Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | MANUEL BARGADO | ||
Descritores: | DECLARAÇÕES DE PARTE LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA APRECIAÇÃO CRÍTICA DAS PROVAS | ||
Data do Acordão: | 07/12/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Sumário: | I - As declarações de parte prestadas fora do regime da confissão e nos termos previstos no artigo. 466.º do CPC, inserem-se no âmbito da livre apreciação da prova, podendo determinar, por si sós, a convicção do julgador, sem necessidade de corroboração por outros meios de prova. II - Tal meio de prova ganha particular interesse em matérias do foro íntimo ou pessoal dos litigantes, não presenciadas por terceiros e, em princípio, de mais difícil demonstração, como sucede no presente caso. III - A circunstância de a autora não recordar o momento traumático que consistiu na agressão mais grave que lhe foi infligida - o disparo da arma de fogo pelo seu ex-companheiro – não retiram credibilidade às suas declarações, na medida em que a mesma tem plena consciência dos factos que antecederam tal agressão, confirmando a presença do agressor no interior da sua residência e descrevendo de forma clara o comportamento deste. (Sumário elaborado pelo Relator) | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora I - RELATÓRIO AA instaurou a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra BB e CC, pedindo a condenação das rés a pagar-lhe a quantia de € 20.000,00 a título de danos patrimoniais, bem como a quantia de € 30.000,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais, ambas as quantias acrescidas de juros de mora desde a data da citação até efetivo e integral pagamento. Alega, em síntese, que as rés são filhas e únicas herdeiras de DD, que faleceu no dia .../.../2019 e com quem a autora viveu em união de facto durante cerca de 17 anos, tendo abandonada a residência comum entre agosto e setembro de 2019, por ser vítima de violência doméstica por parte do referido DD, tendo ido residir para casa da sua mãe, sita na .... No dia 10 de novembro de 2019, entre as 21h15 e as 21h35, o dito DD, acompanhado de EE, entraram na referida residência, tendo aquele colocado fita adesiva em volta da boca da autora, impedindo-a de gritar, amarrou-lhe os braços com uma corda e desferiu vários pontapés na cabeça da autora, que permanecia caída no chão e, em seguida, com a arma que empunhava, de calibre 22 mm, efetuou um disparo na face da autora, deixando-a inanimada e a esvair-se em sangue, sendo tais condutas causa direta das várias lesões e limitações físicas que descreve, sendo algumas delas permanentes, assim como perdeu o ânimo, o orgulho, o equilíbrio social, psíquico e emocional, vivendo em permanente estado de ansiedade. Citadas, as rés não apresentaram contestaram. Porque nem toda a factualidade alegada na petição inicial era suscetível de confissão pelas rés, foi determinado o prosseguimento dos autos com os fundamentos constantes do despacho de 22.10.2022. Em 26.11.2022 foi proferido despacho a dispensar a realização de audiência prévia e proferido despacho saneador tabelar, com subsequente identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova. Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo: «Em face do exposto julga-se a ação parcialmente procedente e, em consequência decide-se: a) Condenar as Rés BB e CC, enquanto herdeiras e representantes da Herança aberta por óbito e DD e até ao limite desta, a pagar à Autora AA, a quantia de € 4.400,00 (quatro mil e quatrocentos euros) a título de danos patrimoniais, acrescida de juros à taxa legal, contabilizados desde a citação até integral pagamento; b) Condenar as Rés BB e CC, enquanto herdeiras e representantes da Herança aberta por óbito e DD e até ao limite desta, a pagar à Autora AA, a quantia de € 30.000,00 (trinta mil euros) a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros à taxa legal, contabilizados desde a data da presente sentença até efetivo e integral pagamento. c) Absolver as Rés do demais peticionado. * Custas pela Autora e pelas Rés, cfr. artigo 527.