto, Mértola, descrito na Conservatória do Registo Predial de Mértola sob o nº. ...39, da freguesia de Corte do Pinto, inscrito na respectiva matriz predial sob o art. ...51º, da freguesia de Corte do Pinto, com o valor patrimonial de 1.587,38 Euros

Valor base: 75.000,00 Euros

Valor mínimo (85%): 63.750,00 Euros.

Verba 2 - Prédio rústico, sito na ..., em Corte Pinto, Mértola, descrito na Conservatória do Registo Predial de Mértola sob o nº. ...12, da freguesia de Corte do Pinto, inscrito na respectiva matriz predial sob o art. ...22º, secção E, da freguesia de Corte do Pinto, com o valor patrimonial de 96,16 Euros

Valor base: 5.000,00 Euros

Valor mínimo (85%): 4.250,00 Euros.

A decisão não foi objecto de qualquer reclamação.

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Por decisão de 07.01.2020, a execução foi declarada extinta em virtude de a executada ter sido declarada insolvente no âmbito do processo supra aludido, após aprovação do plano de pagamentos apresentado pela insolvente e homologado por sentença.

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Em 23.06.2021, a pedido da exequente, o Sr. Agente de Execução procedeu à renovação da execução.

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Em 12.08.2021, o Sr. Agente de Execução informou as partes de que os imóveis serão vendidos por leilão online, entre os dias 11.08. e 30.09.2021.

Em 05.11.2021, o Sr. Agente de Execução informou as partes de que os imóveis serão vendidos por leilão online, agora em lote único, entre os dias 04-11-2021 e 09.12.2021.

Em 10.12.2021, o Sr. Agente de Execução informou as partes de que o leilão electrónico resultou no estado de deserto por inexistência de propostas, pelo que decidiu pela venda do bem mediante negociação particular pelo valor mínimo anunciado na venda por leilão electrónico, ou seja, pelo valor de 68.000,00 Euros, ficando nomeado como encarregado da venda o Agente de Execução, sendo que a mesma será novamente publicitada na plataforma www.e-leiloes.pt., na modalidade de venda por negociação particular.

Em 10.01.2022, o Sr. Agente de Execução informou as partes de que se encontra designada a data do leilão electrónico, para venda por negociação particular, decorrendo de 10/01/2022 (15:42h) a 12/04/2022, (14:30h)

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Em 24.01.2022, BB dirigiu ao processo proposta de aquisição da verba 1, pelo valor de €4.000,00, a qual mereceu a oposição das partes.

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Em 01.06.2022, a exequente requereu a redução do Valor Base para €35.294,00, sendo o valor mínimo de €30.000,00.

Da mesma notificada, a executada nada disse.

O Sr. Agente de Execução, respondendo a notificação do Tribunal, esclareceu que para fixação dos valores base teve em consideração o valor de mercado dos imóveis da área de localização do bem penhorado – Concelho de Mértola e ainda os valores invocados quer pelo exequente quer pela executada, quando ouvidos antes da decisão de venda.

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Notificada a executada para se pronunciar quanto à redução do valor base de venda veio alegar que a discrepância entre os valores propostos por esta e os valores fixados pelo Agente de Execução, é muita, até porque, ao contrário do que resulta da avaliação que foi junta aos autos, o Agente de Execução atribuiu um valor irrisório ao prédio rústico e um muito mais alto ao urbano, não tendo em consideração nem o que foi proposto pela Executada, nem tão pouco a avaliação que se juntou.

Mais alega que o valor base dos bens penhorados foi fixado há quase cinco anos, logo o mesmo não pode considerar-se actual, pelo que requer a realização de avaliação para se determinar o valor de mercado daqueles.

O Sr. Agente de Execução reiterou as informações quanto à determinação do valor base da venda, da sua realização num único lote e da ausência de qualquer reclamação ao valor base objecto da sua decisão de 29.12.2017.

A exequente opõe-se à realização de perícia por constituir manobra dilatória da executada para obstar à venda dos imóveis por valor diferente do valor mínimo fixado.

