Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
393/22.9T8FAR.E1
Relator: EMÍLIA RAMOS COSTA
Descritores: CONTESTAÇÃO
VALIDADE DA PROVA
TRABALHO SUPLEMENTAR
ÓNUS DE ALEGAÇÃO E PROVA
Data do Acordão: 10/26/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I – A apreciação da matéria de facto e, consequentemente, a apreciação dos meios de prova, não constitui questão colocada pelas partes, sendo tal matéria a decidir em sede de impugnação da matéria de facto ou, sendo esse o caso, em sede de conhecimento oficioso da matéria de facto, nos termos do n.º 1 do art. 662.º do Código de Processo Civil.
II – Daí que o atendimento de um meio de prova ilegal reflete-se a nível de erro de julgamento e não a nível da nulidade da sentença por excesso de pronúncia.
III – A apreciação oficiosa da matéria de facto prevista no n.º 1 do art. 662.º do Código de Processo Civil pressupõe que se esteja perante uma situação de meio de prova plena, seja tal meio documental, por confissão ou por admissão.
IV – Em relação à prova documental apenas faz prova plena dos factos praticados pela autoridade ou oficial público respetivo, nos termos do art. 371.º, n.º 1, do Código Civil, o documento autêntico.
V – O ónus da prova do trabalho suplementar compete à Autora, nos termos do art. 342.º, n.º 1, do Código Civil.
VI – Para que haja impugnação dos factos alegados pelo Autor basta ao Réu fazer consignar, na sua contestação, que, em concreto, não aceita tais factos como verdadeiros, não sendo sequer necessário apresentar uma versão diferente daquela que consta da petição inicial e, muito menos, proceder à junção de meios de prova que contrariem a versão invocada pelo Autor.
VII – Daí que a eventual junção por parte do Réu de um meio de prova inválido não determina qualquer confissão dos factos alegados pelo Autor.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
Proc. n.º 393/22.9T8FAR.E1
Secção Social do Tribunal da Relação de Évora[1]
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório
AA (Autora) intentou a presente ação declarativa de condenação, emergente de contrato individual de trabalho, sob a forma de processo comum, contra “Om Wash, unipessoal, Lda.”, (Ré), solicitando, a final, que a ação seja julgada procedente por provada e, em consequência, seja a Ré condenada no pagamento:
à Autora da quantia de €3.870,15, a título de trabalho suplementar;
à Autora da quantia de €3.000,00, a título de danos não patrimoniais, em face da discriminação de que foi vítima; e
das custas do processo e demais encargos legais.
Alegou, em síntese, que a Autora celebrou contrato de trabalho com a Ré em 18-06-2019, com início nessa data, para desempenhar as funções inerentes à categoria de calandrador, sendo que, apesar de constar no contrato de trabalho que a Autora se encontra sujeita a banco de horas, tal não corresponde à verdade, visto que a Autora tem, desde o início do contrato, um horário certo e determinado para entrar e sair, das 08h00 às 18h00, com uma hora de almoço, ainda que a sua jornada de trabalho fosse de 08h00, pelo que todo o trabalho realizado, para além do horário praticado pela Autora, é trabalho suplementar.
Alegou ainda que, para além das horas diárias que trabalhou para além do seu horário de trabalho, trabalhou ainda 24 dias de folgas, pelo que a título de trabalho suplementar lhe deve ser paga a quantia de €3.870,15.
Por fim, alegou que a gerente da Ré exerce pressão para que a Autora trabalhe sem o seu véu, sendo tal pressão ilegal e inconstitucional, gerando na Autora um grande desconforto, uma grande vergonha, nervosismo e ansiedade, sentindo-se discriminada pela Ré, pelo que solicita, a título de danos não patrimoniais, a quantia de €3.000,00.
Realizada a audiência de partes, não foi possível resolver o litígio por acordo.
A Ré “Om Wash, unipessoal, Lda.” apresentou contestação, requerendo, a final, que a ação seja julgada totalmente improcedente por não provada, sendo a Ré absolvida dos pedidos.
Alegou, em síntese, que, com exceção dos factos vertidos em 1 e 3 da petição inicial, impugna todos os demais factos, visto que o banco de horas que consta do contrato de trabalho celebrado entre as partes, e que se mostra previsto na lei e na CCT aplicada ao sector, foi efetivamente implementado, tendo o crédito de horas disponível a favor da Autora ou da Ré sido utilizado no decurso do contrato.