º n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil, na proporção do respetivo decaimento, que se fixa em 31,2% para a Autora e 68,8% para as Rés.»Desta decisão interpôs a ré BB o presente recurso de apelação, finalizando a respetiva alegação com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem: «I- A Recorrente mantém a convicção de existem nos autos fundamentos de factos e de direito, que impunham, no caso concreto, decisão inversa da consagrada na douta decisão de que se apela; II- Mormente, a Recorrente crê existir erro na apreciação da prova produzida na douta decisão recorrida, sobre a matéria de facto dada como provada nos itens 5) e 6), do elenco dos factos dados como provados; III- Porquanto, da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, e dos documentos juntos aos autos não é possível, salvo o devido respeito por opinião contrária, concluir pela procedência do entendimento dado pelo douto Tribunal a quo, impondo-se consideração oposta a que ali vem vertida; IV- O douto Tribunal recorrido considerou que, quanto a factualidade vertida naqueles itens do elenco dos factos dados como provados, relativos à conduta do DD e ao nexo causal entre esta e as lesões/sequelas apresentadas pela Autora, resultaram os mesmos provados por via do depoimento da Autora, conjugado com o depoimento da testemunha FF,(…) tudo conjugado com os documentos juntos com a Petição Inicial e, designadamente, com a certidão judicial extraída do processo 184/19.4GBRMZ que a corrobora; V- Contudo, contrariamente ao que o Tribunal de 1ª instância vem sufragar, o depoimento da Autora, no entender da Recorrente, não pode ser tido em conta como meio de prova da conduta do DD e do nexo causal entre esta e as lesões/sequelas apresentadas pela Autora; VI- Desde logo porque o Tribunal não o ignora, mas não valorizou e devia ter valorizado, que a Autora não dispõe de qualquer memória relativa aos factos descritos em, 5) e 6), tendo o Tribunal considerado o seu depoimento para prova dos factos, não por a mesma os ter relatado, mas, apenas, porque não revelou qualquer animosidade para com o DD, e não denotou sentimentos de vingança contra o alegado agressor e não procurado “criar ou preencher memórias”; VII- Para além do acima referido, o Tribunal teve em conta a certidão judicial extraída do processo 184/19.4 GBRMZ, junta aos autos, mas ignorou, quando devia ter privilegiado, por ser fundamental para a boa decisão da causa, o RELATÓRIO DE PERÍCIA DE AVALIAÇÃO DE DANO CORPORAL EM DIREITO PENAL, apresentado pela Autora com a Petição Inicial como DOC nº 2; VIII- Isto porque este documento contém o relatório médico requisitado ao Gabinete Médico Legal e Forense do Alentejo Central, pelo DIAP de Évora, no âmbito do supracitado processo, destinado a aferir “se a memória e capacidade da AA reproduzir os acontecimentos vivenciados foram afetados e se foram de forma permanente, a fim de determinar se a mesma se encontra incapacitada para prestar depoimento”; IX- Com base na pesquisa documental, na entrevista, na observação clínica e nos dados psicométricos obtidos, foi possível aos Senhores Peritos, asseverar que “(…) Neste caso em particular, no que se refere aos conteúdos, apenas será possível aferir conteúdos anteriores e posteriores ao episódio traumático, não existindo atualmente capacidade por parte da examinanda em recordar memórias associadas ao período temporal em que ocorreu o trauma”; X- Concluindo a referida perícia que “A examinada não detém memória e capacidade para reproduzir os acontecimentos relacionados com o episódio traumático, não existindo evidência que possa vir a recuperar estes conteúdos amnésicos perdidos”; XI- Ora face a este elemento de prova, melhor justiça teria sido feita se o Tribunal tivesse tido em conta que a Autora não tem qualquer memória associada ao período temporal em que ocorreu o episódio traumático, não lhe sendo possível por isso, relatar de forma credível o que vivenciou, não podendo em consequência o seu depoimento servir como meio de prova de o DD empunhava a arma de 22 mm de calibre, quando entrou na residência onde a mesma se encontrava e que foi ele quem efetuou um disparo que a atingiu na face causando-lhe as lesões descritas nos autos; XII- Tanto mais que foi dado como provado em 4) do elenco dos factos dados como provados que o referido DD entrou na residência da Autora, acompanhado de outro individuo, de nome EE, o que devia ter sido valorado pelo Tribunal, para considerar não ter sido possível