Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
44/21.9IDSTR-A.E1
Relator: LAURA GOULART MAURÍCIO
Descritores: INSTRUÇÃO CRIMINAL
REQUERIMENTO PARA ABERTURA DA INSTRUÇÃO
INADMISSIBILIDADE
TELEOLOGIA
Data do Acordão: 09/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. Visando a instrução requerida pelo arguido evitar a submissão deste a julgamento, esse fim também se alcança quando a pretensão manifestada no RAI incide sobre parte da relação jurídico-processual em causa.
II. A interpretação que é feita no despacho recorrido, de que é legalmente inadmissível a abertura da instrução, porque “A demonstrar-se o alegado no RAI, os arguidos ainda assim seriam submetidos a julgamento, mas apenas considerando-se o valor da não entrega como sendo 14 282,52€ e já não os 36 159,68€ referidos na acusação” e concluir que “ (…) a instrução requerida pelo arguido extravasa o propósito desta fase processual e é assim legalmente inadmissível”, é contrária à teleologia da norma, por ser demasiado formal e positivista.
Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

Relatório

No Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo de Instrução Criminal ..., Juiz ..., no âmbito dos autos com o NUIPC 44/21...., por decisão de 11 de janeiro de 2023, o Exmº Juiz de Instrução Criminal decidiu rejeitar, por inadmissibilidade legal, o requerimento de abertura de instrução formulado pelos arguidos AA e “C... – Soc. de Construções e Empreitadas, Lda.”

Inconformados com o assim decidido, recorreram os arguidos, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:

1. O Tribunal a quo rejeitou o R.A.I. apresentado, com fundamento na sua inadmissibilidade legal, de acordo com o artigo 287º, n.º 3 do CPP.

2. A instrução em causa não é inadmissível e o R.A.I., não padece de qualquer fundamento de inadmissibilidade: foi cumprido o prazo legal, o JIC em causa é competente (mormente a título material e territorial) e a instrução é legalmente admissível. Cfr. n.º 3 do artigo 287º do CPP.

3. Os Arguido expuseram, cabalmente, as razões de facto e de direito pelas quais discordam da acusação, refutando-a e apresentando a respectiva versão, bem como os motivos pelos quais (finda a instrução) deve ser proferido despacho de não pronúncia.

4. Os Arguidos indicaram igualmente – de modo bem individualizado – os atos de instrução que pretendem levar a cabo, pretendendo assim demonstrar que não devem sequer ser submetidos a julgamento.

5. O R.A.I. em causa é legalmente admissível (Cfr. n.º 3 do artigo 287º do CPP) e os actos de instrução requeridos reportam-se a provas admissíveis. Cfr. artigo 292º do CPP.

6. Os Arguidos sustentaram a sua discordância com a acusação, de modo directo e fundamentado, explicando as razões de facto e de direito de forma perfeitamente clara, superando inclusivamente a exigência prevista no n.º 2, do artigo 287º do CPP.

7. O despacho sob recurso deve assim ser revogado e substituído por decisão que admita o requerimento de abertura de instrução apresentado pelos Arguidos, declarando-se aberta a instrução, com as inerentes consequências legais.

Termos em que se requer a V.ªs Ex.ªs se dignem revogar o despacho sob recurso, substituindo-o por decisão que admita o R.A.I. apresentado pelos Arguidos, declarando-se aberta a instrução, com as inerentes consequências legais.


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O recurso foi admitido e fixado o respetivo regime de subida e efeito.

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O Ministério Público respondeu ao recurso interposto, pugnando pela respetiva improcedência e formulando as seguintes conclusões:

O recurso a que se responde é manifestamente improcedente nos termos do artigo 420º nº1 alínea a) do Código de Processo Penal

Por isso, deve ser liminarmente rejeitado,

Mantendo-se, na íntegra, o Douto despacho impugnado, o qual fez correta aplicação da Lei e do Direito.


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No Tribunal da Relação o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer no sentido da improcedência do recurso.

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Cumprido o disposto no art.417º, nº2, do CPP, não foi apresentada resposta ao Parecer.

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Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos à conferência.