A exequente dirigiu ao Sr. Agente de Execução proposta de aquisição dos imóveis pelo valor de €21.200,00.

O Sr. Agente de Execução não apresentou a proposta à apresentação do Tribunal, mas notificou as partes para se pronunciarem quanto à mesma, com a indicação de que não existindo oposição ou proposta de valor superior seria a mesma aceite e consequentemente requerida ao Tribunal autorização para venda.

Cumpre apreciar.

Ora, como bem aduz a exequente, a executada não deduziu oposição à decisão de venda do Sr. Agente de Execução que fixou o valor base conjunto dos imóveis penhorados em €80.000,00.

Tal era o momento processualmente adequado a que a executada requeresse a avaliação dos imóveis penhorados e não em sede de autorização para venda dos imóveis por valor abaixo do valor mínimo anunciado.

Por outro lado, a executada nada invoca para a necessidade dessa avaliação para além do decurso do tempo,

Ora, desde 2017, tendo presente a localização concreta dos imóveis, não se apurou qualquer facto que determine colocar em causa a avaliação que foi realizada pelo Sr. Agente de Execução.

Note-se ainda que a avaliação junta pela exequente, apresenta amostras similares, algumas das quais descrevem a existência de acesso a água ou têm culturas existentes, pelo que a amostra foi depreciada. Foi ainda considerado um desconto acima da média, pelo facto de os períodos de transacção serem superiores a 35 meses.

Na avaliação junta pela exequente os bens são descritos como “Os prédios em avaliação localizam-se na freguesia de Corte do Pinto, freguesia do concelho de Mértola, cujos limites faz fronteira com Espanha e o rio Guadiana. Não foi possivel comprovar os limites dos prédios, no entanto é um local que aparentemente não tem acessos insfraestruturados e carece a maior pare do ano de água em quantidade suficiente para o desenvolvimento estável de uma qualquer actividade. O prédio ...12 tem 10,6 Ha cujo registo refere como cultura arvense. O prédio ...39 será uma ruína com 64m2 destinado a palheiro e cavalariça, e que desconhecemos o seu estado de conservação. Este último prédio não tem acesso autónomo, pelo que aqui é valorizado em conjunto com o prédio que está na sua envolvente.”

Acresce que, desde a renovação a execução, para além da exequente, apenas foi apresentada uma proposta, no valor de €4.000,00.

Afigura-se-nos, antes de mais, que frustrada a abertura de propostas em carta fechada, a lei determina que a venda se processe por negociação particular, ficando precludida a possibilidade de requerer a adjudicação, designadamente, por valor inferior a 85% do valor base, nos termos dos artigos 799.º e 800.º do Código de Processo Civil.

Com efeito, dispõe o artigo 799.º, n.º 3 do Código de Processo Civil que, na adjudicação, o preço oferecido pelo requerente não pode ser inferior ao valor a que alude o n.º 2 do artigo 816.º do Código de Processo Civil, ou seja, a 85% do valor base dos bens. Ora, da leitura conjugada dos artigos 799.º e 822.º, n.º 2 do Código de Processo Civil resulta que a intenção legal é, claramente, e ainda que nenhuma proposta seja apresentada (daí a previsão expressa efectuada no artigo 822.º, n.º 2, do Código de Processo Civil quanto ao prosseguimento para a venda por negociação particular), de não permitir que se defraude a imposição legal de respeito do valor mínimo de 85% do valor base inicial dos bens para a adjudicação (ao exequente ou a outro credor reclamante) mediante a aceitação de valor muito inferior ao legalmente exigido apenas porque não foram apresentadas propostas que cobrissem o valor anunciado para venda, quando o credor ou exequente que estivesse interessado na adjudicação do bem a poderia ter requerido em conformidade com o disposto no artigo 799.º do Código de Processo Civil.

Na negociação particular já não vigora o limite dos 85% do valor base do bem que vigora para a adjudicação e para a venda por abertura de propostas em carta fechada - neste sentido, cfr. acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 29.04.2008, proferido no processo n.º 0822725, na base de dados da DGSI: “1. Na venda executiva por negociação particular é possível fixar o valor mínimo da venda abaixo de 70% do valor base inicial dos bens, sem o acordo do executado. 2. Não é assim no caso de adjudicação, tendo em conta o disposto no art. 875º nº 3 do CPC.”.