apurar com certeza absoluta ter sido o DD a desferir o tiro; XIII- Assim como não se entende como pode ter sido tido em conta o depoimento da testemunha FF, para prova da referida agressão por parte do DD, apenas porque o mesmo foi prestado com circunstancialismo, se revelou isento e impressivo, quando não se pode ignorar que esta testemunha, não assistiu a qualquer dos factos anteriores ou contemporâneos da agressão, e que apenas se dirigiu aquele local após a ocorrência dos factos, que não presenciou, por ser militar da GNR, em Reguengos de Monsaraz e ali ter sido “ chamado à zona da ..., em virtude de alegadas agressões”, conforme melhor se consigna na douta sentença de que se apela; XIV- Ora, contrariamente ao que o douto tribunal de 1ª instância vem sufragar, as declarações da Autora, o depoimento da testemunha FF e os documentos juntos aos autos, no entender da recorrente, mostram-se insuficientes como prova de que foi o DD quem desferiu o tiro do qual resultaram as lesões sofridas pela Autora, desconsiderando totalmente que estava presente outra pessoa naquele local, com igual, capacidade e oportunidade para o fazer; XV- Não se ignorando o princípio da apreciação das provas que se encontra consagrado no artigo 655º do Código de Processo Civil, como ensina Alberto Reis in Código de Processo Civil Anotado 3º- 245, tal “significa apenas a libertação do juiz das regras severas e inexoráveis da prova legal, sem que, entretanto, se queria atribuir-lhe o poder arbitrário de julgar factos sem prova ou contra a prova”; XVI- A este propósito também Vaz Serra ensina que:” O poder de livre apreciação do juiz pode exercer-se no que se refere à admissibilidade dos meios de prova propostos pelas partes e no que respeita, uma vez produzidas as provas, à determinação do seu valor probatório (…); XVII- É atribuído ao Juiz o poder de livre apreciação das provas, mas não o de julgar factos sem essas provas, porque lhe é apenas atribuído o poder de livre apreciação dos meios de prova efetivamente produzida; XVIII- Caso contrário, seria subverter totalmente o ónus da prova consagrado no artigo 342º do Código Civil; XIX- Ora, no caso em apreço, cabia à Autora fazer prova de que foi o DD, pai das Rés, quem lhe desferiu o tiro que lhe causou as lesões cujo ressarcimento reclama daquelas, por serem herdeiras e representantes da respetiva Herança aberta com o seu óbito; XX- E quanto a esta questão, salvo o devido respeito, essa prova não foi feita, pelo que deviam os factos constantes dos itens 5) e 6) do elenco dos factos dados como provados, integrar o elenco dos factos dados como não aprovados; XXI- E não se tendo provado que no dia 10 de novembro de 2019, o DD, no interior da residência onde se encontrava a Autora, a agarrou e, em seguida, com a arma que empunhava, de calibre 22mm , efetuou um disparo na face da mesma, cai por terra a convicção do Tribunal de que os danos sofridos pela mesma são consequência direta da conduta do referido DD, não se apurando portanto, os pressupostos que permitam ter por verificada a responsabilidade civil de DD, uma vez que não se provou que tenha sido este a levar a cabo a conduta que foi causa adequada e direta da produção das lesões apresentadas pela Autora, não respondendo por isso os bens da herança aberta pelo seu óbito, pela satisfação de qualquer encargo, razão mais que suficiente para absorver do pedido as herdeiras legais representantes daquela herança e aqui Rés. Nestes termos e nos mais de direito, requer-se a VªS Exas, seja concedido provimento ao presente recurso, alterando-se a douta Sentença recorrida substituindo-se por outra que julgue improcedente os pedidos movidos contra as Rés, só assim se fazendo JUSTIÇA!!» A autora contra-alegou, defendendo a confirmação da decisão recorrida. Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir. II – ÂMBITO DO RECURSO Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), a questão essencial decidenda consubstancia-se em saber se ocorreu erro de julgamento da matéria de facto, que a ser reconhecido, poderá influir na sorte (procedência parcial) que mereceu a ação. III – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICO-JURÍDICA Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos: 1) As Rés são filhas e únicas herdeiras de DD, que faleceu no dia .../.../2019. 