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Fundamentação

Delimitação do objeto do recurso

O âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, só sendo lícito ao Tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr.Ac. do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19/10/1995, DR I-A Série, de 28/12/1995 e artigos 403º, nº1 e 412º, nºs 1 e 2, ambos do CPP).

No caso sub judice a questão suscitada e que, ora, cumpre apreciar, traduz-se em saber se a decisão recorrida deverá, ou não, ser revogada e substituída por outra que determine o prosseguimento da fase de instrução.


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É do seguinte teor o despacho recorrido (transcrição):

“Ref.ª ...77 de 25-10-2022 (fls. 701 e ss.):

Os arguidos AA e “C... – Soc. de Construções e Empreitadas, Lda.” vêm acusados (da sequência de oposição a aplicação de pena em processo sumaríssimo) da prática do crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105º, n.ºs 1 e 4 do RGIT.

Em causa está a não entrega de IVA respeitante ao mês de novembro de 2019, no valor efetivamente recebido de € 36.159,68, alegando-se que nenhum valor foi voluntariamente entregue por conta deste montante até ao prazo limite de pagamento.

Os arguidos vieram requerer a abertura da instrução, invocando o Ac. do STJ n.º 8/2015, que fixou jurisprudência no sentido de que “A omissão de entrega total ou parcial, à administração tributária de prestação tributária de valor superior a EUR 7.500 relativa a quantias derivadas do Imposto sobre o Valor Acrescentado em relação às quais haja obrigação de liquidação, e que tenham sido liquidadas, só integra o tipo legal do crime de abuso de confiança fiscal, previsto no artigo 105 nº 1 e 2 do RGIT, se o agente as tiver, efetivamente, recebido.”.

Mais alegam que relativamente ao mês de novembro de 2019 a arguida sociedade tinha a receber da sociedade “...” a quantia de € 770.832,38 (sendo € 114.139,39 correspondentes a IVA) e apenas recebeu € 62.097,92 (sendo € 14.282,52 correspondentes a IVA).

Alegam por esta via que não cometeram o crime de abuso de confiança fiscal, que lhes vem imputado.

Ora salvo o devido respeito, das premissas invocadas no requerimento de abertura de instrução (RAI) dos arguidos não se pode extrair a conclusão que aí é exarada.

De facto, ainda que a arguida sociedade não tenha recebido a totalidade do montante que lhe era devido (e portanto a totalidade do IVA), ainda assim tinha a obrigação de entregar à AT, até à data limite de pagamento, o IVA (parcial) que efetivamente recebeu, sob pena de responsabilidade criminal.

Isto porque o crime em causa abrange a não entrega “total ou parcial” da prestação tributária, como resulta do artigo 105º, n.º 1 do RGIT e é também salientado no acórdão citado no RAI.

Assim sendo, mesmo que a arguida sociedade apenas tenha recebido (até à data limite de pagamento) IVA no valor de € 14.282,52, teria de entregar esse montante à AT no prazo legal de pagamento, sob pena de incorrer no crime de abuso de confiança fiscal.

Não o tendo feito (e não alegaram os arguidos ter entregue esse montante no seu RAI) e sendo o valor efetivamente recebido e não entregue superior a € 7.500,00, então sempre incorreriam na prática do crime em causa.

Assim sendo, do teor do RAI dos arguidos, e ainda que integralmente provados os factos aí alegados, não resultaria a não pronúncia dos arguidos.

Também o facto de a notificação emitida pela AT para pagamento nos termos do artigo 105º, n.º 4, al. b) do RGIT não conter o valor efetivamente recebido (mas sim o valor declarado) em nada afeta a imputação criminal, pois esta norma já não respeita ao tipo legal de crime, mas sim a uma condição objetiva de punibilidade e o que nele está em causa é o pagamento da “prestação comunicada à Administração Tributária através da correspondente declaração, acrescida de juros e coima devida”.

Note-se que a não entrega atempada de IVA faturado, mesmo que não efetivamente recebido, integra ainda assim responsabilidade contraordenacional (1) e com esta norma o legislador prescinde da punição criminal, mas não da responsabilidade contraordenacional, como resulta da menção ao pagamento da coima devida.

Nota-se pois que, nos termos do artigo 286º, n.º 1, do CPP “A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.” (itálico nosso).