Pois bem, porque na negociação particular vigora a regra da melhor proposta, sem sujeição ao mínimo de 85%, na situação concreta dos autos, em que a execução se encontra pendente desde o ano de 2015, e não se obteve melhor proposta do que aquela que foi apresentada pela proponente/exequente, nada impede que o negócio se realize com a mesma, a formalizar extrajudicialmente

Atento o exposto, decide-se:

i. indeferir a avaliação do imóvel

ii. autorizar a venda pelo valor da proposta apresentada pela exequente.

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Notifique a exequente, os executados e o Agente de Execução.”

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Inconformada, recorreu a Executada apresentando, após alegações, a seguinte síntese conclusiva:

A) Em vinte e nove de Dezembro de dois mil e dezassete, o Sr. Agente de Execução proferiu a decisão de venda, relativamente aos dois imóveis penhorados nos presentes autos, fixando como valor base para a verba 1, 75.000,00 Euros, sendo o Valor mínimo (85%): 63.750,00 Euros e fixado para o Imóvel Verba no 2 , o Valor base de € 5.000,00 Euros, sendo o valor mínimo (85%): € 4.250,00 Euros;

B) Em sete de Janeiro de dois mil e vinte a presente Execução foi declarada extinta face à entrada em juízo de um processo especial de acordo de pagamento, PEAP e em vinte e três de Junho de dois mil e vinte e um foi renovada a execução;

C) Através de notificação do Sr. Agente de Execução datada de doze de Agosto de dois mil e vinte e um, foram as partes notificadas de que os Imóveis, objeto de penhora nos presentes autos e acima referenciados, iriam ser vendidos por meio de leilão eletrónico, o que se frustrou e, posteriormente, o Sr. Agente de Execução informou as partes de que os imóveis iriam ser vendidos por leilão online em lote único, entre os dias quatro de Novembro de nove de Dezembro de dois mil e vinte e um,

D) O leilão ficou deserto por inexistência de qualquer proposta;

E) Acto contínuo, foi proferida decisão de venda do bem mediante negociação particular pelo valor mínimo anunciado na venda por leilão electrónico, ou seja, pelo valor de € 68.000,00 Euros;

F) Em 01.06.2022, e na sequência de um pedido da Exequente de redução de valor mínimo base a atribuir aos bens para € 35.294,00, sendo o valor mínimo de €30.000,00, o Sr. Agente de Execução, respondendo a notificação do Tribunal, esclareceu que para fixação dos valores base teve em consideração o valor de mercado dos imóveis da área de localização do bem penhorado e ainda os valores invocados quer pela Exequente quer pela Executada, quando ouvidos antes da decisão de venda;

G) Por discordar de tal posição, veio a Executada alegar que a discrepância entre os valores propostos por esta e os valores fixados pelo Agente de Execução, é muita, até porque, ao contrário do que resulta da avaliação que foi junta aos autos, o Agente de Execução atribuiu um valor irrisório ao prédio rústico e um muito mais alto ao urbano, não tendo tido em consideração nem o que foi proposto pela Executada, nem tão pouco a avaliação que se juntou,

H) Mais alegou que, o valor base dos bens penhorados foi fixado há praticamente cinco anos, logo o mesmo não pode considerar-se actual, pelo que requereu a realização de avaliação para se determinar o valor de mercado daqueles,

I) O Sr. Agente de Execução reiterou a sua posição quer quanto à determinação do valor base da venda, quer quanto à sua realização num único lote e reiterando de igual forma a ausência de qualquer reclamação ao valor base objecto da sua decisão de 29.12.2017, ou seja, volvidos cerca de cinco anos,

J) A Exequente opõe-se à realização de perícia por entender que tal pedido constituía manobra dilatória da executada para obstar à venda dos imóveis por valor diferente do valor mínimo fixado.