2) A Autora viveu em união de facto com DD durante cerca de 17 anos, tendo abandonado a residência comum entre agosto e setembro de 2019. 3) Após a separação do casal a Autora estabeleceu residência em casa de sua mãe, na Rua ..., ... na .... 4) No dia 10 de novembro de 2019, em hora não concretamente apurada, mas, seguramente, antes das 21h44m, DD, acompanhado de outro indivíduo conhecido por EE, entrou de modo não concretamente apurado, na residência referida em 3). 5) Já no interior da residência referida em 3) DD, aproximou-se da Autora, agarrando-a. 6) Em seguida, DD, com a arma que empunhava, de .22 mm de calibre, efetuou um disparo na face da Autora e abandonou o local. 7) Como consequência direta da conduta descrita em 6) a Autora sofreu: - Edema da face; - Equimose da região orbitária bilateral; - Ferida de entrada de projétil na região malar esquerda; - Ferida incisa profunda com exposição de massa encefálica na região occipital esquerda; - Fratura cuminutiva da apófise coronóide à esquerda; - Ferida incisiva no couro cabeludo, região occipital esquerda; - Tumefação da hemiface esquerda com porta de entrada de bala na região préauricular esquerda; - Hematoma periorbitário bilateral e frontal; - Edema da pirâmide nasal; - Cicatriz temporo-occipital direita, aciforme, com seis centímetros, - Cicatriz no lugar de entrada do projétil de arma de fogo, sobre o ramo vertical da mandíbula, com um centímetro e depressão associada de 0,6 centímetros; - Limitação de abertura da boca na articulação temporo mandibular esquerda 8) Com a conduta descrita em 6) DD colocou a vida da Autora em perigo, perigo esse que só foi afastado em virtude da imediata intervenção médica. 9) As lesões descritas em 7) causaram à Autora duzentos e sessenta e um dias de doença e com afetação para o trabalho em geral e profissional. 10) Como consequência direta da conduta descrita em 6) a Autora apresenta as seguintes condições permanentes: Alterações cognitivas ao nível da memória imediata, verbal e auditiva; Alterações da velocidade motora e de pensamento, da fluência verbal, semântica e fonética e do raciocínio numérico, cálculo; Cicatrizes e hipoacusia bilateral, com afetação grave e permanente da capacidade de trabalho, das capacidades intelectuais e da possibilidade de utilizar os sentidos, audição. 11) Como consequência da conduta descrita em 6) a Autora sentiu dor física e psicológica, medo, angústia, temeu não sobreviver e esteve impedida de trabalhar, não auferindo rendimentos e passando a depender de terceiros. 12) Como consequência da conduta descrita em 6) a Autora necessita de usar aparelho auditivo, que adquiriu pelo valor de € 4.400,00. 13) A Autora perdeu o ânimo, o orgulho, vive em permanente estado de ansiedade, perdeu o equilíbrio social, psíquico e emocional. 14) À data dos factos descritos em 6) a Autora tinha 54 anos de idade. E foram considerados não provados estes factos: a) A situação descrita em 4) a 6) ocorreu entre as 21h15 e 21h35m e DD entrou na residência por meio de escalamento do muro do quintal. b) No interior da residência, o indivíduo conhecido por EE, referido em 4) agarrou a Autora e desferiu-lhe diversos pontapés e socos na cabeça e corpo, fazendo-a cair no chão. c) Ao mesmo tempo DD, no exterior da habitação, agredia a mãe da Autora. d) Na circunstância descrita em 4) a 6) DD, colocou fita adesiva em volta da boca da Autora, impedindo-a de gritar, amarrou-lhe os braços com uma corda e disferiu vários pontapés na cabeça da Autora que permanecia caída no chão. A demais matéria alegada pela Autora não compreendida nem na matéria dada como provada nem na não provada, reporta-se a matéria considerada pelo tribunal como irrelevante para a boa decisão da causa, matéria de direito ou de cariz meramente conclusivo. Da impugnação da matéria de facto Como resulta do artigo 662º, nº 1, do CPC, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação se os factos tidos como assentes e a prova produzida impuserem decisão diversa. Do processo constam os elementos em que se baseou a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto: prova documental, declarações de parte da autora e depoimento das testemunhas registados em suporte digital. Considerando o corpo das alegações e as suas conclusões, pode