Ou seja, o arguido, quando requer a instrução deve ser com o objetivo de não ser submetido a julgamento e, como tal, dos fundamentos do seu RAI deve poder, em tese, extrair-se a conclusão de que o mesmo não deverá ser submetido a julgamento (2)

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Tal não sucede no caso dos autos.

A demonstrar-se o alegado no RAI, os arguidos ainda assim seriam submetidos a julgamento, mas apenas considerando-se o valor da não entrega como sendo € 14.282,52 e já não os € 36.159,68 referidos na acusação.

Conclui-se assim que a instrução requerida pelo arguido extravasa o propósito desta fase processual e é assim legalmente inadmissível.

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São termos em que, com os fundamentos expostos, rejeito o requerimento de abertura de instrução dos arguidos, por inadmissibilidade legal – artigo 287º, n.º 3 do CPP.

Notifique e remeta os autos à distribuição para julgamento.

(…)

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1 Neste sentido cfr. Ac. do STA de 02-03-2016, de 03-20-2016, proc. n.º 0753/15, em www.dgsi.pt

2 Cfr. neste sentido, Ac. da Rel. Coimbra de 30-06-2021, proc. n.º 538/19.6JACBR.C1, em www.dgsi.pt

(…)”.


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Apreciando

A instrução visa, nos termos do artigo 286.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, a comprovação judicial da decisão de acusar ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

Configura-se assim como fase processual sempre facultativa destinada a questionar a decisão de arquivamento ou de acusação deduzida.

A instrução configura-se no Código de Processo Penal como atividade de averiguação processual complementar da que foi levada a cabo durante o inquérito e que tendencialmente se destina a um apuramento mais aprofundado dos factos, da sua imputação ao agente e do respetivo enquadramento jurídico-penal.

Com efeito, realizadas as diligências tidas por convenientes em ordem ao apuramento da verdade material, conforme dispõe o artigo 308.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, “se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respetivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”.

Trata-se de uma mera decisão processual relativa ao prosseguimento do processo até à fase do julgamento, que, porém, só deverá ocorrer quando existam indícios suficientes da prática pelo arguido do crime que lhe é imputado, por forma a que da sua lógica conjugação e relacionação se conclua pela culpabilidade do arguido, formando-se um juízo de probabilidade da ocorrência dos factos que lhe são imputados e bem assim da sua integração jurídico-criminal.

Os indícios são, pois, suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido ou, pelo menos, quando se verifique uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.

Nos termos do artigo 32.º da Constituição Política da República Portuguesa:

1 - O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.

(...)

5 - O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os atos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.

Isto significa que a acusação e o julgamento têm que estar sedeados em órgãos diferentes: em ordem a conciliar o interesse público da perseguição criminal e as exigências da imparcialidade, isenção e objetividade do julgamento, a investigação e acusação, por um lado, e o julgamento, por outro, terão que caber a entidades diferentes. Quem acusa não julga e quem julga não pode acusar.

Deste mesmo princípio decorre outra consequência: a de o poder de cognoscibilidade do juiz estar delimitado pelo conteúdo da acusação, sendo esta que determina o objeto do processo. É o chamado princípio da vinculação temática.

"O princípio acusatório (n.º 5, 1.ª parte) é um dos princípios estruturantes da constituição processual penal. Essencialmente, ele significa que só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento. Trata-se de uma garantia essencial do julgamento independente e imparcial. Cabe ao tribunal julgar os factos constantes da acusação e não conduzir oficiosamente a investigação da responsabilidade penal do arguido (princípio do inquisitório).

A «densificação» semântica da estrutura acusatória faz-se através da articulação de uma dimensão material (fases do processo) com uma dimensão orgânico-subjetiva (entidades competentes). Estrutura acusatória significa, no plano material, a distinção entre instrução, acusação e julgamento; no plano subjetivo, significa a diferenciação entre juiz de instrução (órgão de instrução) e juiz julgador (órgão julgador) e entre ambos e órgão acusador.