K) A Exequente apresentou ao Sr. Agente de Execução proposta de aquisição dos imóveis pelo valor de €21.200,00 (vinte e um mil e duzentos euros), não tendo em consideração que o valor base fixado para a venda dos imóveis penhorados num único lote era de € 80.000,00 (oitenta mil euros), ou seja cerca de € 60.000,00 (sessenta mil euros) de diferença);

L) O que mereceu imediata oposição da Executada, com inclusão de pedido de avaliação;

M) Tal pretensão veio a ser indeferida pelo Tribunal a quo, uma vez que entendeu que este não era o momento adequado para requerer a avaliação, que entendia que teria sido em 2017, e que por outro lado, a Executada nada invocou para a necessidade dessa avaliação para além do decurso do tempo;

N) Argumento que salvo melhor e Douta opinião se mostra mais do que suficiente senão vejamos:

O) A última avaliação que foi feita aos imóveis em questão é do ano de dois mil e dezassete;

P) Ora, desde dois mil e dezassete com certeza que houve alterações quanto aos métodos e formas de avaliação e critérios subjacentes até porque, ano após ano, a realidade muda, a que não fica indiferente a realidade imobiliária,

Q) É escandalosa e manifesta a desproporção de valores entre a proposta apresentada e o valor que se fixou como mínimo, a que acresce o facto de essa fixação ter ocorrido há cerca de cinco/seis anos, não sendo legítimo concluir que se mostre actual, por qualquer meio ou forma,

R) Antes de ponderar pela autorização judicial da venda por preço inferior, o Tribunal a quo deveria ter averiguado, através de perícia adequada, qual seria, efetivamente, o valor de mercado dos imóveis, para após e em consciência, mesmo com a não anuência de alguma das partes, poder autorizar a venda pelo preço que efetivamente se viesse a constatar ser o verdadeiro e real preço de mercado (neste sentido vide Acórdão da Relação de Évora de 03-03-2010, proc. n.º 150-E/1991.E1, www.dgsi.pt;

S) Teria sido crucial a realização de perícia, a fim de se determinar, com justiça e rigor, o valor comercial atual dos imóveis penhorados nos autos, o que se deveria ter determinado;

T) Até porque a falta o indeferimento do pedido de avaliação e a consequente adjudicação dos Imóveis à Exequente prejudica gravemente a Executada, uma vez que a adjudicação de um bem por um valor manifestamente inferior ao seu valor real e igualmente inferior ao valor correspondente à quantia exequenda, a Executada não só fica sem o património, como fica com o remanescente da dívida para pagar,

U) Enquanto que a Exequente adquire um bem, por um valor verdadeiramente ridículo, e virá, de seguida, continuar a exigir à Executada o pagamento do remanescente da dívida;

V) Ao admitir-se esta realidade, está o Tribunal a quo a permitir que a Exequente beneficie injustificadamente de um enriquecimento do seu património à custa do empobrecimento da Executada, num verdadeiro abuso de Direito, tanto mais que a Exequente inicial, avaliou os imóveis em causa num valor superior ao ora adjudicado, e constituiu garantia real sobre os mesmos;

W) A Exequente ao propor a aquisição, e adquirir efetivamente, os imóveis por um valor que sabe ser manifestamente inferior ao que lhe atribuíra anteriormente, está a "formatar", unilateralmente e muito além do que são os limites da boa fé e do fim social e económico do seu direito, aquele que há de ser o quantitativo do remanescente de dívida com base no qual continuará a consumir o património da Executada;

X) Assim e em jeito de conclusão, sempre se dirá que andou mal , o Tribunal a quo ao indeferir a avaliação dos imóveis e ao autorizar a venda pelo valor da proposta apresentada pela exequente, por clara violação do princípio da proporcionalidade e da confiança da tutela jurisdicional da Executada.

Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, revogada a Douta decisão recorrida, bem como todos os actos subsequentes à adjudicação dos bens, como é de Lei e elementar JUSTIÇA!”

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Não foram apresentadas contra-alegações.

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II. Questões a decidir.