dizer-se que a recorrente cumpriu formalmente os ónus impostos pelo artigo 640º, nº 1, do CPC, pelo que nada obsta ao conhecimento do recurso na parte atinente à impugnação da decisão sobre a matéria de facto. No que respeita à questão da alteração da matéria de facto face à incorreta avaliação da prova produzida, cabe a esta Relação, ao abrigo dos poderes conferidos pelo artigo 662º do CPC, e enquanto tribunal de 2ª instância, avaliar e valorar (de acordo com o princípio da livre convicção) toda a prova produzida nos autos em termos de formar a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos da matéria de facto objeto de impugnação, modificando a decisão de facto se, relativamente aos mesmos, tiver formado uma convicção segura da existência de erro de julgamento da matéria de facto. Foi auditado o suporte áudio e, concomitantemente, ponderada a convicção criada no espírito da Sr.ª Juíza a quo, a qual tem a seu favor o importante princípio da imediação da prova, que não pode ser descurado, sendo esse contacto direto com a prova testemunhal que melhor possibilita ao julgador a perceção da frontalidade, da lucidez, do rigor da informação transmitida e da firmeza dos depoimentos prestados, levando-o ao convencimento quanto à veracidade ou probabilidade dos factos sobre que recaíram as provas. Infere-se das alegações/conclusões da recorrente, que esta discorda da decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal a quo relativamente aos pontos 5 e 6 dos factos provados, cuja matéria a recorrente entende que devia constar do elenco dos factos não provados. A factualidade em causa é a seguinte: «5) Já no interior da residência referida em 3) DD, aproximou-se da Autora, agarrando-a. 6) Em seguida, DD, com a arma que empunhava, de .22 mm de calibre, efetuou um disparo na face da Autora e abandonou o local.» Na sentença recorrida fundamentou-se a decisão de facto quanto a estes concretos pontos nos seguintes termos: «(…), no que tange à factualidade vertida em 4), 5) e 6), relativa à conduta perpetrada por DD e ao nexo causal entre esta e as lesões/sequelas apresentadas pela Autora, resultaram as mesmas provadas por via do depoimento da Autora, conjugadas com o depoimento da testemunha FF, que referiu ser militar da GNR e prestar serviço no Posto ... desde 2011, tudo conjugado com os documentos juntos com a petição inicial e, designadamente, com a certidão judicial extraída do processo 184/19.4GBRMZ que a corrobora. Com efeito, pese embora a Autora tenha referido não apresentar uma memória clara quanto ao concreto momento em que terá sido vítima de um disparo de arma de fogo, levado a cabo por DD, o certo é que com recurso ao depoimento circunstanciado, isento e impressivo da referida testemunha FF, concatenado com os documentos juntos aos autos (e cujo teor não foi impugnado), não ficou o Tribunal com quaisquer dúvidas quanto à verificação da factualidade em referência, com a redação que se deixou consignada. Note-se que o discurso da Autora não foi revelador de qualquer animosidade para com DD, não denotando sentimentos de vingança, o que permitiu ao Tribunal conferir-lhe uma credibilidade adicional. Por seu turno, a circunstância de afirmar que não conseguia reproduzir com exatidão e clareza o concreto momento em que DD terá executado o disparo com a arma de fogo, é consentânea com a descrição feita no relatório pericial que integra a certidão judicial junta aos autos com a petição inicial, facto que reforçou o depoimento da Autora, conferindo-lhe uma maior consistência e robustez, porquanto não tentou “criar ou preencher memórias” quanto a esse momento concreto, em sede de julgamento, por forma a ver proceder a sua pretensão, assumindo, outrossim, uma postura isenta e objetiva, confirmando que não se conseguia recordar do disparo que a atingiu. De todo o modo, apresentou memória clara quanto ao momento imediatamente anterior ao disparo, relatando de forma inequívoca e clara que se encontrava no seu quarto, em casa da sua mãe, juntamente com EE, que ali havia entrado inopinadamente minutos antes, dando-lhe um beijo e dizendo-lhe “o meu tio está lá fora sozinho e está desorientado”, referindo-se a DD. Mais relatou que, logo de seguida, entrou no mesmo quarto DD, empunhando uma arma de fogo com cerca de 30 centímetros