Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1532/22.5T8STR-H.E1
Relator: MARIA DOMINGAS
Descritores: ADMINISTRADOR JUDICIAL
MODALIDADES DA VENDA
COMPETÊNCIA
Data do Acordão: 09/14/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. O artigo 164.º do CIRE consagrou no seu n.º 1 uma modalidade de venda preferencial, a qual poderá, ainda assim, ser afastada pelo administrador judicial; todavia, eventual opção por qualquer outra modalidade de venda – e o AJ poderá escolher dentre as admitidas em processo executivo ou qualquer outra que tenha por mais conveniente – terá que ser justificada.
II. O mesmo preceito atribui ao AI a competência exclusiva para fixar o valor da venda, resultando do n.º 2 do preceito apenas e só a obrigatoriedade de audição dos credores com garantia real, que serão sempre ouvidos “sobre a modalidade de alienação, e informados do valor base fixado ou do preço de alienação projectada a entidade determinada”.
III. Não deve ser aceite pelo Sr. AI proposta de aquisição do imóvel que era a casa de morada de família dos insolventes, apresentada por credor com garantia real, se o montante oferecido é inferior ao valor base fixado e insuficiente para garantir a satisfação de todos os créditos reconhecidos e encargos com o processo a cargo da massa insolvente, ainda que com o compromisso de arrendarem o imóvel aos devedores.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1532/22.5T8STR-H.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Santarém
Juízo do Comércio Santarém - Juiz 3


I. Relatório
Decretada nos autos principais a insolvência de (…) e de (…), foi apreendido para a massa o prédio misto sito em Vale do (…) ou (…), freguesia de (…), concelho de Santarém, composto de casa de rés-do-chão, anexo amplo para garagem e arrumos e logradouro e terra de cultura arvense, oliveira e vinhas, descrito na Conservatória do Registo Predial de Santarém sob o n.º …/…, da freguesia de (…), casa de morada de família dos devedores insolventes.

O Sr. AI reconheceu créditos no montante de € 73.213,51, encontrando-se garantidos por hipoteca sobre o identificado imóvel os créditos titulados pela CCAM de (…), no valor de € 46.268,69, e do (…) Banco, SA, no valor de € 16.841,52.

Cumprido o disposto no artigo 164.º do CIRE, veio a credora CCAM requerer que se procedesse à venda por negociação particular directamente à própria, oferecendo o preço de € 73.300,00, que cobre os créditos reconhecidos, adiantando ainda que cobriria “eventuais custos da massa e encargos com a venda, caso existam, em mais € 4.700,00, ou seja, até ao limite global de € 78.000,00 (oferta total e limite)”, proposta cuja aceitação requereu.

Mediante requerimento apresentado nos autos em 28 de Dezembro os insolventes pronunciaram-se no sentido de o imóvel dever ser adjudicado à credora Caixa Agrícola, considerando que o valor da proposta satisfazia o interesse dos credores, assegurando ao mesmo tempo a salvaguarda do direito dos devedores a uma habitação condigna, dado o compromisso daquela credora em permitir que a família continue a ocupar a casa mediante a celebração de um contrato de arrendamento.

Notificado o credor (…) Banco, SA, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 164.º do CIRE, requereu que a venda fosse efectuada mediante leilão electrónico, indicando como valor base a anunciar € 120.000,00.

A CCAM opôs-se à pretensão do (…) Banco, fazendo notar que a pronúncia foi feita por uma entidade denominada (…), que não tem legitimidade para o efeito, considerando que não há notícia nos autos de ter ocorrido cessão do crédito. Acrescentou que o valor indicado se encontra claramente inflaccionado, reiterando que o imóvel lhe deve ser adjudicado, devendo ser aceita a proposta antes apresentada, tanto mais que se trata da casa de morada de família dos insolventes.

O Sr. AI determinou que a venda fosse efectuada mediante leilão electrónico, indicando como preço base o indicado pelo (…) Banco.

Tendo os insolventes insistido por requerimento de 18 de Janeiro para que o Tribunal se pronunciasse sobre o anterior requerimento, veio a ser proferido no apenso de liquidação despacho em 3 de Fevereiro – objecto do presente recurso – com o seguinte teor:
“O processo de insolvência é um processo de execução universal que visa vender os bens do insolvente pelo maior preço possível com vista à satisfação dos direitos dos credores, e não a venda por preço inferior a determinados intervenientes.
Assim, e sem prejuízo da audição dos credores garantidos, a alienação dos bens é feita pelo Sr. AI em observância do disposto no artigo 164.º do CIRE e preferencialmente por leilão electrónico.
Pelo exposto e com os fundamentos que antecedem, não se atende ao requerido pela credora CCM, devendo o Sr. AI prosseguir com a venda por leilão electrónico e sem prejuízo do disposto no artigo 164.º, n.º 3, do CIRE.
Notifique”.