Mais alegou que o livro de registo de tempos de trabalho está e sempre esteve disponível no escritório da Ré, nunca tendo sido recusado a qualquer trabalhador a sua exibição, sendo que, desde o início da relação laboral, o horário de trabalho é fixado pela Ré e atempadamente comunicado aos trabalhadores através de afixação do mesmo em local próprio da empresa.
Alegou ainda que o recurso a banco de horas resulta da circunstância de a atividade da Ré ser sazonal, encontrando-se diretamente ligada ao turismo, o qual aumenta nos períodos designados de época alta, pelo que períodos houve em que a Autora trabalhou muito menos do que as 40 horas semanais, sendo que sobre esses factos a Autora nada referiu.
Por fim, referiu que nunca a Ré exerceu qualquer discriminação sobre a Autora, sendo que, em face das regras de segurança e saúde no trabalho instituídas na Ré, está interdito o uso de lenços, bem como de qualquer tipo de adornos, vestuário largo e gravatas, no exercício da atividade laboral, por razões de segurança, já que com o tipo de máquinas utilizadas existe o risco dos objetos e roupas mencionadas ficarem presos e, desse modo, poder ocorrer um acidente de trabalho.
Por despacho proferido em 02-05-2022, foi a Autora convidada a aperfeiçoar a sua petição inicial.
A Autora apresentou o respetivo aperfeiçoamento, o qual foi impugnado pela Ré.
Realizada a audiência prévia, não foi possível, uma vez mais, obter o acordo entre as partes, tendo a Autora concretizado alguns elementos que ainda não se mostravam suficientemente concretizados no requerimento de aperfeiçoamento que juntou aos autos.
Proferido despacho saneador, foi fixado o valor da ação em €6.870,15, foi enunciado o objeto do litígio e foram identificados os temas da prova.
Após realização da audiência de julgamento, foi proferida sentença em 14-04-2023, com a seguinte decisão:
Em face do exposto julgo improcedente a ação e, em consequência, absolvo a R. dos pedidos.
Custas pela A. sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia ( cfr. art. 527º do CPC
ex vi art. 1º nº 2 al. a) do CPT).
Notifique e registe.
Não se conformando com a sentença, veio a Autora AA interpor recurso de apelação, terminando com as seguintes conclusões:
1 - A A. veio intentar ação comum, emergente de contrato de trabalho pedindo que lhe fossem pagas as horas extraordinárias por si trabalhadas em prol da R.
2 - A R. alegou, que tinha o registo de horas de entrada e saída dos seus trabalhadores em registo manual efetuado por outra trabalhadora da R. na sede da empresa; o mapa de horário de trabalho continha todos os elementos, encontrava-se nos serviços administrativos da R.
3 - Foi proferida sentença com a decisão seguinte: “Em face do exposto julgo improcedente a ação e, em consequência, absolvo a R. dos pedidos (…)”.
4 - A R. produziu registos dos tempos de trabalho que nem sequer estão assinados pelos trabalhadores na sede da empresa, sendo apenas um manuscrito realizado por uma outra funcionária da empresa.
5 - O que é inadmissível, não podendo estes registos efetuados por uma 3ª pessoa serem considerados como provas, pois, com todo o respeito, erroneamente foi considerada como tal, pelo Tribunal a quo.
6 - Assim, a decisão padece de uma errada qualificação jurídica dos factos e do direito.
7 - Cada funcionário deve ter a sua própria folha de presença, também chamada de folha de ponto, para registos individuais.
8 - Esse documento, por sua vez, deve conter informações relevantes como o nome completo do trabalhador, o seu NIF, sua função na empresa, a equipa correspondente e o mês em questão.
9 - Sendo todos estes requisitos completamente negligenciados pela R.
10 - Ora não tendo a R. provado com documentos reais, ou seja, dos quais constem o procedimento de picagem por parte da A. que confrontassem o alegado na P.I. da A., estes mesmos factos consideram-se confessados.
11 - Não foram na verdade contestados.
12 - Pois não foram juntos aos autos Registos de Tempos de Trabalho com o devido procedimento de picagem por parte da A., ou seja, aqueles manuscritos da autoria da R. são inaptos a provar o quer que seja.
13 - E deste modo, consideram-se confessados os factos elencados na P.I. pela A., pois aquelas folhas não têm qualquer valor jurídico para contestar a matéria de facto elencada pela A.