O princípio da acusação não dispensa, antes exige, o controlo judicial da acusação de modo a evitar acusações gratuitas, manifestamente inconsistentes, visto que a sujeição a julgamento penal é, já de si, um incómodo muitas vezes oneroso e não raras vezes um vexame. Logicamente, o princípio acusatório impõe a separação entre o juiz que controla a acusação e o juiz de julgamento (cf. Acs TC n.ºs 219/89 e 124/90)." () J. J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª edição revista, p. 522).

Nos termos do artigo 287º, nº2 do Código de Processo Penal resulta que o requerimento para abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do nº3 do artigo 283º, sendo que nos termos da alínea b), do nº3 do artigo 283º a acusação contem, sob pena de nulidade, os factos relevantes para a imputação do crime.

“… regendo-se o processo penal pelos princípios do acusatório e do contraditório, a necessidade de uma tal demarcação tem subjacentes duas ordens de fundamentos: - um, inerente ao objectivo imediato (….): a comprovação judicial da pretensa indiciação (que, para que se possa demarcar o âmbito do objecto específico desta fase do processo e para que o arguido se possa defender, tem que reportar-se a imputação de factos concretos delimitados); - e, outro, implícito a uma finalidade mediata, mas essencial no caso de se vir a decidir pelo prosseguimento do processo para julgamento: a demarcação do próprio objecto do processo, reflexo da sua estrutura acusatória com a correspondente vinculação temática do Tribunal, que, por sua vez, na medida em que impede qualquer eventual alargamento arbitrário daquele objecto, constituindo uma garantia de defesa do arguido, possibilita a esta a preparação da defesa, assim salvaguardando o contraditório.” (Ac. RL de 19/10/2006, Rec. 7143.06, 9ª Secção).

Revertendo ao caso dos autos verifica-se que é imputada ao arguido AA a prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 6º, 8º, n.º 1 e 7 e 105º, nº 1 e 4 do Regime Geral das Infracções Tributárias e 26º e 30º, n.º 2 do Código Penal; e à sociedade arguida C... – SOCIEDADE DE CONSTRUÇÕES E EMPREITADAS, LDA., a prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 7º, 12º, n.º 1 e 3 e 105º, nº 1 e 4 do Regime Geral das Infracções Tributárias e 30º, n.º 2 do Código Penal.

E resulta do requerimento de abertura de instrução apresentado, como se refere no despacho recorrido, “Em causa está a não entrega de IVA respeitante ao mês de novembro de 2019, no valor efetivamente recebido de € 36.159,68, alegando-se que nenhum valor foi voluntariamente entregue por conta deste montante até ao prazo limite de pagamento.

Os arguidos vieram requerer a abertura da instrução, invocando o Ac. do STJ n.º 8/2015, que fixou jurisprudência no sentido de que “A omissão de entrega total ou parcial, à administração tributária de prestação tributária de valor superior a EUR 7.500 relativa a quantias derivadas do Imposto sobre o Valor Acrescentado em relação às quais haja obrigação de liquidação, e que tenham sido liquidadas, só integra o tipo legal do crime de abuso de confiança fiscal, previsto no artigo 105 nº 1 e 2 do RGIT, se o agente as tiver, efetivamente, recebido.”.

Mais alegam que relativamente ao mês de novembro de 2019 a arguida sociedade tinha a receber da sociedade “...” a quantia de € 770.832,38 (sendo € 114.139,39 correspondentes a IVA) e apenas recebeu € 62.097,92 (sendo € 14.282,52 correspondentes a IVA).

Alegam por esta via que não cometeram o crime de abuso de confiança fiscal, que lhes vem imputado.”

Os requerentes da instrução pretendem, assim, a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação, e apreciar globalmente a decisão do Ministério Público de deduzir acusação.

Como plasmado no Ac. do TRC de 17-12-2020,in www.dgsi.pt “ Só nos casos expressos no nº 3 pode ocorrer rejeição do requerimento: por extemporaneidade, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.

Como resulta evidente das normas citadas, a instrução pode ser requerida pelo arguido, manifestando ele, no caso de ter sido proferido despacho de acusação, quais os motivos da sua discordância com a mesma, desde logo afirmando que se impunha decisão diversa; deve indicar quais são as razões de facto e de direito em que funda essa divergência, indicando também – sempre que disso for caso - quais os meios de prova que não foram considerados no inquérito e que o deveriam ter sido.