Inconformados, apelaram os insolventes e, tendo desenvolvido nas alegações apresentadas os fundamentos da sua discordância com o decidido, formularam a final as seguintes conclusões:
1.ª Os credores tiveram oportunidade de se manifestar relativamente à modalidade de venda do imóvel pertencente à massa insolvente.
2.ª O credor hipotecário, Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de (…), CRL, manifestou o seu interesse em adjudicar o imóvel, por valor que satisfaz os interesses dos credores e da massa insolvente.
3.ª Os insolventes/recorrentes requereram que o imóvel fosse adjudicado ao Credor C.A., e explicaram que dessa forma ficavam assegurados os interesses dos credores, bem como os encargos e despesas do processo, e os interesses dos insolventes, dando-lhe a oportunidade de manter uma habitação, com o futuro arrendamento da mesma pelo credor adjudicatário.
4.ª O tribunal a quo decide indeferir o requerido – porque, para o julgador a quo, “assegurar o interesse dos credores” exige que o imóvel seja “vendido em leilão por preço superior” – desprezando e ignorando, completamente, o alegado pelos únicos intervenientes que se pronunciaram, os Insolventes e o Credor C.A., e sem apresentar qualquer fundamento para essa decisão.

Requerem a revogação da decisão recorrida e sua substituição por outra “que defira o requerido pelos Insolventes/Recorrentes, nos termos também oportunamente requeridos pelo Credor adjudicatário Caixa Agrícola, determinando-se, em consequência, a adjudicação do imóvel (e casa de habitação do Insolvente) a este Credor em sede de Liquidação, uma vez que tal adjudicação protege e satisfaz na íntegra os interesses de todos os credores, cumprindo assim a finalidade e objectivo do processo de Insolvência, sem, todavia, sacrificar desproporcionalmente e desequilibradamente os interesses dos Insolventes aqui recorrentes, designadamente, tendo oportunidade de manter a habitação, através de um futuro arrendamento pelo credor adjudicatário”.
Mais requerem que a mesma decisão seja “considerada nula e, em razão disso, também revogada, por violar expressamente o disposto no artigo 615.º, alíneas b) e d), e o artigo 607.º, n.º 4, do C.P.C., e substituída por outra que reconheça e considere os fundamentos constantes dos requerimentos apresentados pelos Insolventes/Recorrentes e pelo Credor C.A., deferindo-se a adjudicação do imóvel a este nos termos acima mencionados”.