14 - Deve, portanto, assim, a R. ser condenada ao pedido da A. na sua P.I., assim como proceder ao pagamento de indeminização à A.
Assim, Venerados Juízes Desembargadores, a decisão do Tribunal a quo encontra enferma de nulidade pois baseou a sua convicção e respetiva decisão em prova não admissível, pois baseou-se em manuscritos da autoria e forjados pela R. para a sua própria defesa, como elementos de prova, o que não poderia ter acontecido.
Trata-se de provas não válidas, que não provam que a A. picou o ponto como de seu direito e legitimidade, e desta, tratando-se de prova inválida, os factos elencados na P.I. pela A. consideram-se integralmente provados, por confessados pela R., devendo assim ser a R. condenada a pagar os valores das horas extra prestados e reclamados pela A. e a respetiva indeminização cível.
A Ré “Om Wash, unipessoal, Lda.” apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso, devendo ser mantida a sentença recorrida.
O tribunal de 1.ª instância admitiu o recurso como sendo de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, tendo subido os presentes autos a este tribunal, onde foi dado cumprimento ao preceituado no n.º 3 do art. 87.º do Código de Processo do Trabalho, pugnando a Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta no seu parecer pela improcedência do recurso.
Não houve respostas ao parecer.
Tendo sido mantido o recurso nos seus precisos termos, foram colhidos os vistos, cumprindo agora apreciar e decidir.
II – Objeto do Recurso
Nos termos dos arts. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, aplicáveis por remissão do art. 87.º, n.º 1, do Código de Processo de Trabalho, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da recorrente, ressalvada a matéria de conhecimento oficioso (art. 662.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
No caso em apreço, as questões que importa decidir são:
1) Nulidade da sentença; e
2) Impugnação da matéria de facto.
III – Matéria de Facto
O tribunal de 1.ª instância deu como provados os seguintes factos:
1- A R. é uma sociedade comercial que se dedica a lavagens industriais.
2- No dia 18 de junho de 2019 A., na qualidade de segunda outorgante, e R. na qualidade de primeira, outorgaram o escrito constante de fls. 9 a 11 que aqui se reproduz declarando que:
“ 1- A Primeira Outorgante admite ao seu serviço a Segunda Outorgante com a categoria profissional de calandrador, para desempenhar as funções e tarefas inerentes à categoria de calandrador.
2- A Segunda Outorgante obriga-se a prestar à Primeira outorgante as funções para que foi contratada.(…)

O presente contrato é celebrado pelo prazo de 6 meses, tem início no dia 19 de junho de 2019 e termo a 18 de Dezembro de 2019, automaticamente renovável por idênticos períodos de tempo se não for denunciado nos prazos legais.
(…) Pelas funções exercidas, a Segunda Outorgante auferirá a remuneração mensal de 600,00€ sujeito s impostos e descontos legais. (…)
OITAVA
O período normal de trabalho é de 40 horas semanais, cabendo à Primeira Outorgante a determinação das horas de início, termo e intervalos de descanso, de acordo com as disposições legais e internas.
NONA
A trabalhadora declara que presta o seu acordo e assentimento à aplicação por força do presente contrato do regime de banco de horas individual instituído na empresa conforme previsto da lei e regulamentação colectiva nos seguintes termos:
a) o período normal de trabalho diário pode ser aumentado até 4 horas diárias e pode atingir 52 horas semanais, no entanto só pode ser utilizado até 160 horas anuais (ano civil);
b) este regime terá como meio de compensação do trabalho prestado em acréscimo a redução equivalente do tempo de trabalho a gozar até ao decurso do 1º semestre do ano civil seguinte àquele a que respeita;
c) o referido gozo deverá ser comunicado com 72 horas de antecedência, por iniciativa do trabalhador, ou na sua falta, do empregador;
d) a necessidade do trabalho de acréscimo será comunicado pelo menos 48 horas de antecedência ao empregador. (…)

DÉCIMA SEXTA
No omisso aplica-se a legislação laboral vigente e a Regulamentação coletiva de trabalho.(…)”
3.A A. assinou o escrito referido em 2. de livre vontade, consciente e conhecedora do seu conteúdo, após explicação do mesmo.
4. Desde o inicio da relação laboral, a A. executou o trabalho nos termos determinados pela R. de acordo com o referido em 2.
5. Para o efeito, e tendo em vista a sua comunicação à A. e demais funcionários, a R. afixa o horário de trabalho em local próprio da empresa.