de comprimento, agarrando-a e agredindo-a de modo que não soube descrever, sendo que a primeira memória que conseguiu recuperar depois desse evento foi já no Hospital em Évora, a ver-se ao espelho e constatando que estava desfigurada. Por seu lado, a testemunha FF, militar da GNR que acudiu a Autora momentos após esta ter sido vítima do disparo com arma de fogo, descreveu ao Tribunal de modo objetivo, distanciado e detalhado, os factos por si presenciados e, em concreto, que no dia 10 de novembro de 2019 estava de patrulha às ocorrências, tratando-se de um domingo, tendo sido chamado à zona da ..., em virtude de alegadas agressões. Mais referiu que chegado ao local, acompanhado do seu camarada GG, também militar da GNR, constatou que uma senhora se encontrava no chão junto à entrada da residência e que um vizinho o informou que a Autora, senhora AA, estava em sua casa, ali tendo acorrido por ter sido vítima de agressão. Mais contou que já junto à Autora, na casa do aludido vizinho, constatou que a mesma se encontrava com a cabeça ensanguentada e inchada, com uma fita isoladora com cerca de 5 centímetros de largura enrolada à volta do pescoço, aparentando que alguém a tinha tentado sufocar e que questionada sobre a identidade de quem lhe tinha feito aquilo, respondeu que foi o seu ex-companheiro “DD”, que tinha vindo acompanhado pelo sobrinho de nome “EE”. De modo igualmente impressivo e que se afigurou sincero explicou que a senhora AA estava irreconhecível e que só mais tarde percebeu que se tratava da mesma pessoa que, horas antes, tinha ido ao Posto da GNR dizer que tinha receio que DD lhe fizesse mal, pedindo que a acompanhassem à residência, o que os senhores militares fizeram. Esclareceu também que no aludido momento em que a Autora se dirigiu ao Posto lhe foi perguntado se pretendia ir para uma casa abrigo, o que esta recusou, razão por que se limitaram a acompanhá-la a casa. O relato desta testemunha FF encontra ainda respaldo integral no auto de notícia que integra a certidão junta aos autos com a petição inicial. Assim, da conjugação destes concretos elementos de prova, com recurso ainda às regras da experiência comum, não quedaram dúvidas ao Tribunal quanto à autoria do disparo com arma de fogo, por parte de DD, contra a face da Autora AA, naquelas concretas circunstâncias de tempo, modo e lugar, razão por que se considerou provada a factualidade vertida em 4), 5) e 6).» Fazemos inteiramente nossas estas palavras da sentença recorrida, as quais refletem uma correta apreciação crítica, conjugada e concatenada da prova produzida e das mais elementares regras da experiência comum. Senão vejamos. As declarações de parte são livremente apreciadas pelo tribunal quando não constituam confissão (nº 3 do art. 466º do CPC), e revelam especial utilidade para a decisão quando versem sobre factos que ocorreram entre as partes, sem a presença de terceiros intervenientes[1]. Assim, como meio de prova que é e inscrita no âmbito da livre apreciação pelo tribunal, a validade das declarações de parte não pode ser desconsiderada antecipadamente sob o pretexto da sua pressuposta ou previsível desnecessidade ou desinteresse, seja porque o juiz valoriza, em particular e à partida, outros meios de prova, seja porque formou já a sua convicção face à prova produzida. Conforme salienta Luís Pires de Sousa[2], apreciando desenvolvidamente o tema: «(…) o juiz não pode rejeitar o requerimento de prestação de declarações de parte pela simples razão de entender que o mesmo é desnecessário face à prova já produzida. O que o juiz pode fazer é rejeitar a prestação de declarações de parte por inadmissibilidade legal, o que pode ocorrer em duas situações: (i) Quando os factos sobre que a parte se proponha prestar declarações já estejam plenamente provados por documento ou por outro meio de prova com força probatória plena (Art. 393.2. do Código Civil, por analogia); (ii) Quando os factos sobre que a parte se proponha prestar declarações beneficiem de prova pleníssima, designadamente os casos de presunções legais inilidíveis, casos em que não é admissível prova em contrário. (…).» Estamos, deste modo, perante um meio de prova que o tribunal aprecia livremente, o que deve ser entendido no mesmo plano de outros meios de prova que mereçam idêntica