O Sr. Juiz pronunciou-se no sentido de a decisão proferida não padecer de qualquer nulidade.
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Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, são as seguintes as questões a decidir:
i. determinar se a decisão recorrida padece das nulidades que lhe são imputadas:
ii. decidir se ocorreu erro de interpretação e aplicação do artigo 164.º do CIRE, devendo ser ordenada a adjudicação do imóvel apreendido para a massa à credora hipotecária CCAM.
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Da nulidade da decisão
Os apelantes imputam à decisão recorrida o vício extremo da nulidade com um duplo fundamento, a saber, por ausência de especificação dos fundamentos de facto e/ou de direito (alínea b) do artigo 615.º do CPC) e ainda por omissão de pronúncia (alínea d) do mesmo preceito). Vejamos se se verifica alguma das causas de nulidade invocadas.
No que respeita ao primeiro fundamento, é unânime o entendimento de que só a absoluta ausência, que não a deficiente, insuficiente ou pouco persuasiva fundamentação, integram a previsão da sobredita alínea b), o que não é o caso dos autos.
Com efeito, estando em causa uma questão de natureza jurídica – determinar a modalidade da venda – o tribunal deu-lhe resposta, indicando caber ao Sr. AI, nos termos da lei, proceder a uma escolha fundamentada caso não siga aquela que a lei aponta como modalidade preferencial, tendo ainda identificado a norma aplicável. Resulta do exposto que o despacho recorrido, sucinto embora, se encontra suficientemente fundamentado, e tanto assim que os ora apelantes desenvolveram nas alegações de recurso argumentação bastante em ordem a contrariá-lo.
No que respeita à nulidade decorrente da omissão de pronúncia, que apenas nas conclusões, mediante invocação da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, foi invocada, dir-se-á brevemente que também não se verifica.
O vício previsto na sobredita alínea d) decorre da violação do dever consagrado no n.º 2 do artigo 608.º e aí delimitado. Nos termos do aqui preceituado, o juiz encontra-se obrigado a resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (e não podendo ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso, caso em que a sentença será igualmente nula, mas por excesso de pronúncia).
Conforme enunciou o STJ no acórdão de 3 de Outubro de 2017 (processo n.º 2200/10.6TVLSB.P1.S1), “II. A nulidade consistente na omissão de pronúncia (…), em directa conexão com os comandos ínsitos nos artigos 608.º e 609.º do CPC, só se verifica quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões ou pretensões que devesse apreciar e cuja apreciação lhe foi colocada. III. A expressão «questões» prende-se com as pretensões que os litigantes submetem à apreciação do tribunal e as respectivas causas de pedir e não se confunde com as razões (de facto ou de direito), os argumentos, os fundamentos, os motivos, os juízos de valor ou os pressupostos em que as partes fundam a sua posição na controvérsia” (é nosso o destaque).
No caso vertente os ora recorrentes pretendiam que o Tribunal acolhesse a pretensão formulada pela CCAM no sentido de o imóvel apreendido para a massa lhe dever ser directamente adjudicado, tendo argumentado para tanto que a quantia oferecida era suficiente para satisfazer todos os credores e os encargos da massa. Tal pretensão não foi acolhida pelo Tribunal, que sustentou ser finalidade do processo insolvencial obter com a venda o maior produto possível em ordem a satisfazer o interesse dos credores, invocando ainda o disposto no artigo 164.º do CIRE, de tudo resultando que o requerido não tinha fundamento legal. A questão colocada pelos requerentes foi, deste modo, apreciada e decidida. A descontento dos mesmos, é certo, mas sem que se verifique qualquer omissão.
Improcedem, pelo exposto, as arguidas nulidades.
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II. Fundamentação
Da modalidade da venda
Os factos a considerar são os que se encontram discriminados no relatório supra.
Conforme resulta das transcritas conclusões, os recorrentes defendem que o Sr. AI deveria proceder à venda directa à credora hipotecária CCAM porquanto, segundo alegam, o preço por esta proposto é suficiente para satisfazer todos os créditos reconhecidos e ainda os encargos da massa, garantindo, do mesmo passo, que continuam a ter uma casa para habitar, dado o compromisso da proponente de proceder ao arrendamento aos mesmos do imóvel apreendido. A venda assim realizada, argumentam, é-lhes mais favorável do que a que eventualmente venha a ocorrer por um valor superior – caso em que teriam direito a receber o remanescente – conciliando os interesses dos credores com o interesse maior dos apelantes em continuarem a dispor da casa que é a da morada da família.
Vejamos se tal argumentação é de acolher.
Conforme tivemos oportunidade de referir anteriormente[1], nos termos da lei insolvencial, enformada por uma nítida e declarada intenção de desjudicialização do processo, a promoção da alienação dos bens que integram a massa insolvente cabe ao administrador nomeado, tarefa que levará a cabo sob a fiscalização do juiz, da comissão de credores e ainda da assembleia de credores, conforme resulta das disposições conjugadas dos artigos 55.º, n.º 1, alínea a), 58.º, 68.º, n.º 1, 79.º e 80.º, todos do CIRE.
