Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | MANUEL BARGADO | ||
Descritores: | HERANÇA JACENTE PERSONALIDADE JUDICIÁRIA LEGITIMIDADE PROCESSUAL RECONVENÇÃO | ||
Data do Acordão: | 09/14/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Sumário: | I - Apesar de só a herança jacente gozar de personalidade judiciária, deve considerar-se regularizada a instância em ação intentada contra a cabeça-de casal de herança indivisa se, posteriormente, intervêm todos os herdeiros, e na extensão invocada dessa sua qualidade. II – Tendo os intervenientes feito sua a contestação apresentada pela ré, não apenas contestaram a ação como subscreveram os pedidos reconvencionais por aquela formulados, ficando assim sanada a ilegitimidade da ré/recorrente para, por si só, formular tais pedidos. (Sumário elaborado pelo Relator) | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora I - RELATÓRIO AA e BB instauraram a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra CC, pedindo que a ré seja condenada a: a) Reconhecer que as autoras são donas e legitimas possuidoras do prédio misto descrito nos art.º 1º, 2º e 3º da petição inicial; b) Restituir às autoras o prédio no estado em que o mesmo se encontra livre e desocupado de pessoas e bens; c) Abster-se de praticar quaisquer atos que impeçam ou diminuam o gozo da propriedade das autoras sobre o dito prédio e na sanção pecuniária compulsória de € 50,00 por cada dia que pratique qualquer ato que impeça ou diminua o exercício daquele direito de propriedade. Alegam, em síntese, que aquele prédio foi adquirido pelos pais das autoras, tendo-o doado posteriormente às autoras, estando estas, por si e seus antecessores, na posse legítima do referido prédio desde há mais de quarenta e quatro anos, pelo que, se outro título não houvesse, sempre as autoras o teriam adquirido por usucapião. Os pais das autoras, que à data se encontravam a residir no estrangeiro, por ajuste verbal, celebraram no ano de 1983, contrato de arrendamento da parte rústica do referido prédio com DD casada com EE, tendo-lhe entregue o prédio para que aquela o cultivasse e colhesse os respetivos frutos, com a obrigação de o restituir logo que os pais das autoras a interpelassem, tendo a dita DD abandonado o prédio no ano de 1995, sem nada comunicar aqueles, tendo aí permanecido o seu cônjuge EE, o que fez à revelia dos pais da autora e sem sua autorização, e apesar de várias vezes instado a sair, sempre se recusou a fazê-lo. Mais alegam que o referido EE construiu uma moradia no prédio, a que se opuseram os pais das autoras e estas, como aquele bem sabia. Como a construção não estava legalizada, o pai das autoras desenvolveu todos os procedimentos necessários junto da Câmara Municipal de Salvaterra de Magos para legalização da construção, o que veio a verificar-se com a obtenção do Alvará de Licença de Utilização emitido em 21 de novembro de 2000, tendo aquele participado a moradia em 28.01.2003 no competente serviço de Finanças de Salvaterra de Magos. Após o falecimento do dito EE em maio de 2021, as autoras pretenderam tomar conta da referida moradia, tendo interpelado a ré para entregar as respetivas chaves, o que aquela não fez nem nada disse. A ré contestou, excecionando e impugnando. Por exceção invocou a preterição de litisconsórcio necessário passivo, por estar desacompanhada dos demais herdeiros do mencionado EE. Por impugnação sustenta ser falsa parte da factualidade alegada na petição inicial (artigos 16º a 21º), contrapondo, nomeadamente, que em 1995 os pais da ré e os pais das autoras acordaram na devolução dos primeiros aos segundos da parte do prédio arrendado para exploração agrícola, com exceção parte urbana na qual estava implantada a moradia que habitavam, mantendo os últimos a promessa de vender e o pai da ré a promessa de comprar o prédio, tendo este com autorização e conhecimento dos pais das autoras ampliado a construção existente para instalação de um restaurante que explorou a partir de Abril de 2004 e até meados de 2006. Deduziu ainda a ré pedido reconvencional, pedindo que: a) seja declarado que a herança ilíquida e indivisa por óbito de EE, é dona e legitima proprietária da parcela de terreno com a área 2100,2700 m2, na qual está implantada a moradia construída pelo autor da herança por este a ter adquirido por acessão industrial imobiliária, mediante