6.Desde pelo menos junho de 2019 que a R. tem implementado banco de horas para todos os funcionários.
7. Em decorrência do referido em 4 e 6 semanas houve em que a A. trabalhou menos de 40 horas e noutras mais que as 40h.
8. O crédito de horas disponível acumulado a favor da A. ou a favor da R. foi por ambas utilizado no decurso do contrato.
9. Por determinação da R. e sem prejuízo das adicionais concedidas noutros dias em função da organização do trabalho resultante do banco de horas, por regra, até Outubro de 2019 inclusive, a A. folgava ao domingo e à 2ª feira e após ao domingo e 5ª feira.
10. O livro de registo de tempos de trabalho está e esteve sempre disponível no escritório, nunca tendo sido recusado a qualquer trabalhador a sua exibição.
11.Em 30 de abril de 2020 e 29 de maio de 2020, por força do disposto no art.4º nº 2 do DL 10-G/2020, 26 de março, a R. reduziu o período normal de trabalho da A. a 50%.
12. Em 3 de novembro de 2020, por força do disposto no art.4º nº 2 do DL 90/2020, 19/10 a R. reduziu o período normal de trabalho da A. a 25%.
13. Em 5 de dezembro de 2020, 18 de janeiro de 2021, 01 de fevereiro de 2021, 8 de março de 2021, 17 de abril de 2021, 4 de maio de 2021, por força do disposto no art.4º nº 2 do DL 90/2020, 19/10 a R. reduziu o período normal de trabalho da A. a 60%.
14. Por razões de segurança e saúde no trabalho, seguindo recomendações da empresa que a tal título lhe presta consultoria, a R. interditou a todos os funcionários o uso de lenços com pontas soltas, dado existir risco dos mesmos ficarem presos nas máquinas usadas.
15. A R. tem afixados procedimentos de segurança na utilização das máquinas constando dos mesmos o não uso de adornos, vestuário largo, gravatas de forma a que nada fique preso nas calandras e outras máquinas.
16. A A. é muçulmana.
E deu como não provados os seguintes factos:
1. A. e R. tenham acordado que a A. iniciaria a jornada habitual às 8h terminando-a às 18h, com uma hora de almoço.
2. A. e R. tenham acordado que a A. iniciaria a jornada habitual às 8h terminando-a às 19h30m, com uma hora de almoço.
3. Desde o início do contrato a A., por determinação da R., execute tal horário.
4. Por determinação a A. tenham trabalhado a mais do referido em 1 e 2 dos factos não provados:
a) 10 horas em junho de 2019;
b) 40 horas em julho de 2019;
c) 50 horas em agosto de 2019;
d) 46 horas em outubro de 2019;
e) 22 horas em novembro de 2019;
f) 40 horas em dezembro de 2019;
g) 22 horas em janeiro de 2020;
h) 32 horas em fevereiro de 2020;
i) 22 horas em março de 2020;
j) 22 horas em abril de 2020;
k) 26 horas em maio de 2020;
l) 22 horas em junho de 2020;
m) 32 horas em julho de 2020;
n) 22 horas em Novembro de 2020;
o) 32 horas em dezembro de 2020;
p) 32 horas em janeiro de 2021;
q) 32 horas em fevereiro de 2021;
r) 32 horas em março de 2021;
s) 16 horas em abril de 2021;
t) 105 horas em maio de 2021.
5. Por acordo entre A. e R. após outubro de 2019 e até janeiro de 2021 a A. folgasse à segunda feira.
6. A A. tivesse trabalhado nos dias 2, 9, 16 e 23 de julho de 2020;
7. A A. devesse ter folgado a 4 de julho de 2020;
8. A A. tenha trabalhado no dia 1 de Novembro.
9. A A. devesse ter folgado a 4, 11,18 e 25 de Novembro de 2020;
10. A A. tenha trabalhado nos dias 3,4, 10, 17 e 24 de Dezembro de 2020;
11. A A. tenha trabalhado nos dias 7,14,21 e 28 de janeiro de 2021
12. A A. devesse ter folgado a 4 de janeiro de 2021;
13. A A. tenha trabalhado nos dias 4, 11,18 e 25 de fevereiro de 2021;
14. A A. tenha trabalhado nos dias 4, 11,18 e 25 de março de 2021;
15. A A. tenha trabalhado nos dias 6,13,20 e 27 de maio de 2021.
16. O banco de horas da R. esteja implementado desde meados de 2018.
17. A A. se sinta discriminada pela R..
18. O comportamento da R. cause nervosismo, ansiedade e medo à A..
IV – Enquadramento jurídico
Conforme supra mencionámos, o que importa analisar no presente recurso é saber se (i) a sentença é nula; e (ii) a sentença recorrida errou na apreciação da matéria de facto.