Sendo certo que o objeto do recurso se delimita pelas conclusões das alegações da Apelante (cf. artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil), a questão cuja apreciação importa apreciar e decidir consiste em apurar se é de autorizar a venda pela proposta apresentada pela Exequente ou, ao invés, deve ser realizada a avaliação requerida pela Executada.

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III. FUNDAMENTAÇÃO.

III.1. Fundamentação de facto:

Para a resolução do presente recurso relevam os factos constantes do antecedente relatório e os que foram considerados pelo Tribunal Recorrido na decisão sob censura.

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III. Fundamentação jurídica.

A regulamentação adjetiva da venda executiva, insere-se na Subsecção VI Venda , da Secção V Pagamento , do Capítulo I Do processo ordinário, do Titulo III Da execução para pagamento de quantia certa, do Livro IV Do processo de execução, sendo que na Divisão I – Disposições gerais (que, por isso, se aplicarão a todas as modalidades da venda ali previstas) daquela subsecção, no nº1, do artigo 811.º do Código de Processo Civil, se dispõe:

“1 - A venda pode revestir as seguintes modalidades: a) Venda mediante propostas em carta fechada; b) Venda em mercados regulamentados; c) Venda direta a pessoas ou entidades que tenham direito a adquirir os bens; d) Venda por negociação particular; e) Venda em estabelecimento de leilões; f) Venda em depósito público ou equiparado; g) Venda em leilão eletrónico”.

Atualmente, o artigo 837º, n.º 1 do Código de Processo Civil estabelece que a venda de bens imóveis é feita, preferencialmente, em leilão eletrónico, que se encontra regulada nos artigos 20º a 26º da Portaria n.º 282/13, de 29.08.

No n.º 2 do referido artigo 811º consagra-se que “O disposto no artigo 818º, no nº 2 do artigo 827º e no artigo 828º para a venda mediante propostas em carta fechada aplica-se, com as necessárias adaptações, às restantes modalidades de venda e o disposto nos artigos 819º e 823º aplica-se a todas as modalidades de venda, excetuada a venda direta”.

Ainda no âmbito da regulamentação genérica da venda em processo executivo, importa considerar que nos termos do artigo 812.º na decisão sobre a venda, para além da determinação da modalidade de venda tem de ser determinado o valor base dos bens a vender, sendo que “O valor base dos bens imóveis a vender corresponde ao maior dos seguintes valores:

a) valor patrimonial tributário, nos termos de avaliação efetuada há menos de seis anos;

b) valor de mercado”.

O n.º 5 do artigo 812º do Código de Processo Civil atribui ao agente de execução os poderes necessários para, por sua iniciativa, ou a requerimento de qualquer interessado, promover diligências com vista à determinação do valor de mercado, designadamente, uma avaliação ou perícia singular. É pois, nesta fase, que o executado, caso o considere conveniente, deve requerer ao agente de execução, a realização das diligências relativas à fixação do valor dos bens penhorados.

No âmbito da venda mediante propostas em carta fechada (cf. nº2, do artigo 816.º), determina-se que “o valor a anunciar para a venda é igual a 85% do valor base dos bens”, preceito aplicável à venda em leilão eletrónico, por via do disposto nos artigos 837º e 817, n.º 3 do Código de Processo Civil.

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No caso, tendo sido inicialmente determinada a venda por leilão eletrónico, nos termos do referido artigo 837º referido, o valor base fixado pelo Sr. Agente de Execução (80.000 valor base e 68.000,00 de valor mínimo a anunciar) mereceu o acordo de ambas as partes.

Tendo-se a mesma frustrado, por ausência de qualquer proposta, foi determinada a venda por negociação particular, em conformidade com o disposto no artigo 832º, al. f) do Código de Processo Civil.

Ora, se é certo que nos termos da disposição geral contida no artigo 812.º, n.º 2 , al. b) e nº3, mesmo no caso de venda por negociação particular, deve ser indicado o valor base dos bens a vender, não é de transpor para esta modalidade da venda, o que se acha consagrado no nº2, do artigo 816.º, pois que determinando o nº2, do artigo 811.º, as normas da venda mediante propostas em carta fechada que são aplicáveis às demais modalidades da venda, nela se não prevê a limitação do valor mínimo da venda, e se o legislador pretendesse que assim fosse tê-la-ia incluído[1].