Tal exigência bem se compreende já que é o requerimento em causa que opera a delimitação temática do Tribunal. O JIC tem de ser confrontado com uma situação que leve necessariamente a uma das finalidades da instrução, no caso a não submissão a julgamento.

Só confrontado com a argumentação do requerente poderá o Juiz de Instrução ajuizar – finda a instrução - se «do decurso do inquérito e da instrução resultam indícios de facto e elementos de direito suficientes para justificar a submissão do arguido a julgamento» (artº 298º, CPP).

É poi isso que nesse despacho se averigua se foram «recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança» (artº 308º. 1, CPP).

Ou seja, o despacho instrutório (de pronúncia ou de não pronúncia) pode fundar-se numa série de considerações como sejam, a da verificação indiciária (ou não) das provas, por um lado, e da tipicidade dos actos indiciados, por outro. Ou seja, o juiz deve proferir despacho de não pronúncia, ainda mesmo que tendo sido demonstrados indiciariamente verificados todos os factos, sempre que conclua que eles não constituem crime ou que ocorre circunstância que obsta à sua punibilidade.

Sendo embora a instrução uma fase processual essencialmente factual, não pode ela alhear-se da apreciação normativa das consequências que inapelavelmente se devem retirar da apreciação jurídico-penal dos indícios recolhidos.

Ou seja, o juízo de não pronúncia tanto se pode satisfazer com a afirmação da não recolha de indícios suficientes como a de estes, mesmo verificados, não integrarem a previsão de um qualquer tipo penal.

Visando a instrução requerida pelo arguido evitar a submissão deste a julgamento, esse fim também se alcança quando a pretensão manifestada no RAI incide sobre parte da relação jurídico-processual em causa.

Assim sendo, cremos que cai por terra o primeiro argumento usado na decisão recorrida - através da requerida instrução (…)

(…) a norma do artº 286º, 1, tem uma redacção genérica considerando a globalidade do sistema. Com efeito parte do caso paradigmático, pressupondo que existe apenas uma acusação e que está em causa a imputação de um único crime.

Só suportada neste pressuposto inicial, se pode compreender a afirmação de que a instrução se destina a emitir um juízo sobre a globalidade do processo e não quanto a partes do mesmo. Todavia, nada no texto ou no espírito da lei permite tal conclusão.

Com efeito do decurso da instrução pode resultar que o arguido, muito embora deva ser submetido a julgamento, por se terem indiciariamente demonstrado factos que tal justificam, não o deva ser pela globalidade dos crimes constantes do catálogo da acusação, antes e apenas por parte deles.

Este não pode deixar de ser o escopo da instrução, pois que sendo embora a sua teleologia evitar o julgamento (no caso paradigmático), não pode deixar de entender-se que esse fim também se alcança nos casos em que o arguido vê reduzido o objecto do mesmo.”

E é este também o nosso entendimento.

A interpretação que é feita no despacho recorrido, de que é legalmente inadmissível a abertura da instrução, porque “ A demonstrar-se o alegado no RAI, os arguidos ainda assim seriam submetidos a julgamento, mas apenas considerando-se o valor da não entrega como sendo € 14.282,52 e já não os € 36.159,68 referidos na acusação.

Conclui-se assim que a instrução requerida pelo arguido extravasa o propósito desta fase processual e é assim legalmente inadmissível”, é contrária à teleologia da norma, por ser demasiado formal e positivista.

Ora, nos termos do disposto no artº 287º, 3, CPP, a rejeição do RAI «só» pode ter lugar com base num dos três fundamentos aí alternativamente tipificados. E aí não cabe o caso em apreço, que não está abrangido pela inadmissibilidade legal.

Termos em que o recurso procede.


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Decisão

Face a tudo o exposto, acordam os juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

- conceder provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que declare aberta a instrução, caso não ocorra uma qualquer outra causa de rejeição.

- Sem custas.


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Elaborado e revisto pela primeira signatária

Évora, 12 de setembro de 2023


Laura Goulart Maurício

Nuno Garcia

António Condesso