1 – Nulidade da sentença
No entender da Apelante, a sentença recorrida é nula por ter assentado em provas inválidas, ou seja, em documentos de registos de trabalho manuscritos e não assinados pelos trabalhadores.
Apreciemos.
As nulidades da sentença mostram-se previstas no art. 615.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, sendo que a Apelante não invocou qualquer das alíneas aí constantes. De qualquer modo, invocando a Autora que foram atendidos documentos que não poderiam ter sido atendidos, por serem inválidos, poderia considerar-se estarmos perante uma situação de excesso de pronúncia, nos termos do art. 615.º, n.º 1, d), do referido Código.
Na realidade, dispõe o art. 615.º, n.º 1, al. d), do Código de Processo Civil, que:
1 - É nula a sentença quando:
[…]
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;

Porém, nos termos do art. 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, as questões de que o juiz não se pode ocupar são as questões que não tenham sido suscitadas pelas partes, exceto se a lei lhe permitir ou as mesmas forem de conhecimento oficioso.
É entendimento maioritário na doutrina e na jurisprudência que a apreciação da matéria de facto e, consequentemente, a apreciação dos meios de prova, não constitui questão colocada pelas partes, sendo tal matéria a decidir em sede de impugnação da matéria de facto ou, sendo esse o caso, em sede de conhecimento oficioso da matéria de facto, nos termos do n.º 1 do art. 662.º do Código de Processo Civil.
Efetivamente, o atendimento de um facto que não se mostra alegado ou o atendimento a meios de prova que não foram apresentados ou não foram produzidos ou que são ilegais não corresponde à apreciação de uma questão que não foi colocada pelas partes, pois tal atendimento não se reporta à apreciação de uma questão, conforme a mesma se mostra definida no n.º 2 do art. 608.º do Código de Processo Civil.
Daí que o vício resultante do atendimento de um meio de prova ilegal reflete-se a nível de erro de julgamento e não a nível da nulidade da sentença.
Cita-se, pela sua relevância, o acórdão do STJ, proferido em 23-03-2017:[2]
Por outro lado, o não atendimento de um facto que se encontre provado ou a consideração de algum facto que não devesse ser atendido nos termos do artigo 5.º, n.º 1 e 2, do CPC, não se traduzem em vícios de omissão ou de excesso de pronúncia, dado que tais factos não constituem, por si, uma questão a resolver nos termos do artigo 608.º, n.º 2, do CPC. Reconduzem-se antes a erros de julgamento passíveis de ser superados nos termos do artigo 607.º, n.º 4, 2.ª parte, aplicável aos acórdãos dos tribunais superiores por via dos artigos 663.º, n.º 2, e 679.º do CPC.
Segundo o ensinamento de Alberto dos Reis[in Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, Coimbra Editora, 1981, pp. 144-146]:
«(…) quando o juiz tome conhecimento de factos de que não pode servir-se, por não terem sido, por exemplo, articulados ou alegados pelas partes (art. 664.º), não comete necessariamente a nulidade da 2.ª parte do art. 668.º. Uma coisa é tomar em consideração determinado facto, outra conhecer de questão de facto de que não podia tomar conhecimento; o facto material é um elemento para a solução da questão, mas não é a própria questão.
(…) uma coisa é o erro de julgamento, por a sentença se ter socorrido de elementos de que não podia socorrer-se, outra a nulidade de conhecer questão de que o tribunal não podia tomar conhecimento. Por a sentença tomar em consideração factos não articulados, contra o disposto no art. 664.º, não se segue, como já foi observado, que tenha conhecido de questão de facto de que lhe era vedado conhecer.»
E, por argumento de maioria de razão, o mesmo se deve entender nos casos em que o tribunal considere meios de prova de que lhe não era lícito socorrer-se ou não atenda a meios de prova apresentados ou produzidos, admissíveis necessários e pertinentes. Qualquer dessas eventualidades não se traduz em excesso ou omissão de pronúncia que impliquem a nulidade da sentença, mas, quando muito, em erro de julgamento a considerar em sede de apreciação de mérito.