O que encontra explicação na circunstância de a venda por negociação particular é, em regra, uma situação de recurso, uma vez frustrada a venda mediante leilão ou por propostas em carta fechada, tal como decorre do disposto no artigo 832.º com vista a, numa segunda oportunidade, se obter o pagamento do crédito pelo produto da venda do bem penhorado, pelo que nada permite concluir pela existência de tal limitação.

Assim, tem de se ter em consideração a disposição geral que estabelece a regra de só devem ser aceites propostas de valor inferior ao indicado no nº3 do artigo 812º, caso exequente, executado e todos os credores com garantias sobre os bens a vender nisso acordem, consagrada no nº1, do referido artigo, e, partindo dela, que impõe a conciliação do interesse de todas as pessoas referidas, e olhando ao mencionado no antecedente paragrafo, cabe extrair uma outra regra – a de que só é admissível a venda de um bem, por negociação particular, por valor inferior ao referido no citado nº 2, do artigo 816.º, garantidos que se mostrem os interesses das pessoas referidas, os quais têm de ser sopesados e ponderados casuisticamente.

Na verdade, como referem José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes “se o valor-base não for atingido, só por acordo de todos os interessados ou autorização judicial será possível a venda por preço inferior. Embora a lei nada diga, releva do poder jurisdicional a decisão de dispor do bem penhorado, pertença do executado e garantia dos credores, mediante a obtenção de um preço inferior àquele que, de acordo com o resultado das diligências efectuadas pelo agente de execução, corresponde ao valor de mercado do bem; nem faria sentido que, quando o agente de execução é encarregado da venda ou escolha da pessoa que a fará, lhe coubesse baixar o valor-base dos bens, com fundamento na dificuldade em o atingir. O juiz conserva, pois, o poder, que já tinha (…), de autorizar a venda por preço inferior ao valor-base.”[2].

As regras relativas à negociação particular, modalidade de venda residual, prevista designadamente para os casos de frustração de outras modalidades de venda, não exigem, pois, a fixação de preço mínimo, devendo-se, sempre, ajustar o valor do bem à condição do mercado por forma a potenciar a maior receita possível.

Desde logo, a existir acordo de todos os interessados é possível realizar a venda por preço inferior ao valor base sem intervenção do juiz.

Mas, se esse acordo não for obtido então a venda por negociação particular por valor inferior ao valor base, só pode ser concretizada mediante autorização judicial e desde que garantidos os interesses das pessoas/entidades indicadas no artigo 821.º, n.º 3 do diploma citado.

A defesa dos interesses de todos os intervenientes e interessados acima referidos, mormente dos executados e demais credores, ao autorizar a venda por um preço inferior ao anunciado para a venda, terá de resultar, casuisticamente, da ponderação de diversos factores “tendo conta, designadamente, o período de tempo já decorrido com a realização da venda”.

O Tribunal pode autorizar a venda por preço inferior ao valor base mesmo que as partes não se tenham pronunciado nesse sentido, desde que, das diligências efetuadas para a venda resulte dificuldade em obter um valor que satisfaça o mínimo fixado, realizando juízo de ponderação dos elementos do processo que habilitem tal decisão, como a duração da execução, o período de tempo já decorrido com a realização da venda, a evolução da conjuntura económica, as potencialidades da venda do bem, o interesse manifestado pelo mercado, a desvalorização sofrida e a sofrer, valores de mercado da zona e outros elementos relevantes para ajuizar acerca da aceitação da oferta, comportando controlo da legalidade e um juízo equitativo de equilíbrio dos interesses concorrentes.

A assim se não entender, correr-se-ia o risco de se não se conseguir vender o bem ou de se vir a vender mais tarde por um valor inferior, face à depreciação decorrente do passar do tempo, e até com o avolumar da dívida pelo arrastar da situação, riscos a evitar, na realização da justiça que se pretende eficaz e célere.