o pagamento da quantia de 3.000,00 € (três mil euros) ou daquela que se vier a julgar a correspondente ao valor da parcela à data da construção da moradia; b) as autoras sejam condenadas a reconhecer o direito de propriedade da herança ilíquida indivisa, aberta por óbito de EE, sobre a referida parcela de terreno e sobre o imóvel nela edificado; c) caso assim não se entenda, devem as autoras ser condenadas: 1. no pagamento do montante correspondente à valorização que as benfeitorias (insuscetíveis de levantamento) trouxeram ao prédio, valor esse a encontrar através da diferença entre o valor da parcela de terreno com o imóvel construído e o valor da mesma parcela sem o imóvel nela edificado; 2. a reconhecer à herança ilíquida indivisa por óbito de EE, o direito de retenção sobre a parcela do prédio até à satisfação do seu direito de crédito fundado no enriquecimento sem causa dos AA. Foi apresentada réplica, concluindo as autoras do seguinte modo: «a) Seja admitida a intervenção principal provocada de FF e de GG, como associados da R., como herdeiros da herança ilíquida e indivisa deixada por óbito de EE, ao abrigo do disposto no art.º 316º do C.P.C.; b) seja a reconvenção deduzida pela R. ser julgada improcedente por não provada e em consequência prosseguirem os autos seus termos até final peticionado.» Foi proferida decisão a admitir a intervenção dos referidos herdeiros. Citados, os chamados/intervenientes vieram dizer que faziam seu o articulado da ré. Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador no qual não se admitiu a reconvenção, tendo também sido indeferida a perícia requerida pela ré, por a mesma respeitar aos pedidos reconvencionais deduzidos. Inconformada, a ré apelou do assim decidido, tendo finalizado a respetiva alegação com a formulação das seguintes conclusões: «1. A Ré é a cabeça de casal na herança aberta por óbito de seu pai EE, falecido em 31 de Maio de 2021. 2. Em reconvenção A Ré, ora apelante, peticionou que: (…)[1] 3. As Autoras vieram requerer, ao abrigo do disposto no art.º 316º do CPC, a intervenção principal provocada dos demais herdeiros de EE. 4. A Mma. Juiz “a quo” admitiu a intervenção principal provocada de FF e de GG e ordenou a sua citação. 5. Os chamados citados, nos termos do art.º 319º do CPC, vieram dizer, cada um deles, que fazia seu o articulado da Ré reconvinte, ora recorrente. 6. A herança ilíquida e indivisa já aceite pelos sucessíveis não tem personalidade judiciária, pelo que terão que ser os herdeiros ou o cabeça de casal, se a questão se incluir no âmbito dos seus poderes de administração, a assumir a posição (activa ou passiva) no âmbito de uma acção judicial em que estejam em causa interesses de acervo hereditário.” (A. TRC, de 26.02.219, Proc. 1222/16.8T8VIS– C.C1, in www.dgsi.) 7. Os intervenientes, subscrevendo o articulado apresentado pela Ré, não apenas contestaram a acção como subscreveram os pedidos reconvencionais por aquela formulados. 8. Ficou, portanto, sanada a ilegitimidade da Ré, ora apelante, para, por si só, formular os pedidos reconvencionais. 9. Tendo sido formulado pela Ré, ora recorrente e pelos intervenientes o pedido de condenação das AA no reconhecimento do direito dominial da herança líquida indivisa de que são os únicos herdeiros, 10. incorreu a decisão recorrida em erro de julgamento ao não admitir os pedidos reconvencionais formulados pelos RR e a realização da perícia, requerida ao abrigo do disposto no n.º 1 do art.º 475.ºdo CPC, que se mostra indispensável ao apuramento dos valores da parcela de terreno na qual foi construído o imóvel e do valor que a construção do imóvel acrescentou para efeitos de acessão imobiliária e indemnização por benfeitorias. 11. A decisão recorrida violou, por conseguinte, o disposto nos artigos 2091.º, n.º 1 do C. Civil e 266.º, n.ºs 1 e 2 do Código do Processo Civil Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, com o suprimento de Vossas Excelências ao ora alegado, deverá ser dado provimento ao presente recurso e, por via dessa decisão, revogada a decisão recorrida e admitidos os pedidos reconvencionais.» Não foram apresentadas contra-alegações. Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir. II – ÂMBITO DO RECURSO Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), a questão essencial decidenda consubstancia-se em saber se, ao invés do decidido, deve ser admitida a reconvenção e deferida a realização da perícia requerida. III – FUNDAMENTAÇÃO OS FACTOS Os factos que relevam para o conhecimento do mérito do recurso são os que constam do relatório supra, havendo ainda a considerar: - Por óbito de EE sucederam-lhe como seus únicos herdeiros os seus quatro filhos, a saber: FF, GG, CC, ora ré/reconvinte, e HH, (doc. 1 junto com a contestação). - Por escritura pública outorgada no Cartório da notária …, em 14.02.2022, HH cedeu à ré/reconvinte o quinhão hereditário, direito de que é titular na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de seu pai (doc. 2 junto com a contestação). - Na referida escritura consignou-se que da mencionada herança faz parte exclusivamente o prédio urbano, inscrito na matriz predial sob o art.º …, com o valor patrimonial de € 115.500,00 (docs. 2 e 3 juntos com a contestação). O DIREITO Para fundamentar a não admissão da reconvenção, ponderou-se na decisão recorrida «que os pedidos reconvencionais deduzidos têm por referência a herança ilíquida e indivisa por óbito de EE. Sucede que esta herança não é parte na ação e por isso não pode a ré, por si só em juízo, formular tais pedidos». Está assim em causa saber quem são as partes na ação. Resulta do art. 12º, al. a), do CPC que apenas a herança jacente, a herança aberta mas ainda não aceite, nem declarada vaga para o Estado (art. 2046º do CC), goza de personalidade judiciária. Uma vez aceite, e ainda que indivisa, a herança fica na titularidade dos herdeiros, cabendo conjuntamente a todos eles o exercício dos correspondentes direitos (art.º 2091º do CC), salvas as exceções previstas na lei (que não se aplicam às situações em causa nos autos – titularidade da propriedade). A herança indivisa aberta por óbito do referido EE, pai da ré e dos intervenientes, porque manifestamente já aceite, não teria, assim, virtualidade para ser parte na ação, cabendo essa função ao conjunto dos respetivos herdeiros. Ocorre, porém, que a herança ré/reconvinte se encontra representada pelo conjunto daqueles herdeiros, pois resulta dos autos que a ré/reconvinte e os intervenientes são, atualmente, os únicos e universais herdeiros da referida herança. Daí que se entenda – e se tenha entendido no saneador[2] - que a instância se encontra regularizada, ocupando a ré e os intervenientes, enquanto únicos e universais herdeiros daquela herança, a parte passiva da mesma (réus/reconvintes). De notar ainda que os intervenientes FF e GG, ao fazerem sua a contestação apresentada pela ré, não apenas contestaram a ação como subscreveram os pedidos reconvencionais por aquela formulados, ficando assim sanada a ilegitimidade da ré/recorrente para, por si só, formular tais pedidos[3]. Ora, tendo sido formulado por todos – ré e intervenientes - o pedido de condenação das autoras no reconhecimento do direito de propriedade da herança líquida indivisa de que são os únicos herdeiros, não podia deixar de ser admitida a reconvenção (cfr. art. 266º, nº 1 e nº 2, als. b) e d), do CPC). Assim, terá também de ser deferida a realização da perícia requerida pela ré ao abrigo do disposto no art. 475º, nº 1, do CPC, por a mesma se afigurar necessária ao apuramento dos valores da parcela de terreno na qual foi construída a moradia, e do valor que a construção do imóvel acrescentou para efeitos de acessão imobiliária e indemnização por benfeitorias, considerando o pedido subsidiário formulado em sede reconvencional. Por conseguinte, o recurso merece provimento. Vencidas no recurso, suportarão as autoras/recorridas as respetivas custas – art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC. IV – DECISÃO Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, admitindo-se a reconvenção e deferindo-se a realização da perícia requerida pela ré. Custas pelas recorridas. * Évora, 14 de setembro de 2023 Manuel Bargado (Relator) Florbela Moreira Lança (1ª Adjunta) Graça Araújo (2ª Adjunta) (documento com assinatura eletrónica) __________________________________________________ [1] O teor da reconvenção foi já transcrito supra. [2] Escreveu-se no saneador: «A questão suscitada pela ré da sua ilegitimidade passiva ficou sanada com a intervenção principal provocada de FF e de GG. As partes são legítimas». [3] Cfr. Acórdão do STJ de 16.12.2021, proc. 680/15.2T8BGC.G1.S1, in www.dgsi.pt. |