Pelo exposto, o recurso a um meio de prova de que não era lícito socorrer-se, a confirmar-se, não configura nulidade da sentença por excesso de pronúncia, antes sim, erro de julgamento, a apreciar posteriormente.
Assim, improcede a invocada nulidade da sentença.

2 – Impugnação da matéria de facto
Considera a Apelante, ainda que sem indicar a que factos dados como provados se reporta, que o tribunal a quo não poderia ter dado como provados factos com base nos registos dos tempos de trabalho apresentados pela Ré, uma vez que tais registos não se encontram assinados pela Autora, tratando-se apenas de um manuscrito realizado por uma outra funcionária da empresa, e neles não consta o nome completo da Autora, o seu NIF, a sua função na empresa, a equipa correspondente e o mês a que se reporta.
Considera ainda a Apelante que, não sendo possível considerar-se tais documentos como reais, não possuem os mesmos qualquer valor jurídico para contestar a matéria de facto constante da petição inicial da Autora, pelo que não foram, efetivamente, tais factos contestados, devendo, por isso, considerar-se esses factos confessados, razão pela qual deverá a Ré ser condenada no pedido da Autora.
Apreciemos.
Relativamente à impugnação fáctica efetuada pela Apelante, visto mostrar-se manifestamente incumprido o requisito imposto pela al. a)[3] do n.º 1 do art. 640.º do Código de Processo Civil, rejeita-se tal impugnação.
Porém, tal não obsta à apreciação oficiosa nos termos do n.º 1 do art. 662.º do Código de Processo Civil.
Dispõe este artigo no seu n.º 1 que:
1 - A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.

Para que a Relação proceda oficiosamente à alteração da matéria de facto é fundamental que se esteja perante uma situação de meio de prova plena, seja esse meio documental,[4] por confissão ou por admissão.[5]
Considera a Apelante que o documento em que o tribunal a quo se baseou não permitia a prova de factos, que não identificou, mas que foram dados como provados.
Para que este tribunal pudesse aferir de tal situação teria de se estar perante prova que apenas pudesse ser efetuada com documento autêntico, uma vez que apenas este tipo de documento faz prova plena dos factos que refere como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo (art. 371.º, n.º 1, do Código Civil).
Ora, a exigência de registo de tempo de trabalho prevista no art. 202.º do Código do Trabalho não determina que tal registo seja efetuado através de documento autêntico, pelo que tal registo terá de ocorrer através de documento particular, o qual não é suscetível de fazer prova plena dos factos que nele constam (art. 363.º do Código Civil).
E, a ser assim, não é possível a este tribunal aferir da regularidade do documento junto pela Ré como constituindo o documento de registo de tempo de trabalho da Autora. Sempre se dirá, de qualquer modo, em face do alegado no presente recurso, que, nos termos do art. 202.º do Código do Trabalho, não se exige, para a validade do registo de tempo de trabalho, que o mesmo seja assinado pelo trabalhador.
Considera ainda a Apelante que, como o meio de prova utilizado para impugnar os factos alegados pela Autora é inválido, tais factos devem considerar-se como confessados.
Ora, para além de não ter resultado, nos termos da apreciação oficiosa prevista no n.º 1 do art. 662.º do Código de Processo Civil, que o mencionado documento junto pela Ré é inválido, sempre se dirá que o ónus da prova do trabalho suplementar que a Autora veio alegar é da sua única competência, nos termos do art. 342.º, n.º 1, do Código Civil.
Conforme refere o acórdão do STJ proferido em 03-04-2013:[6]
V- O ónus da prova da prestação de trabalho suplementar impende sobre o trabalhador, por se tratar de facto constitutivo do direito reclamado, conforme prescreve o artigo 342º, nº 1 do CC.

E, a ser assim, mesmo que o documento apresentado pela Ré fosse inválido, continuaria a ter a Autora de provar que tinha prestado trabalho suplementar à Ré, ou seja, tinha de apresentar meios de prova que comprovassem a realização de tal trabalho suplementar, o que a Autora nem sequer invoca em sede recursiva.
Invoca, sim, que a invalidade dos meios de prova que a Ré juntou implica a inexistência de impugnação dos factos alegados pela Autora e, portanto, a confissão da Ré de tais factos.