Por outro lado, não se pode esquecer que o fundamento e a justificação da venda executiva se encontra na eficácia do título executivo, que cria para o credor o direito à ação executiva, cria para o executado um estado de sujeição, o devedor fica sujeito às medidas que órgão executivo (o juiz) está autorizado, por lei, a pôr em prática para dar satisfação ao direito do credor (responsabilidade executiva do devedor) - o executado, deixando de cumprir a obrigação que contraíra, fica submetido à responsabilidade executiva -, e faz emergir para o órgão executivo (o juiz) o poder dever de pôr em movimento a sua atividade em ordem à realização do direito do credor e à efetivação da responsabilidade do devedor. A venda judicial efectiva, portanto, a responsabilidade patrimonial do devedor, na medida em que o produto da venda paga, de forma total ou parcial, a dívida exequenda.

É esta a finalidade principal do processo executivo, estando plenamente justificada a restrição aos direitos fundamentais do executado, em especial ao direito de propriedade privada, consagrado no art.º 62.º da Constituição da República Portuguesa.[3]

Além disso, especificamente nestas situações de venda por negociação particular por frustração da venda por propostas em carta fechada, há ainda que atender a que se trata de uma modalidade de recurso e que, não tendo surgido propostas de valor superior a 85 % do valor base no leilão eletrónico, num período de tempo razoável, com grande probabilidade não será possível encontrar no mercado propostas de compra superiores a esse valor.

E portanto, nesta fase não se pretende já, determinar o valor do bem, que foi, como se viu, previamente determinado, mas antes, perante a inexistência de proponentes para aquele valor, encontrar um outro que permita concretizar a venda e pagar, ainda que parcialmente, a dívida exequenda, tudo no interesse do credor, mas também do executado em não ver a sua dívida aumentar a sua situação se sujeição à execução, arrastar-se sem fundamento.

Não merece, pois, censura, a decisão do Tribunal Recorrido de indeferir nesta fase, novas diligências de avaliação dos imóveis penhorados, pois que de nada serve encontrar um valor que não encontre compradores interessados.

Ora, no caso, tendo em consideração que a execução foi instaurada há mais de cinco anos, as diligências de venda designadamente, os vários leilões a que se procedeu sem qualquer proposta ter sido apresentada, tendo a negociação particular vindo na sequência da frustração da venda por essa modalidade, e, já depois de decidida a venda por negociação particular, à apresentação de uma única proposta de aquisição para a verba n.º 1, no valor de €4.000,00, conclui-se que a venda pelo valor proposto, ainda que acentuadamente inferior, ao publicitado (nº2, do artigo 816º, do Código de Processo Civil) não viola os interesses patrimoniais dos referido credores e mesmo os dos executados, sendo, por isso, de autorizar, para se efetuarem pagamentos, evitando assim o avolumar da dívida e o desvalorizar dos imóveis, que futuramente pode nem aquele valor permitir obter.

Improcedem, por conseguinte, as conclusões da apelação, não ocorrendo a violação de qualquer dos normativos invocados pelo Apelante, devendo, por isso, a decisão recorrida ser mantida.

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IV. DECISÃO:

Pelo exposto, acordam em negar provimento à apelação e, em consequência, manter a decisão recorrida.

Custas pelo Apelante - artigo 527º, nos 1 e 2 do CPC.

Registe e notifique.

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Évora, 26-10-2023

Ana Pessoa

Maria Adelaide Domingos

Maria João Sousa e Faro


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[1] Cf. o Acórdão da Relação do Porto de 09.11.2020, proferido no âmbito do processo n.º 942/05.7TBAGD-D.P1, acessível em www.dgsi.pt

[2] Código de Processo Civil Anotado, Vol. 3.º, Coimbra Editora, setembro de 2003, pgs 601 e 602; Cf. ainda Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa em Código de Processo Civil Anotado, Vol. II., 2022, 2ª Ed. pgs. 256,257.

[3] Cf. Acórdão da Relação do Porto de 28.04.2020, proferido no âmbito do processo n.º 615/14.0T8AGD-C.P1