apreciação, não se afigurando possível classificá-lo, aprioristicamente, como meio de prova insuficiente ou meramente subsidiário[3]. Como se defendeu no Acórdão do STJ de 07.02.2019[4], o nº 3 do art. 466º do CPC não dá cobertura à exigência de corroboração por outros meios de prova, consignando-se no respetivo sumário: “Sendo as declarações de parte de livre apreciação pelo tribunal, podem determinar, por si sós, a convicção do julgador, sem necessidade de corroboração por outros meios de prova.» Por último, e quanto à valoração das declarações de parte, diz-nos ainda Luís Filipe Pires de Sousa[5]: «(…) Num sistema processual civil cuja bússola é a procura da verdade material dos enunciados fáticos trazidos a juízo, a aferição de uma prova sujeita a livre apreciação não pode estar condicionada a máximas abstratas pré-assumidas quanto à sua (pouca ou muita) credibilidade mesmo que se trate das declarações de parte. Se alguma pré-assunção há a fazer é a de que as declarações de parte estão, ab initio, no mesmo nível que os demais meios de prova livremente valoráveis. A aferição da credibilidade final de cada meio de prova é única, irrepetível, e deve ser construída pelo juiz segundo as particularidades de cada caso segundo critérios de racionalidade. Sintetizando, diremos que: (i) a degradação antecipada do valor probatório das declarações de parte não tem fundamento legal bastante, evidenciando um retrocesso para raciocínios típicos e obsoletos de prova legal; (ii) os critérios de valoração das declarações de parte coincidem essencialmente com os parâmetros de valoração da prova testemunhal, havendo apenas que hierarquizá-los diversamente. Em última instância, nada obsta a que as declarações de parte constituam o único arrimo para dar certo facto como provado desde que as mesmas logrem alcançar o standard de prova exigível para o concreto litígio em apreciação. (…).» Volvendo ao caso concreto e seja qual for o posicionamento que se tenha quanto à valoração das declarações de parte, in casu as declarações da autora com base nas quais, entre outros meios de prova, o tribunal a quo fundamentou a decisão dos impugnados pontos 5 e 6 dos factos provados, mostram-se absolutamente credíveis, não colhendo minimamente a alegação da recorrente no sentido de as descredibilizar. Com efeito, basta analisar com o mínimo de atenção tais declarações, as quais se encontram devidamente transcritas – como pudemos comprovar na respetiva gravação - nas contra-alegações da autora e que aqui damos por reproduzidas. Dessas declarações resulta, sem margem para qualquer dúvida, que DD invadiu a casa da autora, tendo-a agredido e causando-lhe as graves lesões descritas nos autos, sendo que tais declarações são confirmadas pelo depoimento da testemunha FF, militar da GNR que esteve no local dos factos após a sua ocorrência e falou com a autora, tendo constatado que esta se encontrava com a cabeça ensanguentada e inchada, com uma fita isoladora com cerca de 5 centímetros de largura enrolada à volta do pescoço, aparentando que alguém a tinha tentado sufocar, e quando questionada pela testemunha sobre a identidade de quem lhe tinha feito aquilo, respondeu a autora que foi o seu ex-companheiro “DD”, que tinha vindo acompanhado pelo sobrinho de nome “EE”. Por sua vez, não se pode extrair do Relatório Psicológico da Perícia Médico-Legal junto com a petição inicial, ao invés do sustentado pela recorrente, que a autora «não tem qualquer memória associada ao período temporal em que ocorreu o episódio traumático, não lhe sendo possível por isso, relatar de forma credível o que vivenciou, não podendo em consequência o seu depoimento servir como meio de prova». Escreveu-se naquele Relatório: «Quanto à capacidade de a examinanda prestar depoimento, estando preservado o funcionamento executivo, o sistema de atenção e algumas competências mnésicas (memória episódica e de trabalho), podemos afirmar que a examinanda detém capacidade cognitiva para prestar depoimento. Neste caso em particular, no que se refere aos conteúdos, será apenas possível aferir conteúdos anteriores e posteriores ao episódio traumático, não existindo atualmente capacidade por parte da examinanda em recordar memórias associadas ao período temporal em que ocorreu o trauma». Ora, não obstante a autora