Epigrafado de “Modalidades de alienação”, preceitua o artigo 164.º do mesmo diploma legal, na redacção introduzida pelo DL 79/2017, de 30 de Junho[2], para o que aqui releva, que:
1 - O administrador da insolvência procede à alienação dos bens preferencialmente através de venda em leilão eletrónico, podendo, de forma justificada, optar por qualquer das modalidades admitidas em processo executivo ou por alguma outra que tenha por mais conveniente.
2. O credor com garantia real sobre o bem a alienar é sempre ouvido sobre a modalidade da alienação, e informado do valor base fixado ou do preço da alienação projectada a entidade determinada.
(…)”
Resulta da transcrita disposição que o legislador consagrou uma modalidade de venda preferencial, no caso a venda em leilão electrónico, a qual poderá, ainda assim, ser afastada pelo administrador judicial. No entanto, eventual opção por qualquer outra modalidade de venda – e o AJ poderá escolher dentre as admitidas em processo executivo, que prevê a venda directa nos artigos 811.º, n.º 1, alínea c) e 831.º do CPC, ou qualquer outra que tenha por mais conveniente – terá que ser justificada.
Verifica-se, pois, que a actual redacção do n.º 1 do preceito, introduzido pelo DL n.º 79/2017, de 30 de Junho, tendo consagrado uma modalidade de venda preferencial, impôs, do mesmo passo, ao AI, o dever de justificar a sua opção por diversa modalidade, assim restringindo os amplos poderes que lhe são concedidos por lei, nomeadamente no âmbito da liquidação do activo, quando em confronto com a norma a que sucedeu.
Faz-se ainda notar que o mesmo artigo 164.º atribui ao AI a competência exclusiva para fixar o valor da venda – solução esta que não sofreu qualquer alteração –, resultando do n.º 2 do preceito apenas e só a obrigatoriedade de audição do(s) credor(es) com garantia real, que será(ão) sempre ouvido(s) “sobre a modalidade de alienação, e informado(s) do valor base fixado ou do preço de alienação projectada a entidade determinada”, audição obrigatória que surge amplamente justificada quando se considere o disposto nos n.ºs 2 e 3 imediatos, sem embargo de o juiz, no âmbito dos seus poderes de fiscalização, poder/dever a todo o tempo solicitar ao AI as informações e esclarecimentos que entender pertinentes.
Resulta do assim preceituado que ao Sr. AI cabia, independentemente das propostas apresentadas pela CCAM e uma terceira entidade, escolher a modalidade de venda a seguir, sendo que, na ausência de opção fundamentada por modalidade diversa, a preferência da lei recai, como se referiu já, sobre o leilão electrónico. Ao AI cabe ainda, independentemente de eventual sugestão por banda dos credores hipotecários – estivessem ou não regularmente representados – fixar o valor base da venda. Questão diversa desta – e cerne da pretensão dos recorrentes – é saber se o por si alegado é justificação bastante para que o Sr. AI opte por fazer uma venda directa à credora hipotecária CCAM, conforme esta e aqueles pretendem, ainda que por um valor menor do que aquele que previsivelmente será obtido através da venda efectuada na modalidade preferencial – cfr. artigo 164.º, n.º 1, do CIRE.
Nos termos do artigo 1.º do CIRE “o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores…”.
Ora, sendo a satisfação dos credores a finalidade precípua do processo insolvencial, já não o é a obtenção de um valor remanescente, que reverte naturalmente para os devedores.
Reconhecendo a originalidade da situação que se apresenta nestes autos, em que os devedores insolventes se batem pela venda do bem por um preço inferior àquele que poderá ser atingido no leilão electrónico, a verdade é que está em causa um interesse relevante, não sendo a nosso ver de excluir que pudesse ser ponderado em ordem a justificar a opção do Sr. AI por uma diversa modalidade de venda, renunciando os devedores, como renunciam, a eventual remanescente do produto da venda. Sucede, porém, que, ao invés do que os recorrentes pressupõem, o valor máximo da proposta apresentada pela CCAM não cobre o valor dos créditos reconhecidos e já graduados e todos os encargos com o processo, impondo-se ter em consideração, desde logo, a remuneração devida ao Sr. AI, nas suas componentes fixa e variável, a calcular de harmonia com o disposto no artigo 23.º do EAJ, tal como o Sr. Juiz fez notar no seu despacho de sustentação. E falecendo tal pressuposto essencial, a proposta da CCAM não poderia ser aceite, inexistindo assim fundamento para afastar a modalidade preferencial consagrada na lei, tudo sem prejuízo do disposto nos n.ºs 3 e 4 do já citado artigo 164.º. Tal como se considerou no despacho recorrido, que deste modo se confirma.
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III. Decisão
Atento o exposto, acordam os juízes da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida.
Custas do recurso a cargo dos recorrentes, sem prejuízo da isenção de que beneficiam.
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Sumário (…)
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Évora, 14 de Setembro de 2023
Maria Domingas Alves Simões
Rui Manuel Machado e Moura
Isabel de Matos Peixoto Imaginário

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[1] No processo n.º 1911/12.6TBLGS-M.E1, Acórdão de 22 de Outubro de 2020, acessível em www.dgsi.pt
[2] Diploma que iniciou a sua vigência em 1 de Julho de 2017, aplicando-se aos processos pendentes (cfr. artigos 6.º, n.º 1 e 8.º).