Não só não foi confirmado por este tribunal qualquer invalidade desses meios de prova, como, mesmo que tal invalidade existisse, essa não seria a consequência jurídica, visto que, como se referiu supra, o ónus da prova da existência de trabalho suplementar impende sobre a Autora, e não sobre a Ré, pelo que não é esta que tem de fazer a contraprova da sua não existência.
Acresce que o art. 574.º do Código de Processo Civil é bastante claro sobre o que significa impugnar e em que circunstâncias se consideram admitidos por acordo (através de confissão tácita) os factos alegados pelo Autor por falta de impugnação.
Deste modo, é evidente que a impugnação que impede a admissão por acordo dos factos alegados pelo Autor se reporta a uma tomada de posição específica de não reconhecimento ou de não aceitação, em sede de contestação, desses factos, sendo que tal impugnação não necessita sequer de ser motivada, através da apresentação de uma outra versão dos factos, “bastando a mera negação expressa de factos alegados na petição”.[7]
No entanto, mesmo não impugnados expressamente, não é possível admitir por acordo “os factos que se encontrem em manifesta oposição com a defesa considerada no seu conjunto, os factos sobre os quais não seja admissível confissão e, ainda, os factos que só possam ser provados por documento escrito”.[8]
Por fim, quando o Réu, ao invés de impugnar, afirmando a não aceitação como verdadeiro de um concreto facto alegado, se limita a consignar que não sabe se esse determinado facto é verdadeiro, considera-se que, se se estiver perante um facto pessoal ou sobre o qual o Réu deva ter conhecimento, tal afirmação traduz-se numa confissão; se, pelo contrário, se tratar de facto diverso daqueles (facto não pessoal ou de que não deva ter conhecimento), tal afirmação vale como impugnação.
Do que acima de referiu, é indubitável concluir que para que haja impugnação dos factos alegados pelo Autor basta ao Réu fazer consignar, na sua contestação, que, em concreto, não aceita tais factos como verdadeiros, não sendo sequer necessário apresentar uma versão diferente daquela que consta da petição inicial e, muito menos, proceder à junção de meios de prova que contrariem a versão invocada pelo Autor. E isto porque não é ao Réu que compete fazer a contraprova dos factos que o Autor alega, mas sim a este efetuar a sua prova.
Daí que a eventual junção por parte de um Réu de um meio de prova inválido não determina qualquer confissão dos factos alegados pelo Autor, sendo sim necessário que, na sua contestação, o Réu tenha impugnado, em concreto, os factos alegados pelo Autor.
No caso concreto, basta proceder à leitura da contestação para se constatar que houve contestação específica, ou seja, não aceitação dos factos concretos alegados pela Autora relativamente quer às horas extraordinárias quer ao pedido de indemnização por danos morais em face de alegada discriminação, bem como consta de tal contestação a invocação de uma outra versão dos factos, o que, como se referiu, nem sequer se impunha à Ré.
Assim, improcede a invocada confissão pela Ré dos factos alegados pela Autora na sua petição inicial.
De igual modo, não tendo sido alterado, conforme pretendido pela Autora, qualquer dos factos dados como assentes, e não constando da matéria factual provada factos que permitam concluir pela existência de trabalho suplementar ou de qualquer direito, por parte da Autora, a uma indemnização por danos não patrimoniais, apenas resta concluir pela total improcedência do presente recurso.
V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso totalmente improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela Apelante (art. 527.º, nºs. 1 e 2, do Código de Processo Civil), sem prejuízo do apoio judiciário.
Notifique.
Évora, 26 de outubro de 2023
Emília Ramos Costa (relatora)
Paula do Paço
Mário Branco Coelho

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[1] Relatora: Emília Ramos Costa; 1.ª Adjunta: Paula do Paço; 2.º Adjunto: Mário Branco Coelho.
[2] No âmbito do processo n.º 7095/10.7TBMTS.P1.S1, consultável em www.dgsi.pt.
[3] “a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados”.
[4] Já constante dos autos ou superveniente.
[5] Veja-se José Lebre de Freitas, Armindo Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre em Código de Processo Civil Anotado, 3.ª edição, 2023, Almedina, Coimbra, p. 169.
[6] No âmbito do processo n.º 241/08.2TTLSB.L1.S1, consultável em www.dgsi.pt.
[7] O Código de Processo Civil Anotado, de António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, Vol. I, 2018, Almedina, Coimbra, p. 647.
[8] Ibidem, p. 647.