não recordar o momento traumático que consistiu na agressão mais grave, ou seja, o disparo da arma de fogo, o certo é que a mesma, apesar das gravidade das lesões, recuperou a consciência e relatou à testemunha militar da GNR, FF, que entretanto chegou ao local, ter acordado e retirado a fita que lhe tapava a boca, a mesma fita que a testemunha FF diz que a recorrida tinha em volta do pescoço. Ademais, a autora tem consciência dos factos que antecederam a agressão mais grave, confirmando a presença de DD e do sobrinho EE no local dos factos, no interior da residência, e descreveu de forma clara o comportamento de um e outro: o último beijou-a e alertou-a para presença do tio, bastante alterado e o DD que entrou na residência e começou a agredi-la. Ora, as falhas de memória da autora relativamente ao momento em que o dito DD disparou a arma de fogo, não impedem a memória dos outros factos que a mesma relatou, sendo merecedores de credibilidade na medida do apurado, soçobrando assim o argumento da recorrente de que pelo facto do Relatório pericial identificar dificuldades de memória sobre aquele momento traumático, o depoimento da recorrida não possa ser valorado quanto aos momentos que antecederam e que se seguiram ao referido disparo de arma de fogo. Ademais, não é despiciendo que a autora tenha apresentado, no mesmo dia em que ocorreram os factos [10.11.2019], queixa na GNR por estar a ser ameaçada de morte, conforme alerta dado pelo irmão de DD, o que foi confirmado pela própria autora e pela testemunha FF. Temos assim que as declarações de parte da autora encontram o devido respaldo na prova documental e testemunhal produzida nos autos, e de acordo com as regras da experiência comum, não podem subsistir dúvidas que o agressor foi o dito DD, o qual veio, aliás, menos de um mês depois, em 05.12.2019, a ser encontrado sem vida na casa onde habitava, extinguindo-se o respetivo procedimento criminal [cfr. certidão do inquérito junta com a petição inicial]. Mantém-se assim inalterados os pontos 5 e 6 dos factos provados. Resulta, pois, do exposto que não se vislumbra uma desconsideração da prova produzida, mas sim uma correta apreciação da mesma, não se patenteando a inobservância de regras de experiência ou lógica, que imponham entendimento diverso do acolhido. Ou seja, no processo da formação livre da prudente convicção do Tribunal a quo não se evidencia nenhum erro que justifique a alteração da decisão sobre a matéria de facto, designadamente ao abrigo do disposto no artigo 662º do CPC. Assim, teremos de concluir que, perante a prova produzida, bem andou a Sr.ª Juíza a quo na decisão sobre a matéria de facto, a qual, por isso, permanece intacta. Da responsabilidade civil Permanecendo incólume a decisão do tribunal a quo quanto à matéria de facto dada como provada e não provada, nenhuma censura há a fazer à decisão recorrida relativamente a esta questão, onde se fez uma correta subsunção dos factos ao direito. Com efeito, resultando inequívoco da factualidade apurada a verificação de todos os pressupostos que permitem ter por verificada a responsabilidade civil de DD, visto a sua conduta ter sido causa adequada, necessária e direta dos danos sofridos pela autora, não podia a sentença deixar de condenar as rés, na qualidade de herdeiras e representantes da herança aberta por óbito de DD e até ao limite desta, nas quantias fixadas a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, na medida do apurado. Por conseguinte, o recurso improcede. As custas, que seriam a cargo da recorrente, nos termos do artigo 527º, nºs 1 e 2, do CPC, não lhe são tributadas por beneficiar de apoio judiciário. IV – DECISÃO Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida. Custas nos termos sobreditos. * Évora, 12 de julho de 2023 Manuel Bargado (relator) Florbela Moreira Lança (1ª adjunta) Albertina Pedroso (2ª adjunta) (documento com assinatura eletrónica) __________________________________________________ [1] Abílio Neto, Novo Código de Processo Civil- Lei nº 41/2013, Anotado, junho de 2013, p. 169. [2] As Declarações de Parte. Uma Síntese, CEJ, Abril de 2017, pp. 25/26. [3] Cfr. Acórdão da Relação de Lisboa de 26.04.2022, proc. 117793/18.5YIPRT-A.L1-7, in www.dgsi.pt. [4] Proc. 2200/08.6TBFAF-A.G1.S1, in www.dgsi.pt. [5] Ibidem, p. 37. |